Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
186/10.6TBIDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
CAÇA
MONTARIA
ACTIVIDADE PERIGOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA
FACTOS ESSENCIAIS
Data do Acordão: 05/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - IDANHA-A-NOVA - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.483, 493 Nº2 CC, LEI Nº 173/99 DE 21/9, 5 CPC
Sumário: 1. Os factos essenciais que resultem da instrução da causa, ainda que sejam complemento ou concretização de outros alegados pelas partes, não poderão ser considerados pelo juiz, a não ser que, até ao encerramento da audiência, a parte tenha manifestado a vontade de se aproveitar de tais factos, ou que o juiz, oficiosamente, tenha dado às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre a sua aquisição para o processo.

2. A organização de uma montaria é de considerar, em si mesma, uma atividade perigosa e, como tal, sujeita à previsão de culpa prevista no nº2 do artigo 493º do CC.

3. Ao abrigo de tal norma, o lesado apenas tem de provar os factos que constituem a base de tal presunção – que o lesante é o responsável por tal atividade e que os danos foram causados no âmbito de tal atividade – e, uma vez demonstrada, o lesante só se exonerará da responsabilidade provando que empregou os deveres no tráfego ajustados ao impedimento da concretização daquele potencial lesivo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

C (…) intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo sumário contra:

1. Associação de Caça e Pesca (…), e

2. Companhia de Seguros (…), S.A.,

alegando em síntese o seguinte:

no exercício da sua atividade, enquanto associação de caça e pesca que organiza eventos cinegéticos (montarias, batidas e largadas), a 1ª Ré organizou uma montaria no dia 17 de Novembro do ano 2007, em que o Autor participou, mediante o pagamento de €70,00;

 no evento participaram cerca de 60 caçadores todos eles dispostos nos sítios indicados por pessoas que cumpriam ordens da 1ª Ré, dentro da linha que define o perímetro da zona de caça, e cada um deles com uma arma de caça munida de balas, pronta a ser utilizada no abate de javalis;

iniciado o evento e largados os cães conduzidos por matilheiros da organização, foram aparecendo os primeiros javalis, uns passaram pelos sítios onde estavam os caçadores e fugiram, outros eram abatidos com tiro de bala atirados pelos caçadores que faziam parte da montaria;

quando o autor olhava para o javali que havia abatido foi atingido por uma bala na zona da tíbia e do perónio da perna esquerda;     

desconhecendo-se, embora, a pessoa que, em concreto disparou o tiro com aquela bala que atingiu o Autor, a bala foi disparada por alguém que estava a participar no evento – montaria – organizado pela 1.ª Ré, pelo é aquela responsável civilmente pela reparação dos danos que sofreu, nos termos do disposto no artigo 37.º da lei da caça e n.º 2 do artigo 493º do C.C., responsabilidade transferida por contrato de seguro para a 2.ª Ré.

Conclui pedindo a condenação solidária das rés no pagamento da quantia de 29.099,46 €, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.

A 1ª Ré, Associação de Caça e Peça, contestou, afirmando ter cumprido todas as normas e regras de segurança aplicáveis à organização de montarias para caça ao Javali, ficando o acidente a dever-se à violação das regras de segurança da própria vítima, que saiu da porta que lhe fora destinada e foi junto do javali que tinha abatido; de qualquer modo, caso venha a ser considerada responsável, a sua responsabilidade civil está transferida para a 2ª Ré pelo que só esta responderá.

Conclui pela sua absolvição do pedido.

A 2.ª Ré Seguradora contestou, alegando que o acidente se deveu a culpa exclusiva de um dos caçadores intervenientes na caçaria, o colocado na porta 60, que, ignorando a posição do autor na porta 59, atirou nesta direção, a um javali que passava entre as portas 59 e 60, o que é expressamente proibido; tendo o tiro sido disparado por um outro caçador e uma vez que todos os participantes tinham seguro de responsabilidade civil pelos danos decorrentes da atividade da caça, estará excluída a responsabilidade da Ré.

 Também ela conclui pela sua absolvição do pedido.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação a improcedente, absolvendo, em consequência, as Rés dos pedidos.

.

Não se conformando com a mesma, o autor dela interpõe recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:

(…)

Pela recorrida Seguradora foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
Cumpridos que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo[1] –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Aditamento à matéria de facto a considerar.
2. Responsabilidade da 1ª Ré, Associação de Caça e Pesca, e da 2ª Ré, sua seguradora.
3. Montante da indemnização a arbitrar ao autor.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Aditamento à matéria de facto.

Os tribunais da Relação, sendo tribunais de segunda instância, têm atualmente competência para conhecer tanto de questões de direito, como de questões de facto.

Segundo o nº1 do artigo 662º do NCPC, a decisão proferida sobre a matéria de pode ser alterada pela Relação, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Nas alegações de recurso, o Apelante formula a pretensão de aditamento à matéria de facto dos seguintes factos que se encontrariam confirmados pelas testemunhas D... e V..., Diretores da Associação Ré:

a) Ninguém chamou a GNR após o acidente descrito nos autos;

b) Ninguém fez qualquer fiscalização da posição dos caçadores durante a montaria.

A Apelada Seguradora opõe-se, desde logo, a tal aditamento, quer pelos factos em causa não terem sido alegados pelo autor, quer ainda pela irrelevância do primeiro para a decisão do litígio.

Quanto ao primeiro dos factos cujo aditamento é requerido, é absolutamente irrelevante para qualquer das questões a decidir na presente ação, desde logo porque nem sequer é alegado qualquer agravamento das lesões por falta de socorro imediato.

Quanto ao segundo facto, não tendo o mesmo sido alegado pelo autor ou por qualquer das partes nos seus articulados, o mesmo só poderia ter sido considerado pelo tribunal a quo ao abrigo do disposto no nº2 do artigo 5º do Novo CPC, integrando uma das hipóteses aí previstas:

a) factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) factos que sejam complemento ou concretização do que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido possibilidade de se pronunciar;

c) factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

Às partes, e só a elas, incumbe alegar os factos principais (essenciais) da causa, isto é, os que integram a causa de pedir ou aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (nº1 do artigo 5º), o que implica que o juiz não pode considerar na sua decisão factos principais diversos dos alegados pelas partes.

Consagrando o artigo 5º, o ónus de alegação ou, nas palavras de Lebre de Freitas, o monopólio das partes na alegação dos factos essenciais[2], a distinção efetuada nas alíneas a) e b) do seu nº 2, impõe a delimitação precisa entre factos principais e factos instrumentais e, dentro dos factos principais, os factos complementares, desde já se salientando que, quanto aos factos principais, eles dependem sempre da alegação da parte – alegação a efetuar nos articulados no caso de factos que constituem a causa de pedir ou a exceção, ou até ao encerramento da discussão, relativamente àqueles que a complementem.

Vejamos o que deve entender-se por “factos instrumentais”.

Lebre de Freitas explicita o âmbito de tal conceito, pela seguinte forma: “Para chegar à conclusão sobre a realidade dos factos principais, o tribunal, exceto, por vezes, na prova por inspeção, lança mão de regras da experiência que estabelecem a ligação entre eles e os factos (probatórios) com os quais é diretamente confrontado, tidos em conta factos (acessórios) que permitem a aferição concreta dessa ligação. Estes factos (probatórios e acessórios) são factos instrumentais, que como tais não têm que ser alegados pelas partes, podendo surgir no decorrer da instrução da causa.[3]

Segundo Lopes do Rego os factos instrumentais ou “probatórios” “destinam-se a realizar prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa[4]”.

No entendimento de Miguel Teixeira de Sousa[5], que há muito defendia a desnecessidade da sua alegação, os factos instrumentais destinam-se a ser utilizados numa função probatória – a sua função é apenas a de servir de prova indiciária dos factos principais, pelo que o momento da sua relevância processual não é o da alegação dos factos, mas o da instrução. Assim, afirma tal autor já na vigência do atual código: “Factos instrumentais são os que indiciam, através de presunções legais ou judiciais (cfr. arts. 349º a 351º, do Código Civil), os factos que constituem a causa de pedir ou os factos complementares; os factos instrumentais compõem a base de uma presunção e a causa de pedir ou os factos complementares os factos presumidos; por tanto os factos instrumentais cumprem apenas uma função probatória dos factos indispensáveis à procedência da causa[6]”.

Dentro de tal conceito, integrarão factos instrumentais, numa ação de responsabilidade por acidente de viação, o exemplo habitualmente citado de um determinado rasto de travagem, relativamente aos factos principais integrantes de uma velocidade excessiva (ter ocorrido dentro de uma localidade, a velocidade a que circulava em concreto, a intensidade do tráfego).

Factos principais (essenciais) serão aqueles que integram a causa de pedir – os factos constitutivos do direito do autor ou integrantes do fato cuja existência ou inexistência se afirma – e os que fundamentam as exceções, cuja alegação terá de ser feita pelas partes nos seus articulados.

O legislador permite ainda considerar, de entre os factos principais, aqueles que completando ou concretizando os alegados nos articulados, se tornem patentes na instrução da causa.  

Factos complementares serão aqueles que na economia de uma fatispecie normativa complexa, desempenham uma função secundária ou acessória relativamente ao núcleo essencial da causa de pedir ou da defesa. Os factos concretizadores conexionam-se com a ideia base de que a matéria de facto alegada não ficou suficientemente preenchida através da alegação pela parte onerada de meros conceitos ou conclusões[7].

Assim delimitado o conceito de factos instrumentais, será isento de dúvida que o facto que o autor pretende ver aditado não é um facto instrumental mas um facto principal. E, aí chegados, torna-se irrelevante, no caso em apreço, apurar se nos encontramos perante um facto verdadeiramente “novo” ou se apenas um facto concretizador ou complementar de outros já alegados pelo autor, uma vez que, ainda que se tratasse de um facto complementar ou concretizador, para que pudesse ter sido tomado em consideração pelo juiz, o autor deveria ter manifestado a vontade de dele se aproveitar.

É certo que o artigo 5º deixou de fazer menção à exigência da “manifestação de vontade da parte interessada de deles de aproveitar”, anteriormente contida no nº3 do artigo 264º, mantendo-se apenas a referência, agora reportada a ambas as partes, “desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”.

Contudo, no entender de José Lebre de Freitas,o sentido é necessariamente o mesmo: a parte que tinha o ónus de alegar o facto, por integrar, juntamente com os já alegados, a causa de pedir ou a base fáctica da exceção, tem uma oportunidade de o introduzir na causa (…); à contraparte, interessada ao invés, em que o facto na seja considerado, é dada a oportunidade de se pronunciar, pondo em causa a sua ocorrência ou o meio de prova de que ele resultou; se, anormalmente, a parte interessada não se manifestar no sentido do aproveitamento do facto, o juiz não poderá fazê-lo por ela, por se tratar dum facto principal de que não lhe cabe conhecer oficiosamente[8]”. Assim, segundo tal autor, tão pouco na introdução destes novos factos pode o juiz pode substituir-se às partes, só podendo por ele ser considerados se a parte neles interessada manifeste a vontade de deles de aproveitar, alegando-os[9].

A nosso ver, tal posição não obsta a que o juiz, oficiosamente, e caso no decurso da audiência se aperceba de algum facto complementar ou concretizador dos alegados pelas partes, não possa ouvi-las quanto à oportunidade de consideração de tal facto, ficando-lhe tão só vedado a possibilidade de considerar na sentença um facto não oportunamente alegado pelas partes nos respetivos articulados ou que resultando da instrução da causa, não tenha sido dada oportunidade às partes de sobre ele se pronunciarem[10].

Ora, no caso em apreço, não resultando dos autos que até ao encerramento da audiência, o autor tenha manifestado a vontade de se aproveitar de tal facto, ou que o juiz, oficiosamente, tenha dado às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre a sua aquisição para o processo. Como tal, ainda que tal facto possa ter resultado da instrução da causa, não poderia ter sido considerado pelo juiz a quo na sentença recorrida, não podendo igualmente ser tido em consideração por este tribunal.

Concluindo, indefere-se a requerida apreciação da prova para fins de aditamento de tais factos.

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A. Matéria de Facto
São os seguintes os factos dados como provados nos presentes autos, que se mantêm inalterados:
1. A 1.ª Ré é uma associação de caça e pesca que organiza eventos cinegéticos (montarias, batidas e largadas).
2. No exercício da sua atividade organizou uma montaria no dia 17 de Novembro de 2007 na zona de Alpreade, freguesia, concelho e comarca de Idanha-a-Nova.
3. Para o efeito são convidados caçadores, uns associados e outro não.
4. Os convidados caçadores, associados ou não procedem ao pagamento de cerca de 75,00 €, por participação.
5. Existem, contudo, convidados da direção que não pagam qualquer valor.
6. O Autor, nessa qualidade, não procedeu ao pagamento de qualquer valor.
7. Previamente ao dia 17 de Novembro de 2007 e depois de obtidas as devidas autorizações oficiais, foi planificada a zona por onde seriam distribuídas as portas e penetrariam os matilheiros com os cães.
8. A apresentação dos monteiros, sócios e convidados, foi conferida individualmente a documentação, o seguro, a licença de uso e porte de arma e a licença de caça.
9. Todos os participantes estavam na posse de e todos os documentos válidos e indispensáveis à presença na Montaria.
10. É a 1.ª Ré como organizadora que determina o sítio onde é colocado cada um dos caçadores.
11. Cada um dos caçadores é colocado num determinado sítio previamente determinado pelo organizador.
12. A localização, referida no artigo anterior, é o sítio onde o caçador deve estar todo o tempo, enquanto durar o evento, sítio que se designa por “ porta”.
13. A distribuição das portas pelos caçadores foi feita por sorteio.
14. É a 1.ª Ré que procede à organização das viaturas para os caçadores dentro da zona de caça, disponibilidade de cães, colocação de caçadores em cada uma das portas, inicio e fim do evento, verificação de documentos, etc..
15. Que zela pela segurança dos caçadores, colocando-os em sítios seguros.
16. O autor foi um dos caçadores que, no dia 17 de Novembro de 2007, este no evento (montaria) organizado pela Ré.
17. Para além do autor estiveram no mesmo evento cerca de 60 caçadores todos eles dispostos nos sítios indicados por pessoas que cumpriam ordens da Ré.
18. Antes da colocação dos monteiros nas portas, foi feita, pelo Director da Montaria, a preleção habitual, tendo sido explicados e repetidos os comportamentos a adotar, os conselhos e recomendações a seguir, as normas e diretrizes a cumprir e as proibições a respeitar.
19. A cada monteiro foi entregue um sobrescrito com o número da porta sorteada, a identificação do postor e da viatura que o transportaria ao respetivo local e um documento com as regras impostas.
20. Todos os caçadores foram colocados dentro da linha que define o perímetro da zona de caça e cada um deles com uma arma de caça carabina, munida de balas, ou espingarda, munida de cartuchos, pronta a ser utilizada no abate de javalis.
21. Tendo sido posicionadas, à volta de um vale, com uma distância entre elas de cerca de 50 metros e na perpendicular à zona em que atuariam os matilheiros e seus cães.
22. O evento iniciou-se cerca das 10horas.
23. O início e o fim da Montaria foram sinalizados com foguetes.
24. Foram largados os cães conduzidos por matilheiros da organização, após a largada dos cães forem aparecendo os primeiros javalis, uns passaram pelos sítios onde, estavam os caçadores e fugiram, outros eram abatidos com tiro de bala a tirados pelos caçadores que faziam parte da montaria.
25. O Autor foi atingido após a saída de javalis da encosta, tendo um sido abatido pelo próprio e outro por J (…)
26. Foi atingido por uma bala na zona da tíbia e do perónio da perna esquerda, desconhecendo-se pessoa que, em concreto disparou o tiro com aquela bala que atingiu o Autor, mas sendo alguém que estava a participar no evento.
27. O que lhe provocou fraturas múltiplas na tíbia e no perónio, nomeadamente fratura exposta distal dos ossos da perna esquerda de grau II.
28. O Autor encontrava-se no sítio que lhe havia sido destinado pela organização.
29. Nesse mesmo dia foi submetido a cirurgia no Hospital (...) , para onde foi transportado de urgência.
30. Em consequência do referido em 26. foi colocado ao Autor material de osteossíntese, placa com parafusos de fixação ao nível do perónio e placa distal com parafusos de fixação ao nível da tíbia.
31. Em virtude do acidente o Autor sofreu dores.
32. O Autor não podia colocar o pé no chão, tinha que estar sentado com a perna elevada em posição o corpo.
33. Quando se deitava tinha que colocar almofadas por baixo da perna a elevar.
34. Facto que, acompanhado pelas dores, impedia o Autor de dormir muitas noites.
35. O Autor usou durante quatro meses cadeira de rodas para se deslocar.
36. O Autor teve que ter acompanhamento psiquiátrico.
37. O Autor ainda tem atualmente dores na zona lesada, o que lhe dificulta a locomoção.
38. O Autor deixou, definitivamente de caçar, o que o desgosta.
39. O Autor deixou fazer exercício físico porque tem dores, bem como porque há um risco acrescido de provocar uma nova lesão agravada em caso de queda.
40. Ficou com uma incapacidade (défice funcional permanente da integridade físico-psíquica) que se calcula em 15%.
41. A data de consolidação médico-legal das lesões é fixável em 21 de Maio de 2008.
42. O Período de défice funcional temporário total é fixável num período de 15 dias.
43. Período de défice funcional temporário parcial é fixável num período de 171 dias.
44. Período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável num período total de 186 dias.
45. As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente nas atividades agrícolas compatíveis com o exercício da actividade habitual (agricultura de subsistência), mas implicam esforços suplementares.
46. O quantum doloris fixável no grau 5 em 7.
47. O dano estético permanente fixável no grau 4 em 7.
48. A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 4/7.
49. O Autor foi acompanhado pelo médico Dr. (…) que o operou no Hospital (...) a quem pagou consultas no valor de € 650,00.
50. Como não podia movimentar-se a pé nem conduzir viaturas teve que contactar com os Bombeiro de Caldas da Rainha para o respetivo transporte a fim de fazer tratamentos.
51. Pagou em deslocações € 320,50.
52. Pagou taxas moderadoras no valor de € 45,70.
53. Pagou em medicamentos o valor de € 279,26.
54. Adquiriu uma cadeira de rodas pelo preço de € 221,00.
55. Pagou exames no (...) , em Caldas da Rainha, na quantia de € 83,00.
56. O J (…) foi referenciado, por colegas de caça, como pouco respeitador da ética de caçador.
57. O local da Montaria apresenta um relevo diversificado.
58. A porta onde se encontrava o Autor situava-se perto da cumeada de um monte, sendo uma das encostas descendente até à ribeira de Alpreade.
59. No local o terreno apresentava vegetação, florestado com oliveiras, zambujeiros, sobreiros e mato.
60. J (…) tinha celebrado um escrito designado por “Contrato de Seguro” com G (…)Companhia de Seguros, S. A, (…).
61. A 1.ª Ré tinha celebrado um escrito designado por “Contrato de Seguro” com a 2ª Ré de responsabilidade civil enquanto entidade organizadora de montarias, titulado pela apólice n.º (...) , que garante os danos corporais e/ou materiais pelo período seguro ou por sinistro até ao capital de € 99.760,00, com uma franquia, a cargo da seguradora, de 10 % do valor dos prejuízos, com o mínimo de 175,00 € por sinistro.
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B. Subsunção dos factos ao direito
1. Responsabilidade da 1ª Ré, Associação de caça e Pesca, e da Ré Seguradora.
O autor instaura a presente ação contra a 1ª ré Associação de Caça e de Pesca de (…), pelos danos para si decorrentes de um acidente resultante de uma bala disparada por alguém que participava numa montaria organizada pela Ré, invocando a seu favor a presunção de culpa no nº 2 do artigo 493º, do CC, aplicável por força do nº1 do artigo 37º da Lei de Bases da Caça.
 O tribunal a quo veio a julgar a ação improcedente com fundamento na inexistência de qualquer norma que responsabilize civilmente a Ré, enquanto organizadora da caçada, pelo ressarcimento de danos provocados pelo disparo de uma arma de caça no exercício do ato venatório.
A sentença recorrida, analisando a verificação dos pressupostos comuns da responsabilidade civil (contratual ou contratual), conclui pela sua não verificação, nos seguintes termos:
Analisada a factualidade descrita nos factos dados como provados e bem assim toda a factualidade alegada pelo Autor, na petição inicial, não encontramos um único facto, que, por acção ou omissão, possa ser assacado à 1ª Ré e que seja ilícito, entendida a ilicitude como proibição normativa de certa conduta activa ou omissiva.
Do mesmo modo inexiste qualquer alegação donde decorra o nexo de causalidade entre a «desconhecida» conduta da Ré e os danos sofridos pelo Autor.
Este, fundando-se do disposto no n.º 1 do artigo 37.º da Lei de Bases da Caça – Lei n.º 173/99 de 21 de Setembro – que determina a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil aos danos causados no exercício da caça, dá como adquirida a responsabilidade da 1.ª Ré pelo acidente de que foi vítima, pelo simples facto de no n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, se estabelecer uma presunção de culpa. Ora, a culpa é um dos pressupostos cumulativos da responsabilidade civil e a presunção consagrada no n.º 2 do artigo 483.º do Código Civil, apenas dispensa o Autor de provar os factos determinantes da culpa.
Todavia, não o dispensa de alegar e provar os demais pressupostos da responsabilidade civil e da concomitante obrigação de indemnizar. A falta de alegação de tais facto marca irremediavelmente o insucesso da ação.”

 Insurge-se o Apelante contra tal raciocínio, alegando, em síntese, ter sido a Ré Associação de Caça e de Pesca que, no exercício do seu escopo social, planeou, concretizou, pôs em prática, toda a montaria realizada no dia 17 de Novembro de 2007, sendo a atividade que desenvolve uma atividade perigosa, quer pelos meios utilizados (caçar com carabinas e caçadeiras é extremamente perigosa) quer por estarem reunidos 60 carabineiros, todos a disparar tiros, pelo que deveria a sentença ter aplicado as presunções de culpa previstas no nº2 do art. 495º do CC, art. 37º da Lei nº 173/99, e 500º, do CC.

Não podemos deixar de dar inteira razão ao Apelante, pelos motivos que passamos a expor.

O Código Civil prevê as seguintes modalidades de responsabilidade civil extracontratual: responsabilidade subjetiva (ou responsabilidade por culpa) – tendo por pressupostos o facto, a ilicitude, a culpa, a existência do dano e o correspondente nexo de causalidade –, responsabilidade objetiva (pelo risco) e responsabilidade por atos ou intervenções lícitas.

A par da culpa como fundamento geral e exclusivo da responsabilidade civil – na ausência de culpa do lesante o prejuízo era suportado a título definitivo por quem o sofria –, foi-se desenvolvendo um novo fundamento relacionado com o risco de atividade. Se alguém tira proveito de uma particular fonte de riscos parecia justo que suportasse os encargos com as indemnizações, ainda que sem culpa (com desenvolvimentos ao nível do risco do proveito económico, do risco de atividade e risco de autoridade), invertendo a anterior lógica, de modo a que, em princípio o dano não seria suportado por quem o sofreu mas por quem o causou.

As diversas soluções consagradas no Código Civil são um resultado dessa evolução, indo desde a tradicional responsabilidade por culpa à previsão de presunções de culpa ou mesmo de ilicitude, à responsabilidade objetiva e à responsabilidade por atos lícitos, todas comungando dos seguintes pressupostos: existência de um ato ilícito, nexo de imputação do facto ao agente, nexo de causalidade e dano.

O facto humano relevante, dominável ou controlável pela vontade por consistir numa ação ou numa omissão, sendo a omissão apenas comparável à ação quando exista um dever jurídico de agir. E o dever de praticar o ato omitido pode resultar não só da lei ou do negócio jurídico, mas, igualmente, do que a doutrina vem denominando de “deveres de prevenção do perigo” ou “deveres no trafico”, assentando na ideia de que aquele que abre uma fonte de perigos ou em cuja esfera de poder se dá uma situação produtora de riscos tem o dever de agir para impedir ou eliminar esses riscos[11].

O artigo 493º do Código Civil, constitui precisamente uma norma concretizadora de alguns desses deveres de tráfego[12], dispondo o seu nº2 que “quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

Dispõe ainda o artigo 37º da Lei da Caça (Lei nº 193/99, de 21 de Setembro), sob a epígrafe, “responsabilidade civil”: “É aplicável aos danos causados no exercício da caça o disposto no n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil”.

Quanto à questão de saber se o artigo 37º da Lei da Caça abrange, ou não, a atividade de organização de caça ou, tão só, o exercício direto da mesma por parte do caçador, como sustenta a sentença recorrida, atentar-se-á, em primeiro lugar, que o âmbito do referido diploma é mais lato do que o simples exercício da caça, regulando a atividade cinegética em geral e a administração da caça[13]. E, dentro da atividade venatória, aquele diploma prevê não só o exercício individual da caça, mas, igualmente, o seu exercício com carater associativo e ainda a própria organização de atividades de carater venatório.

Assim, no capítulo IV, sob a epígrafe “Exercício da caça”, o artigo 25º estende a obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil às entidades que organizam atividades venatórias[14]:

“1 - Para o exercício da caça os caçadores têm de ser detentores de seguro obrigatório de responsabilidade civil por danos causados a terceiros.

2 - As entidades responsáveis pela organização de atividades de carácter venatório, nomeadamente montarias, batidas e largadas, são obrigadas a deter seguro de responsabilidade civil por danos causados a terceiros.”

E dispõe ainda o citado artigo 37º, sob a epígrafe, “Responsabilidade Civil[15]:

1. É aplicável aos danos causados no exercício da caça o disposto no n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil.

2. As entidades gestoras de zonas de caça, de instalações de espécies cinegéticas em cativeiro ou de campos de treino são obrigadas a indemnizar os danos que o exercício daquelas atividades cause nos respetivos terrenos e terrenos vizinhos.

3. O disposto no número anterior aplica-se, com as devidas adaptações, às zonas de não caça.

Do teor de tais disposições, nomeadamente quando conjugadas entre si, resultará que a remissão para o disposto no nº2 do art. 493º, do CC, se aplica a todos os danos causados “no exercício da caça”, abrangendo não só os danos que possam ser imputados ao caçador e causados diretamente por este, mas igualmente a todos aqueles que participam de algum modo nessa atividade, como os auxiliares de que o caçador se serve no exercício de tal atividade, bem como àqueles que organizam tal atividade.

Com efeito, se o artigo 25º, para efeitos de determinação dos sujeitos obrigados à celebração do seguro, distingue o “exercício da caça pelo caçador” e “as entidades responsáveis pela organização de atividades de carácter venatório”, o legislador, no nº1 do artigo 37º, utiliza a expressão “exercício da caça”, o que nos remete para a definição que é dada a tal expressão pela al. c) do artigo 2º do citado diploma: “para efeitos do presente diploma, considera-se: exercício da caça ou ato venatório – todos os atos que visam capturar, vivo ou morto, qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural, nomeadamente a procura, a espera e a perseguição.

Ou seja, no “exercício da caça” é englobado não só o ato de disparar sobre o animal, mas todos os atos que visam e envolvem a captura do animal, sendo que, no caso em apreço o exercício da caça abarcaria, necessariamente, toda a operação de “montaria” organizada pela ré[16].

De qualquer modo, ainda que assim não fosse e se restringisse a remissão do nº1 do artigo 37º, da Lei da Caça, ao exercício da caça pelo caçador, sempre se entenderia que o nº2 do artigo 493º do Código Civil, reportando-se à “atividade”, e não havendo dúvidas que a caça é uma atividade perigosa, abrangendo a caça individual, abrangerá, também e por maioria de razão, o exercício da caça enquanto prática organizada e coletiva, ou seja própria organização de tal atividade de forma associativa ou profissional.

O legislador, no nº2 do artigo 493º, recorrendo a um conceito indeterminado[17], não diz o que se deve entender por atividade perigosa, limitando-se a fornecer ao intérprete uma diretriz genérica para identificação das atividades perigosas[18]. Deve tratar-se de atividade que, mercê de qualquer dessas duas razões – pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados –, tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes em geral.

Sendo matéria a apreciar caso a caso, segundo as circunstâncias, e a título exemplificativo, têm vindo a ser consideradas perigosas, para efeitos da sua eventual aplicação, as seguintes atividades[19]: escorregas, piscinas e pistas existentes num parque aquático; uma corrida de karting; o armazenamento e o manuseamento de resinas ou de outros materiais inflamáveis; responsabilidade da pessoa coletiva que ordenou o lançamento de um fogo-de-artifício sem necessidade da identificação do concreto agente executante; a prática desportiva “moto de água”; a condução, distribuição e entrega de energia elétrica; a organização de uma prova de veículos todo o terreno; um rally automobilístico, etc.

Também o caso do caçador que, no exercício da caça ou por causa dela, causa danos a terceiro, há muito vem sendo considerada como uma atividade perigosa, quer pela natureza dos meios adotados, quer pela sua própria natureza porque dela são inseparáveis esses meios, sendo precisamente um dos exemplos a que recorre habitualmente a doutrina[20].

Ora, se a prática individual da caça constituiu uma atividade perigosa, a organização de uma montaria – sendo um processo de caça que envolve muitas pessoas (caçadores, postores, carregadores, matilheiros e pessoal da organização) – constituiu, em si, uma fonte de perigo muito superior à que resulta da prática individual da caça, quer pelo número de caçadores e armas envolvidas quer pelo número de possíveis vítimas, aumentando exponencialmente os riscos de um acidente.

O ato de organização de uma montaria gera uma esfera de riscos própria[21], criando um aumento do risco relativamente ao exercício individual da caça, faz surgir uma série de deveres de cuidado – de organização, de aviso, de atuação sobre o foco de perigo, deveres de seleção dos participantes, deveres de instrução e formação, deveres de vigilância e de assistência – sendo-lhe, em princípio, imputáveis todos os danos que tenham a sua raiz naquela esfera.

Caracterizando as atividades perigosas, Rui Paulo de Mascarenhas Ataíde[22] salienta que, embora a manifestação da atividade perigosa contemporânea obedeça ao modelo prototípico da organização empresarial, nela estão abrangidas todas as atividades perigosas, independentemente de serem exercidas a título profissional ou não, do carater continuado ou ocasional de que se possam revestir, da finalidade económica ou meramente recreativa de que prossigam (dando como ex. precisamente a caça desportiva) ou da sua natureza remunerada ou gratuita.

Damos, assim, por assente que a organização de uma montaria é de considerar uma atividade perigosa, sujeita ao regime do nº2 do artigo 493º, passando à análise da distribuição do ónus da prova entre o lesado e o lesante.

Para que se possa valer da presunção de culpa, o lesado tem de provar os factos que constituem a base de tal presunção: a) que o alegado lesante é responsável pela atividade perigosa; b) que o dano foi provocado no exercício dessa atividade.

Uma vez demonstrado que os danos foram provados no exercício de tal atividade, o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade, provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar. Como salienta Antunes Varela, afasta-se indiretamente, mas concludentemente, a possibilidade de o responsável se eximir à obrigação de indemnizar, com a alegação de que os danos se teriam verificado por uma outra causa (causa virtual), mesmo que ele tivesse adotado todas aquelas providências[23].

Antunes Varela explica nos seguintes termos as alterações ao ónus da prova resultantes da consagração da presunção de culpa no que se refere aos danos provocados no exercício de atividades perigosas:

“Desde, porém, que o queixoso alegue e prove que os danos foram causados no exercício de uma atividade perigosa (por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados, a lei (art. 493º, nº2 do Cód. Civil) presume, a partir desse facto (base da presunção), que o acidente foi devido a culpa do agente.

Para exigir a indemnização, não se torna, por conseguinte, necessário ao queixoso alegar e provar as circunstâncias concretas do acidente, para convencer o tribunal de que o agente procedeu com culpa e é, consequentemente, obrigado a reparar o dano causado.

Ao demandado é que cabe, pelo contrário, se quiser liberar-se da obrigação, o ónus de alegar e provar, nos termos da disposição legal citada, que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para prevenir os danos ou que o acidente se deveu a culpa do lesado ou de terceiro.

Sempre, por conseguinte, que haja uma presunção legal a favor da pretensão de alguma das partes no litígio, incumbe a essa parte apenas alegar e provar o facto que serve de base à presunção[24]”.

No caso em apreço, o autor alegou e provou que, quando participava numa montaria organizada pela 1ª Ré – sendo a Ré uma associação de caça e de pesca que organiza eventos cinegéticos (montarias, batidas e largadas) –, foi atingido por uma bala disparada por alguém que participava no evento.

É quanto basta para fazer funcionar sobre a 1ª Ré a presunção de culpa prevista no nº2 do artigo 493º. Com efeito, a intervenção da Ré Associação não se limitou à organização e planeamento da montaria – elaboração do esquema da montaria (delimitação da área de caça, número de caçadores participantes, localização dos diferentes postos, número e local de solta de matilhas), seleção dos caçadores –, detendo ainda o pleno domínio do evento, tendo intervenção direta na realização, nomeadamente através do diretor da Montaria, por si nomeado, incumbindo à organização o acompanhamento e vigilância da mesma, no decurso da qual assume uma participação ativa, tal como se torna claro da matéria alegada pelo autor e dada como provada:

“7. Previamente ao dia 17 de Novembro de 2007 e depois de obtidas as devidas autorizações oficiais, foi planificada a zona por onde seriam distribuídas as portas e penetrariam os matilheiros com os cães.

8. A apresentação dos monteiros, sócios e convidados, foi conferida individualmente a documentação, o seguro, a licença de uso e porte de arma e a licença de caça.

10. É a 1.ª Ré como organizadora que determina o sítio onde é colocado cada um dos caçadores.

11. Cada um dos caçadores é colocado num determinado sítio previamente determinado pelo organizador.

12. A localização, referida no artigo anterior, é o sítio onde o caçador deve estar todo o tempo, enquanto durar o evento, sítio que se designa por “ porta”.

13. A distribuição das portas pelos caçadores foi feita por sorteio.

14. É a 1.ª Ré que procede à organização das viaturas para os caçadores dentro da zona de caça, disponibilidade de cães, colocação de caçadores em cada uma das portas, inicio e fim do evento, verificação de documentos, etc..

15. Que zela pela segurança dos caçadores, colocando-os em sítios seguros.

17. Para além do autor estiveram no mesmo evento cerca de 60 caçadores todos eles dispostos nos sítios indicados por pessoas que cumpriam ordens da Ré.

Quanto às pessoas vinculadas pela norma em causa, Rui Paulo de Mascarenhas Ataíde[25] sustenta que o critério de imputação se baseia apenas no controlo da atividade, entendido como o poder de adotar medidas idóneas à prevenção do dano, ainda que por intermédio de um agente imediato, sem que o exercente tenha que auferir qualquer benefício ou vantagem.

Por fim, dúvidas não restam de que o acidente que veio a ocorrer se insere na esfera de risco assumida pela Ré com a organização daquela montaria, demonstrado que está ter o autor sido ferido por uma bala proveniente de alguém que participou no evento.

Provados os factos base da presunção, vejamos, então, se as Rés lograram elidir a presunção de culpa que recaía sobre a 1ª Ré Associação. A Ré Seguradora defende-se imputando tal acidente a culpa de um dos intervenientes na montaria (o colocado na porta 60) que, ignorando a posição do autor na porta 59, atirou nessa direção, a um javali que passava entre as portas 59 e 60, comportamento que é expressamente proibido pelos regulamentos e normas aplicáveis e pelas diretrizes que lhe foram transmitidas pela 1ª Ré no início da montaria; quanto à ré Associação, limita-se a alegar que no início da Montaria é feita uma preleção aos participantes a quem é entregue um folheto, assacando a culpa do acidente ao próprio autor, que após ter abatido um javali, saiu do local que lhe tinha sido indicado para permanecer enquanto decorresse a montaria, e dirigiu-se para o trofeu de caça, tendo sido atingido pela bala quando estava junto do javali.

E, relativamente a tal matéria, não só, não se provou que o autor tenha infringido alguma regra, como se provou que o autor se encontrava no sítio que lhe tinha sido reservado pela organização. Igualmente não se provou que tenha sido o caçador colocado na porta 60 que tenha disparado, nem de que arma terá sido disparada a bala que veio a atingir o autor.

Quanto aos procedimentos tomados pela Ré associação, provou-se unicamente a seguinte matéria:

7. Previamente ao dia 17 de Novembro de 2007 e depois de obtidas as devidas autorizações oficiais, foi planificada a zona por onde seriam distribuídas as portas e penetrariam os matilheiros com os cães.

8. A apresentação dos monteiros, sócios e convidados, foi conferida individualmente a documentação, o seguro, a licença de uso e porte de arma e a licença de caça.

9. Todos os participantes estavam na posse de todos os documentos válidos e indispensáveis à presença na Montaria.

10. É a 1.ª Ré como organizadora que determina o sítio onde é colocado cada um dos caçadores.

11. Cada um dos caçadores é colocado num determinado sítio previamente determinado pelo organizador.

17. Para além do autor estiveram no mesmo evento cerca de 60 caçadores todos eles dispostos nos sítios indicados por pessoas que cumpriam ordens da Ré.

18. Antes da colocação dos monteiros nas portas, foi feita, pelo Director da Montaria, a preleção habitual, tendo sido explicados e repetidos os comportamentos a adotar, os conselhos e recomendações a seguir, as normas e diretrizes a cumprir e as proibições a respeitar.

19. A cada monteiro foi entregue um sobrescrito com o número da porta sorteada, a identificação do postor e da viatura que o transportaria ao respetivo local e um documento com as regras impostas.

20. Todos os caçadores foram colocados dentro da linha que define o perímetro da zona de caça e cada um deles com uma arma de caça carabina, munida de balas, ou espingarda, munida de cartuchos, pronta a ser utilizada no abate de javalis.

21. Tendo sido posicionadas, à volta de um vale, com uma distância entre elas de cerca de 50 metros e na perpendicular à zona em que atuariam os matilheiros e seus cães.

A prova de tais procedimentos não será bastante para afastar a presunção de culpa que sobre si impende, sobretudo quando ficou demonstrado que o autor foi atingido quando se encontrava no sítio que lhe havia sido reservado pela organização e se desconhece de onde proveio a bala, se de algum caçador ou até de algum auxiliar que carregasse consigo alguma arma em contravenção ao disposto no art. 77º do Regulamento à Lei Geral de Bases da Caça.

Mantendo o legislador a responsabilidade por atividades perigosas no âmbito da culpa, ainda que presumida, a doutrina tem salientado que, ao contrário de outras hipóteses de presunção de culpa (ex.: 491º - responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância, e 492º - responsabilidade por danos causados por edifícios; 493º, nº1 – danos causados por animais), para as atividades perigosas não se acha consagrada a relevância negativa da causa virtual ou hipotética. Ou seja, como já referimos, a responsabilidade não é afastada com a prova de que, mesmo empreendidas as medidas cautelatórias, sempre os danos se teriam produzido.

Adriando Vaz Serra, citando De Cupis, explica pelo seguinte modo o especial dever de diligência exigido ao agente: “No exercício de uma atividade perigosa, a perigosidade do dano esta in re ipsa e o sujeito deve agir tendo em conta o perigo para os terceiros. Os deveres inerentes à normal exigência seriam em tal caso insuficientes porque, onde a perigosidade está ínsita na ação, há o dever de proceder tendo em conta o perigo; o dever de evitar o dano, torna-se mais rigoroso quando se atua com a nítida previsão da sua possibilidade. O sujeito, pois, deve adotar, mesmo que com sacrifícios, todas as medidas aptas a evitar o dano. Quais devem ser essas medidas, di-lo-ão as particulares normas técnicas ou legislativas, inerentes às especiais atividades, ou as regras da experiência comum; (…) Por conseguinte, ao agente, para afastar a responsabilidade, não basta provar ter-se comportado como se teria comportado um homem de média prudência, carecendo de demonstrar que levou a própria diligência não menos que ao extremo limite[26]”.

Assim, há quem afirme que a perigosidade inerente à atividade desenvolvida não é afastada com a mera prova das medidas preventivas possíveis: mesmo que tomadas todas as providências, se afinal o dano se produz, e se não deriva de outra causa estranha e de rompimento do nexo causal, então se evidencia a insuficiência daquelas mesmas providências.

Não iremos tão longe, sob pena de se inviabilizar a ilisão da presunção de culpa pela demonstração do normal cumprimento dos deveres de cuidado, e de uma aproximação à responsabilidade pelo risco, que o legislador recusou.

Deixamos aqui o caminho apontado por Rui Paulo de Mascarenhas Ataíde[27], segundo o qual a presunção de culpa pode ser ilidida pela demonstração de que foram cumpridos os deveres no trafego ajustados ao impedimento da concretização daquele potencial lesivo, deveres a concretizar com recurso aos seguintes critérios de aferição face à diversidade dos perigos que compete ao exercente dominar: quanto maior a vantagem económica com a exploração da fonte bem como o perigo gerado, mais grave o dano objetivamente previsível e menores o esforço do lesante em o precaver e a possibilidade de o lesado o evitar, mais se justificará o dever de o afastar e maior a intensidade de que se revestirá o seu conteúdo.

No caso em apreço, os procedimentos por si alegados e dados como provados – que fiscalizou os documentos de cada um dos caçadores e que lhes fez a preleção habitual no início da montaria com os comportamentos e cuidados a adotar e que deu a cada um deles um prospeto com o local onde se deviam manter –, não será suficiente para afastar a sua responsabilidade, sobretudo, quando se demonstrou que o autor foi abatido no local que lhe foi destinado pela organização, tendo sido esta quem determinou a localização de cada um dos monteiros, tendo posicionado as portas a uma distância entre elas de cerca de 50 metros.

Quanto à localização dos monteiros, das “Normas Para Organizações de Montarias[28]”, consta apenas que “os postos devem ser colocados tendo em conta a dimensão e relevo e o coberto vegetal da manha e sem esquecer obviamente a segurança”. E do site “A página do Monteiro[29]”, quanto ao número e localização dos postos chama a atenção de que as regras básicas e fundamentais são três “segurança, segurança e visibilidade”, referindo que, “por regra é habitual distanciar os postos cerca de 100 metros uns dos outros, dependendo dos desníveis do terreno, da visibilidade da zona (em função do mato) ou dos acidentes naturais (…). Quando o terreno é muito direito e os postos se encontram no mesmo plano, estes devem ser marcados e escrupulosamente ocupados junto à manha e não afastados desta – se for necessário atirar um animal seguramente não atiraremos na direção de um companheiro, mas corremos a mão em sentido de afastamento dele”.

Ora, da matéria dada como provada não se poderá alcançar, sequer, se a organização tomou, ou não, as melhores opções, desde logo ao nível da própria organização da Montaria, número de participantes em função da área, distância entre os Postos, etc.. Atentar-se-á em que a rés não alegaram, sequer, quais as regras técnicas a que deve obedecer a planificação e a execução de uma montaria, quais os cuidados impostos pelos costumes ou pelos regulamentos relativamente a tais matérias e, muito menos, que tenham sido observados pela 1ª Ré. Aliás, constando do ponto 15 das “Normas para Organização de Montarias”, que “Os organizadores são o garante do cumprimento das Normas de Montaria e Regras de Segurança, bem como de todos os aspetos legais (licenças, seguros, etc.)”, relativamente a estas, as rés limitaram-se a alegar terem feito a divulgação de tais normas junto dos caçadores participantes.

Concluindo, não tendo as Rés logrado a prova de que tenham adotado as regras técnicas, impostas pelos costumes ou pelos regulamentos, quanto à planificação, execução e vigilância de uma montaria, a simples prova de cumprimento de alguns dos procedimentos por si alegados não será suficiente para ilidir a presunção se culpa que impede sobre a 1ª Ré Associação de Caça e Pesca, impondo-se a sua responsabilização pelos danos ocorridos no âmbito de tal atividade.

3. Responsabilização da Ré Companhia de Seguros.

Alega a 2ª Ré que, tendo ainda em conta o previsto no artigo 2º, nº 2, das Condições Gerais da Apólice do contrato de seguro celebrado com a a 1ª Ré – “esta responsabilidade abrange exclusivamente os danos que não devam ser garantidos por qualquer outro seguro obrigatório” –, os danos invocados pelo A. sempre se encontrariam, excluídos das garantias do seguro, porquanto todos os caçadores que participaram na Montaria, incluindo o identificado J (…), tinham transferido, através de seguro obrigatório, a responsabilidade, perante terceiros, pelos danos decorrentes de tal atividade.

Tendo a 1ª ré transferido a sua responsabilidade civil enquanto organizadora de montarias para a 2ª Ré Seguradora, da respetiva apólice consta como identificação do risco, a “responsabilidade civil por montarias e batidas”.

Das respetivas condições gerais, resulta tratar-se precisamente do seguro obrigatório de responsabilidade civil previsto no nº2 do art. 25º da Lei da Caça: “Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil para Organização de Eventos Cinegéticos”.

E segundo o art. 3º de tais Clausulas Gerais “O presente contrato abrange, nos seus precisos termos o ressarcimento dos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, direta e exclusivamente decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros, em consequência de sinistro ocorrido no local ou locais identificado(s) nas condições particulares e durante a realização de Montarias, Batidas ou Largadas”. 

Ora, ao contrário do por si alegado, a Ré não logrou demonstrar que o dano se encontrasse abrangido no âmbito de qualquer outro seguro obrigatório (como seria o caso se tivesse ficado demonstrado que a bala tinha provindo de um caçador identificado e sobre o qual impendesse a obrigação de segurar).

Como tal, sobre a 2ª Ré e por força do referido contrato de seguro, impende a obrigação de garantir o pagamento da indemnização pela qual a 1ª ré for declarada responsável.

4. Determinação do montante indemnizatório

Com vista ao ressarcimento dos danos por si sofridos, o Autor pede a quantia 1.599,46 €, relativa a despesas médicas e medicamentosas e deslocações, prejuízos estes, dados como provados e, como tal, indemnizáveis.

O Autor pede ainda a título de danos não patrimoniais a quantia de 20.000,00 €, e a quantia de 7.500,00 €, a título de danos patrimoniais futuros.

O autor peticiona a quantia de 7.500,00 €, a título de “danos patrimoniais futuros”, sem que alegue que as sequelas por si sofridas lhe acarretem qualquer perda de rendimento, não alegando, sequer, qual o seu rendimento mensal.

De qualquer modo, sabemos que o autor tinha 56 anos à data do acidente[30], que ficou com uma incapacidade (défice funcional permanente da integridade físico-psíquica) fixável em 15 pontos, e que se encontrava reformado, realizando trabalhos agrícolas e de subsistência.

Como se pode ler no relatório de exame realizado pelo IML (fls. 196 a 199), as sequelas que apresenta são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços complementares (cfr. ponto 45 da matéria de facto).

Não se encontrando alegada qualquer perda efetiva na remuneração por si auferida, o facto de o autor ter ficado afetado de um défice funcional permanente da integridade física fixado pelo IML em 15 pontos, deverá ser integrado no âmbito do chamado “dano biológico”, por integrar uma limitação funcional geral que terá implicações na facilidade de execução de tarefas e esforços exigíveis, integrando um dano futuro previsível, segundo o desenvolvimento normal da vida, em cuja qualidade se repercute.

É entendimento atualmente pacífico na doutrina e jurisprudência[31] que a incapacidade parcial permanente, ainda que não acarrete uma diminuição dos concretos rendimentos do lesado, constituiu um dano futuro indemnizável autonomamente, correspondendo ao chamado dano biológico, (independentemente de se constatar a existência de divergências quanto à sua integração na categoria dos danos patrimoniais, dos danos não patrimoniais ou num tertium generum).

E o próprio legislador, ao fixar os valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel de proposta razoável para indemnização do dano corporal (Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio), veio a reconhecer expressamente tal dano biológico, prevendo a valorização da ofensa à integridade física e psíquica, enquanto tal - independentemente de se encontrar ou não associada a qualquer incapacidade para o trabalho –, a avaliar a par dos restantes danos de natureza patrimonial (art. 3º), e, simultânea e cumulativamente, enquanto dano moral complementar (art. 4º)[32].

O dano corporal não se circunscreve às consequências sobre a capacidade de trabalho ou sobre a capacidade de obtenção de rendimentos, tendo de ser entendido numa perspetiva global de ofensa à saúde e à integridade física e psíquica, enquanto direito inviolável do homem à plenitude da vida física, em todos os aspetos da sua vida.

Ou seja, o dano corporal (ou dano biológico ou dano à saúde), não se esgota num qualquer dano patrimonial em sentido estrito – quando a incapacidade permanente tem repercussões sobre a atividade laboral, afetando a capacidade de ganho – nem num qualquer simples dano moral – neste se incluindo as dores, o sofrimento, o dano estético, etc.

Encontrar-se-á aqui em causa, essencialmente, a incapacidade funcional resultante das lesões sofridas pelo autor e as suas repercussões nas suas atividades diárias e relacionais.

E, embora não se encontre alegado que as lesões sofridas em consequência do acidente tenham acarretado uma diminuição do seu rendimento, são patentes as limitações introduzidas no seu dia-a-dia, como se pode constatar, da seguinte matéria de facto dada como provada:

37. O Autor ainda tem atualmente dores na zona lesada, o que lhe dificulta a locomoção.

38. O Autor deixou, definitivamente de caçar, o que o desgosta.

39. O Autor deixou fazer exercício físico porque tem dores, bem como porque há um risco acrescido de provocar uma nova lesão agravada em caso de queda.

45. As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente nas atividades agrícolas compatíveis com o exercício da atividade habitual (agricultura de subsistência), mas implicam esforços suplementares.

46. O quantum doloris fixável no grau 5 em 7.

47. O dano estético permanente fixável no grau 4 em 7.

48. A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 4/7.

E estes danos corporais, na medida em que importam uma redução das suas capacidades funcionais fixada em 15 pontos (numa escala de 1 a 100), são indemnizáveis por si próprios, pela diminuição da qualidade de vida que proporcionam, com independência do puro dano moral, suscetível de avaliação autonoma (consistente no dano estético, no quantum doloris, no desgosto que sente por se ver diminuído fisicamente, suportando dores e incómodos que, com o tempo se tenderão a agravar, etc.).

A indemnização de tais danos sempre se imporá, independentemente da sua qualificação como dano patrimonial ou não patrimonial.

No caso em apreço, os elementos fáticos de que nos podemos socorrer – o nível de IPP em causa, a idade do autor à data do sinistro, o facto de já se encontrar reformado, a esperança média de vida (e não o período de vida profissional ativa do lesado), as limitações que acarretam para o seu dia-a-dia as referidas deficiências funcionais –, aliados aos valores que vêm sendo atribuídos em circunstâncias semelhantes pelos nosso tribunais e, ainda, aos que resultam da aplicação dos critérios contidos na Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, com as atualizações introduzidas pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho[33] (nunca esquecendo que as mesmas servirão como meras tabelas orientadoras, e que a concretização da indemnização é feita com recurso à equidade), levar-nos-ão a considerar adequada a fixação da indemnização relativa a tais danos no montante de 15.000,00 €.

Quanto à fixação da indemnização pelo dano não patrimonial, propriamente dito, abarcando o dano estético, as dores sofridas e o dano de afirmação pessoal), teremos em consideração um quantum doloris fixado no grau 5/7, um dano estético fixado no grau 4/7, os incómodos sofridos durante o período de recuperação com os défices funcionais totais e temporários referidos nos pontos 41 a 43 da matéria de facto, tendo usado cadeira de rodas durante quatro meses, que o autor deixou de caçar e de fazer exercício físico e que ainda atualmente tem dores na zona lesada. Tal indemnização será, também ela fixada com recurso à equidade (art. 496º. 4, do CC), sem qualquer redução relativamente ao valor dos danos face à ausência de culpa do lesado, atendendo-se, uma vez mais, como mero referencial aos valores constantes da Portaria nº 679/2009[34], ter-se-á por adequada a fixação de tal dano no valor de 10.000,00 €.

A apelação é de julgar procedente na sua quase totalidade.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, e revogando-se a decisão recorrida, determina-se a condenação solidária das Rés no pagamento ao autor da quantia de 26.599, 46 €.

Custas a suportar, na ação, por autora e rés, na proporção do decaimento, e no recurso, pelo apelante e pela Apelada/Companhia de Seguros.

                                                                                 Coimbra, 27 de maio de 2015

Maria João Areias ( Relatora )

  Fernando Monteiro

  Luís Cravo


 


[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] “Introdução ao Processo Civil, Conceito e princípios gerais à luz do novo código”, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 167.
[3] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, Setembro 2014, págs. 15 e 16.
[4] “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª ed., 2004, Almedina, págs. 252 e 253. Ainda segundo tal autor, os factos instrumentais, por contenderem com a definição, densificação ou substanciação da fattispecie normativa em que assentam as pretensões dos litigantes”, podem ser, mesmo que não alegados, objeto de consideração oficiosa pelo julgador, bastando que resultem a discussão da causa – “O Princípio dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença”, in Estudos em Homenagem ao Professor Dr. José Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, pág. 785.
[5] “Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil”, LEX, 1997, págs. 76 a 79.
[6] “Ónus de alegação e de impugnação em processo civil”, Sciencia Iuridica, Tomo LXII, nº 332 – Maio/Agosto 2013, pág. 397.
[7] Neste sentido, Lopes do Rego, artigo citado, págs. 786 e 787. Segundo Miguel Teixeira de Sousa, os factos essenciais que fundamentam o pedido e integram a causa de pedir, são os factos constitutivos do seu direito, gerando a falta da sua alegação a ineptidão da petição inicial. Os factos essenciais que sejam complemento ou concretização daqueles, são factos que participam na causa de pedir ou na exceção e sem os quais o pedido ou a defesa não pode ser julgada procedente – “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, LEX 1997, págs. 70 a 72, e Nuno Andrade Pissarra, “O Conhecimento de Factos Supervenientes Relativos ao Mérito da Causa pelo Tribunal de Recurso em Processo Civil”, ROA, Ano 72, Vol. I, janeiro/março 2012, págs. 291 e 292.
[8] “Introdução ao Processo Civil (…), pág. 166, nota 33B.
[9] “Introdução ao Processo Civil (…), pág. 166.
[10] Sobre a possibilidade de os factos complementares e concretizadores poderem ser adquiridos para o processo, quer através de alegação das partes quer através da iniciativa oficiosa do juiz, até ao momento do encerramento da discussão, se pronuncia Mariana França Gouveia, “O Princípio Dispositivo e a alegação de factos em processo civil: a incessante procura da flexibilidade processual”, estudo escrito para os Estudos em Homenagem aos Profs. Palma Carlos e Castro Mendes, pág. 608, disponível in http://www.oa.pt/upl/%7Bede93150-b3ab-4e3d-baa3-34dd7e85a6ef%7D.pdf.
[11] Cfr., neste sentido, Sinde Monteiro, “Rudimentos da Responsabilidade Civil”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano 2 2005, pag. 361, estudo igualmente disponível in http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/23773/2/12468.pdf.
[12] Nesse sentido, Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa, “Responsabilidade Civil Extracontratual, Novas Perspetivas em Matéria de Nexo de Causalidade”, PRINCIPIA, pág. 52, nota 46.
[13] Atentar-se-á em que, segundo o seu artigo 1º, o referido diploma estabelece as bases da gestão sustentada dos recursos cinegéticos, na qual se incluem a sua conservação e fomento, bem como os princípios reguladores da atividade cinegética e da administração da caça.
[14] Quando a anterior Lei de Bases Gerais da Caça – Lei nº 30/86, de 27 de Agosto –, apenas previa no seu artigo 12º a obrigatoriedade de seguro responsabilidade civil para o caçador (artigo 12º),
[15] O nº1 do artigo 33º da anterior Lei de Bases Gerais da Caça previa um diferente regime de responsabilidade civil, já então distinguindo os danos “causados no exercício da caça”, dos danos causados “por quem utilizar armas de fogo”: “A responsabilidade civil por danos causados no exercício da caça é regulada nos termos gerais, respondendo quem utilizar armas de fogo pelos danos que elas causarem nos termos dos artigos 503º e seguintes do Código Civil, com as adaptações necessárias.”
[16] Sendo a “montaria” descrita pela al. h) do art. 90º do Regulamento da Lei Geral de Bases da Caça, como o processo de caça em que “o caçador aguarda, em local previamente definido, para capturar exemplares de caça maior levantados por matilhas de caça maior conduzidas por matilheiros”.
[17] Neste sentido, Rui Paulo de Mascarenhas Ataíde, “Responsabilidade Civil por Violação de Deveres de Trafego”, Coleção Teses, Almedina, págs. 469 e 473.
[18] Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., Almedina, págs. 538 e 539.
[19] Cfr., exemplos recolhidos por António Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português”, II, Direito das Obrigações, Tomo III, págs. 585 a 587.
[20] Adriano Vaz Serra refere encontrar-se aí abrangido o caso do caçador ou outro portador de coisas perigosas que, no exercício de atividades perigosas ou por causa delas, causa danos a terceiros – “Responsabilidade causada por coisas ou actividades”, BMJ nº 85, Abril 1959, pág. 379. Já Fernando Pessoa Jorge defende que a caça constituiu uma atividade, não perigosa em si, mas que o pode ser mas pelos meios utilizados, “Ensaios sobre os pressupostos da responsabilidade civil”, Almedina 1999, pág. 206, nota 176. Também Rui Paulo de Mascarenhas Ataíde inclui a caça com armas de fogo no grupo caraterístico das atividades perigosas por natureza – “Responsabilidade Civil (…), págs. 496 e 497.
[21] Ana Mafalda Miranda Barbosa dá o seguinte exemplo de uma situação geradora de uma esfera de risco/responsabilidade: “A” organiza um espetáculo musical numa praça da cidade onde vive sabendo que, sem restrições à entrada, porque realizada num espaço público, ocorrerão muitos populares ao local. Assume com isso uma esfera de risco, devendo providenciar no sentido de prover pela segurança das várias pessoas e dos seus bens de natureza patrimonial. Isto independentemente de posteriormente se ter de, caso ocorra alguma lesão, verificar se se violou, ou não um dever de cuidado, denotador da negligência do agente” – “Responsabilidade Civil Extracontratual (…)”, págs. 42 e 43, nota 39.
[22] “Responsabilidade Civil Por Violação de Deveres no Tráfego”, pág. 494.
[23] Cfr., “Das Obrigações em Geral”, I Vol., 9ª ed., Almedina, pág. 616., e Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, I Vol., Pág. 496, nota 4.
[24] RLJ Ano 122, pág. 217.
[25] “Responsabilidade Civil por Violação de Deveres no Tráfego”, pág. 494.
[26] “Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades”, BMJ nº 85, Abril 1959, págs. 376 e 377.
[27] “Responsabilidade Civil por Violação de Deveres no Tráfego”, págs. 530 e 531.
[28] Disponíveis no site do “Clube Português de Monteiros – Organização de Montarias”, http://www.clubemonteiros.com/.
[29] Site disponível in http://www.apaginadomonteiro.net/a_montaria1.htm.
[30] Cfr., certidão de nascimento junta a fls. 304.
[31] Cfr, entre muitos outros, na jurisprudência: Acórdãos do STJ de 23.11.2010, relatado por Helder Roque, de 31.05.2012, relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, 21-03-2013, relatado por Salazar Casanova, de 20.05.2010 e de 10.10.2012, relatados por Lopes do Rego, Ac. do TRP de 13.012.2012, relatado por Ondina Carmo Alves. Na doutrina: João António Álvaro Dias, “Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios”, Colecção Teses, Almedina, 2001.
[32]  É o seguinte o teor dos citados artigos da referida Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio:

Artigo 3º
Danos Indemnizáveis em caso de outros corporais
São indemnizáveis ao lesado, em caso de outro tipo de dano corporal:
a) Os danos patrimoniais futuros nas situações de incapacidade permanente absoluta, ou de incapacidade para a profissão habitual, ainda que possa haver reconversão profissional;
b) O dano pela ofensa à integridade física (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para a Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito civil;
c) As perdas salariais decorrentes de incapacidade temporária havida entre a data do acidente e a data da fixação da incapacidade;
d) As despesas comprovadamente suportadas pelo lesado em consequência das lesões sofridas no acidente.
Artigo 4º
Danos morais complementares
Além dos direitos indemnizatórios previstos no artigo anterior, o lesado tem ainda direito a ser indemnizado pelos danos morais complementares, autonomamente, nos termos previstos no anexo I da presente portaria, nas seguintes condições:
a) Por cada dia de internamento hospitalar;
b) Pelo dano estético;
c) Pelo quantum doloris;
d) Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente absoluta para a prática de toda e qualquer profissão ou da sua profissão habitual;
d) Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da sua atividade profissional habitual;
e) Quando resulte uma incapacidade permanente absoluta para o lesado que, pela sua idade, ainda não tenha ingressado no mercado de trabalho e por isso não tenha direito à indemnização prevista na al. a) do artigo anterior.” 
[33] Pela aplicação da tabela constante do Anexo IV, obteríamos um valor de 11.234,00, através dos seguintes cálculos: tendo em consideração uma pontuação de 15 pelo dano biológico, atribuído pelo IML, uma idade de 56 anos, obteremos valores entre um mínimo de 620,73 a 748,98 pontos – o limite máximo corresponde à menor idade em conjugação com a maior pontuação, o limite mínimo corresponderá à maior idade em conjugação com a menor pontuação –; situando-nos, no caso concreto, no limite máximo quanto à pontuação (15), e no limite mínimo quanto à idade (56), afigura-se ajustada a fixação no valor máximo, ou seja, 748,98. Tal valor é multiplicado por 20 (pontos): 11.234 € (regra nº2), valor que não será sujeito a qualquer outra correção, uma vez que, na ausência de alegação de qual o rendimento mensal do autor, tomaremos como rendimento de referência o equivalente à retribuição mínima mensal garantida ao tempo de acidente (RMMG – retribuição mínima mensal garantida – de 2007 = 403 €) (cálculos efetuados em conformidade com a demonstração exposta pelo Conselheiro Joaquim José de Sousa Dinis, in “Avaliação e reparação do dano patrimonial e não patrimonial (no domínio do Direito Civil)”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, Nº19, 2009, pág. 62).
[34] Na tabela constante do Anexo I (compensações devidas por danos morais complementares), atribui-se o valor de até 4.104,00€ a um dano estético de 4/7, e de até 1.641,60 € a um quantum doloris de 5/7, sendo a repercussão na vida laboral, entre 10 a 35 pontos, e entre os 46 e os 60 anos, indemnizável com um valor até 10.260,00 €.