Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
360/18.7T8PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: LIVRANÇA
CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
LIVRANÇA EM BRANCO
AVAL
SOCIEDADE
DESVINCULAÇÃO DE SÓCIO
PACTO DE PREENCHIMENTO
RESOLUÇÃO
DENÚNCIA DE VINCULAÇÃO
Data do Acordão: 02/11/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - ANSIÃO - JUÍZO DE EXECUÇÃO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.10, 17, 30, 32, 77 LULL, 362 C COMERCIAL, AUJ Nº4/2013 DE 11/12/2012
Sumário: 1. Nenhum direito admite uma paralisação no tempo: mesmo que as normas não mudem, muda o entendimento das normas, mudam os conflitos de interesses que se têm de resolver, mudam as soluções de direito, que são o direito em acção.

2. A tarefa de harmonizar jurisprudência numa questão como a tratada no AUJ n.º 4/2013 não é simples, pois a solução adequada depende da correcta consideração de diversas particularidades - não só no plano do regime cambiário aplicável, como no que toca aos contornos da concreta situação - e vários autores formularam diversas críticas e reparos, nomeadamente, pela total desconsideração da diferença entre o regime a aplicar ao aval em título completo e ao aposto sobre título em branco e a total desconsideração pelo tipo operação bancária garantida.

3. Apenas uma adequada e tendencialmente completa configuração da realidade - atentas as soluções plausíveis da questão de direito - possibilitará o juízo sobre a justeza e a razoabilidade do interesse e do direito das partes em litígio.

4. Sob pena de vermos irremediavelmente comprometidos, entre outros, os princípios/ensinamentos enunciados em 1., sacrificando ainda, porventura, uma aplicação do direito normativamente adequada às circunstâncias do caso concreto, perante uma livrança em branco, importará esclarecer, nomeadamente, o circunstancialismo atinente ao vencimento em 16.11.2017 de uma livrança emitida em 07.4.2006 (título executivo) e que teve subjacente um contrato de abertura de crédito em conta corrente de 21.3.1996 (objecto de alteração e aditamento), as circunstâncias ligadas à subscrição do título (v. g., o conteúdo/cláusulas do próprio negócio jurídico que o pacto de preenchimento consubstancia e o posicionamento societário dos avalistas), a subsequente cessão de quotas (em 2011 e 2013), a evolução daquele contrato de abertura de crédito (mormente no que concerne ao se e ao quando do financiamento concedido), a resolução do contrato, o preenchimento da livrança e a demais actuação das partes.

Decisão Texto Integral:                 
               Sumário do acórdão:

1. Nenhum direito admite uma paralisação no tempo: mesmo que as normas não mudem, muda o entendimento das normas, mudam os conflitos de interesses que se têm de resolver, mudam as soluções de direito, que são o direito em acção.

2. A tarefa de harmonizar jurisprudência numa questão como a tratada no AUJ n.º 4/2013 não é simples, pois a solução adequada depende da correcta consideração de diversas particularidades - não só no plano do regime cambiário aplicável, como no que toca aos contornos da concreta situação - e vários autores formularam diversas críticas e reparos, nomeadamente, pela total desconsideração da diferença entre o regime a aplicar ao aval em título completo e ao aposto sobre título em branco e a total desconsideração pelo tipo operação bancária garantida.

3. Apenas uma adequada e tendencialmente completa configuração da realidade - atentas as soluções plausíveis da questão de direito - possibilitará o juízo sobre a justeza e a razoabilidade do interesse e do direito das partes em litígio.

4. Sob pena de vermos irremediavelmente comprometidos, entre outros, os princípios/ensinamentos enunciados em 1., sacrificando ainda, porventura, uma aplicação do direito normativamente adequada às circunstâncias do caso concreto, perante uma livrança em branco, importará esclarecer, nomeadamente, o circunstancialismo atinente ao vencimento em 16.11.2017 de uma livrança emitida em 07.4.2006 (título executivo) e que teve subjacente um contrato de abertura de crédito em conta corrente de 21.3.1996 (objecto de alteração e aditamento), as circunstâncias ligadas à subscrição do título (v. g., o conteúdo/cláusulas do próprio negócio jurídico que o pacto de preenchimento consubstancia e o posicionamento societário dos avalistas), a subsequente cessão de quotas (em 2011 e 2013), a evolução daquele contrato de abertura de crédito (mormente no que concerne ao se e ao quando do financiamento concedido), a resolução do contrato, o preenchimento da livrança e a demais actuação das partes.


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            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       

I.  Na execução para pagamento de quantia certa movida por C (…)S. A. contra E (…), P (…) e mulher M (…), M (…) e H (…), e outros, instaurada em 23.01.2018[1], aqueles, em 06.7.2018, vieram deduzir oposição à execução por embargos, aduzindo, em síntese: que se vincularam como avalistas da sociedade F (…), Lda., apenas em virtude da qualidade de sócios (desta sociedade) e cônjuges dos mesmos; nas circunstâncias descritas na petição perderam essa qualidade comunicando-o à exequente e, concomitantemente, desvincularam-se das garantias prestadas; ademais, o preenchimento da livrança é abusivo, o contrato de abertura de crédito é nulo por ser indeterminável e a obrigação é incerta, ilíquida e inexigível. Concluíram pela sua absolvição do pedido.

A exequente/embargada contestou, dizendo, nomeadamente, que a vontade de desvinculação dos garantes avalistas não é susceptível de, unilateralmente, produzir efeitos; os executados/embargantes assinaram a livrança e respectivo pacto de preenchimento, aceitando que fosse preenchida em caso de incumprimento das obrigações assumidas; nunca aceitou, a qualquer título, a desvinculação dos embargantes como avalistas da livrança dada à execução e que foi preenchida de acordo com o convencionado; improcede a demais matéria de excepção. Concluiu pela improcedência dos embargos.

Por saneador-sentença de 16.9.2019, a Mm.ª Juíza a quo - depois de concluir que “os autos contêm os elementos necessários à prolação de decisão de mérito” e que a obrigação exequenda é certa (o seu objeto está determinado), líquida (é concreto o montante da prestação) e exigível (a livrança mostra-se vencida) - julgou os embargos de executado totalmente improcedentes, determinando o prosseguimento da execução.
Inconformados, os executados/oponentes apelaram formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

1ª - Alegam os embargantes na sua petição inicial, vários segmentos que, para a boa decisão da causa, ter-se-ão que ter em conta, concretamente, a perda da qualidade de sócios, resolução do pacto de preenchimento da livrança, preenchimento abusivo e nulidade da obrigação.

2ª - À presente execução serve como título executivo uma livrança emitida em 2006/4/07, com data de vencimento em 2017/11/16, na importância de € 81 409,65 e subscrita pela sociedade F (…) Lda., declarada insolvente por sentença de 26/10/2016, no processo n.º 1204/16.0TBLRA, do Juízo do Comércio de Leiria.

3ª - Tem por base um contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização múltipla relacionado com a sua gestão corrente, datado de 23/3/1996, objecto de alteração no ano de 2004 e de aditamento em 2006.

4ª - Como garantia do cumprimento do referido contrato de abertura de crédito, o Banco exequente ficou na posse de uma livrança em branco, subscrita pela sociedade F (…), Lda., e com a assinatura de aval dos sócios e respetivos cônjuges.

Foi apenas e só nessas qualidades e por causa dessas qualidades de sócios e cônjuges dos mesmos, que tal aval foi efetuado.

5ª - Os aqui executados/recorrentes (sócios, cônjuges e ex-cônjuges) apuseram a sua declaração de aval na livrança em branco subscrita pela sociedade, porque o financiamento era necessário para a prossecução da atividade da mesma, o que lhe interessava atenta a sua qualidade de sócios, e enquanto sócios estavam legitimados e consequentemente asseguravam-se que a sociedade estava a ser gerida de modo a honrar os seus compromissos financeiros assumidos com a exequente.

6ª - Conforme melhor se alcança pela informação do registo comercial relativa à matrícula com o n.º (...) , respeitante à sociedade F (…), Lda., os recorrentes E (…), P (…) e mulher M (…), em 23/6/2011 procederam à amortização e à cessão das respetivas quotas sociais que à data possuíam na respetiva sociedade; e a aqui executada/recorrente M (…), em 02/10/2013 transmitiu por cessão a quota de que era titular e que à data detinha na mesma sociedade.

7ª - Desde 23/6/2011 que os executados E (…), P (…) e mulher deixaram de ter qualquer participação social ou ligação à sociedade F (…), Lda., e desde 02/10/2013 que os executados M (…) e ex-cônjuge deixaram de ter qualquer participação social ou qualquer outra ligação à dita sociedade.

- À data em que se desvincularam da sociedade F (…), Lda., - Junho de 2011 e Outubro de 2013, respectivamente -, não existia qualquer montante em débito à exequente C(…).

9ª - Logo após terem perdido a qualidade de sócios na referida sociedade, ou seja, após as respetivas amortizações e transmissões das suas quotas sociais e nas qualidades em que intervieram (sócios, cônjuges e ex-cônjuges) que os executados comunicaram tais factos à exequente/recorrida C(…), verbalmente e por escrito, tendo entregue em simultâneo à exequente documentos comprovativos de tal desvinculação - cópia do respetivo documento notarial, do respetivo documento escrito e da certidão comercial da sociedade devidamente actualizada com os respetivos registos efetuados.

10ª - Com a referida comunicação e em simultâneo, os ex-sócios e respetivos cônjuges e ex-cônjuges da sociedade subscritora da livrança que suporta a presente execução, comunicaram à exequente/recorrida C(…) a sua desvinculação das garantias que haviam prestado à sociedade F (…), Lda., enquanto sócios da mesma, sendo certo e como era e é do conhecimento da exequente, tais garantias prestadas pelos aqui recorrentes só o foram porque estavam diretamente ligados, relacionados e faziam parte dos corpos sociais da sociedade.

11ª - O facto de terem cedido as suas quotas e de terem perdido assim, a sua qualidade de sócios, fez com que deixassem de poder influenciar a gestão da sociedade e consequentemente de poderem assegurar-se que a mesma estava a ser gerida de modo a honrar os seus compromissos, nomeadamente, os financeiros - deixaram de conhecer por completo o modo de gestão e os negócios da sociedade e, principalmente, de ter controle e conhecer o seu nível de endividamento perante a recorrida e restantes credores.

12ª - Porque houve uma alteração e modificação das circunstâncias em que fundaram a decisão de prestar garantia de aval à sociedade subscritora da livrança, legitimamente os recorrentes se desvincularam do pacto de preenchimento da letra em branco, situação oportunamente comunicada à recorrida pelos recorrentes, bem como pelos seus mandatários em Agosto/2016, quando a exequente comunicou aos recorrentes o incumprimento da sociedade insolvente F (…), Lda., e em Dezembro/2017.

13ª - Ora, nos contratos de abertura de crédito em conta corrente, subjacentes à emissão das livranças em branco, raramente existe uma cláusula a regular os casos de cessão da participação social por parte dos sócios.

14ª - No caso nem sequer sabemos se no contrato inicial de abertura de crédito em conta corrente existe ou não, alguma cláusula respeitante a casos de cessão das participações sociais. Foi requerido que a exequente viesse juntar aos autos tal contrato datado de 27/3/1996 e esta não o entregou, tendo mesmo confessado até que, dada a antiguidade de tal contrato (1996) “não tem sido possível localizá-lo”.

15ª - Tratando-se de financiamentos com entregas de montante variável e indeterminado, como é o caso, a faculdade de resolução do pacto de preenchimento deve ser reconhecida através da integração do conteúdo negocial conforme o disposto no art.º 239 do Código Civil (CC).

16ª - Perante a lacuna, a lei manda atender à vontade hipotética das partes e aos ditames da boa fé - trata-se pois de uma faculdade reconhecida ao sócio-cedente por integração do acordo de preenchimento segundo a vontade hipotética das partes e os ditames da boa fé impostos pelo art.º 239 do CC.

17ª - O preenchimento da livrança é abusivo - os elementos constantes na livrança dada à execução, tendo em conta a desvinculação dos executados, foram nela apostos contrariando tal desvinculação.

18 - Nos termos do art.º 10 da Lei Uniforme, também aplicável às livranças por força do art.º 77º, n.º 2, da Lei Uniforme, o preenchimento da presente livrança é abusivo, dado que os aqui executados nada devem à exequente - não devem o montante que consta da livrança, nem qualquer outro.

19ª - Com a comunicação efectuada da amortização e cessão das suas quotas, ou seja, da perda da sua qualidade de sócios, comunicaram os recorrentes a sua intenção de se desvincularem do pacto de preenchimento da livrança em branco que estava na sua posse e na qual haviam colocado a sua assinatura para efeitos de aval.

20ª - Com tal desvinculação válida e eficaz dos recorrentes, o preenchimento da livrança por parte da exequente torna abusiva a utilização da livrança com as suas assinaturas, que deveriam estar “riscadas” para cobrança de quantias que os aqui recorrentes não devem e que a recorrida não pode deixar de o saber.

21ª - Estamos perante um contrato que teve o seu início em 1996, que vigorava por tempo indeterminado e que os agora ex-sócios não têm qualquer participação social na sociedade subscritora da livrança, não têm agora uma posição que lhes permita controlar o fluxo de endividamento.

22ª - Trata-se de um contrato por tempo indeterminado, que vigorou e foi-se renovando por mais de 20 anos - montantes e prestações de endividamento indeterminadas e indetermináveis, não existindo qualquer critério ou controle para proceder à sua determinação.

23ª - O art.º 280º, n.º 1 do CC considera nulo o negócio cujo objeto seja indeterminável.

24ª - O contrato de abertura de crédito em conta-corrente teve na prática uma duração indefinida (pelas prorrogações automáticas, mais de quarenta) e prolongada, vinculando-se os avalistas em branco a uma responsabilidade sem termo temporal certo previamente definido. Atenta a ocorrida cessão de quotas, nesse contexto, gerou-se o direito dos recorrentes resolverem por justa causa o pacto de preenchimento

25ª - Os presentes embargos terão, pois, de proceder - a sentença recorrida fez uma incorrecta interpretação e aplicação da lei, violando designadamente as normas dos art.ºs 10º e 77º da Lei Uniforme e 239º, 280º, n.º 1, 432º e 437º do CC.

Rematam dizendo que deve ser revogado o saneador/sentença, decretando-se a procedência dos embargos.[2]

A exequente respondeu concluindo pela improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa decidir, principalmente, se os autos permitiam a prolação da decisão final ou se devem prosseguir para melhor indagação dos factos e subsequente decisão de mérito (atentas as soluções plausíveis da questão de direito, inclusive, quanto à invocada desvinculação dos embargantes enquanto avalistas em branco/“admissibilidade de desvinculação num aval prestado pelo sócio, pelo facto de haver cedido as quotas de que era detentor na sociedade avalizada”).


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II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:[3]

a) O exequente apresentou como título executivo a livrança subscrita pela sociedade F (…), Lda., com o valor facial de € 81 409,65 que consta de fls. 16 dos autos de execução.

b) A referida livrança foi entregue à exequente, com o montante e data de vencimento em branco, para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização múltipla e a sociedade subscritora e os respetivos avalistas autorizaram a exequente a preencher a sobredita livrança quando tal de mostre necessário, sendo que a data de vencimento será fixada pela Caixa quando, em caso de incumprimento pelos devedores das obrigações assumidas e a importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do empréstimos, nomeadamente capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança.

c) A sociedade F (…), Lda., foi declarada insolvente por sentença de 26.10.2016, no processo n.º 1204/16.0TBLRA.

2. Reafirmando-se nas alegações de recurso parte significativa do alegado na petição de embargos e nos articulados e requerimentos subsequentes, será ainda conveniente evidenciar:

a) Entre outros fundamentos de facto, alegou-se na petição:

- A livrança dita em II. 1. foi emitida em 07.4.2006 e foi aposta a data de vencimento de 16.11.2017;

- Em 21.3.1996 o Banco (…) incorporado por fusão na C (…) celebrou por escrito com a subscritora da livrança F (…) Lda., um contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização múltipla relacionada com a sua gestão corrente;

- Tal contrato datado de 23.3.1996 foi objecto de alteração no ano de 2004 e de aditamento no ano de 2006;

- Como garantia do cumprimento do referido contrato de abertura de crédito, o Banco exequente ficou na posse de uma livrança em branco, subscrita pela sociedade F (...) , Lda. e com a assinatura de aval dos sócios e respetivos cônjuges;

- À data da emissão da referida livrança, os P (…), M (…) e E (…) eram sócios e/ou gerentes da subscritora da livrança (M (…) e H (…) eram cônjuges de sócios);

- Foi apenas e só nessas qualidades e por causa dessas qualidades de sócios e cônjuges dos mesmos, que tal aval foi efetuado;

- Os executados (sócios, cônjuges e ex-cônjuges) apuseram a sua declaração de aval na livrança em branco subscrita pela sociedade porque o financiamento era necessário para a prossecução da actividade da mesma, o que lhe interessava atenta a sua qualidade de sócios e que nessa qualidade, e, enquanto sócios estavam legitimados e consequentemente asseguravam-se que a sociedade estava a ser gerida de modo a honrar os seus compromissos financeiros assumidos com a exequente;

- Os executados E (…), P (…) e mulher, em 23/6/2011 procederam à amortização e à cessão das respetivas quotas sociais que à data possuíam na referida sociedade, e bem assim a executada M (…), em 02/10/2013 transmitiu por cessão a quota de que era titular e que à data detinha na mesma sociedade; deixaram de ter qualquer participação social ou qualquer outra ligação à sociedade (cf. documentos n.ºs 1, 2 e 3 juntos com a petição);

- Nas referidas datas (Junho/2011 e Outubro/2013) em que se desvincularam da sociedade F (…), Lda., não existia qualquer montante em débito à exequente C(…);[4]

- Logo após terem perdido a qualidade de sócios na referida sociedade, ou seja, após as respetivas amortizações e transmissões das suas quotas sociais e nas qualidades em que intervieram que os executados comunicaram tais factos (verbalmente e por escrito) à CGD, enviando os documentos comprovativos de tal desvinculação;

- Em simultâneo, os ex-sócios e respetivos cônjuges e ex-cônjuges da sociedade subscritora da livrança que suporta a presente execução, comunicaram à exequente CGD a sua desvinculação das garantias que haviam prestado àquela sociedade enquanto sócios da mesma, sendo certo e como era e é do conhecimento da exequente, tais garantias prestadas pelos aqui executados só o foram porque estavam diretamente ligados, relacionados e faziam parte dos corpos sociais da sociedade;

- O facto de terem cedido as suas quotas e de terem perdido assim, a sua qualidade de sócios, fez com que deixassem de poder influenciar a gestão da sociedade e, consequentemente, assegurar-se que a mesma estava a ser gerida de modo a honrar os seus compromissos, nomeadamente, os financeiros;

- Além do mais e com este afastamento deixaram de conhecer por completo o modo de gestão e os negócios da sociedade - principalmente, deixaram de ter controle e de conhecer o seu nível de endividamento perante a exequente e os restantes credores;[5]

            - E a referida desvinculação foi igualmente comunicada pelos mandatários dos executados/embargantes, em Agosto/2016, quando a exequente comunicou aos executados o incumprimento da sociedade insolvente F (…), Lda., e em Dezembro/2017 (cf. documentos n.ºs 4 e 5 juntos com a petição).[6]

            b) Refere-se na contestação:

- Apenas em 2016 a sociedade F (…), Lda., entrou em incumprimento;

- A livrança dada à execução foi preenchida na sequência do incumprimento pela sociedade F (…), Lda., em 22.9.2016;[7]

- A C(…) nunca aceitou, a qualquer título, a desvinculação dos embargantes como avalistas da livrança dada à execução;

- Por cartas datadas de 25.10.2016, a C(…)interpelou os executados para o pagamento do montante em dívida à data, sob pena de proceder ao preenchimento da livrança pelo valor que se encontrasse em dívida (docs. n.ºs 8 a 11 juntos com a contestação);

- Está em causa uma livrança que foi assinada pelos embargantes, na qualidade de avalistas, em 07.4.2006, data em que foi celebrado o último aditamento ao contrato celebrado entre a C(…) e a sociedade F (…), Lda..[8]

            c) No requerimento de 28.3.2019, os executados vieram renovar o pedido de junção, pela exequente, de cópia do “contrato de abertura de crédito”; respondeu a exequente, a 09.4.2019, além do mais, que “dada a antiguidade do mesmo (1996), não tem sido possível localizá-lo”.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

A Mm.ª Juíza a quo, atendendo a alguns dos normativos aplicáveis da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL) e à “jurisprudência uniforme” (sic), concluiu que também “no caso em apreço, a mera perda da qualidade de sócio não é suscetível de desencadear qualquer desvinculação”.

A situação dos autos não é isenta de dificuldades.

Afigura-se, no entanto, que a realidade que desde já se antevê configurada, reclamará, pelo menos, uma mais larga discussão da problemática em apreço, que atenda a todas as particularidades do caso; só depois se poderá/deverá concluir pelo melhor enquadramento e a resposta razoável e adequada, sabendo-se que «nenhum direito (…) admite uma paralisação no tempo: mesmo que as normas não mudem, muda o entendimento das normas, mudam os conflitos de interesses que se têm de resolver, mudam as soluções de direito, que são o direito em acção. Nenhum direito é definitivamente ´factum`: é sempre uma coisa ´in fieri`.»[9]

Sabemos também a clareza e a sageza ínsitas na afirmação de que “verdadeira justiça só será a que se recusa a cobrir com o equilíbrio aparente das justificações formais, as manifestas injustiças dos desequilíbrios reais”.[10]

            4. O Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.° 4/2013 de 11.12.2012 (Revista 5903/09.4TVLSB.L1.L1.S1)[11], fixou a jurisprudência no sentido de que “tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada”.[12]

5. O contrato de abertura de crédito, contrato nominado mas atípico (cf. o art.º 362º do Código Comercial), pode ser definido como aquele pelo qual o banco - creditante - se obriga a colocar à disposição do cliente - creditado - uma determinada quantia pecuniária - acreditamento ou linha de crédito - por tempo determinado ou não, ficando o último obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões.[13]

O aval consiste numa garantia pessoal das obrigações cartulares, mais precisamente das resultantes de letras e livranças (art.ºs 30° a 32º da LULL, para as letras; art.º77º, para as livranças), cuja finalidade é garantir o pagamento da obrigação cambiária, representando, portanto, um reforço de segurança atribuído ao credor - caracteriza-se por tornar responsável, perante o credor, outra ou outras pessoas diferentes do primitivo devedor, implicando consequentemente a vinculação do património destas à satisfação do direito de crédito.

Assim, cada vez mais, as letras e livranças desempenham igualmente uma função de garantia em sentido estrito, sendo utilizadas como um mecanismo de adjunção de patrimónios responsáveis pelo pagamento de uma determinada quantia - este fenómeno “está desde logo patente na prestação de aval ou nas assinaturas de favor (…) e conhece uma manifestação muito peculiar na órbita societária, sempre que a vinculação da sociedade aceitante da letra ou emitente da livrança aparece reforçada por um aval dos sócios ou dos gerentes/administradores”.[14]

“O avalista que, por disposição da lei uniforme (art.º 32º, I) se obriga a pagar nos mesmos termos em que está obrigado um dos obrigados cambiários[15], assume, quando se obriga, uma dupla obrigação de garantia: ele não só responde como os demais obrigados, garantindo o pagamento da letra ou livrança pelo aceitante ou subscritor, como assume uma obrigação de garantia em sentido específico, porquanto garante o pagamento da letra ou livrança por um determinado obrigado, obrigando-se nos mesmos termos que ele (…).[16]

“O avalista não assegura que o avalizado pagará, mas sim que o título será pago; não participa da obrigação de outros, mas, ao invés, fá-la própria (…) a designação da pessoa a favor de quem se presta o aval tem tão-só a finalidade de fazer assumir ao avalista uma responsabilidade cambiária de igual grau que a do avalizado”.[17]

Contudo, o ingresso do avalista no círculo cambiário faz-se tipicamente por ligação com um determinado protagonista: o avalizado.[18]

6. “Incondicionável o aval, quando, porém, se trate de título assinado em branco, isto é, na realidade, em sede de relações imediatas, (é) no plano do pacto de preenchimento que se coloca a questão da admissibilidade da denúncia desse convénio ou acordo. Inadmissível uma sujeição a esse acordo ou convénio desprovida de limite de tempo, tem de aceitar-se a possibilidade de válida desvinculação discricionária, ad nutum ou ad libitum, mediante denúncia do mesmo, sem necessidade da invocação de fundamento ou justa causa”.[19]

7. Nos termos dos art.ºs 2º e 76º da LULL, as letras e livranças estão sujeitas a um conteúdo mínimo e essencial para que se possa afirmar a existência de um título de crédito, requisitos obrigatórios previstos nos art.ºs 1º da LULL e 75º da LULL.

            As livranças deverão observar os requisitos previstos no art.º 75º da LULL (a conjugar com os art.ºs 76º e 77º).

Preceitua o art.º 77º da LULL que são aplicáveis às livranças as disposições relativas às letras em branco - a livrança em branco pode definir-se como sendo aquela a que falta algum dos requisitos indicados no art.º 75 da LULL, mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura que tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária.

O preenchimento de uma livrança em branco, condição imprescindível para que possam verificar-se os efeitos normalmente resultantes da livrança, faz-se de harmonia com o respectivo pacto de preenchimento, expresso ou tácito. O contrato de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, designadamente, a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede de pagamento, a estipulação do juros.[20]

O pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário no que respeita aos elementos que habilitam a formar o título executivo, estabelecendo os requisitos que tornam exigível a obrigação cambiária.[21]

8. O princípio geral da inadmissibilidade de vinculações perpétuas ou de duração indefinida é um princípio geral de Direito Privado, válido tanto no âmbito do Direito das Obrigações, como no Direito Comercial, sendo a faculdade de denúncia uma consequência deste princípio e consistindo num modo típico de desvinculação das relações contratuais duradouras celebradas por tempo indeterminado; a denúncia é um modo de extinção de relações jurídicas que se dirige tipicamente a contratos aos quais não é aposto um prazo, e consiste numa declaração unilateral que não carece de motivação concreta - justamente porque a sua admissão se funda no princípio geral segundo o qual não são permitidas, nas ordens jurídicas contemporâneas, vinculações perpétuas ou indefinidas.[22]

A fixação de um prazo retira ao contraente a possibilidade de denunciar.

A denúncia é livre, bastando a simples declaração unilateral de querer pôr termo ao vínculo estabelecido, não sendo necessária a invocação de qualquer fundamento para o efeito.

Condição para que se possa operar a denúncia é estarmos na presença de uma relação obrigacional duradoura estabelecida por tempo indeterminado, sendo precisamente essa incerteza temporal que justifica o referido instituto (a denúncia é um modo de impedir a vinculação perpétua dos contraentes). Relativamente ao efeito da denúncia (ou, em diverso enquadramento normativo, da resolução do pacto de preenchimento), o mesmo é ex nunc, permitindo ao credor, nomeadamente, reconfigurar o negócio jurídico subjacente de modo a reflectir a diminuição de garantias.

9.  A tarefa de harmonizar jurisprudência numa questão como a tratada no mencionado AUJ n.º 4/2013 (cf. II. 4., supra) não é simples, pois a solução adequada depende da correcta consideração de diversas particularidades - não só no plano do regime cambiário aplicável, como (sobretudo) no que toca aos contornos da concreta situação - e vários autores formularam diversas críticas e reparos (“este acórdão tem sido objecto de duras críticas por parte da doutrina[23]), nomeadamente, pela total desconsideração da diferença entre o regime a aplicar ao aval em título completo e ao aposto sobre título em branco (é completamente distinto inscrever o aval num título completo e num título em branco - no segundo caso, o risco é muitíssimo mais elevado) e a total desconsideração pelo tipo operação bancária garantida.[24]

 Na verdade, e nomeadamente, por um lado, a circunstância de não haver sido estipulado um prazo fixo para o preenchimento da livrança não significa que não possa extrair-se, por via interpretativa, uma limitação temporal: seguramente que não correspondia à vontade das partes, reconstituída com as ferramentas objectivistas proporcionadas pelo nosso ordenamento jurídico e integrada se necessário com o auxílio correctivo da boa-fé (art.º 239º do CC) que o credor pudesse preencher e accionar o título cinco, dez ou mesmo doze anos depois da verificação do facto que legitimava esse comportamento).

Por outro lado, não se podendo falar em aval cambiário até ao preenchimento dos elementos essenciais da letra ou livrança em branco, conclui-se que o entendimento defendido no AUJ de que a possibilidade de desvinculação do avalista contraria não só a natureza do aval - incondicional e irrevogável - bem como a essência do mesmo como garantia pessoal, materialmente autónoma e independente da obrigação subjacente, só faz sentido se pensarmos no aval em título completo, o que não estava em discussão no caso submetido à apreciação do STJ.

A possibilidade de desvinculação do avalista apenas é defensável em certos tipos de financiamento - a desvinculação unilateral do ex-sócio será defensável quando estejamos na presença de financiamentos bancários em que a dívida garantida pelo ex-sócio está dependente de entregas variáveis, condicionadas às solicitações feitas pela sociedade a cada momento e que sejam à partida indetermináveis.

Assim, em financiamentos bancários típicos, como a abertura de crédito simples ou em conta corrente, o fluxo financeiro que determina a dívida cambiariamente garantida depende das solicitações feitas pela sociedade em cada momento, o que confere pleno sentido à tese segundo a qual a cessação da qualidade de sócio implica uma inexigibilidade de permanecer vinculado como garante.

A situação dos garantes pessoais apresenta-se sensível e perigosa, maxime quando o sócio prestador de garantia não tem controlo sobre o nível de endividamento da empresa e, logo, sobre a dimensão da sua responsabilidade - quando estamos perante aberturas de crédito renováveis, v. g.,  em conta corrente, nas quais os garantes, sejam eles fiadores ou avalistas de livrança em branco, sabendo, embora, grosso modo, o montante possível máximo da sua vinculação, não dominam a dimensão temporal da mesma, uma vez que, tipicamente, a renovação das operações de crédito está nas mãos das partes no contrato, mais concretamente, o banco e a sociedade.

Nos casos em que é defensável a desvinculação unilateral do aval, o ex-sócio apenas deixará de responder pelas dívidas ulteriores à respectiva desvinculação, sendo que a data relevante para o efeito corresponderá à data de recepção por parte do credor da declaração a solicitar a referida desvinculação (art.º 224° do CC), continuando, deste modo, a garantir a restituição das quantias correspondentes a financiamentos já recebidos pela sociedade naquela data.[25]

10. No referido contexto, podemos também questionar “se e em que termos um avalista em branco, que cede a sua participação social e se desliga da vida societária, pode válida e eficazmente desvincular-se do acordo de preenchimento subjacente à emissão desse título em branco”?

E parte significativa da doutrina e alguma jurisprudência considera razoável admitir em certas circunstâncias a possibilidade de desvinculação unilateral do ex-sócio ao acordo de preenchimento (uma vez que não faz sentido que fique eternamente vinculado a um aval que prestou num determinado momento da vida profissional), por denúncia, sendo que esta é uma faculdade ´ad libitum`, podendo ocorrer por razões de oportunidade ou de provado interesse do contraente que a declara.[26]

Quando um sócio apõe a sua declaração de aval na livrança em branco subscrita pela sua sociedade, fá-lo porque o financiamento é necessário para a prossecução da actividade societária, o que lhe interessa atenta a sua qualidade de sócio -  é esta indissociável ligação entre a qualidade de sócio e a prestação da garantia que legitima a interrogação sobre o modo como a perda dessa qualidade poderá influenciar a (manutenção da) responsabilidade do garante.

Nessa medida, é o facto de deixar de ser sócio que legitima a desvinculação (faculdade reconhecida ao sócio-cedente por integração do acordo de preenchimento segundo a vontade hipotética das partes e os ditames da boa fé impostos pelo art.º 239º do CC), uma vez que o avalista deixa de poder influenciar a gestão societária e consequentemente assegurar-se que a sociedade está a ser gerida de modo a honrar os compromissos financeiros assumidos, e sabendo-se que o banco deu crédito à sociedade tendo em conta a “garantia” resultante do compromisso do sócio e que esse é, normalmente, um pressuposto do negócio.[27]

11. A desvinculação válida e eficaz do ex-sócio apenas obsta ao preenchimento da livrança em branco para a cobrança de quantias relativas a financiamentos posteriores à referida desvinculação, o que consistirá num preenchimento abusivo, cuja prova estará a cargo do ex-sócio que vier a opor-se ao pagamento, mas que não será muito difícil no pressuposto que o título de crédito não circulou e ainda se mantém nas mãos do credor originário - “ (…) se o acordo de preenchimento não produz efeitos ou deixa de produzir efeitos a partir de determinado momento, o preenchimento que seja efectuado com base em factos que ocorrem num momento em que tal acordo é ineficaz não é verdadeiramente um preenchimento abusivo, mas sim um preenchimento sem poderes. Só fará sentido falar de preenchimento abusivo relativamente a casos em que esse preenchimento viola um acordo de preenchimento que (ainda) produz efeitos”); (...) a desvinculação válida e eficaz do ex-sócio no plano do acordo de preenchimento torna abusiva a utilização do título com a sua assinatura para a cobrança das quantias correspondentes a financiamentos posteriores à sua saída da sociedade e o Banco não pode deixar de o saber, logo é-lhe oponível, em sede execução, a excepção decorrente do artigo 10° da LU”.[28]

12. É notória no citado AUJ a preocupação da devida ponderação dos interesses do banco-credor, cujas garantias ficarão logicamente prejudicadas com o reconhecimento da faculdade de desvinculação unilateral por parte de um ex-sócio, avalista em branco.

Não obstante e defendendo-se apenas a possibilidade de liberação do ex-sócio no que se refere a dívidas ulteriores à sua desvinculação da sociedade, o credor tem diversos meios à sua disposição para fazer face à alteração das circunstâncias e defender o seu interesse no ressarcimento do crédito, entre os quais, a reconfiguração da relação jurídica de modo a reflectir a diminuição das garantias, nomeadamente renegociando a taxa de juro ou interpelando a sociedade para a apresentação de novas garantias como requisito para novas concessões. O credor poderá, ainda, prever expressamente no formulário do pacto de preenchimento as consequências que a desvinculação em virtude de cessão de quotas terá sobre o contrato subjacente.

É certo que para o credor seria preferível continuar a manter o património pessoal dos ex-sócios como garantia do ressarcimento dos seus crėditos, não obstante, não parece razoável que, vários anos após se terem desligado da vida societária, os ex-sócios continuem indefinidamente a garantir a devolução de financiamentos, que desconhecem e não têm qualquer possibilidade de controlar (sem qualquer perspectiva futura de desvinculação).[29]

13. Posteriormente ao AUJ n.º 4/2013 foram proferidos arestos em linha com o entendimento que se deixou exposto, nomeadamente, pela RP - em 27.02.2014-processo 3871/12.4TBVFR-A.P1 - e pela RL - em 20.12.2017-processo 1732/14.1TBTVD-A.L1-7 -, publicados no “site” da dgsi, salientando-se, no primeiro, designadamente:

- A convergência de diversos autores, como  Manuel Januário Gomes (O Insustentável Peso do Aval em Livrança em Branco Prestado por Sócio de Sociedade para Garantia de Crédito Bancário Revolving, Direito Privado, n.º 43, Julho-Setembro 2013, págs. 32 a 47),  Carolina Cunha (Cessão de Quotas e Aval; Equívocos de uma Uniformização de Jurisprudência, in Direito das Sociedades em Revista, Ano 5º, Vol. 9 (2013), págs. 91 e segs.) e Filipe Cassiano dos Santos (Aval, Livrança em Branco e Denúncia ou Resolução de Vinculação - Anotação ao AUJ do STJ de 11.12.2012, RLJ, n.º 3980, págs. 312 a 346), na constatação da justeza da conclusão daquele acórdão, bem como dos considerandos que nele são tecidos, por referência ao aval prestado a uma livrança completa, que já não tratando-se de uma livrança em branco.

- Aquele 1º autor (ob. cit., pág. 35) anota que “a questão é colocada pelas factualidades do acórdão fundamento e do acórdão recorrido relativamente a uma realidade contratual pré-preenchimento do título - pré-cambiária -, mas o Supremo Tribunal de Justiça resolve-a como se o título estivesse completo e o aval fosse já cambiário”; o 3º (comentário cit., pág. 320) diz que “o AUJ circunscreve-se insofismavelmente ao aval, e não se pronuncia, como o haviam feito as anteriores decisões do Supremo, sobre a vinculação em letra ou livrança em branco - isto é, nada estabelece sobre a questão de saber se o sujeito que se vinculou pode, em algumas circunstâncias ou medida, obstar à formação do título tendo-o a si como avalista”; e realça a 2ª autora (ob. cit., pág. 92), como “primeiro reparo que o acórdão de uniformização de jurisprudência suscita, a quase completa desconsideração da diferença entre o regime a aplicar a um aval prestado sobre um título preenchido e ao aval aposto sobre um título cambiário em branco”, ignorando completamente “a norma-chave para a resolução das questões relacionadas com qualquer subscrição cambiária em branco: o artigo 10º da Lei Uniforme”.

- Efectivamente, como refere Oliveira Ascensão, Direito Comercial, III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, pág. 117, a letra em branco “só surge como título cambiário com o preenchimento”. Ou, como aponta Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, III, Letra de Câmbio, Universidade de Coimbra, 1975, pág. 134, “se o preenchimento se não fizer antes do vencimento, então o escrito não produzirá efeito como letra, de harmonia com os artigos 1º e 2º”. A diferença de regimes entre as obrigações inerentes ao título cambiário e as resultantes do pacto de preenchimento terá directamente a ver com as limitações que se deparam ao obrigado cambiário que, por força da abstracção do título, não poderá opor a relação subjacente a este a portadores não imediatos, como decorre do art.º 17º da LULL. O que já se não aplicará às relações que se estabelecem no âmbito da livrança em branco. Como Carolina Cunha bem anota (ob. cit., pág. 97), por regra, o avalista também intervém no acordo de preenchimento. E, não existindo título sem o preenchimento, será contraditório convocar aquele princípio, que apenas rege as obrigações cambiárias, no que concerne a esse preenchimento. Por outro lado, se é certo que, por força do art.º 32º da LULL, a obrigação do avalista não depende das vicissitudes da obrigação da pessoa que ele avalizou, dever-se-á, todavia, aceitar que o avalista de títulos em branco, mesmo que não tenha intervindo no pacto de preenchimento, aceita tacitamente este no momento em que os subscreve, aderindo à posição do por si avalizado. É “incorrecto aplicar o art.º 17º da LULL a situações como esta”, pois do que se trata é de “um problema específico, ao qual o art.º 10º da LU dá uma resposta, também ela específica e insusceptível de se diluir nos quadros gerais do art.º17º ou do princípio res inter alios acta” (ibidem, nota 24) - “neste tempo de pré-livrança, temos por desajustado invocar o arsenal cambiário para resolver uma questão na qual está ausente qualquer vinculação de natureza cartular” (Manuel Januário Gomes, ob. cit., pág. 41).

- A aludida diversidade de regimes voltará a ser decisiva quanto à mais limitada possibilidade de interferência do avalista na subsistência do aval. Pois, enquanto o avalista de um título cambiário não se pode unilateralmente desvincular, já o poderá fazer, reunidas certas condições, o avalista de um título em branco. Nomeadamente, resolvendo o contrato de preenchimento, no qual foi parte, antes de este se concretizar. Nesse sentido, o referido estudo de Carolina Cunha, de págs. 101 a 105, no qual contrapõe à “suposta denúncia do aval”, que não admite como possível, o “acordo de preenchimento de uma letra em branco enquanto negócio jurídico bilateral (ou plurilateral) susceptível de resolução unilateral por justa causa”. Do mesmo modo, Cassiano Santos (ob. cit., pág. 343), refere que “como vinculações não cartulares submetidas ao direito comum, a subscrição para aval ou livrança em branco e o respectivo pacto de preenchimento podem, em abstracto, ser objecto de resolução ou de denúncia”.

Sopesando os interesses que cumpre acautelar, por parte de cada um dos interessados, e concluindo pela razoabilidade da solução que admita a resolução do pacto de preenchimento como decorrência da cessação dos vínculos que ligavam o administrador da sociedade a esta, vide Carolina Cunha (ob. cit., págs. 105 a 113) e Manuel Januário Gomes (ob. cit., págs. 45 e 46), embora este se reporte antes à figura da revogação com justa causa.

- Não era legítimo - na situação sub judice - pretender validar a obrigação decorrente do preenchimento da livrança em relação a um avalista que deixou há mais de três anos (Março/2009 a Abril/2012) de ter a qualidade pressuposta no pacto de preenchimento, deixando de ter qualquer controlo sobre os montantes que nesse lapso de tempo foram utilizados pela sociedade avalizada.

- Decorre assim do supra exposto que, salvo prova em contrário, de ocorrência de circunstâncias excepcionais, o acordo no qual o sócio e administrador de uma sociedade garante o pagamento de um débito futuro desta ao respectivo credor, aceitando a subscrição como avalista de uma livrança que será preenchida pelo credor no caso de incumprimento, tem como pressuposto aquela sua qualidade, no momento em que a obrigação a incumprir seja constituída, pelo que é de admitir a resolução de um tal pacto de preenchimento por parte do sócio administrador, em virtude de ter deixado de ser sócio e de nela ter cessado as suas funções, limitando a sua vinculação às obrigações assumidas pela sociedade enquanto tinha a referida qualidade.

- Compulsando a argumentação expendida, cujos fundamentos de direito em nada contrariam o AUJ n.º 4/2013, não colherá imputar à presente decisão falta de respeito pela jurisprudência que aquele uniformizou (nesse sentido, Carolina Cunha, ob. cit., pág. 113, Filipe Cassiano Santos, ob. cit., pág. 346 e Manuel Januário Gomes, ob. cit., págs. 46 e 47).

- De qualquer modo, caso assim se não entenda, uma tal jurisprudência não será de seguir.

Na verdade, contrariamente ao que sucedia com os assentos, antes de o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 743/96, in DR, I-A, n.º 165, de 18.7.1996, ter declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do art.º 2º do CC, os acórdãos de uniformização de jurisprudência não têm carácter vinculativo. É certo que daí não decorre, sob pena de total descaracterização deste último instituto, que os tribunais possam livremente tomar as suas decisões com desconsideração pela jurisprudência uniformizada - se assim fosse, frustrar-se-ia o escopo da figura da uniformização, na protecção dos valores da segurança jurídica e da igualdade de tratamento (cf. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, págs. 443 e seguinte[30]).

O que também se realça no acórdão do STJ de 14.5.2009 (dgsi): “o acórdão uniformizador de jurisprudência não é, ao contrário dos antigos assentos, estrita e rigorosamente vinculativo, antes representando jurisprudência qualificada; no entanto, a sua componente vinculativa surge acentuada para as instâncias - como resulta, v. g., do n.º 2, alínea c), do artigo 678º do Código de Processo Civil - sendo meramente persuasiva, e mutável, para o Supremo Tribunal de Justiça”.[31]

14. Como se afirmou, a questão do recurso não é isenta de dificuldades.

Afigura-se, no entanto, atentas as especificidades já reconhecidas pelas partes e as que permanecem controvertidas (cf. II. 2., supra), bem como as soluções plausíveis da questão de direito (que, cremos, não se confinam às expressamente suscitadas e decididas no âmbito da AUJ n.º 4/2013), que será de lavar a cabo uma mais larga e profunda indagação da realidade, com os correspondentes meios de prova, visando esclarecer, designadamente, o circunstancialismo atinente ao vencimento em 16.11.2017 de uma livrança emitida em 07.4.2006 (que serve como título executivo) e que teve subjacente um contrato de abertura de crédito em conta corrente de 21.3.1996 (objecto de alteração no ano de 2004 e de aditamento no ano de 2006, sendo que apenas foi junto aos autos o mencionado “aditamento”) - e, assim, também, as circunstâncias ligadas à subscrição do título cambiário em causa[32] -, a subsequente cessão de quotas (nos anos de 2011 e 2013), a evolução daquele contrato de abertura de crédito (mormente no que concerne ao se e ao quando do financiamento concedido), a data e outras circunstâncias da resolução do contrato em causa e preenchimento da livrança e a demais actuação das partes, tudo[33], no sentido de se poder emitir um derradeiro juízo sobre a justeza e a razoabilidade do interesse e do direito das partes em litígio, sob pena de, faltando aquele pressuposto, vermos irremediavelmente comprometidos, entre outros, os princípios/ensinamentos enunciados em II. 3., supra, sacrificando ainda, porventura, uma aplicação do direito normativamente adequada às circunstâncias do caso concreto.[34]

15. O despacho saneador destina-se a: a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória (art.º 595º, n.º 1 do Código de Processo Civil/CPC). No caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas; na hipótese prevista na alínea b), fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença (n.º 3).

O despacho saneador proferido sem que os seus pressupostos estejam reunidos é um despacho inútil, não formando qualquer caso julgado (cf. os art.ºs 130º e 595º, n.ºs 1 e 3 do CPC) - o conhecimento imediato do mérito só deverá ocorrer se a questão puder ser decidida nesse momento com perfeita segurança, quando haja uma muito razoável margem de segurança quanto à solução a proferir.[35]

Sem quebra do devido respeito por entendimento contrário e ante as referidas coordenadas adjectivas, importará, pois, levar a cabo a necessária actividade processual e indagatória.

16. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, com a consequente revogação da decisão (saneador-sentença) de 16.9.2019 (na parte impugnada).


*

III. Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos, conforme se indica em II. 14. e 15., supra.

Custas segundo o decaimento a final.


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11.02.2020


Fonte Ramos ( Relator )

Alberto Ruço

Vítor Amaral ( Vencido)

 

Voto de vencido (Apel. 360/18.7T8PBL-A.C1).

Sem pôr em causa a solução adotada in casu, no sentido do prosseguimento dos autos para um melhor apuramento fáctico – designadamente, para apreciação de eventual abuso do direito, vistas as posições de alguns setores da doutrina ou da jurisprudência, como nos dá conta a fundamentação do acórdão –, tenho vindo a seguir a posição do discutido AUJ, mesmo em caso de livrança subscrita em branco, atentos os princípios, interesses e tutela preponderantes no âmbito comercial e cambiário [com especial enfoque para a posição do(s) credor(es) cambiário(s), podendo falar-se, nesta perspetiva, de algum modo, num favor creditoris, pela via do interesse da circulabilidade do título de crédito ([36]), diversamente do que ocorre no direito civil, mais virado para a proteção do devedor], só admitindo a desvinculação do avalista sócio/administrador que saiu entretanto da sociedade se estiver demonstrado que houve pacto nesse sentido, não bastando, em regra, a cedência da sua participação social na sociedade avalizada.

Assim, mantendo a posição que venho adotando, seguiria, no caso dos autos, a jurisprudência uniformizada do dito AUJ n.° 4/2013, no sentido de que, tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada.

Vítor Amaral



[1] Cf. requerimento executivo reproduzido a fls. 119 e seguintes.

[2] Não obstante, na introdução das alegações de recurso, referiram os oponentes: «(…) o Tribunal desconsiderou argumentos, razões e motivos invocados pelos Embargantes, muitos dos quais demandam a produção de mais prova.»; «(…) desconsiderou os factos, argumentos e motivos invocados nos Embargos e havendo dúvidas, ter-se-ia, que produzir prova, para se poder decidir com inteira justiça e segurança

[3] Que considerou admitidos por acordo e provados pelos documentos juntos ao apenso de embargos e aos autos de execução (não impugnados).
[4] Facto, entre outros (sobretudo, os provados documentalmente), expressamente admitido pela parte contrária (cf. art.º 10º da contestação).
[5] O aqui alegado, bem como no ponto anterior, foi impugnado sob o art.º 12º da contestação.

[6] No final do articulado, requereu-se, designadamente, “que a exequente venha juntar aos autos cópia (do) contrato de abertura de crédito datado de 21/3/1996, alteração ao contrato de abertura de crédito datada de 02/6/2004 e aditamento ao contrato de abertura de crédito datado de 07/4/2006”.
[7] Cf. as missivas de “denúncia de contrato de abertura de crédito em conta-corrente” reproduzidas a fls. 56 e seguintes.
[8] Reproduzido a fls. 49 e seguintes.
[9] Vide Orlando de Carvalho, A Teoria Geral da Relação Jurídica (seu sentido e limites), 2ª edição, Centelha, Coimbra, 1981, págs. 50 e seguinte.
[10] Vide António Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, 1968-69, pág. 79.
[11] Publicado no DR, 1ª Série, de 21.01.2013 e no “site” da dgsi.

[12] Em contraposição estavam os acórdãos do STJ de 02.12.2008-processo 08A3600, como acórdão fundamento e de 10.5.2011-processo 5903/09.34TVLSB.L1.S1, como acórdão recorrido, publicados no “site” da dgsi.

[13] Cf. o acórdão da RC de 19.12.2012-processo 132/12.2TBCVL-A.C1, publicado no “site” da dgsi.

[14] Vide Carolina Cunha, Letras e Livranças. Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime., Coimbra, Almedina, 2012, pág. 45.

[15] O primeiro § do art.º 32º da LULL determina que “O dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”.

   E o segundo § do mesmo art.º determina ainda que “A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”.  

[16] Vide Filipe Cassiano dos Santos, Aval, Livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação - Anotação ao AUJ do STJ de 11.12.2012, RLJ, 142º, pág. 328.

[17]Vide Manuel Januário Gomes, O (in) sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio de sociedade para garantia de crédito bancário revolving, Cadernos de Direito Privado, n.° 43, Julho-Setembro 2013, pág. 23.  

[18] Vide Carolina Cunha, Letras e Livranças, cit., pág.106.

[19] Cf. o acórdão do STJ de 08.7.2003-processo 03B2060 [assim sumariado: «I - Nada impedindo a livre disposição das partes ou participações sociais respectivas, a responsabilidade pessoal assumida pelos sócios não é por tal afectada, na falta de convenção nesse sentido (sendo evidente, em termos de garantia, o prejuízo resultante de eventual desvinculação unilateral dos assim obrigados). II - Incondicionável o aval, quando, porém, se trate de título assinado em branco, é, na realidade, em sede de relações imediatas, no plano do pacto de preenchimento que se coloca a questão da admissibilidade da denúncia desse convénio ou acordo. III - Inadmissível uma sujeição a esse acordo ou convénio desprovida de limite no tempo, tem de aceitar-se a possibilidade de válida desvinculação discricionária, ad nutum ou ad libitum, mediante denúncia do mesmo, sem necessidade da invocação de fundamento ou justa causa. IV - Não pode, todavia, considerar-se, sem mais, como tal a mera comunicação da cessão de quotas.»], publicado no “site” da dgsi.

[20] Cf. o acórdão do STJ de 03.5.2005-processo 05A1086, publicado no “site” da dgsi.

[21] Cf. acórdão do STJ de 13.4.2011-processo 2093/04.2TBSTB-AL1.S1, publicado no “site” da dgsi.

[22] Vide Filipe Cassiano dos Santos, Estudo/Comentário citado, pág. 313.
[23] Na expressão do acórdão da RP de 27.02.2014-processo 3871/12.4TBVFR-A.P1, publicado no “site” da dgsi.

[24] Vide, entre outros, Carolina Cunha, Cessão de Quotas e Aval; Equívocos de uma Uniformização de Jurisprudência, in Direito das Sociedades em Revista, Ano 5º, Vol. 9 (2013), págs. 91 e seguintes.

[25] Vide, designadamente, Carolina Cunha, Letras e Livranças…, págs. 605 a 607 e 613; Manuel Januário Gomes, O (in) sustentável peso do aval em livrança em branco…, págs. 34 e seguintes e 40 e Maria Cristina CoutoA Desvinculação do Aval por parte de um Ex-Sócio, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Privatísticas, FDUP, Novembro de 2016/«sigarra.up.pt›fdup›», dissertação aqui seguida de perto, nomeadamente, quanto à crítica generalizada sobre as circunstâncias, o resultado e a relevância (teórica e prática) do AUJ n.º 4/2013.

[26] Cf., por exemplo, o referido acórdão da RP de 27.02.2014-processo n.º 3871/12.4TBVFR-A.P1.

[27] Vide, nomeadamente, Carolina Cunha, Cessão de Quotas e Aval…, págs. 91 e segs. e Letras e Livranças…, pág. 613; Manuel Januário Gomes, Comentário citado, págs. 41 e seguinte e Filipe Cassiano dos Santos, Estudo/Comentário citado, pág. 312 e seguintes.

   Ainda quanto a esta matéria e em idêntico sentido, Ricardo Costa (in Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Justiça n.º 4/2013 - Uniformização de Jurisprudência - Livrança em Branco- Denúncia do Aval, Fórum Jurídico IAB/Almedina, Março de 2013) defende que em casos em que a permanência como garante se tornar excessiva e irrazoável face aos riscos abrangidos “deverá ser considerada lícita a faculdade de resolução desse acordo por parte do avalista com base na invocação de uma causa de inexigibilidade superveniente, desde que atendível e não exercida abusivamente: parece ser o caso de uma cessão das participações sociais para o sócio que deixa de o ser na sociedade garantida (…)”.

   Manifestando posição contrária, vide Alexandre de Soveral Martins, Cessão de Quotas. Alguns Problemas, Coimbra, Almedina, 2016, págs. 137 e seguinte.

[28] Vide Carolina Cunha, Cessão de Quotas e Aval, citado, págs. 104 e seguinte.

   Com entendimento diverso, Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., págs. 140 e seguinte.

[29] Vide, sobretudo, Maria Cristina Couto, A Desvinculação do Aval por parte de um Ex-Sócio, cit., “ponto 8”.

   No mesmo sentido, Manuel Januário Gomes, Comentário citado, pág. 47: “Enquanto não houver nova intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, parece-nos que a jurisprudência fixada no acórdão de uniformização de jurisprudência deverá ser lida considerando a sua parte decisória, no sentido (…) de que o sócio de uma sociedade que presta aval em livrança (completa) para garantia de financiamento a favor da sociedade não pode denunciar o aval cambiário pela circunstância de, entretanto, ter cedido a sua participação social na sociedade avalizada, tal como o não pode fazer por outra qualquer circunstância (…) Se, ao invés, o acórdão de uniformização de jurisprudência for interpretado como sendo aplicável (também) ao aval aposto em livrança em branco e antes mesmo do preenchimento do título, teremos, então, um aval em branco insustentável, se não mesmo insuportável”.
[30] Cremos que se trata da 2ª edição da referida obra, correspondente a págs. 377 a 379 da 1ª edição.

[31] Esta, pois, a argumentação desenvolvida no citado aresto da RP, sumariando-se: «(…) III - Salvo prova em contrário, de ocorrência de circunstâncias excepcionais, o acordo no qual o sócio e gerente de uma sociedade garante o pagamento de um débito desta ao respectivo credor, subscrevendo como avalista uma livrança que será preenchida pelo credor no caso de incumprimento, tem como pressuposto aquela sua qualidade, no momento em que a obrigação a incumprir seja constituída. IV - O que, se não constar expressamente do dito acordo, deve ser todavia incluído no seu âmbito, por recurso a integração da declaração negocial, nos termos do artigo 239º do CC. V - Com fundamento nessa base negocial, é admissível a resolução de um tal pacto de preenchimento por parte daquele sócio gerente, em virtude de ter deixado de ser sócio e de na sociedade ter cessado funções, limitando a sua vinculação às obrigações assumidas pela sociedade enquanto tinha a referida qualidade. VI - O contrato pelo qual um banco concede crédito em conta corrente caucionada a uma sociedade, disponibilizando-lhe a utilização de quantias até determinado montante, pode ser resolvido pelo ex sócio e gerente desta que o havia subscrito e, simultaneamente, tinha dado aval pessoal a livrança a preencher pelo montante em dívida em caso de incumprimento, declinando responsabilidade pelas quantias que venham a ser utilizadas após a cessação daquela sua qualidade. VII - Ao contrário dos antigos assentos, os acórdãos de uniformização de jurisprudência poderão (e deverão) não ser respeitados se surgirem novas circunstâncias ou se forem aduzidos argumentos não considerados no acórdão que, pela sua marcante relevância, justifiquem uma decisão diversa. VIII - Não será de seguir a jurisprudência uniformizada do AUJ n.º 4/2013, se interpretada como abarcando o aval aposto em livrança em branco.».

   Em idêntico sentido, consta do sumário do mencionado aresto da RL de 20.12.2017-processo 1732/14.1TBTVD-A.L1-7: «I - Apesar da doutrina do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2013, é possível ao sócio que cedeu a sua quota desvincular-se do aval anteriormente prestado à sociedade - ao nível do acordo de preenchimento - mediante resolução por justa causa (inexigibilidade do sócio continuar a garantir as dívidas da sociedade atinentes a financiamentos que não controla e de que não beneficia), pelo que tal desvinculação nada bule com a doutrina do Acórdão Uniformizador porquanto não estamos em sede de denúncia do aval. (…).»

   No entanto, a doutrina do AUJ n.º 4/2013 tem vindo a ser aplicada, de forma mais ou menos estrita, em diversos arestos, citando-se exemplificativamente os seguintes: da RG de 16.6.2016-processo 459/10.8TBPVL-A.G1 [assim sumariado: «I - A cedência de quota na sociedade executada não exonera o oponente da sua responsabilidade como avalista de livrança em branco, mesmo que esta tenha sido preenchida quando aquele já não era sócio da subscritora. II - A inaplicabilidade de acórdão uniformizador de jurisprudência pressupõe a invocação de argumentos inovadores e ponderosos, com relevância posterior a nível doutrinal e segundo uma actualização interpretativa, não bastando discordar-se do entendimento nele firmado. III - Não há abuso de direito nem violação do pacto de preenchimento de livrança em branco se esta foi preenchida de acordo com declaração emitida pela subscritora e se o seu portador jamais fez crer ao avalista que não o demandaria, nomeadamente pelo facto de ter deixado de ser sócio da sociedade avalizada.»] e de 23.3.2017.-processo 1234/14.6T8VCT-A.G1 [concluindo-se: «I(…) não poderá o avalista desligar-se do vínculo que constituiu mediante uma declaração de vontade (receptícia), devendo responder como obrigado cambiário. (…) IV - A cedência de participação social na sociedade subscritora de uma livrança não exonera o executado/oponente da sua responsabilidade como avalista de livrança em branco, mesmo que esta tenha sido preenchida quando aquele já não era sócio da subscritora. V - A inaplicabilidade de acórdão uniformizador de jurisprudência pressupõe a invocação de argumentos inovadores e ponderosos, com relevância posterior a nível doutrinal e segundo uma actualização interpretativa, não bastando discordar-se do entendimento nele firmado.»], da RC de 25.02.2014-processo 989/12.7TBPMS-A.C1 [sumariando-se: «I - Segundo o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2013, Diário da República, 1ª série, n.º 14, de 21/3/2013 (…). II - Não existindo razões para desvio ao entendimento desse Acórdão Uniformizador quando o aval é prestado por referência aos financiamentos bancários típicos em que a dívida cambiária é determinada pelas solicitações feitas em cada momento pelo avalizado e em que o prazo da garantia está sujeira renovações antecipadamente acordadas, menos desvio existirá ainda no caso vertente quando o aval foi prestado por prazo certo e por quantia determinada, sem estar sujeito a renovações de vigência ou de reforço de capital.»] e 09.12.2014-processo 1507/10.7TBPMS-A.C1 e da RL de 28.10.2014-processo 617/11.8TCFUN-A.L1-7, publicados no “site” da dgsi.

   Com uma perspectiva porventura menos ortodoxa, cf., designadamente, os acórdãos do STJ de 12.11.2013-processo 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1 [tendo-se concluído: «(…) IV - Actua com abuso do direito, na modalidade de ´venire contra factum proprium`, o banco que aciona uma livrança, que os executados avalizaram em branco, oito anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na qual tinham interesse, tendo o exequente conhecimento que estes só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora, sendo que, na altura do afastamento (meados de 2003), a conta caucionada de que a sociedade era titular encontrava-se regularizada e, posteriormente (já depois de 2004), o exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através da renovação do contrato de abertura de crédito que tivera início em 03.7.2002.»] - poder-se-á porventura ligar o decidido neste aresto à perspectiva delineada no final da “declaração de voto” do Senhor Conselheiro Paulo Sá levada ao AUJ n.º 4/2013: «(…) se a vinculação à doutrina do acórdão uniformizador impedir, de futuro, a defesa da possibilidade da denúncia, em casos idênticos aos contemplados no acórdão-fundamento, o recurso à resolução com justa causa ou ao abuso de direito acobertará similar decisão. (sublinhado nosso)» - e (proferidos antes e depois do AUJ n.º 4/2013) da RC de 21.5.2013-processo [constando do sumário: «(…) III - Não é admissível a extinção, por denúncia do avalista, da obrigação cambiária de aval. IV - Age em abuso do direito, na modalidade de ´venire contra factum proprium`, o portador da livrança que, depois de declarar aos avalistas que a conta caucionada estava regularizada, continua a conceder crédito à sociedade subscritora, através da renovação do contrato de abertura de crédito, num momento em que aqueles já tinham perdido o seu interesse naquela sociedade.»] e de 01.7.2014-processo 35558/11.0YYLSB-A.C1 [concluindo-se: «I. A denúncia, enquanto causa extintiva dos contratos, é uma declaração unilateral receptícia, através da qual uma das partes põe termo à relação contratual, sendo uma forma típica de fazer cessar relações duradouras por tempo indeterminado e igualmente um meio de impedir a prorrogação ou renovação de um contrato celebrado por tempo determinado, caso em que deve fazer-se para o termo do prazo da renovação. II. Importando necessariamente o aval uma vinculação circunscrita no tempo, a obrigação cambiária que dele nasce “está fora do campo típico de aplicação da denúncia”, não sendo assim de admitir a possibilidade de denúncia dos avales prestados. III. Antes do preenchimento da letra ou livrança não existem ainda as obrigações e garantia cartulares. Por assim ser, é de admitir a possibilidade de, verificadas determinadas circunstâncias, o “prometido avalista” que, nessa qualidade, subscreve uma livrança em branco, desvincular-se das obrigações emergentes do pacto de preenchimento que necessariamente precede a existência do aval. IV. O entendimento expresso não afronta a doutrina do n.º AUJ de 11/12/2012 (publicado no DR de 21.01.2013), formulada tendo em vista o aval.»], publicados no “site” da dgsi.
[32] Relevará, aqui, designadamente, a questão substancial atinente ao conteúdo/cláusulas do próprio negócio jurídico que o pacto de preenchimento consubstancia - cf. o acórdão da RC de 22.01.2013-processo 21/11.8TBAVZ-A.C1, publicado no “site” da dgsi.

[33] E, com o devido respeito, recorrendo ao explanado no referido AUJ, não se poderá dizer que, na situação dos autos, considerados os elementos já disponíveis, o exequente/credor ficou “à mercê das vicissitudes e variações das posições sociais que em cada momento vigoram numa sociedade e dos interesses particulares que os sócios decidam em cada momento para o destino societário”.
[34] Vide António Pinto Monteiro, Interpretação e o protagonismo da doutrina, in RLJ, 145º, pág. 71.
[35] Vide, designadamente, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2014, 2ª edição, pág. 544.
([36]) A partir do momento em que é subscrita/entregue/emitida uma livrança, ainda que parcialmente em branco, temos um título cambiário, que, de acordo com a sua vocação, entra em circulação, prevalecendo, então, os interesses do tráfico mercantil, no caso o interesse da circulabilidade do título, vista aquela vocação para a circulação mercantil.