Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
356/07.4YCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PERDA DE VEÍCULO
SALVADOS
VALOR
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 11/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 20.º, N.º 1, AL. I) DO DEC.LEI N.º 522/85, DE 31/12; DEC.LEI N.º 83/2006, DE 03/05; DEC.LEI N.º 214/97 DE 16/12; ART.º 16º DO DL 2/98 DE 3/01; ART. 13 DO DL 44/05 DE 23/02; ART.º 566, N. 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Estabelecido no artigo 2º do Dec.Lei n.º 214/97 de 16/12 o princípio da alteração automática do valor seguro, o artigo 4º veio impor às seguradoras, contratantes de seguro facultativo, abarcando danos próprios, a elaboração de tabelas de desvalorizações periódicas automáticas para determinação da indemnização em caso de perda total.
2. O postulado da desvalorização periódica responde assim à necessidade de actualização progressiva do valor do veículo seguro, não em função do seu uso, mas da idade e da influência depreciativa que esta exerce na valia económica desse bem de consumo.
3. Se o tomador do seguro responde por um prémio consentâneo com o valor do veículo em dado momento também é justo que, ocorrendo o dano da perda total, receba apenas a indemnização atinente ao valor por cujo prémio estava responsável
4. Na situação de perda total do veículo, não sendo directamente ou indirectamente viável a restauração natural, nem se verificando qualquer das restantes circunstâncias aludidas no nº 1 do artigo 566 do CC, o responsável só vem a cumprir a sua prestação - de reparação do dano - quando satisfaz inteira e cabalmente o quantitativo financeiro indispensável à aquisição de um bem idêntico.
5. A entrega do salvado ao sinistrado não constitui uma forma de indemnizar ou ressarcir, pela simples razão de que, sem realizar a verba em falta, o lesado não tem ao seu alcance a importância necessária ao regresso à situação antecedente
6. É à seguradora que cabe dar destino ao salvado, promovendo ou não a sua venda, em ordem a habilitar o beneficiário do seguro com a integralidade do inerente valor.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... apresentou junto do Centro de Informação e Arbitragem de Seguros Automóveis (CIMASA) uma reclamação tendente a obter a condenação da Requerida Real Seguros SA no pagamento de € 29.030,65 relativos ao custo da reparação, parqueamento e despesas com a privação da sua viatura Renault Clio 44-77-TQ, a qual, tendo sofrido um acidente de viação, tinha aqueles danos cobertos ao abrigo de um seguro de responsabilidade civil facultativa de danos próprios celebrado coma a Requerida, em vigor à data do sinistro.
Gorada a conciliação das partes, subscreveu a Requerente a sua adesão ao compromisso arbitral submetendo o litígio à decisão do Tribunal Arbitral do CIMASA.

Contestando, a Requerida Real Seguros SA veio defender-se com o facto de não poder pagar sem autorização do BPN, contratualmente beneficiário e interessado no seguro; haver perda total do veículo por o valor do seguro no início da anuidade superar o valor da reparação; as demais despesas reclamadas estarem excluídas do seguro.

O processo seguiu a tramitação prevista nos art.ºs 8º e seguintes do Regulamento do referido Tribunal Arbitral e, a final, o M.mo Juiz Árbitro proferiu decisão a condenar a Requerida e Reclamada a pagar à Reclamante a quantia de € 10.949,04, correspondente ao valor do veículo sinistrado de € 11.172,48, considerada a sua perda total, deduzida a franquia de € 223,44, indo a reclamada absolvida da instância quanto aos demais pedidos formulados.

Irresignada, recorreu a Reclamada para esta Relação, nos termos do art.º 18, nº 2 do citado Regulamento, recurso admitido e processado como apelação.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

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Podem dar-se com assentes os seguintes factos como fundantes da decisão recorrida:

1 - Em 18/01/2005 ocorreu um acidente de viação em Almagreira, Pombal, envolvendo o veículo ligeiro 47-77-TQ, na altura objecto de locação financeira pelo proprietário BPN Leasing à apelada A...;
2 – Esta locatária vira entretanto a adquirir tal veículo à locadora em 27/10/2005.
3 – À data do acidente encontrava-se em vigor um contrato de seguro abrangendo a responsabilidade civil facultativa de danos próprios inerentes à circulação do 47-77-TQ, titulado pela apólice 90/254708, no qual era considerada, entre outras, a cobertura completa do veículo, sendo o seu valor em novo, reportado a 6/2002, de € 17.457,00, nos termos das respectivas Condições Particulares de fls. 59 a 61.
4 – Os danos no veículo foram tratados pela Reclamada, para fins indemnizatórios, como perda total, valendo os salvados € 6.800,00 e a importando a franquia em € 223,44.
5 – A apelada e Reclamante aderiu à Arbitragem do Tribunal recorrido em 27/01/2006.
6 – A partir da adesão à arbitragem passou a reclamar a perda total da viatura acidentada – além da quantia concernente às restantes despesas impetradas – valorando tal viatura à data do sinistro em € 11.172,48, sem o abatimento da franquia.

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Entrando na apreciação do recurso.

Culmina a apelante Real Seguros SA a sua peça alegatória com um conjunto de conclusões Como se sabe circunscrevendo o âmbito do objecto recursivo ex vi dos art.ºs 684, nº 3 e 690, nº 1 do CPC. em que levanta apenas duas questões, a saber:

1º - Se o valor seguro pelo qual é contratualmente responsável deve ser o resultante da aplicação da tabela legal de desvalorização automática periódica sobre o valor indicado nas Condições Especiais da apólice, ou seja, 43% de € 17.457,00, e não, simplesmente, o de € 11.172,48 tomado na sentença arbitral.

2º - Se, além disso, há que deduzir no ressarcimento da apelada e Reclamante dessa importância, não só a franquia legal, mas também o valor dos salvados.

Não houve resposta por parte da apelada.


1ª Questão: o valor seguro.

Insurge-se a apelante contra o valor considerado na decisão arbitral para o Renault Clio propriedade da apelada cujos danos foram objecto da qualificação de perda total.
Vejamos.

O conceito de perda total consta hoje do nº1 do art.º 20-I do DL 522/85 de 31/12, preceito aditado pelo DL nº 83/2006 de 03/05.
Aí se estatui que se entende por situação de perda total de um veículo interveniente em acidente, "na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total;
b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afectadas as suas condições de segurança;
c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100% do valor venal do veículo imediatamente antes do sinistro".

Todavia, no caso de seguro facultativo de danos próprios, o regime é especial e decorre do DL nº 214/97 de 16/08.
À face de tal regime quer o montante do prémio quer o valor seguro passaram a ser variáveis, dependendo da idade do veículo objecto da cobertura.
Com efeito, escreveu-se no preâmbulo do citado diploma: "De forma a garantir uma efectiva protecção e defesa dos consumidores subscritores de contratos de seguro automóvel facultativo entendeu-se regular a matéria de forma a assegurar uma maior transparência do clausulado das apólices de seguro em causa e instituir a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio, correspondente à eventualidade de perda total que seja calculada com base nesse valor".
Estabelecido no art.º 2º o princípio da alteração automática do valor seguro, o art.º 4º veio impor às seguradoras, contratantes de seguro facultativo abarcando danos próprios, a elaboração de tabelas de desvalorizações periódicas automáticas para determinação da indemnização em caso de perda total.
O postulado da desvalorização periódica responde assim à necessidade de actualização progressiva do valor do veículo seguro, não em função do seu uso, mas da idade e da influência depreciativa que esta exerce na valia económica desse bem de consumo.
Neste contexto, o legislador optou por transformar em letra de lei o equilíbrio entre as prestações que contratualmente competem ao tomador do seguro e à seguradora.
Isto é, se o tomador do seguro responde por um prémio consentâneo com o valor do veículo em dado momento também é justo que, ocorrendo o dano da perda total, receba apenas a indemnização atinente ao valor por cujo prémio estava responsável.
No caso dos autos, considerando a tabela aprovada e em vigor e a idade do veículo da apelada na altura do sinistro, o valor da viatura equivaleria realmente a 43% do respectivo valor em novo (em 6/2002), que era de € 17.457,00, ou seja, € 7.506,51.
Daí a procedência das conclusões respeitantes à questão em apreço.


2ª Questão: a dedução do valor relativo aos salvados.

Também não se conforma a apelante com o não abatimento do valor dos salvados - € 6.800,00 - no montante indemnizatório arbitrado.
Aqui, desde já se adianta, sem razão.

Quer o art.º 16º do DL 2/98 de 3/01, quer o art. 13 do DL 44/05 de 23/02, definiram como salvado o veículo a motor que tenha sofrido danos que afectem gravemente as suas condições de segurança ou cujo custo de reparação seja superior a 70% do valor venal respectivo à data do sinistro.
Apelante e apelada – embora esta posteriormente – vieram a assentir na perda total do veículo, o que tem implícito, necessariamente, em qualquer critério, a respectiva inutilização funcional e redução à espécie em causa: salvado.

Nos termos contratados, a apelante cobriu a responsabilidade pela indemnização do dano próprio substanciado na perda total do veículo seguro.
A assunção de tal responsabilidade acarreta-lhe logo a obrigação de singelamente reconstituir a situação que existiria não fora o evento danoso Ex vi do art.º 562 do CC..
Tal reconstituição pode operar-se in natura, pela integral reposição física ou em substância do bem atingido, na sua plena utilidade, ou pela restituição por equivalente, dotando o lesado de meios financeiros que lhe permitam a obtenção de outro bem de conteúdo idêntico ao que foi afectado pelo facto lesivo.
No caso de dano que não configure perda total deve o lesante ou o responsável, em princípio Isto é, fora das hipóteses excepcionais previstas na 2ª parte do nº 1 do art.º 566 do CC., proceder à prestação de facto positivo em que se traduz a recuperação do bem lesionado, sem embargo de ser sempre possível o ajuste com o lesado a entrega da quantia relativa ao custo estimado dessa recuperação, com o fim de ser o próprio lesado a diligenciar a eliminação do dano Defendendo mesmo o Prof. Pereira Coelho (Obrigações, p, 174) que o responsável pela indemnização não tem um direito de impor a restauração natural..
Ora, na situação de perda total do bem, não sendo directamente ou indirectamente viável a restauração natural, nem se verificando qualquer das restantes circunstâncias aludidas no nº 1 do art.º 566 do CC, o responsável só vem a cumprir a sua prestação - de reparação do dano - quando satisfaz inteira e cabalmente o quantitativo financeiro indispensável à aquisição de um bem idêntico.
Não se ignora que as apólices de seguros facultativos têm que obedecer às normas do ISP, nomeadamente quanto às que estabelecem a Apólice Uniforme do Seguro Automóvel (norma 19/95-R de 6/10/95, com as subsequentes alterações) Está aqui em causa o nº 1 do art.º 39 da referida Apólice Uniforme que deixa uma ampla opção às seguradoras.. Mas tais normas têm a natureza de normas de protecção mínima dos que contratam com as seguradoras tal seguro e, assim, devem ceder face à disciplina civil dos direitos dos lesados.
A seguradora apelante não está, é exacto, na veste do lesante ou fautor de um ilícito (seja na responsabilidade extracontratual ou contratual), visto que a indemnização a que está vinculada se integra no simples cumprimento do contrato de seguro.
Mas nem por isso o seu dever de reparar o sinistrado foge aos contornos traçados para a obrigação geral de indemnização, respeitados os termos legais e contratuais estatuídos para a sua determinação.
É certo que o § 2º do art.º 439 do C. Comercial prescreve mesmo que o valor dos objectos salvos do sinistro não será incluído na indemnização.
Porém, a noção aqui contida de objectos salvos do sinistro equivale a objectos não atingidos pelo sinistro, não se identificando com o conceito legal de salvados - que já acima ficou consignado - especificamente formulado para o âmbito dos veículos automóveis envolvidos em acidentes de viação.
A entrega do salvado ao sinistrado de modo nenhum constitui, por conseguinte, uma forma de indemnizar ou ressarcir, pela simples razão de que, sem realizar a verba em falta, o lesado não tem ao seu alcance a importância necessária ao regresso à situação antecedente. É claro, a não ser que, após a ocorrência da lesão, venha a concordar em ficar com o salvado como modo de pagamento parcial Havendo que interpretar e aplicar neste sentido as cláusulas contratuais do seguro que regulem a forma de imputação do valor dos salvados no cômputo indemnizatório, logo por homenagem ao princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações, nos termos do art.º 762 do CC. Daí que o já mencionado art.º 20 –I do DL 522/85 de 31/12, explicite agora, na parte final do respectivo nº 3, que haverá lugar (excepcionalmente) à dedução do valor do salvado (na indemnização por perda total) caso este permaneça na posse do seu proprietário., o beneficiário e lesado não pode estar adstrito ao ónus acrescido de o transaccionar para obter a verba pela qual o mesmo foi avaliado Como se notou no AC. da Rel. de Évora de 12/02/98 in CJ 1998, 1º-270 "tudo se passa como se o responsável pela indemnização adquirisse o veículo ou o que dele restasse, ao lesado, pelo valor do mesmo antes do acidente, tendo, por isso, direito à entrega do mesmo", não havendo que transferir para o lesado o risco da respectiva venda.. A sua situação é então de um puro credor - e de um credor da quantia globalmente necessária à substituição do bem perdido. E para o apuramento dessa quantia – excluída a verificação de interesse da outra parte em quedar-se ela própria com o bem - é à seguradora que cabe dar destino ao salvado, promovendo ou não a sua venda, em ordem a habilitar o beneficiário do seguro com a integralidade do inerente valor.
Em consequência, não são de acolher as proposições neste particular.


Pelo exposto, julgando parcialmente procedente a apelação, revogam em parte a decisão arbitral sob impugnação, condenando a Reclamada a pagar à Reclamante a quantia de € 7.506,51, deduzida da franquia de € 223,44, no mais mantendo o ali decretado.
Custas na proporção 3/4 para a apelante e 1/4 para a apelada.