Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
249/01. 9 TANZR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: DENÚNCIA CALUNIOSA
QUEIXA
MANDATÁRIO JUDICIAL
MATÉRIA DE FACTO
ERRO NOTÓRIO
Data do Acordão: 02/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Legislação Nacional: ARTIGOS 365º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I. - A lei processual não exige forma especial para a formulação da queixa, podendo esta revestir a forma de comunicação verbal – cfr. artigo 246º do Código de Processo Penal;
II. - A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais – art. 49º do Código de Processo Penal;
III. – Especificando um mandato que o mandatário tem poderes para exercer o direito de queixa relativamente a dois cheques não pode a arguida ser responsabilizada pelo conteúdo de uma queixa que extrapole ou exceda o concreto e cingido mandato conferido;
IV. – Tendo o tribunal dado como provado que a queixa foi apresentada pela arguida, quando efectivamente o foi pelo advogado, verifica-se um erro notório na apreciação da prova a justificar a anulação do julgamento e o consequente reenvio do processo para realização de novo julgamento;
V. – Não tendo o tribunal averiguado se a arguida sabia se não sendo coincidente a data da emissão do cheque com a data da entrega do mesmo ao tomador, à data, tal facto não constituía crime e, se tendo conhecimento destes factos, ainda assim a arguida quereria que o seu mandatário apresentasse queixa, com o conteúdo apresentado, verifica-se o vicio de insuficiência de matéria de facto para a decisão, por tal factualidade ser determinante para apurar o elemento subjectivo do tipo de crime que lhe era imputado – denúncia caluniosa.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I - RELATÓRIO
J………….. veio interpor recurso da sentença que a condenou pela prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365º, nº 1, do Código Penal na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 4,00, o que perfaz a quantia de € 480,00.
Da respectiva motivação de recurso extraiu as seguintes conclusões:
1- O crime imputado à Recorrente é de denúncia caluniosa, punível com pena de prisão até 3 anos (art. 365º, n.º 1 Cód. Penal).
2- Prescrevendo o procedimento criminal quando estejam decorridos cinco anos sobre a prática dos factos (art. 118º, n.º 1, al. c) Cód. Penal).
3- Os factos foram praticados em 3 de Novembro de 2000.
4- Não ocorreram quaisquer factos suspensivos ou interruptivos da prescrição.
5- Designadamente, a Recorrente nunca foi constituída arguida nem notificada da acusação.
6- De onde se conclui que o procedimento criminal contra a Recorrente pelos factos por que foi condenada prescreveu em Novembro de 2005.
7- Importando tal prescrição a absolvição da mesma.
8- A sentença recorrida é nula, por violar o disposto no art. 379º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal, ao não conhecer da questão incidental da prescrição (art. 368º, n.º 1 do CPP),
9- Deveriam ter sido julgados provados os seguintes factos:
1. A queixa-crime fundamento não foi redigida, apresentada nem assinada pela recorrente (prova-se através do documento de fls. 232);
2. A queixa-crime fundamento foi redigida, apresentada e assinada por F……, Advogado com escritório na Rua Dr. Miguel Bombarda, 30 – 2º, em Caldas da Rainha (prova-se através de documento de fls. 232);
3. A arguida reside habitualmente no CANADÁ, passando em Portugal apenas alguns pequenos períodos nos meses de Verão (prova-se através de abundante expediente para notificação da Recorrente no Canadá, constante dos autos, e bem assim o depoimento da testemunha Y... (Cassete 1, Lado A, rotação 851 a 1660).
10- Atendendo ao facto de que a Queixa-Crime fundamento da prática do crime foi redigida, assinada e apresentada por Advogado constituído pela Recorrente, não é suficiente para preencher o elemento subjectivo do tipo previsto no art. 365º, designadamente a “Consciência da Falsidade dos Factos”, a prova de que a arguida sabia que os cheques eram pós-datados.
11- Provando-se, como se provou, que a Queixa-Crime foi apresentada por Advogado em representação da ora Recorrente, a prova sobre o elemento subjectivo do tipo tem que ir mais longe, abrangendo outros factos que permitam concluir inequivocamente que não só que a Recorrente sabia que os cheques eram pós-datados, mas também que:
1. A Recorrente sabia que o facto dos cheques serem pré-datados excluía a responsabilidade criminal?
2. O Advogado subscritor da Queixa-Crime indagou junto da Recorrente se os cheques em questão eram pré-datados?
3. Em caso negativo, não o deveria ter feito, atendendo ao regime legal do cheque sem provisão então vigente?
4. Tendo-o feito, foi o Advogado subscritor da Queixa-Crime apresentada fiel, na sua redacção, à versão dos factos que lhe foi transmitida?
12- Provando-se, como se prova, que a Queixa-Crime foi redigida, assinada e apresentada por Advogado, permanece pelo menos a dúvida sobre se a Recorrente tinha ou não conhecimento que o facto dos cheques, apesar de carecas, serem pós-datados, impediam a dedução de queixa-crime.
13- Provando-se, como se prova, que a Queixa-Crime foi apresentada por Advogado, permanece pelo menos a dúvida sobre se a Recorrente tinha ou não conhecimento que o referido Advogado iria apresentar Queixa-Crime.
Respondeu a Magistrada do MºPº junto do tribunal “a quo” defendendo a confirmação da decisão recorrida.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo que:
1- não ocorreu a prescrição do procedimento criminal,
2- a sentença padece dos vícios previstos no n.º 2, als. b) e c) do CPP,
3- a sentença é nula por falta de fundamentação – art. 374, n.º 2 e 379º do CPP,
4- o recurso merece provimento, embora por motivos diversos dos que a arguida invoca.
Os autos tiveram os vistos legais.
II- FUNDAMENTAÇÃO
Da sentença recorrida consta o seguinte (por transcrição):
FACTOS PROVADOS
Realizada a audiência de julgamento, dela resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 2 de Novembro de 2000, a arguida apresentou queixa nos Serviços do Ministério Público da Comarca da Nazaré, alegando que P………. e B………… preencheram, assinaram e entregaram-lhe em 1.05.00 e 1.6.00, cheques n.ºs 1514677525 e 0614677526 sobre a conta conjunta de que são titulares, n.o 00800004007 do balcão de Leiria do "Banco Pinto & Sotto Mayor", ambos no montante de € 341,68 (PTE 68.5000$00).
2. Mais alegou que tais cheques foram apresentados a pagamento em 2.05.2000 e 7.06.2000 no balcão da Nazaré da Caixa Geral de Depósitos, tendo o seu pagamento sido recusado em 3.05.2000 e 8.06.2000 pela Câmara de Compensação do Banco de Portugal, com o motivo de "falta/vício da formação da vontade".
3. A arguida manifestou desejo de procedimento criminal.
4. No inquérito alegou que o contrato em causa não foi titulado por qualquer documento, tendo sido feito verbalmente.
5. A arguida sabia que os cheques eram pós - datados, tendo sido entregues conjuntamente com 12 cheques durante o Verão do ano de 1999, para suportar contrato-promessa de arrendamento comercial ou industrial.
6. Quis apresentar a denúncia junto das entidades competentes para que fosse instaurado procedimento criminal contra P…………… e B…………………..
7. O que de facto veio a acontecer, nomeadamente nos autos que correram termos neste Tribunal sob o Inquérito n.º 596/00 destes Serviços do Ministério Público.
8. A arguida agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
9. Conforme resulta de certidão junta aos autos a fls. 233, a arguida subscreveu o documento intitulado de Procuração, do seguinte teor:
"J……………., viúva, contribuinte fiscal n.º 18391 761, residente em Tapada Lote 1, Esq.º, Sitio da Nazaré, Nazaré, portadora do B. 1. n° 489370, emitido em 17/07/97 pelo Arquivo Identificação de Leiria, constitui seus bastantes procuradores os Exmos. Senhores Dr. F………., advogado, com a cédula profissional n.º 7169 e Dr. S…….. (A. EST), ambos com escritório na Rua Dr. Miguel Bombarda, n° 30, 2°, nas Caldas Rainha, a quem confere, com os de substabelecer, os mais amplos poderes forenses em direito permitidos, e os especiais para confessar, desistir ou transigir, na acção de despejo a propor contra P ………..e B…………, e, ainda, para contra os mesmos apresentar queixa-crime e dela desistir, pela emissão dos cheques sem provisão n.ºs 1514677525 e 0614677526. ambos da conta n.° 000800004007 do B.P.S.M .. ))
10. O procedimento criminal contra P……………….. e B………………….. veio a ser arquivado, pelo não preenchimento do tipo objectivo do crime de emissão de cheque sem provisão.
11. A arguida não tem antecedentes criminais.
FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que os cheques tenham sido entregues entre o dia 15 de Julho e 15 de Agosto.
MOTIV ACÃO:
A convicção do tribunal formou-se com base na conjugação das declarações das testemunhas inquiridas e dos documentos juntos aos autos.
Assim, tivemos em consideração o depoimento da testemunha P…………, pessoa que arrendou um estabelecimento comercial à arguida a fim de ali instalar um bar e que, por esse motivo, tem conhecimento directo dos factos, pese embora não tivesse sabido, aquando da sua inquirição, situar concretamente os factos no tempo, o que se compreende, atenta o lapso temporal já decorrido desde a prática dos mesmos; esclareceu assim de forma isenta e concisa, que em virtude do aludido arrendamento, e aquando da abertura do bar, entregaram à arguida 12 cheques já preenchidos, onde foram apostas as datas dos meses das rendas devidas a que respeitavam; esclareceu igualmente por que motivo foram os 2 cheques em apreço cancelados e em que período do ano foram aqueles entregues; B………………, que manteve um relacionamento comercial com a arguida durante o ano de 1999, no âmbito do qual houve a entrega dos cheques em apreço; soube assim esclarecer, de forma isenta e circunstanciada, em que ano foi celebrado o contrato de arrendamento em causa; de que forma foram pagas as rendas; quantos cheques foram entregues e em que momento; por que motivo dois deles foram cancelados, quais os seus valores e quando confrontado com o livro de cheques que se encontra junto aos autos, referiu tratar-se dos cheques que então havia entregue à arguida no ano de 1999, de uma só vez, para pagamento das rendas que entretanto se fossem vencendo.
Ajudaram ainda a formar a convicção os documentos de fls. 2 a 24, caderneta de cheques de fls. 26, fls. 28 a 32, fls. 233 (procuração passada pela arguida a favor do Dr. J…………..e Dr. S………) e ainda o certificado de registo criminal de fls. 152.
APRECIANDO
Sendo o objecto do recurso fixado pelas conclusões retiradas pela recorrente das respectivas motivações, as questões colocadas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
- a prescrição do procedimento criminal;
- nulidade da sentença, ao não conhecer da questão incidental da prescrição;
- a reapreciação da prova, relativamente a alguns factos abundantemente documentados nos autos, que sendo relevantes para a decisão da causa, deveriam ter sido dados como provados e não foram;
- o não preenchimento do elemento subjectivo do tipo do crime de denúncia caluniosa, designadamente por falta de consciência da falsidade dos factos imputados às pessoas visadas na queixa-crime.
Por sua vez, o Exmº PGA, no sem parecer, imputa à sentença recorrida os vícios de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e o de erro notório na apreciação da prova, a que se referem as als. b) e c) do n.º 2 do art. 410º do CPP, sustentando ainda que a sentença é nula por falta de fundamentação, nos termos dos artigos 379º e 374º, n.º 2 do mesmo diploma.
A – Da prescrição do procedimento criminal
Alega a recorrente que sendo o crime previsto no artigo 365º, n.º 1 do CP punível com prisão até 3 anos, a que corresponde o prazo de prescrição de 5 anos, e se como se diz na sentença recorrida os factos foram praticados em 2-11-2000, o procedimento criminal contra a arguida prescreveu em 3-11-2005, por não ter ocorrido qualquer facto que determinasse a suspensão ou a interrupção do referido prazo.
Porém, não lhe assiste razão.
Efectivamente, ao crime de denúncia caluniosa corresponde, em abstracto, a pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, nos termos do n.º 1 do art. 365º do Código Penal, pelo que é de 5 anos o prazo de prescrição do procedimento criminal – art. 118, n.º 1, al. c) do mesmo diploma.
O curso da prescrição pode ser suspenso ou interrompido, nas situações previstas nos n.ºs 1 dos artigos 120º e 121º do CP.
Há suspensão quando o tempo decorrido antes da verificação da causa de suspensão conta para a prescrição, juntando-se, portanto, com o tempo decorrido após a causa de suspensão ter desaparecido. Inversamente, verifica-se interrupção, quando o tempo decorrido antes da causa de interrupção fica sem efeito, devendo portanto reiniciar-se o período, logo que desapareça a causa de interrupção ( - cfr. Simas Santos e Leal-Henriques em anotação ao art. 120º.).
É de 3 anos o prazo da suspensão (art. 120º, n.º 2). E, a fim de evitar que o processo se eternize, porquanto a interrupção implica o decurso de novo prazo, estabeleceu-se no n.º 3 do artigo 121º um prazo máximo a partir do qual o procedimento criminal já não pode prosseguir, nos termos do qual “A prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.” Ou seja, in casu, 5 anos + 2 ano e 6 meses + 3 anos.
Os factos imputados à arguida remontam a 2-11-2000, tendo nessa data se iniciado o prazo de prescrição – art. 119º, n.º 1.
Na situação em apreço o prazo de prescrição suspendeu-se e interrompeu-se com a notificação da acusação (artigos 120º, n.º 1, al. b) e 121º, n.º 1, al. b) do CP).
Na verdade, como se observa do aviso de recepção de fls. 142, foi a arguida notificada, na qualidade de arguida, da acusação contra si deduzida (cfr. fls. 138), em 17-10-2005 (sendo esta a data do carimbo dos correios do Canadá).
Do exposto se conclui que ainda não decorreu o prazo de prescrição do procedimento criminal, o que acontecerá em 2-5-2011.
B –
Uma outra questão vem suscitada, a propósito da invocada prescrição do procedimento criminal. Sustenta a recorrente que a sentença é nula, por não conhecer da questão incidental da prescrição, nos termos do que dispõem os artigos 368º, n.º 1 e 379º, n.º 1, al. c) do CPP.
A prescrição é uma excepção de conhecimento oficioso, que consistindo na extinção de um direito em virtude do decurso de certo período de tempo, tem por efeito a extinção do procedimento criminal.
Todavia, a sentença terá de se pronunciar sobre tal questão se a mesma tiver sido suscitada, ou se, em concreto, já tiver decorrido o prazo prescricional.
Tal não aconteceu nos autos. Assim sendo, bastou-se a sentença com a referência a que “Mantendo-se válidos os pressupostos, nada obsta à decisão do mérito da causa” (v. ponto 6. do Relatório, de fls. 236), dado que o tribunal já se tinha debruçado sobre a verificação de nulidades, excepções ou outras questões prévias ou incidentais que obstassem à apreciação do mérito da causa, aquando da prolação do despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 311º do CPP, como resulta de fls. 145.
Por conseguinte, também nesta questão não assiste razão à recorrente.
C –
Sustenta o Exmo. PGA no seu parecer que a sentença recorrida padece de vícios que implicarão a reapreciação dos factos.
Por seu lado, a recorrente considera que deverá proceder-se à reapreciação da prova uma vez que alguns dos factos deveriam ter sido dados como provados e não o foram.
Ora, não tendo a recorrente impugnado a decisão da matéria de facto como preceitua o artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP, os poderes de cognição deste tribunal de recurso não poderá estender-se à matéria de facto.
Todavia, tendo sido invocados vícios da sentença, a que alude o n.º 2 do art. 410º do CPP, os quais devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, terá o tribunal ad quem verificar se os mesmos existem ( - Vícios que são de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, conforme Acórdão de Jurisprudência Obrigatória n.º 7/95 do STJ, de 19-10-95: “É oficioso pelo Tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” – (in DR, I Série A, de 28-12-95).).
Antes de avançarmos sobre a questão, convém realçar o seguinte circunstancialismo comprovado nos autos:
- por procuração datada de 25-10-2000, a ora arguida constituiu seus procuradores os Drs. J…………., advogado, e S……………., advogado estagiário, com escritório em morada indicada nas Caldas da Rainha, a quem conferiram “os mais amplos poderes forenses em direito permitidos, e os especiais para confessar, desistir ou transigir, na acção de despejo a propor contra P……………. e B…………., e, ainda, para contra os mesmos apresentar queixa-crime e dela desistir, pela emissão dos cheques sem provisão n.ºs 1514677525 e 0614677526. ambos da conta n.° 000800004007 do B.P.S.M” – fls. 233;
- em 2-11-2000, o Dr. Z... apresentou a queixa-crime contra os id. P………… e B………… relativamente a tais cheques, queixa que assinou em nome da ora arguida – fls. 3/5;
- queixa que deu origem aos presentes autos – fls. 27/32;
- a ora arguida contava, à data, 70 anos de idade – fls. 59;
- pelo menos, entre 15-2-2001 e 17-10-2005, a arguida viveu no Canadá, deslocando-se à Nazaré de quando em vez – fls. 15 e 142;
- a arguida não chegou a prestar declarações nessa qualidade, dado ter sido solicitada a devolução, sem cumprimento, da carta rogatória expedida às autoridades judiciárias canadianas para esse efeito e prestação de TIR, uma vez que a arguida prestou TIR em Portugal - fls. 175 e 179;
- alegando impossibilidade de comparecer em audiência, por motivo de doença (de foro cardíaco e oncológico), a arguida requereu e autorizou que a audiência se realizasse na sua ausência, o que foi deferido – fls. 185 e 186 – contando então 76 anos de idade;
- tendo constituído novo mandatário, em 3-7-2006, - fls. 177 -, arrolou como testemunhas de defesa os id. P……… e S……., respectivamente, os dois 1ºs contra quem foi apresentada a queixa-crime pelos cheques sem provisão, e o 3º o Sr. Advogado que elaborou e subscreveu tal queixa – fls. 176;
- em audiência apenas prestaram depoimento os id. P………… e B………….. (testemunhas comuns à acusação e à defesa);
- a restante testemunha arrolada pela defesa, o Sr. Advogado Z..., apesar de notificado, não compareceu às audiências designadas para 18-9-2006 e 10-5-2007 – fls. 182 e vº,186, 206 e vº e 221.
- para a audiência que se realizou em 17-5-2007, o tribunal não notificou a testemunha, ainda que conste na respectiva acta que «não se sabe se a mesma se encontrava notificada» – fls. 229.
A queixa-crime relativa à emissão dos dois cheques sem provisão foi apresentada em representação da arguida destes autos, tendo sido subscrita pelo Sr. Advogado a quem aquela passou procuração.
Não exigindo a lei processual forma especial para a queixa, que até poderá ser verbal ( - cfr. art. 246º do CPP. Socorremo-nos do instituto da denúncia, por ser o que mais se aproxima do exercício do direito de queixa.), a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais – art. 49º do CPP.
Na situação presente, a queixa foi apresentada por mandatário, profissional do foro e, por conseguinte, actuando em nome e em representação da sua constituinte, com a responsabilidade de “defender os interesses legítimos da cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas”, devendo ainda “dar a sua opinião conscienciosa sobre o merecimento do direito ou pretensão que o cliente invoca”, cabendo-lhe ainda o «dever de correcção» porquanto “o advogado deve exercer o patrocínio dentro dos limites da lei e da urbanidade, sem prejuízo do dever de defender adequadamente os interesses do seu cliente” – artigos 92º, 95º, n.º 1, al. a) e 105, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Serve isto para dizer que a mera existência da procuração não responsabiliza a arguida pelos termos da queixa-crime em causa. Como se observa da procuração de fls. 233, o mandato foi conferido para o exercício do direito de queixa respeitante a dois cheques identificados, nada se referindo quanto ao conteúdo da queixa.
Em termos pessoais a arguida não apresentou queixa, a mesma foi elaborada e subscrita pelo Sr. Advogado a quem aquela conferiu mandato. Por conseguinte, existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a quo deu como provado que “No dia 2 de Novembro de 2000, a arguida apresentou queixa nos Serviços do Ministério Público da Comarca da Nazaré, alegando que P……… e B…………… preencheram, assinaram e entregaram-lhe em 1.05.00 e 1.6.00, cheques n.ºs 1514677525 e 0614677526 sobre a conta conjunta de que são titulares, n.o 00800004007 do balcão de Leiria do "Banco Pinto & Sotto Mayor", ambos no montante de € 341,68 (PTE 68.5000$00).
Acresce, que se verifica também a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Muito embora a arguida tivesse interesse no facto, no sentido de vir a ser ressarcida quanto aos aludidos cheques emitidos por aqueles, não se apuraram os exactos termos do conteúdo da queixa.
Importava saber qual era o conhecimento da arguida, designadamente sobre se os cheques eram pré datados; se não sendo coincidente a data da emissão do cheque com a data da entrega do mesmo ao tomador, à data, tal facto não constituía crime e, se tendo conhecimento destes factos, ainda assim a arguida quis que o seu mandatário apresentasse a queixa de fls. 3/5, com o conteúdo que a mesma apresenta. Este último aspecto seria relevante para efeitos do preenchimento do elemento subjectivo do tipo do crime de denúncia caluniosa, no que respeita à «consciência da falsidade dos factos imputados».
Importava também saber quais as instruções que a arguida deu ao seu mandatário, atendendo mesmo à sua avançada idade e a que passou longas temporadas no Canadá.
Concluímos, assim, que na sentença recorrida faltam elementos que deveriam ter sido indagados e que são essenciais para se poder formular um juízo de condenação.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulta que os factos apurados são insuficientes para se decidir sobre o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crime verificáveis e os demais requisitos necessários à decisão de direito, e é de concluir que o tribunal a quo podia ter alargado a sua investigação a outro circunstancialismo fáctico suporte bastante dessa decisão – Ac. do STJ de 3-11-99, proc. n.º 1001/98.
E, ocorre erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido no texto da decisão recorrida (Simas Santos e Leal Henriques, in Cód. Proc. Penal anotado, II vol., pág. 740).
Acresce ainda que, consta da acusação que a arguida «tinha capacidade de determinação segundo as prescrições legais». Afigura-se-nos que este facto, reportando-se à actuação da arguida, tem em vista um pressuposto da culpa, a consciência da ilicitude do facto.
Ora, analisando a sentença recorrida constata-se que tal facto não foi dado como provado ou como não provado. Não há qualquer referência ao mesmo.
A omissão de pronúncia quanto a este facto, por si só, constitui uma nulidade própria, prevista no artigo 379º, n.º 1, al. c) do CPP, e que importaria a nulidade da sentença.
Porém, consideramos também que esta omissão de pronúncia também integra o vício da insuficiência a que alude a al. a) do n.º 2 do art. 410º – neste sentido, o Ac. do STJ de 30-6-99, proc. nº 271/99.
Em suma, deverá ser apurado se arguida ao conferir o mandato ao Sr. Advogado Z... determinou que a queixa-crime fosse elaborada nos termos em que o foi, ou se, de alguma forma, interferiu quanto ao conteúdo de tal queixa, em especial quanto às questões elencadas a fls. 9 e 10 deste acórdão (respectivamente, último e primeiro parágrafos).
Deste modo, concluímos que a sentença recorrida padece dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, a que aludem as alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 410º do CPP, o que determina a anulação do julgamento efectuado e o consequente reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do que dispõem os artigos 426º, n.º 1 e 426º-A do CPP.
III- DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- Anular o julgamento efectuado, determinando o reenvio do processo para novo julgamento, o qual incidirá sobre a totalidade do seu objecto.
Sem tributação.