Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
100/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CHEQUE DE GARANTIA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 03/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 46.º, 1, C) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ; ARTIGO 1.º, 2 E 28.º DA LEI UNIFORME SOBRE CHEQUES;
Sumário: 1. Desde que a subscrição de um cheque tenha sido feita “pro solvendo”, o propósito das partes não é cercear os direitos do credor, mas aumentá-los, conferindo-lhe, além do que já tinha, um novo crédito, verificando-se um reforço dos meios de pagamento do credor relativamente à mesma dívida fundamental ou subjacente.
2. O cheque assim emitido, ainda que para garantia de pagamento, preenche os demais requisitos de exequibilidade desse título cambiário, previstos nos artigos 1º, 28º, 29º e 40º da LUC.

3. Tendo sido dada como provada a dívida causal da emissão e entrega do cheque ao exequente, deve prosseguir a execução com base nele.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... deduziu oposição à execução para pagamento de quantia certa com processo comum que lhe move B... e corre termos no 2º Juízo da Comarca da Guarda, invocando a circunstância de o cheque dado à execução por este ser um simples cheque de garantia, destinado a acautelar a devolução ao exequente da quantia de € 5.000,00, por este entregue para pagamento da subempreitada de uma obra de móveis de cozinha, devolução que teria lugar se o opoente conseguisse receber esse valor de um terceiro, empreiteiro geral do exequente. Por esse motivo, não consistindo numa ordem de pagamento, não pode o cheque dado à execução valer como tal, devendo julgar-se extinta a execução por falta de obrigação de pagamento ao exequente.

Notificado, o exequente contestou, dizendo que alguns factos da versão sustentada pelo executado não correspondem à realidade e já foram objecto de decisão negativa em acção por este instaurada contra si, na Comarca de Celorico da Beira, no proc. nº 127/04; e que o cheque em causa titula apenas a dívida do executado proveniente de um empréstimo de idêntico valor, que lhe efectuou em 4/11/03, e que se encontra por liquidar.
O processo seguiu os seus termos e a final foi proferida sentença que, decidindo que o cheque exequendo não valia como mandato para pagamento, não configurando título válido, à luz do art.º 1º da Lei Uniforme respectiva, julgou extinta a execução.
Inconformado, apelou o exequente, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª – O cheque accionado nos autos contém todos os requisitos, a que aludem os arts. 1.° e 2.° da Lei Uniforme sobre Cheques, para produzir efeitos como cheque;
2ª – Com efeito, a exequibilidade de um cheque implica não só um efeito positivo – que respeita à concessão ao credor do direito de execução – mas também o efeito negativo, o qual se traduz na inadmissibilidade, por falta de interesse processual, de uma acção declarativa relativa à pretensão exequível, cfr. artigo 449.°, n.°2, alínea c), do C.P.C.:
3ª – Deste modo, o ora recorrente, munido de um título com manifesta força executiva, como é o cheque accionado nos autos, não tinha necessidade de recorrer ao processo declarativo;
4ª – Todavia, apesar de o cheque accionado nos autos ter sido preenchido, assinado e entregue pelo executado ao exequente, ora recorrente, para garantia de pagamento, não lhe tira a validade como cheque;
Ou, caso assim não se entenda,
5ª - O cheque accionado nos autos, enquanto documento particular, assinado pelo devedor, no âmbito das relações imediatas em que se encontra (entre o embargado/recorrente e o embargante/recorrido), e para execução da respectiva obrigação subjacente ou fundamental, vale como título executivo, nos termos do art. 46.°, n.°1, alínea c), do C.P.C., por o exequente ter alegado, no requerimento executivo, a relação causal;

Mostram-se, assim, violados os arts. 1º e 2.° da L.U.C., 449.°, n.°2, alínea c), do C.P.C., 458.° do Cód. Civil, e 46.°, n.°1, alínea c), do C.P.C., por erro de interpretação.
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O apelado respondeu pugnando pela manutenção da sentença.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

A - O exequente, B..., deu à execução, como título executivo, um cheque preenchido e assinado pelo executado, A..., no qual foi aposta a data de emissão de 15/2/2004, emitido na Guarda, no montante de € 5 000,00, sacado sobre uma conta da titularidade do executado, aberta na dependência bancária de Celorico da Beira do Banco Comercial Português (Atlântico), S.A., cheque que entregou ao exequente – cfr. doc. junto a fls. 10 dos autos de execução;
B - Apresentado a pagamento no dia 16/2/2004, foi o mesmo devolvido nos serviços de compensação do Banco de Portugal no dia 17/2/2004, pelo motivo de “extravio” – cfr. doc. junto a fls. 10 dos autos de execução;
C - Entre B... e C..., no dia 23/8/2000, foi celebrado o contrato escrito cuja cópia consta a fls. 31 e v.º, no qual, além do mais, o segundo outorgante se comprometeu a construir um bloco habitacional para o primeiro, incluindo as respectivas cozinhas que deviam ser mobiladas;
D - O exequente emprestou ao executado, no dia 4 de Novembro de 2003, pelo facto deste lhe ter alegado dificuldades económicas e financeiras e lho ter solicitado, a importância de € 5 000,00, o que fez através do cheque n.º 3800000050, sacado sobre a agência da Guarda do Crédito Predial Português, S.A. (fls. 32);
E - O executado, para garantia do pagamento da quantia referida em D, na mesma data (4/11/2003), preencheu e assinou o cheque referido em a), no qual apôs a data de 15/2/2004, que entregou ao exequente;
F - O executado dedica-se ao fabrico, fornecimento e assentamento de móveis em madeira;
G - O executado forneceu e montou 8 cozinhas no referido prédio, sito no lote 7 da Urbanização da Quinta do Pincho/Dorna, na Guarda;
H - O referido C... ausentou-se para parte incerta, sem que pagasse ao executado/embargante o valor das referidas cozinhas.

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O objecto do recurso está delimitado pelo âmbito das respectivas conclusões – art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC.
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São as seguintes as questões levantadas no recurso:
Se o cheque dado à execução reúne os requisitos do título executivo que corresponde por lei à figura do cheque;
Se, caso tais requisitos não se mostrem verificados, o mesmo cheque pode, mesmo assim, integrar a figura genérica do documento particular implicando o reconhecimento de obrigação pecuniária de montante determinado ou determinável, para efeito do art.º 46, nº 1, al.ª c) do CPC, e, por essa via, fundar a execução promovida contra o embargante.

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1ª Questão.
Para a correcta subsunção da matéria de facto consignada aos princípios jurídicos aplicáveis, há que precisar os contornos do conceito de cheque.
O cheque constitui um instrumento de crédito destinado à circulação e, portanto, de natureza cambiária, sujeito a um regime internacional visando a sua funcionalidade universal. Caracterizando-se essencialmente pela ordem dada pelo respectivo sacador ao banco para pagamento de uma quantia (art.º 1º, nº 2 da Lei Uniforme respectiva), o cheque é utilizado, em regra, como um meio de satisfação de uma obrigação pecuniária do próprio sacador, sobrepondo-se ao respectivo cumprimento, embora conservando as particularidades inerentes à sua natureza de título cambiário (p. ex. no que toca à prescrição). Isto não impede que, frequentemente, o cheque seja usado com o fim de caucionar ou assegurar uma obrigação nascida de diversa origem ou relação económica do respectivo sacador, assegurando ou conferindo cariz coercivo a esta, pela nota de segurança que transmite a credor e devedor relativamente ao esperado pagamento pelo banco sacado. Nesta acepção a jurisprudência se tem referido ao chamado de "cheque de garantia", o qual mais não é do que uma prática negocial (desvirtuadora da própria natureza cambiária do título, respaldada na Lei Uniforme reguladora da respectiva circulação), prática em boa medida explicada pelo abuso de um certo efeito dissuasor, exercido sobre o sacador, decorrente do enquadramento penal da emissão do cheque.
A sentença, interpretando o teor dos factos provados em D e E, deduziu daí que o cheque dos autos não constitui um meio de pagamento, como é exigido pelos artºs 1º e 28º da LUC e, desse modo, também não pode ser qualificado de título executivo, inexistindo fundamento para a execução, ao abrigo dos art.ºs 814, al.ª a) e 816 do CPC.
Na verdade, resulta daqueles factos que, em 4/11/03, o exequente emprestou ao opoente-executado, através de cheque, a importância de € 5.000,00 (al.ª D) e que este, "para garantia do pagamento de tal importância", na mesma data, preencheu, assinou e entregou ao exequente, pré-datado para 15/02/04, o cheque dado à execução (al.ª E), sendo este do valor nominal do primeiro (al.ª A).
Porém, é claro que a expressão "garantia" constante da aludida alínea não tem o significado técnico-jurídico de uma obrigação fundamental paralela à obrigação de restituição decorrente do empréstimo. Com efeito, sendo dever do mutuário restituir a quantia mutuada (art. 1142 do CC), a entrega do cheque representou uma mera forma de facilitar ao credor o recebimento futuro da quantia mutuada, uma datio pro solvendo, nos termos do art.º 840 do Código Civil, visando a satisfação dessa obrigação. Com a datio pro solvendo o devedor pretende apenas facilitar o cumprimento, fornecendo ao credor os meios necessários para este obter a satisfação futura do seu crédito (P. de Lima e Antunes Varela, C.C. Anotado, vol. II, p. 83). Desde que a subscrição de um cheque tenha sido feita "pro solvendo", o propósito das partes não é cercear os direitos do credor, mas aumentá-los, conferindo-lhe, além do que já tinha, um novo crédito (Vaz Serra, RLJ 101-348 e segs. e 108-109). Verificando-se um reforço dos meios de pagamento do credor relativamente à mesma dívida fundamental ou subjacente.
Donde que o cheque dado à execução preencha o questionado e os demais requisitos de exequibilidade desse título cambiário, previstos no art.ºs 1º, 28º, 29º e 40º da LUC. Tendo sido dada como provada a dívida causal da emissão e entrega do cheque ao exequente, deveria ter sido julgada improcedente a oposição e ordenado o prosseguimento da execução.
Procedem assim as conclusões 1ª a 4ª do recurso, ficando prejudicada a conclusão 5ª, a que respeitaria a segunda questão enunciada.
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Pelo exposto, julgam a apelação procedente e, revogando a sentença, na improcedência da oposição apresentada, ordenam o prosseguimento da execução.
Custas pelo apelante.


Coimbra, / /