Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
303/03.2GTAVR
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI PENAL
LEI APLICÁVEL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 04/16/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2º, Nº4 E 43º DO CÓDIGO PENAL; ARTIGO 371º-A) DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL;
Sumário: I. – A reabertura da audiência para aplicação da lei nova que se mostre mais favorável ao arguido condenado com decisão transitada depende da verificação de quatro requisitos: a) – iniciativa processual do condenado; b) - trânsito em julgado da condenação; c) - pendência de execução da pena ou possibilidade de vir a ser executada; d) e entrada em vigor de lei penal, em abstracto, mais favorável.

II. – Com o primeiro pretende o legislador conferir ao condenado a incitativa e proporcionar-lhe o direito de escolha sobre a possível alteração da medida da pena em que se encontra condenado.

III. – O segundo consubstancia-se na existência de uma decisão condenatória insusceptível de recurso ordinário.

IV. – O terceiro tem como pressuposto um estado de pendência de execução de uma pena ou, não estando ainda a ser cumprida, poder vir a sê-lo por virtude de uma decisão transitada.

V. – O quarto depende da verificação por parte do tribunal da existência de uma sucessão de regimes penais, pressuposto cardeal para que o instituto possa ser desencadeado.

VI. – A necessidade de audiência, antes da determinação do regime de sucessão mais favorável, afirma o respeito pelo princípio do contraditório.

VII. – O juízo a efectuar antes da audiência para aplicação da lei nova situa-se no plano abstracto, e tendo a vista a expectativa de uma situação de benefício, o que afasta um qualquer pré-juízo quanto ao êxito ou inêxito da pretensão do requerente.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


 Relatório


Nos presentes autos com o nº 303/03.2 GTAVR do 1º Juízo Criminal de Aveiro, inconformado com despacho judicial que considerou que não era aplicável o «novo regime penal», assim desatendendo requerimento para que fosse reaberta audiência, nos termos do artº 371A do CPP, veio o arguido A.....interpor recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1ª Ao não fundamentar a decisão proferida, violou o despacho recorrido o disposto no artigo 374°, n°2, do Código de Processo Penal.

2ª Destarte, e por força do disposto no artigo 379°, n°1, alínea a) do mesmo diploma legal, é o despacho recorrido nulo, nulidade esta que aqui, para todos os devidos e legais efeitos, se argui.

3ª Violou ainda o despacho recorrido o disposto no artigo 371°-A, do Código de Processo Penal (na sua redacção actual), bem como o disposto no artigo 43°, n°1, do Código Penal (na sua redacção actual).

4ª Por este motivo deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a reabertura da audiência nos termos do artigo 371°-A, do Código de Processo Penal, a fim que seja aplicado ao arguido o novo regime do artigo 43°, n°1, do Código Penal, relativo à substituição de prisão de sete meses, suspensa na sua execução pelo período de um ano, que lhe foi aplicada por sentença proferida nos presentes autos e já transitada em julgado, por pena de multa, ou outra não privativa da liberdade.
O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, a qual terminou da seguinte forma[1]:

1° O Tribunal recorrido decidiu com acerto ao indeferir o requerimento efectuado pelo arguido, não permitindo a censura do juízo já anteriormente efectuado, mesmo por Tribunal Superior, de necessidade de aplicação de pena de prisão efectiva;

2° A decisão recorrida está suficientemente fundamentada e não violou qualquer norma, designadamente a invocada.

Pelo que, confirmando a decisão recorrida nos seus exactos termos, V. Exas. farão, como habitualmente, JUSTIÇA!
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral adjunto emitiu o seguinte parecer, no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no artº 417º, nº2 do CPP, não houve resposta.
Foram colhidos os vistos e realizou-se conferência.
Fundamentação
Âmbito do recurso
É pacífica a doutrina e jurisprudência[2] no sentido de que o âmbito do recurso se delimita pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação. Assim, cumpre apreciar da nulidade do despacho recorrido, por ausência de fundamentação e bem assim da verificação dos pressupostos para a reabertura da audiência, em cumprimento do disposto no artº 371-A do CPP.
Factos relevantes para o recurso
Para apreciar cabalmente o recurso, mostra-se indispensável contemplar as vicissitudes por que passou a verificação da responsabilidade criminal e imposição das respectivas consequências jurídicas ao recorrente:
Por sentença proferida nos presentes autos em 31/07/2003, transitada em julgado em 29/09/2003, foi o arguido AA...condenado pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelos artºs 348º, nº1, al. a), do CP, e 158º, nº3, do CE, na pena de sete meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano (cfr. fls. 26 a 33). Lê-se nessa decisão: «Em sede de escolha da pena, considera-se que os antecedentes criminais do arguido constituem argumento de peso no sentido da inadequação e insuficiência da pena de multa, pelo que se aplicará a pena de prisão».
Por despacho proferido em 7/02/2006, transitado em julgado em 18/10/2006[3], foi revogada a suspensão de execução da pena.
Pendem mandados de captura contra o arguido, havendo repetidas indicações nos autos de que teria voltado à Alemanha[4].
Em 28/11/2007, o arguido apresenta o seguinte requerimento:

Vem expor e requerer a V. Exa. o seguinte:

No âmbito dos presentes autos foi revogada ao arguido a suspensão da execução da pena de 07 meses de prisão aplicada.

Oportunamente o arguido interpôs recurso do despacho de revogação, nos termos e conclusões constantes já dos autos, e que aqui se dão como inteiramente reproduzidos para os devidos e legais efeitos.

E se é certo que o recurso não obteve provimento, também não é menos verdade que nele pugnámos apenas, por adequada, necessária e proporcional, pela manutenção da suspensão da execução da pena de prisão, ainda que associada à "imposição ao arguido de regras de conduta, cumprimento de deveres ou regime de prova (nomeadamente, aptos a garantir que o mesmo não ingira bebidas alcoólicas), como condicionante da suspensão - a prisão é sempre a última ratio".

De algum modo, atenta a redacção do Código Penal em vigor à data da prolação (31/07/2003) da douta sentença condenatória no âmbito dos presentes autos, tal pena de 07 meses de prisão (ainda que suspensa na sua execução), nunca poderia ser substituída por multa, já que ultrapassa os seis (06) meses de prisão (limite máximo da pena susceptível de ser suspensa na sua execução), atento o teor do artigo 44°, n°.1, do Código Penal, na redacção então em vigor - pressuposto objectivo devido ao qual a Ilustre Magistrada que decretou tal sentença condenatória nem sequer se pronunciou sobre essa possibilidade.

No entanto, e como é consabido, a Lei n°59/2007, de 04 de Setembro, veio produzir profundas alterações ao Código Penal aprovado pelo D.L. n°.400/82, de 23 de Setembro.

Entre essas alterações destaca-se a que incidiu sobre o artigo 44°, n°.1, do mencionado Código.

Passou agora (desde 15 de Setembro de 2007) a ser possível que o Tribunal substitua por multa "a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes" (vide artigo 43°, n°.1, do Código Penal, na redacção actual).

Pelo que, in casu, é agora possível substituir por multa ou outra pena não privativa da liberdade a pena de 07 meses de prisão aplicada ao arguido.

O que decorre do princípio da aplicação da lei mais favorável, plasmado no artigo 2°, n°.4, do Código Penal, e no artigo 29°, n° 4, da Constituição da República Portuguesa.

Pelo que se impõe concluir ser concretamente mais favorável ao arguido a aplicação da actual lei penal.

Impõe-se assim que o Tribunal se pronuncie agora directamente sobre a possibilidade de substituir por multa a pena de 07 meses de prisão aplicada ao arguido (ou substitui-la pelo regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, ou por outra modalidade de substituição, nos termos do disposto nos artigos 43° e segs., do Código Penal, na sua redacção actual) - tal como dimana do artigo 371°-A do Código de Processo Penal – o que se requer.

Prova:

A dos autos.

Requer-se a realização urgente de relatório social sobre o arguido a levar a cabo pela equipa do IRS competente.
Sobre esse requerimento incidiu o despacho recorrido, com o seguinte teor:

Requerimento de fis. 334 a 336:

Não podemos deixar de referir o quanto este requerimento se nos afigura singular...

Na verdade, como refere o Ministério Público, o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a decisão de 1ª instância que revogou a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, determinando-se o cumprimento efectivo de 7 meses de prisão.

Tal decisão teve por fundamento a circunstância de o arguido ter sido condenado na pena de 7 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de 1 ano e na pena de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 18 meses, por sentença de 3 1/07/2003, transitada em julgado, pela prática de crime de desobediência p. e p. pelos arts 348° no 1 a) e 69° nº 1 c) do Código Penal e 158° n° 3 do Código da Estrada e no período da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada nestes autos, ter cometido outro crime de desobediência, quatro crimes de injúria agravada, um crime de ameaça e um crime de resistência à autoridade pública, pelos quais foi condenado em penas de prisão cuja execução ficou suspensa. Constatou-se, assim, que as finalidades que estiveram subjacentes à suspensão da execução da pena não foram alcançadas por meio dela e, nos termos do artigo 56° no 1 b) e no 2 do Código Penal, foi revogada a suspensão da execução da pena.

Estão pendentes mandados de captura do arguido, os quais ainda não foram cumpridos, apesar de várias tentativas de localizar o arguido, havendo informação de que se encontra na Alemanha - cfr. fls. 298, 299, 303 a 313, 317, 318, 329 e 333.

Vem agora o arguido, através do seu mandatário, atentas as alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei no 59/2007 de 4 de Setembro, requerer a aplicação do artigo 44° nº 1 do C.P. - substituição da pena de prisão não superior a um ano por pena de multa - ou então, substituição por regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios de controlo à distância... e, para o efeito, a realização urgente de relatório social do arguido a levar a cabo pela equipa do IRS competente!

Mais refere o arguido o artigo 371°- A do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 48/2007 de 29.08, que dispõe que, mesmo após o trânsito em julgado, mas antes de cessar a execução da pena, se entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a abertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.

Tal como refere o Ministério Público, "resulta inequívoca a intenção do legislador em admitir a possibilidade de aplicação retroactiva de leis penais de conteúdo mais favorável, mesmo após o trânsito em julgado da decisão condenatória... Todavia, tal aplicação mais favorável não é automática - é essencial que se verifiquem os pressupostos dos quais dependeria a sua aplicação ab initio".

Acontece que, no caso sub judice, já se constatou que a execução da prisão é exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes... Foi por isso mesmo que foi revogada anteriormente a suspensão da execução da pena...

De acordo com o preceituado no artigo 50° do Código Penal, o tribunal afirma a prognose social favorável em que assenta o instituto da suspensão da execução da pena, se conclui que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo, para tal, atender à personalidade do agente; às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste. E só deve decretar a suspensão da execução quando concluir, face a esses elementos que essa é a medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade. O Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza... A suspensão terá, assim, de assegurar as finalidades da prevenção geral e as necessidades de prevenção especial ou de reintegração. Em suma, é necessário que, por um lado se faça uma prognose social favorável quanto ao arguido no sentido de que, perante a factualidade apurada se conclui que o mesmo aproveitará a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, não voltando, com elevado grau de certeza, a delinquir e, por outro lado, que a suspensão cumpra as exigências de reprovação do crime servindo para satisfazer a confiança da comunidade nas normas jurídicas violadas.

Ora, o arguido, depois de o Tribunal ter optado inicialmente por suspender a execução da pena de prisão, demonstrou não ser merecedor de tal benesse, voltando a delinquir! Por isso, foi revogada a suspensão da execução da pena...

Mas o arguido não acatou a decisão judicial, pondo-se em fuga...

Tem sido procurado, sem sucesso...

Como seria possível realizar um relatório social de um arguido ausente em parte incerta?!

Como pretende o arguido beneficiar de um regime de permanência na habitação com controlo à distância?!

Como pretende o arguido convencer o Tribunal de que uma pena de multa seria suficiente?!

Por tudo o que fica exposto, tal como o Ministério Público, entendemos que, tendo em consideração as circunstâncias do caso, não é aplicável ao arguido o novo regime penal.

Notifique - sendo o arguido com cópia da promoção que antecede. Oficie, solicitando, por fax, novas diligências de localização e captura do arguido, tal como se promove.
Apreciação
Da nulidade, por falta de fundamentação
A primeira questão colocada pelo recorrente prende-se com a indicação de violação do disposto no artº 374º do CPP. Entende o arguido que o despacho recorrido não fundamentou a sua decisão de não aplicação do disposto no artº 43º, nº1, do CP, na redacção da Lei 59/2007, de 4/9.
Porém, bem vistas as coisas, não foi essa a decisão tomada no despacho recorrido. O que se decidiu - bem ou mal veremos a propósito da questão que se segue - prende-se com o efeito jurídico requerido a fls. 334, a saber, a aplicação do disposto no artº 371-A do CPP.
Assim, no despacho recorrido não encontramos decisão sobre as consequências jurídicas do crime ou, especificamente, aplicação do regime penal decorrente da revisão introduzida pela Lei 59/2007, de 4/9, por efeito do artº 2º, nº4, do CP  Ao invés, decidiu-se que a Lei Nova não era aplicável, e explicitou-se os motivos para esse entendimento, tornando-os plenamente apreensíveis.
Não merece, então, o despacho recorrido crítica por falta de fundamentação, dever que, no caso, emerge do dever geral contemplado no artº 97º, nº5, do CPP, e não do artº 374º, nº4, do mesmo código. Esta norma aplica-se aos actos que decidam, a final, do objecto do processo, ou seja, aos acórdãos ou sentenças e não aos despachos, como é o caso da decisão recorrida.
Da violação do disposto no artº 371-A do CPP
Como flúi expressamente da conclusão 4ª, o arguido pretende com o presente recurso que se determine a reabertura da audiência nos termos do artº 371-A do CPP, a fim que seja aplicado ao arguido o novo regime do artº 43º, nº1, do CP. Terá razão?
O artº 371º-A do Código Processo Penal constitui uma das principais alterações do ordenamento processual penal introduzidas pela Lei 48/2007, de 29/8. Com esse normativo, confere-se execução à prevalência da garantia constitucional de aplicação retroactiva do regime penal mais favorável sobre o caso julgado decorrente da nova redacção do nº4 do artº 2º do Código Penal[5] e, ao mesmo tempo, delimita-se a sua concretização.
Diz o preceito, sob a epígrafe Abertura da audiência para aplicação retroactiva de lei penal mais favorável: Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.
Assim, o regime em apreço apresenta vários pressupostos, a saber, requerimento do condenado, trânsito em julgado da condenação, pendência de execução da pena ou possibilidade de vir a ser executada e, finalmente, entrada em vigor de lei penal, em abstracto, mais favorável.
O primeiro pressuposto devolve ao arguido a escolha sobre a possível alteração da medida da pena, podendo preferir conformar-se com aquela já aplicada. Não se trata de infirmar o princípio da aplicação retroactiva da lex mitior mas sim de encontrar solução não transitória[6] que evitasse as fortíssimas repercussões para o sistema judicial na obrigatória reapreciação de todas as decisões proferidas[7], confiando ao condenado a valoração autónoma do favorecimento com a Lei Nova, com excepção das situações em que o limite máximo da nova moldura penal tenha sido atingida ou ultrapassada.  
Com o segundo pressuposto, veio o legislador estabelecer o instituto como uma «revisão» da decisão e não como novo julgamento da causa. Ao exigir o trânsito em julgado para a «revisão» da pena pela primeira instância[8], acentua-se, salvo melhor opinião, a intangibilidade do caso julgado em toda a dimensão da decisão anterior que não colida com o cotejo entre a reacção penal imposta e aquelas comportáveis pela Lei Nova e sem aplicação do princípio da continuidade da audiência. Não se trata de retomar a audiência já realizada mas sim de realizar nova, e distinta, discussão[9].
O pressuposto seguinte – pendência de execução da pena – significa que o legislador procurou limitar o instituto às situações em que a compressão de direitos ainda pode ser prevenida, considerando que, quando tal não acontece, a concordância prática entre a garantia constitucional do caso julgado e da retroactividade da lei penal mais favorável pende claramente para a prevalência do primeiro[10].
Finalmente, o quarto pressuposto supõe a determinação prévia da sucessão de regimes penais, sem o que não existe verdadeiramente thema decidendo para a nova audiência nem fundamento material para postergar o caso julgado, o que deixaria o acto sem conteúdo útil.
A decisão recorrida admite a verificação dos três primeiros pressupostos mas afirma ausência do último, em torno da apreciação concreta da (in)aplicação do novo regime, efectuada sem ouvir o arguido.
Ora, quando o legislador estipula a necessidade de audiência antes da determinação do regime em sucessão mais favorável, afirma o respeito pelo princípio do contraditório, que tem no direito à audiência um dos seus corolários[11]/[12], princípio com assento constitucional, quando referido à audiência de julgamento[13]. Então, a apreciação que cabe efectuar antes dessa audiência situa-se no plano abstracto, da susceptibilidade de benefício, e não significa – não pode significar - qualquer posicionamento prévio sobre o êxito ou inêxito da pretensão de aplicação de um qualquer instituto da Lei Nova[14]. De outra forma, para que serviria a audiência?
Feito este percurso de aproximação ao cerne do problema, cabe agora responder à questão se saber se, em abstracto, encontra o arguido na Lei Nova alteração relevante, em termos de poder ser considerada lex mitior. A resposta é claramente afirmativa.
Com efeito, e como refere o arguido, a decisão que o condenou não ponderou norma com o mesmo conteúdo do artº 43º, na redacção agora vigente, o que encontra explicação na circunstância da pena fixada ultrapassar o então limite superior de aplicação da pena de multa de substituição[15]. Só que esse limite foi agora aumentado para um ano de prisão, o que, tendo em atenção que o arguido foi condenado em sete meses de prisão, implica o poder-dever de apreciação dessa pena de substituição, tarefa que não se confunde com a aplicação do princípio consagrado no artº 70º do CP.
Por outro lado, e tendo em atenção o universo de penas de prisão não superiores a um ano, verifica-se que a Lei Nova integrada pela revisão de 2007 não se fica pela nova conformação dessa pena de substituição: introduziu ainda a possibilidade de execução de pena de prisão através de regime de permanência na habitação, embora dependente de consentimento do condenado, e aumentou igualmente o âmbito de aplicação da prisão por dias livres (artº 45º, nº1, do CP). Assim, mesmo que se conclua pela necessidade de cumprimento de pena privativa da liberdade não superior a um ano de prisão, esses institutos não podem deixar de ser ponderados.
Face ao exposto, perante novo regime penal abstractamente mais favorável do que aquele vigente no momento da decisão condenatória, por alargamento das penas de substituição admissíveis, estão verificados todos os pressupostos para que, deferindo ao requerido pelo arguido, seja aberta audiência e proferida nova decisão, tudo em obediência ao disposto no artº 371-A do CPP.
Procede, então, o recurso.
III. Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
Julgar procedente o recurso;
Revogar o despacho recorrido e determinar a sua substituição por outro que designe dia para reabertura de audiência, nos termos do artº 371ºA do CPP.


[1] Transcrição.
[2] Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247.
[3] Após recurso para este Tribunal da Relação de Coimbra, decidido em 17/05/06, e subsequentemente para o Tribunal Constitucional, decidido em 19/06/2006.
[4] Não consta dos autos pedidos de informação sobre o paradeiro dirigida às autoridades desse país nem declaração de contumácia, nos termos do artº 476º do CPP, com eficácia suspensiva do prazo de prescrição da pena (artº 125º, nº1, al. b) do CP).
[5] «4. Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenações, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior».
[6] O legislador espanhol, aquando da revisão do Código Penal efectuada em 2003, escolheu a via do regime transitório. A Lei Orgânica 15/2003, de 25/1 (BOE, nº 283, de 26 de Novembro), estabelece um sistema de revisão de todas as decisões de prisão efectiva em cumprimento, com audição do arguido, mas confiou ao Conselho Superior do Poder Judicial a designação de tribunais para, em regime de exclusividade, procederem a essa apreciação. Note-se ainda que essa lei considera que nas penas privativas da liberdade não existirá favorecimento sempre que a pena aplicada seja também aplicável no novo regime, com excepção das situações em que seja possível a alternativa de pena não privativa da liberdade, situação em que impõe a revisão da sentença.

[7] Esse foi um dos argumentos do Ac. do Tribunal Constitucional nº 644/98, de 17/11, em que de decidiu que o artº 2º, nº4, do CP, interpretado no sentido de que o caso julgado prevalecia sobre o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável não padecia de inconstitucionalidade. Lê-se nesse acórdão: «A perturbação advinda do não respeito do caso julgado ligadas a motivos de difícil praticabilidade perspectiva-se, pois, como muito extensa e significativa, não podendo, por isso, reconduzir-se a razões de mero acréscimo de trabalho para os tribunais». Importa sublinhar que esse aresto tomou apenas posição sobre modificação «quantitativa» da pena, excluindo a apreciação da modificação «qualitativa». Sobre a evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional neste particular, cfr. o recente acórdão do T.C. nº 164/08, de 5/3.
[8] O que se distingue do dever dos Tribunais superiores aplicarem oficiosamente às decisões em recurso a Lei Nova mais favorável, em cumprimento do nº4 da CRP e do nº4 do artº 2º do CP.
[9] Nota-se a dessintonia entre a epígrafe, com alusão a audiência e o corpo do preceito, em que o conceito é o de reabertura da audiência. Apesar dessa designação, propugnamos no sentido de que se trata de uma nova audiência, com objecto distinto da anterior, ainda que incorporando a anterior decisão de facto, e que não implica identidade de julgador, à semelhança do que acontece na audiência prevista no artº 472º do CPP. No sentido de que a anterior audiência e julgamento, permanecem autónomos, válidos e eficazes, cfr. o Ac. do STJ de 18-03-2008, Pº08P1018, relator Cons. Pires da Graça. Pela conformidade constitucional do sistema instituído nos artºs. 2º, nº4 e  artº 371º-A do CPP, de acordo com a Lei 48/2007, de 29/8, cfr o Ac. do TC nº164/08, já referido na nota 7.
[10] Também o legislador espanhol de 2003 cuidou de excluir a revisão da pena sempre que a sanção imposta fosse não privativa da liberdade, estivesse suspensa, sem prejuízo de vir a sê-lo em caso de revogação da suspensão, e ainda nos casos de liberdade condicional (disposições segunda e terceira). No entanto, e ao contrário do que acontece entre nós, contemplou expressamente a possibilidade aplicar retroactivamente lei penal mais favorável para afastar a reincidência.
[11] Como adverte Eduardo Correia, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 114.º, p. 365, o princípio do contraditó­rio traduz «ao menos, num direito à defesa, num direito a ser ouvido».
[12] «Pode argumentar-se – aliás com razão – que também na base do princípio da audiência está o respeito pela dignidade pessoal do homem, através da exigência de que este não seja tornado em objecto das decisões judiciais, mas continue, como sujeito, a participar de modo efectivo e eficaz no processo comunitário em que o processo se traduz» - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Ed., 1981, p. 154.
[13] Artº 32º, nº5 do CRP.
[14] No mesmo sentido, de que a apreciação vestibular não ultrapassa o plano abstracto, cfr. o Ac. da Relação de Lisboa de 06-02-2008, Pº 799/2008, www.dgsi.pt.
[15] Observe-se que o mesmo não aconteceu no acórdão constante de fls. 163 a 197, em que expressamente se consignou que não se substituía a prisão por multa, por a tal se oporem as exigências de prevenção.