Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2519/18.8T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL
PRÉVIA REVOGAÇÃO DA DECISÃO DANOSA PELA JURISDIÇÃO COMPETENTE
Data do Acordão: 11/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J. C. CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADO
Legislação Nacional: ARTºS 13º, Nº 2 DA LEI 67/07, DE 31/12; 22º DA CRP.
Sumário:  I - O regime geral aplicável à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional corresponde ao regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, com as ressalvas que decorrem do regime próprio do erro judiciário e com a restrição que resulta do facto de não se admitir que os magistrados respondam diretamente pelos ilícitos que cometam com dolo ou culpa grave.

II - Para o reconhecimento de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, é necessária a existência de um erro judiciário, o qual implicará que haja a certeza de que um juiz normalmente  preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis, quer se esteja perante erro de direito ou de facto.

III- Essa certeza, enquanto requisito da ilicitude da responsabilidade em causa, tem de advir da prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, comportando-se, pois, esta revogação, como um pré-requisito da responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional.

IV – Não se trata, no entanto, de uma qualquer revogação de uma decisão judicial, mas de uma revogação que implique, pelo seu conteúdo, o reconhecimento judicial do erro, com as características de manifesto, quando de direito, ou de grosseiro, quando de facto.

V – A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia entendeu dever ter-se por definitivamente afastada a exigência da prévia revogação da decisão danosa quando esteja em causa a apreciação da responsabilidade civil do Estado por acto da função jurisdicional em função da violação do direito comunitário por um órgão jurisdicional nacional que decida em última instância.

VI – Por isso, apenas quando o erro judiciário que origina o dever de indemnizar proceda do órgão jurisdicional que decida em última instância e se reporte à devida interpretação ou aplicação do direito comunitário pode e deve ser dispensada a prévia revogação da decisão que alegadamente contém aquele erro.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – C... propôs ação declarativa, sob a forma comum, contra o Estado Português, pedindo que o mesmo seja condenado a pagar-lhe a quantia de €111.712,06 a título de danos patrimoniais decorrentes da má prática e negligência no exercício da função dos Tribunais, na interpretação e aplicação do direito, bem como a quantia de €10.0000,00 a título de danos não patrimoniais.

Alegou, em síntese, ser proprietária de um determinado prédio rústico, que anteriormente integrava a herança ilíquida e indivisa da falecida Mª ..., sua mãe, e que  tal herança, em 16/2/2004, intentou contra a Junta de Freguesia de ... e contra o respetivo presidente, secretário e tesoureiro, respectivamente F..., J... e A..., ação que veio a ter o nº ..., pedindo a condenação daquela e dos seus membros: a) A reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio rústico atrás identificado; b) A reconhecer que tal prédio não se encontra onerado com qualquer servidão, ónus ou encargo, especialmente direito de passagem; c) A não mais transitarem nem entrarem no mesmo prédio, nem nele colocarem qualquer produto, especialmente alcatrão; d) A pagarem aos Autores a quantia de 7.239,49 euros, bem como os juros à taxa legal, que se vencerem desde a data da citação até integral pagamento, invocando, em síntese, que a referida Junta de Freguesia abriu um caminho no prédio deles, AA., sem autorização e com oposição deles, e alcatroou-o. Juntou a essa ação certidão do Ac. RC de 21/10/1997, proferido em ação que fora intentada por J..., pai da A., contra P... e mulher, ação essa com «objecto igual e de igual teor, pelas mesmas razões e fundamentos» (Proc. n.º ...), tendo sido nela decidido a condenação dos aí RR. a não transitarem pelo prédio dos AA. e a não violarem, por qualquer modo, o direito de propriedade dos mesmos sobre esse prédio, considerando a passagem pelo mesmo como atravessadouro, concluindo no sentido de ser abolida tal passagem. Mas, alega a A., não obstante essa certidão, foi proferida sentença no Proc. ... em que foi decidido a) condenar-se os Réus (junta de Freguesia de ...) a reconhecer que a herança aberta por óbito de Mª , representada pelos Autores, é co-titular do direito de propriedade sobre o prédio rústico correspondente a ..., inscrita na matriz sob o art. ...; b) Condenar-se os Autores a reconhecerem que esse seu prédio é atravessado por um caminho público com cerca de três metros de largura, no sentido da Rua .../..., que esse caminho público faz parte integrante do domínio público da Junta de Freguesia de ... e, consequentemente, a absterem-se da prática de quaisquer actos que possam perturbar, impedir ou limitar o exercício público desse direito, quer pela Junta de Freguesia, quer por qualquer pessoa que ele transite. Entendendo, consequentemente, que o referido caminho, com uma largura de três metros, passou a integrar domínio público da administração pública local (Junta de Freguesia de ...).

Tendo os AA. interposto recurso dessa sentença, o TRC decidiu pela improcedência do recurso de Agravo e de Apelação.

Inconformados, os AA. interpuseram, então, revista excecional para o STJ, tendo o mesmo sido admitido. No entanto, este Tribunal veio a negar a revista e a confirmar a decisão do acórdão recorrido, mas fê-lo sem se pronunciar sobre os temas objeto de recurso, realçados pelo acórdão de admissão do recurso de revista excepcional.

Os AA. interpuseram reclamação invocando a nulidade do acórdão, mas o STJ considerou improcedente a reclamação, não se tendo pronunciado sobre aspectos fundamentais e necessários para a boa decisão da causa.

Invocam que perante a decisão no processo nº ... - em que o TRC proibiu o trânsito pelo seu prédio e determinou a não violação por qualquer modo do direito de propriedade dos AA. sobre esse prédio - tinham legítimas expetativas que o assim decidido fosse observado na ação ..., frisando estar em causa nas duas ações  o «mesmo trilho, existente no prédio», na medida em que o ali decidido faz autoridade de caso julgado, pelo que concluem que as decisões proferidas põem em causa a coerência do sistema judicial e da jurisprudência sobre o tema, bem como o princípio da segurança jurídica.

Mais referem terem despendido com essa ação a quantia de €9.847,06, cujo montante reclamam. Além de que a A. viu ainda o seu terreno bastante desvalorizado, pois a constituição de um caminho de largura de 3 metros ao longo da sua propriedade impede que o terreno se destine à construção de moradias, estando o mesmo avaliado no valor de €101.865,00, invocando ainda que a privação da sua propriedade lhe causou preocupações, aborrecimentos, angústia e insónias, reclamando a título de danos não patrimoniais a quantia de €10.000,00.

O R. contestou invocando, entre o mais não relevante para o recurso, que as decisões judiciais proferidas no aludido processo nº ... não são ilegais, inconstitucionais, nem determinadas por um qualquer erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, chamando ainda a atenção para o facto de a A. não ter concretizado o erro judiciário. Acresce que inexiste caso julgado na decisão judicial tomada no processo nº ... relativamente ao processo nº ..., pela simples razão de que os réus são diferentes em cada um desses processos, e de todo o modo refere que não se verifica no caso vertente o requisito estabelecido no nº 2 do art 13º da Lei nº 67/07 como pressuposto da indemnização por erro judiciário, uma vez que  nenhuma decisão judicial foi revogada, antes a sentença da 1ª instância foi sucessivamente confirmada em sede de recursos até ao S.T.J..

Não tendo sido obtida a conciliação das partes e entendendo-se que os autos continham já os elementos necessários para tanto, foi proferida decisão que julgou  improcedente a  ação, absolvendo o Estado, réu, do pedido, por ter julgado procedente a exceção perentória de falta de revogação prévia da decisão alegadamente danosa.

II – Inconformada, a A. recorreu, tendo concluído as respetivas alegações do seguinte modo:

...

15ª- A douta sentença sob recurso violou, assim, as disposições dos art. 13.º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, e art.s 20º e 22.º da Constituição da Republica Portuguesa.

O R. apresentou contra alegações em que concluiu do seguinte modo:

...

IX. Assim, a douta sentença recorrida está devidamente fundamentada, de facto e de direito, em conformidade com as normas e princípios legais, aplicáveis, não merecendo qualquer reparo ou censura.

X. Não violando a mesma as disposições dos artigos 13º da Lei nº 67/2007, de 31.12, e 20º e 22º da Constituição da República Portuguesa, como alega a recorrente.

XI. Nesta conformidade, deverá ser mantida nos seus precisos termos, improcedendo, assim, o recurso.

III – O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

...

IV – Confrontadas as conclusões das alegações com a decisão recorrida, importa decidir se há lugar à responsabilidade civil do Estado por erro judiciário, porque se deva entender verificado tal erro, ao contrário do sustentado na decisão recorrida, e porque não se exija em situações como as dos autos o requisito estabelecido no nº 2 do art 13º da Lei 67/07 como pressuposto da indemnização.

Antes de se avançar na apreciação das questões objecto do recurso, importa chamar a atenção para algum do conteúdo das peças processuais referidas na matéria de facto acima tida como provada.

...

A ação em causa foi julgada parcialmente procedente, tendo os aí RR. sido  condenados a reconhecerem que os AA. são legítimos e exclusivos donos do prédio identificado no art 1º da petição inicial e os RR absolvidos dos demais pedidos feitos pelos AA.

Tendo estes interposto recurso desta sentença, o TRC julgou procedente a apelação e condenou os RR. a não transitarem pelo prédio dos AA. identificado na ação e a não violarem por qualquer modo o direito de propriedade destes sobre o mesmo prédio, referindo na fundamentação, entre o mais: «Com a abertura do novo caminho há cerca de 10/14 anos, a satisfação desse interesse colectivo transferiu-se pra esta nova via e a primitiva passou a ser um mero atalho daquela. Esta utilidade de encurtamento de percurso não é relevante para justificar as restrições inerentes à dominialidade pública, sendo própria dos atravessadouros. Assim, é de qualificar como atravessadouro a passagem em causa, o qual tem de se considerar abolido».

...

Dispõe o art 22º da CRP que «O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrém».

É esta norma constitucional que constitui o fundamento da responsabilidade do Estado por facto de função jurisdicional  , a qual se insere na mais vasta da responsabilidade civil do Estado por actos ilícitos, e constitui, indiscutivelmente, um corolário do princípio do Estado de direito, este que obriga, como lembra o Tribunal Constitucional, a indemnizar os danos resultantes de actos lesivos de direitos  .

Dispõe, por sua vez, o art 216º/2 da CRP que «Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei».

E a irresponsabilidade dos juízes (embora a CRP preveja a possibilidade de exceções) constitui um indubitável principio essencial sustentáculo da independência e isenção dos juízes, indispensável à boa administração da justiça.

É em função desse principio de irresponsabilidade que as ações em que se pretenda fazer valer a responsabilidade civil contra o Estado por erro judiciário são intentadas única e exclusivamente contra este, estando fora de questão permitir ao lesado «a opção de demandar o Estado ou o juiz, ou demandar os dois conjuntamente, em litisconsórcio passivo». Como é afirmado por Ana Celeste Carvalho  ,  «trata-se de matéria em que não existiu liberdade de disciplina ao legislador, antes traduzindo o respeito por uma imposição constitucional, de compatibilização do princípio da irresponsabilidade directa dos juízes com a sua independência».

Este regime é, no entanto, o que vigora nas “relações externas”, visto que nas “internas” rege já o disposto no art 14º da lei nº 67/2007, de 31/12, que depois de afirmar no seu nº 1 que «Sem prejuízo da responsabilidade criminal em que possam incorrer, os magistrados judiciais e do Ministério Público, não podem ser directamente responsabilizados pelos danos decorrentes dos actos que pratiquem no exercício das respectivas funções», conclui - ainda nesse nº 1 - que «quando (aqueles) tenham agido com dolo ou culpa grave, o Estado goza de direito de regresso contra eles», explicitando depois o nº 2 dessa norma que «A decisão de exercer o direito de regresso sobre os magistrados cabe ao órgão competente para o exercício do poder disciplinar, a título oficioso ou por iniciativa do Ministro da Justiça».

Atualmente a matéria da responsabilidade civil extracontratual do Estado é regida pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, que foi alterada pela Lei 31/2008, importando convocar nesse diploma legal no que diz especificamente respeito à responsabilidade civil contra o Estado por erro judiciário, não só o já referido seu art 14º, mas, desde o logo, o seu art 12º - que torna aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça o regime da responsabilidade por ilícitos cometidos no exercício da função administrativa   . E, indiscutivelmente, o art 13º, onde se  encontram os requisitos desta específica responsabilidade civil   .

   Diz-se neste preceito: «1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».

 As decisões jurisdicionais em causa são, nas palavras de Ana Celeste Carvalho, «não só as decisões jurisdicionais, maxime, sentença ou acórdão, enquanto decisões finais que põem termo ao litígio, como qualquer outra decisão ou medida aplicada que defina a situação jurídica e a concreta composição de interesses, ainda que provisoriamente ou no exercício de funções materialmente administrativas», explicando, antecedentemente, que «o conceito de sentença não deve ser tomado no seu sentido técnico-processual, já que para além das decisões definitivas, que põem termo à instância, total ou parcialmente, seja de forma, seja de mérito, seja em acção, seja em processos cautelares e seus incidentes, não é de excluir que outras decisões e mesmo certos despachos (como aqueles que decidam a admissão de articulado superveniente, requerimentos de produção de prova, a ampliação do pedido/causa de pedir e a modificação objectiva/subjectiva da instância), possam influir na decisão final».

Quanto ao erro judiciário, decorre da norma em causa que a referida responsabilidade civil só existirá perante decisões jurisdicionais inconstitucionais ou  ilegais, desde que o sejam «manifestamente»; ou perante decisões jurisdicionais em matéria de facto, aí, desde que contenham «erro grosseiro». E estabelece-se um requisito essencial para o accionamento dessa responsabilidade – o de que tenha existido a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Na verdade o RRCEE (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado) optou por não definir o erro judiciário – pressuposto material da responsabilidade em referência - preferindo limitar-se a apontar as características de que o mesmo se deve revestir para que seja fonte geradora de responsabilidade civil: configurar-se como um erro manifesto de direito, dele decorrendo uma decisão jurisdicional («manifestamente») inconstitucional ou ilegal, ou configurar-se como um «erro grosseiro» de facto, dele decorrendo uma decisão de facto “grosseiramente”  injustificada.

Já se vê que as características do erro judiciário são predominantemente dadas pelos termos «manifestamente» e «grosseiro», referindo Ana Celeste Carvalho: «Sendo imediatamente valorativos, os conceitos manifesto e grosseiro, traduzem uma elevada relevância ou importância, não bastando qualquer erro, o erro banal, corrente ou comum, mas antes aquele que o magistrado tem a obrigação de não cometer, por ser crasso e clamoroso».

Como é evidente, e como para tanto o adverte Gomes Canotilho  , «sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer hipótese de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova», referindo mais especificamente  : «Não se intentam acções de responsabilidade para contestar a interpretação de normas e a valoração dos factos e dos meios probatórios. Quando assim se pretende proceder utiliza-se a via do recurso».

O que significa que quem interpõe uma ação de responsabilidade civil contra o Estado por erro judiciário tem, à partida, que, em função das várias decisões jurisdicionais que hajam sido proferidas sobre a matéria do litígio, situar e definir o erro que está em causa, e fazê-lo de tal modo que o mesmo resulte configurado como «manifesto» (quando de direito) ou  «grosseiro» (quando de facto).

Importa ainda ter em consideração que como sucede genericamente na matéria de responsabilidade civil, esse erro há-de apresentar-se como causa adequada do dano cuja ressarcibilidade se pretende: «Apenas será relevante o erro que permita estabelecer o nexo causal  com o dano produzido, pelo que, ocorrendo um erro ainda que manifesto e grosseiro e indemnizável, se o mesmo não for a causa adequada do dano, será de excluir a responsabilidade» .

No Grande Dicionário da Língua Portuguesa  surge como sinónimo de “grosseiro”: mal acabado, sem arte, tosco, que está longe da perfeição; desprovido de cultura, de civilização, de educação, de instrução; rude, bruto, rústico; malcriado, incivil, que fere a decência e a delicadeza; fig. no sentido moral – o que é manifestamente contrário à razão, ao bom senso, à verdade.

E como sinónimo de “manifesto”: evidente, notório, que toda a gente pode reconhecer, patente, claro, inegável, flagrante.

Para melhor percepção da caracterização do erro judiciário, numa e noutra das vertentes, repetem-se aqui as citações jurisprudenciais utilizadas no Ac STJ 10/5/2016  . Assim:

-no Ac STJ 8/9/2009, (Sebastião Póvoas) – “O erro grosseiro é o que se revela indesculpável, intolerável, constituindo, enfim, uma “aberratio legis”. Terá de se traduzir num óbvio erro de julgamento, por divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão, a interferir no seu mérito, resultante de lapso grosseiro e patente”;

-no Ac STJ de 15/12/2011 (João Trindade) – “O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil do Estado quando seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativa de ou gravemente negligente”;

-Ac STJ de 28/2/2102 (Nuno Cameira) – “O erro de direito só constituirá fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência da função jurisdicional, seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que tome a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas”;

-Ac STJ  23/10/2014 (Fernanda Isabel) – “O erro de direito, para fundamentar a obrigação de indemnizar, terá de ser “escandaloso, crasso, supino, procedente de culpa grave do errante”, sendo que só o erro que conduza a uma decisão aberrante e reveladora de uma actuação dolosa ou gravemente negligente é susceptível de ser qualificada como inquinada de “erro grosseiro.”;

-Ac STJ 24/2/2015 (Pinto de Almeida) “O erro de direito deve ser manifestamente inconstitucional ou ilegal: não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de uma norma jurídica; o erro de facto deve ser clamoroso e grosseiro, no que toca à admissão e valoração dos meios de prova e à fixação dos factos materiais da causa.”

Em função destes acórdãos e de outros verifica-se que o Supremo Tribunal de Justiça tem repetidamente qualificado como erro grosseiro, o erro indesculpável em que não incorreria um julgador prudente, agindo com ponderação conhecimento e competência  .

Dizendo-se ainda com interesse no Ac STJ 20/10/2005  : «Para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar de que não foi justa ou melhor a solução encontrada», antes se impondo que, «haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis”.  Acrescentando-se ainda nesse acórdão: «A revogação de uma decisão judicial não importa, à partida, um juízo de ilegalidade ou de ilicitude, nem significa que a decisão revogada estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um Tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso».

É das acima referidas características do erro judiciário que acabam por resultar os pressupostos da ilicitude e da culpa no exercício da função jurisdicional susceptíveis de importar responsabilidade civil do Estado, como ainda se faz notar nessa decisão, quando se refere: «Só podem dar-se como verificados (esses pressupostos) nos casos de mais gritante denegação da justiça, tais como a demora na sua administração, a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei, a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ou assentes nos autos, por culpa grave indesculpável do julgador».

  Carlos Alberto Fernandes Cadilha   introduz na definição do erro de direito, enquanto fundamento da responsabilidade civil, uma nota muito relevante: a de que devendo revestir-se de um suficiente grau de intensidade, no sentido de que deverá resultar de uma decisão que, de modo evidente, seja contrária à constituição ou à lei, e por isso desconforme ao direito, não possa aceitar-se como «uma das soluções plausíveis da questão de direito». Por outro lado, «O reconhecimento do direito indemnizatório não se basta com a mera constatação, em sede de recurso, por um tribunal superior, de uma errada interpretação e aplicação do direito; tornando-se ainda exigível que se trate de um erro evidente que, por ser evitável segundo a normalidade das coisas, tenha desnecessariamente gerado prejuízos a uma das partes».

Relativamente ao erro na apreciação dos pressupostos de facto, certo que só origina responsabilidade civil do Estado em caso de erro grosseiro, refere que «esta especial qualificação do erro, quando está em causa uma decisão de facto, parece relacionar-se com o condicionalismo da formação da convicção do juiz relativamente a meios de prova que sejam de livre apreciação». Dizendo mais à frente: «Compreende-se assim que a responsabilidade civil por erro quanto à matéria de facto se circunscreva aos casos em que houve um clamoroso erro de avaliação dos meios de prova, ressalvando-se as situações em que a decisão de facto, ainda que tenha sido alterada por um tribunal de recurso, ainda se enquadra dentro dos limites da contingência e da falibilidade de um juízo de convicção psicológica sobre a valoração da prova», tornando claro que o erro na apreciação das provas tanto pode respeitar a um erro sobre a admissibilidade e valoração dos meios de prova, como a um erro sobre a fixação dos factos matéria da causa  .

Cabe evidenciar que devendo o erro de direito ou o erro de facto gerar inconstitucionalidade ou ilegalidade, estas são, só por si, expressão de ilicitude  .

Voltemos ao caso dos autos.

Do arrazoado da A. na petição inicial parece querer a mesma situar o erro judiciário na circunstância de na ação que intentou contra a Junta de Freguesia de ... (ação nº ...), nenhuma das decisões nela proferidas ter conhecido da exceção de autoridade do caso julgado, referindo-o expressamente no concernente ao acórdão do STJ, no art 25º: «Não se pronunciou sobre os temas objecto do recurso realçados pelo acórdão de admissão do recurso de revista excepcional». E agora nas conclusões da apelação insiste na mesma ideia, mencionando: «4- Apresentou Recurso de apelação e recurso de revista excepcional, o qual foi admitido, com indicação da necessidade de elucidar várias questões. 5- Tais questões não foram sequer apreciadas e o Supremo Tribunal de Justiça fez tábua rasa aos elementos indicados na admissão do recurso extraordinário apresentado.6- Atempadamente a recorrente, invocando um erro grosseiro, apresentou reclamação/recurso, a que deu origem a um acórdão, decidindo o STJ negar a revista e confirmar a decisão do acórdão recorrido, não se pronunciando sobre os temas objecto de recurso, realçados pelo acórdão de admissão de recurso de revista excepcional. 7.- Existiu claramente ilicitude quando o STJ não se pronunciou sobre a questão controversa na doutrina e na jurisprudência, com conceitos indeterminados que importavam densificar, sendo susceptível de interpretações tão divergentes que põem em causa a boa aplicação do direito».

O esforço acima feito na enunciação e transcrição das peças processuais do processo em causa destinou-se, essencialmente, a tornar claro que, ao contrário do que a apelante o refere, o STJ no conhecimento da revista excecional pronunciou-se sobre a autoridade do caso julgado. Não houve omissão de pronúncia como a apelante refere (ou sugere) ter sucedido. Dir-se-á até – e isto salvo o devido respeito e salvo melhor opinião – que tal acórdão não tinha sequer que se pronunciar sobre essa questão, pois que a revista excecional só foi admitida no que se reporta à questão da relevância jurídica da questão da «dominialidade e dos caminhos públicos», e não quanto à contradição de julgados. Por outro lado, também a Relação de Coimbra, no conhecimento do agravo interposto da decisão que no saneador decidira pela improcedência da exceção de caso julgado, se pronunciou claramente não só relativamente a essa exceção, mas àquela outra de inexistência de autoridade do caso julgado.

Consequentemente, não teria qualquer razão a apelante quando – se esse foi o seu objetivo – pretendia situar o erro judiciário na omissão de pronúncia.

Devendo referir-se, de todo o modo, que mesmo que houvesse efectiva omissão de pronúncia – que não houve, até pelo contrário – esse erro, de omissão, nunca seria causal do dano, implicando que se remontasse à questão omitida, e consequentemente, à da existência ou não de autoridade do caso julgado para se aferir do erro judiciário.

Entende a A. – apesar de não o ter referido com clareza na petição da ação em apreço, onde, à partida, o deveria ter salientado  – que o juiz da mesma havia de julgar o objeto dessa ação tal como foi julgado na ação que anos antes interpusera contra outros RR., no sentido que o  caminho que atravessa o prédio da A. ser um mero atravessadouro.

Não está aqui em causa saber se era ou não caso para se afirmar na ação a autoridade desse caso julgado, pois que o legislador, na configuração que entendeu dar à ação de responsabilidade civil do Estado por erro judiciário – como melhor se verá adiante – de muito caso pensado, não quis que o juiz convocado para aferir dos pressupostos dessa responsabilidade se pronunciasse pelo mérito do decidido na ação em que esse erro terá ocorrido.

Mas, como é sabido, a autoridade do caso julgado constitui uma questão de processo civil complexa, como todas as que se situam em redor do caso julgado, não sendo exactamente questão que decidida de um modo ou de outro pudesse ser convocada para vir a configurar um erro «manifesto» de direito.

É que a asserção genericamente feita de que a autoridade de caso julgado não exige a tríplice identidade a que alude o art 581º do CPC, mostra-se simplista, pois que, se efetivamente não exige a total identidade de objectos nas duas ações contrapostas, só muito dificilmente deixa de exigir a identidade subjectiva  . Com mais cautela se pronuncia, por exemplo, o Ac STJ 26/2/2019  , limitando-se a referir que «a autoridade não implica a identidade objectiva». Ideia que reforça no Ac STJ 7/3/2017, referindo: «1.A excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado são duas vertentes, a primeira negativa e a segunda positiva, dessa mesma realidade - o caso julgado; a excepção implica sempre a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (cfr art 581º, nºs 1 a 4, do CPC). A autoridade do caso julgado não: "a autoridade existe onde a excepção não chega, exactamente nos casos em que não há identidade objectiva" (…)» .

O que se pretendeu evidenciar com as considerações antecedentes foi que, de todo o modo, e em última análise, a questão de direito relativamente à qual a apelante – de uma forma, aliás, muito pouco concretizada – pretende situar o erro de direito,  porque se trata de questão com contornos delicados, dificilmente poderia gerar o erro manifesto de direito que se pressupõe no erro judiciário.

Sucede -  e há que admiti-lo - que todo este empenhamento na exclusão de erro de direito na situação jurisdicional que a A/apelante trouxe a tribunal, se mostra escusada, como, aliás, o veio a entender o tribunal da 1ª instância quando julgou  improcedente a  ação, na medida em que há, efectivamente, que ter como procedente a exceção perentória de falta de revogação prévia da decisão alegadamente danosa.

Com efeito, o legislador, muito claramente, entendeu dever limitar a possibilidade de os tribunais numa ação de responsabilidade se pronunciarem sobre a bondade intrínseca das decisões jurisdicionais ao exigir que o pedido de indemnização seja fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

É o que resulta do nº 2 do art 13º: «O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».

Refere a este propósito Fernandes Cadilha: «Conforme dispõe o nº 2, o  pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente. Tal significa que o requisito da ilicitude – consubstanciado na existência de um erro de julgamento - terá de ser demonstrado, não através da acção de responsabilidade civil que se destine a efectivar o direito de indemnização pelo exercício da função jurisdicional, mas no próprio processo judicial em que foi cometido o erro e por via dos meios impugnatórios que, no caso, forem admissíveis».

Acrescentando: «O reconhecimento judicial do erro (…) constitui um pré-requisito da responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional, sendo uma condição prévia à demonstração da ilicitude, como pressuposto necessário do direito de indemnização» :.

Mais referindo: «Se não se fizer prova, no processo destinado a efectivar a responsabilidade civil, da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção terá necessariamente que improceder»

E é por assim ser, por estar em causa uma condição prévia à demonstração da ilicitude, que (apenas) «caso seja feita a prova da revogação, caberá ao juiz do processo apurar se a decisão revogatória implica o reconhecimento de um erro judiciário cometido por um tribunal inferior».

Esteve, pois, este tribunal a agir contrariamente à ordem correta de apreciação dos requisitos da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário, o que se ficou a dever, em todo o caso, à errada perspectivação da A. na ação e à falta de concretização por parte da mesma do erro judiciário.

 A dificuldade da A. nessa concretização radica, afinal, na circunstância de não existir na situação fáctica que trouxe a juízo a prévia revogação da decisão danosa, pois que será sempre em função da alteração do julgado contida nessa decisão revogatória que se haverá de revelar o erro de julgamento.

Deve ter-se presente relativamente a este pré-requisito da responsabilidade civil em apreço que a revogação da decisão danosa, exigida pelo nº 2 do artigo 13º, se deverá tratar de uma  revogação definitiva (uma decisão transitada em julgado); que há-de decorrer de um tribunal superior, e ser obtida através de recurso, embora não possa excluir-se, naturalmente, que a própria decisão tida como danosa provenha do próprio tribunal  superior, caso em que é de exigir a respectiva revogação através de reclamação ou reforma - art 616º CPC; e será da decisão revogatória que haverá de decorrer o caráter «manifesto» do erro de direito ou o caráter «grosseiro» na apreciação dos factos  .

 Pois, como é evidente – cfr citado Ac STJ de Araújo de Barros - «A revogação de uma decisão judicial não importa, à partida, um juízo de ilegalidade ou de ilicitude, nem significa que a decisão revogada estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um Tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso».

Como é referido no Ac. STJ de 24/02/2015, «Não pode atribuir-se qualquer relevo a um alegado erro judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto»   .

O  erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis, não se mostrando curial, «que uma decisão jurisdicional consolidada, por não ter sido impugnada, pudesse vir a ser posteriormente "desautorizada" por outro tribunal, porventura de diferente espécie ou da mesma espécie, mas de grau inferior», sendo ainda evidente, que «essa opção do legislador compatibiliza, pois, os institutos da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado, preservando a paz social, pois impede a reabertura de conflitos antigos, que determinem a perda de segurança no sistema judicial»

Do que necessariamente há-de decorrer que, «se a decisão pretensamente ilegal ou inconstitucional não é recorrível ou se o tribunal de recurso, que poderia pronunciar-se em ultima instância sobre a matéria da causa, manteve o entendimento do tribunal recorrido, não pode dar-se como existente um erro de julgamento para efeitos de responsabilidade civil» .

Como é evidente e resulta do já explanado: «Por prévia revogação da decisão deve entender-se a decisão que anteriormente tenha sido revogada através de recurso ou alterada por qualquer modo, ou seja, todas as formas legalmente admissíveis de suscitar a reapreciação da decisão em que instância for: - no mesmo tribunal que proferiu a decisão ou em tribunal superior - cabendo não apenas o recurso ordinário, como todos os previstos no ordenamento jurídico e que possam conduzir à revogação, rectificação ou alteração da decisão judicial».  

Na situação dos autos, como atrás já se referiu, tendo sido admitido revista excecional, a mesma só o foi relativamente à questão da relevância social da dominialidade dos caminhos. Relativamente à questão da contradição de julgados, a revista não foi admitida. Por isso, a decisão definitiva a respeito dessa questão – na perspetiva de autoridade do caso julgado, adveio, em rigor, e no nosso entendimento, do TRC quando conheceu do agravo interposto da decisão da 1ª instância que julgou improcedente a exceção de caso julgado.

 Mesmo que assim não se deva entender e seja sustentável que o STJ pudesse apreciar a questão do caso julgado -  e de facto apreciou-a – nenhuma complicação daí adviria para a situação dos autos, na medida em que a teve como improcedente e, chamado a decidir a respeito de nulidade de omissão (também) a respeito dessa questão, indeferiu tal reclamação.

 É verdade que, tal como apelante o anota na conclusão 10ª, no direito comunitário tem vindo a ser criticado o pressuposto da prévia revogação da decisão danosa para a efectivação da responsabilidade civil do Estado por danos causados no exercício da função judicial, nas situações em que a decisão jurisdicional não seja susceptível de recurso, ou o erro judiciário advenha da ultima decisão jurisdicional na cadeia admissível.

Como reflecte Ana Celeste Carvalho, «nesse caso, podendo existir uma decisão danosa, não só a mesma perdurará na ordem jurídica, como o lesado não pode ser desse facto ressarcido, questionando-se se não existirá um défice na efectividade no regime legal estabelecido».

Efetivamente, a exigência como condição prévia à declaração da responsabilidade do Estado, da revogação da decisão danosa, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída, constitui opção que «pode tornar excessivamente difícil a obtenção da reparação dos danos causados pela violação do direito da União, uma vez que as hipóteses de reapreciação das decisões do Supremo Tribunal de Justiça são extremamente limitadas»  . 

Sucede que, por ora, e como a própria apelante afinal o reconhece nas conclusões 11ª e 13ª da sua apelação, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia só entendeu dever ter-se por definitivamente afastada a exigência da prévia revisão ou revogação da decisão danosa quando esteja em causa a apreciação da responsabilidade civil do Estado por acto da função jurisdicional em função da violação do direito comunitário por um órgão jurisdicional nacional que decida em última instância.

O que significa que a possibilidade de dispensa do requisito da prévia revogação da decisão danosa por parte do tribunal que julgue em última instância só se coloca no caso de incumprimento do direito comunitário por parte desse tribunal.

Com efeito, nas três decisões que se conhecem em que o TJUE teve por afastada a referida exigência estava em qualquer delas em causa uma decisão proferida um órgão jurisdicional nacional em última instância que se mostrava em violação do direito da União - Acórdão Kobler, Acórdão Traghetti  e processo C-160/14 (Ferreira da Silva e Brito et al./Estado português).

Assim, quando o erro judiciário que origina o dever de indemnizar resulte do incumprimento pelo órgão jurisdicional que decida em última instância do direito comunitário – da sua devida interpretação ou aplicação – deve ser dispensada a prévia revogação da decisão que alegadamente contém aquele erro.

Veja-se, no entanto, que, como o refere Fernandes Cadilha  , no acórdão Kobler, tendo sido decidido que há responsabilidade estadual quando o incumprimento do direito comunitário resulte de uma decisão de um órgão jurisdicional decidindo em ultima instância, se entendeu que essa responsabilidade pressupõe ainda «que o juiz tenha violado de modo manifesto o direito aplicável (considerandos 31 a 33 e 51 a 56)», comentando  o autor em causa: «Tem aqui plena validade a jurisprudência comunitária em relação às demais situações de incumprimento, que, em consonância com o regime decorrente do presente art 13/1 torna exigível, para efeito do reconhecimento do direito indemnizatório, uma violação suficientemente caracterizada do direito comunitário». 

 Miguel Teixeira de Sousa, no Blog do IPPC, de 15.09.2015, comentando o decisão do acórdão de 09/09/2015 no processo C-160/14 (Ferreira da Silva e Brito et al./Estado português), salientou que «sempre que numa acção de responsabilidade civil proposta contra o Estado, seja invocado um erro judiciário por violação do direito europeu, não pode ser exigida, ao contrário do que dispõe o art. 13.º, n.º 2, RRCEE, a prévia revogação da decisão que alegadamente contém aquele erro (…) Isto significa que, daqui em diante, bastará a qualquer interessado invocar que, segundo a jurisprudência do TJ, a acção de indemnização baseada em erro judiciário por violação do direito europeu não exige a prévia revogação da decisão pretensamente ilegal».

Ana Celeste Carvalho defende a exigência desse pressuposto, quando afirma  :  «Deve questionar-se se é justificável ou sequer razoável a exigência do pressuposto da prévia revogação, desde logo considerando que em termos de direito comparado, esta exigência não foi seguida em todos os ordenamentos jurídicos. Sendo inquestionável o constrangimento que esse pressuposto pode acarretar no imperativo de responsabilização estabelecido pelo TJUE e no princípio geral consagrado no artigo 22º da Constituição, por se traduzir num seu limite, importa ter presente, o seguinte: 1) que o TJUE alheia-se da subsistência da decisão lesiva, considerando-a matéria da autonomia processual dos Estados, embora limitada pelo princípio da efectividade e 2) que o princípio da solidariedade não vai ao ponto de destruir um caso julgado por ofensa ao Direito da União Europeia - Acórdão Kapferer, de 16/01/2006, caso C-234/04. Assim, considerando esses motivos e ainda, 3) por razões de objectividade,

4) de segurança e de certeza jurídica, 5) pelo critério juridicamente claudicante, da “séria probabilidade” de existir erro judiciário e 6) perante o actual regime processual de recursos e de reapreciação da decisão jurisdicional, entendemos como justificada a solução acolhida pelo legislador, considerando-a compatível com o direito europeu, maxime, com o princípio da efectividade. Além do mais, mostra-se relevante a actual lei processual, que tem a virtualidade de, em certa medida, corrigir o erro da decisão, seja quando a mesma é irrecorrível, seja quando é proferida em última instância. Senão vejamos. Pode ocorrer que a decisão jurisdicional não seja susceptível de recurso, pelo que, admitindo-se que se encontre enfermada de erro manifesto ou grosseiro, o pressuposto da prévia revogação tem como consequência, em princípio, vedar o accionamento da responsabilidade civil do Estado por erro judiciário. Nesse caso, podendo existir uma decisão danosa, não só a mesma perdurará na ordem jurídica, como o lesado não pode ser desse facto ressarcido, questionando-se se não existirá um défice na efectividade no regime legal estabelecido. Esta questão merece-nos resposta negativa, não traduzindo o pressuposto da prévia revogação da decisão uma deficiência de tutela ressarcitória do lesado. Primo porque não basta ao lesado invocar que existe uma decisão jurisdicional lesiva, para que a mesma se encontre efectivamente enfermada de erro, sendo necessário que o tribunal assim o conclua e, nesse caso, que o erro seja qualificado de manifesto ou grosseiro. Secundo porque, verificando-se que essa decisão não é susceptível de recurso, isso tem o significado para o ordenamento jurídico da sua diminuta relevância jurídica. É sabido que a ordem jurídica hierarquiza direitos e interesses, pois nem todos assumem o mesmo grau de tutela, pelo que, se a resposta do sistema de justiça se traduz na insusceptibilidade de recurso, significa que o bem ou direito em causa não é juridicamente relevante. Tertio, é relevante a possibilidade atualmente concedida pelo artigo 669º, nº 2 do CPC, a qualquer das partes, de requerer a reforma da sentença em situação de irrecorribilidade da decisão, fundada em “manifesto lapso do juiz”, no “erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos” e quando “constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida”. Nos termos da aludida norma, concede-se a possibilidade ao juiz de reparar o erro da decisão que não seria susceptível de recurso, numa compatibilização dos dois principais interesses em presença, o da justiça material e o da segurança jurídica. Quarto porque esta será uma via de responsabilização do lesado pela inércia em promover a reapreciação da decisão judicial, mantendo-se a situação de dano. A actuação do lesado se pode contribuir para a produção do dano, pode determinar a sua manutenção, o que ocorrerá na falta de interposição de recurso/reparação do erro. Em suma, faltando o pressuposto da prévia revogação da decisão jurisdicional, por impossibilidade de interposição de recurso, isso traduz uma opção feita a priori pela ordem jurídica, directamente decorrente do sistema vigente de recursos e por razões de segurança jurídica, e não do RRCEE, admitindo-se amplamente a possibilidade de reparação do erro em caso de irrecorribilidade da decisão, o que para efeitos indemnizatórios, deverá equivaler à prévia revogação da decisão danosa.»

 De todo o modo, não estando em causa na situação dos autos a aplicação pelo STJ de direito comunitário, nenhuma razão assiste à apelante, pelo que, por tudo quanto se expôs, se mostra improcedente a respetiva apelação.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 13/11/2019

(Maria Teresa Albuquerque)

(Manuel Capelo)

(Falcão de Magalhães)