Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1539/17.4T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
VALOR
Data do Acordão: 02/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JC CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ART.º 566.º, N.º 3, DO CCIV
Sumário: 1. - O valor indemnizatório pelo denominado dano biológico, sendo indeterminado, deve ser fixado equitativamente, nos termos do disposto no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv..

2. - Perante lesada estudante, de sete anos de idade à data do acidente, cujas lesões causaram um défice funcional permanente correspondente a «pelo menos, 1,99 pontos» (numa escala até 100), o qual, embora compatível com o exercício da atividade habitual, implica esforços acrescidos, limitando-a no seu horizonte escolar e, no futuro, profissional e extraprofissional, até ao fim da vida, e diminuindo-a no âmbito do mercado concorrencial de trabalho, quando tiver de o enfrentar, é adequado, em equidade, fixar em € 12.500,00 o montante indemnizatório, já atualizado, para ressarcir aquele dano.

3. - O quantum da indemnização por danos não patrimoniais deve ser, não irrelevante ou simbólico, mas significativo, visando propiciar compensação quanto ao dano sofrido, com fixação equilibrada e ponderada, de acordo com critérios de equidade, tendo em conta os padrões jurisprudenciais atualizados.

4. - Provando-se que a lesada ficou ferida no acidente, pelo que foi transportada a estabelecimento hospitalar, tendo sido submetida a exames e demorados tratamentos e suportado dores, num quantum doloris fixável entre o grau 4 e o grau 6 (num máximo de 7), dores essas que ainda continua a sofrer, viveu momentos de grande ansiedade, pânico e solidão, atenta até a sua tenra idade, padecendo de transtorno pós-concussional, com défice da atenção e da memória, necessitando de apoio psicoterapêutico e interrompendo prolongadamente a sua atividade escolar, tendo passado a mostrar-se uma criança mais triste e isolada, ficou com ligeiro afundamento do osso frontal da direita e desvio, embora muito discreto, dos ossos próprios do nariz, sendo o dano estético permanente fixável entre os graus 2 e 4 (num máximo de 7), é adequado, em equidade, arbitrar em € 12.500,00 o montante indemnizatório, também já atualizado, para ressarcir tais danos não patrimoniais.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



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I – Relatório

D(...), menor representada por seu pai, N(...), com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa comum condenatória contra

L(...) - Companhia de Seguros, S. A.”, também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia global de € 74.000,00, título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de acidente de viação, acrescida de juros moratórios, à taxa supletiva legal, desde a citação e até integral pagamento.

Alegou, para tanto, em síntese, que, em consequência de acidente de viação, imputável ao condutor de veículo automóvel seguro na R., sofreu a demandante diversos danos, que identifica e valoriza, danos esses que importa reparar integralmente, cabendo a responsabilidade para o efeito àquela R., na vigência de contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel ao tempo do sinistro.

Citada, a R. contestou, defendendo-se por impugnação e sustentando o caráter excessivo dos montantes indemnizatórios peticionados.

Proferido despacho saneador, fixados o objeto do litígio e os temas da prova, foi depois realizada audiência final, com prolação de sentença nos seguintes termos:

“(…) julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno a Ré a pagar à Autora a quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença até integral pagamento.

Mais decido absolver a Ré do pedido de pagamento da restante quantia peticionada.”.

Da sentença, vem a R., inconformada, interpor recurso ([1]), apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([2]):

«I - É necessário, colocar alguns parâmetros uniformes ou cautelas na determinação das indemnizações atenta a divergência jurisprudencial, quando estão em causas lesões e sequelas.

II – A abissal desconformidade de critérios e fixação de montantes indemnizatórios para casos de natureza idêntica, reconduz à insegurança jurídica e à aplicação da equidade.

III - A apreciação da questão é necessária, pois, são dispares, diríamos abissais os montantes fixados pelos Tribunais de 1ª Instância quando está em causa a determinação do quantum indemnizatório por danos patrimoniais e o quantum indemnizatório por danos não patrimoniais.

IV - Afirmar que a apreciação da questão não é necessária seria concluir que a aplicação do Direito se adaptaria à Justiça e a Injustiça, condicionando-se a decisão a um a espécie de “jogo de fortuna ou azar” muitas vezes subjetivada na “sorte” de se encontrar um julgador que siga este ou aquele “rol de decisões” mais apropriado à fixação dos valores independentemente da insegurança jurídica na fundamentação de qualquer decisão.

V - Nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito tal como decorre do artigo 8º nº 3 do Código Civil (vidé, também, artigo 672 nº 1 alínea a) do Código de Processo Civil) e ainda artigo 496º nº 1 do Código Civil), o que não foi o caso sub judice.

VI - A manifesta disparidade de critérios jurisprudenciais em matéria de fixação de valores indemnizatórios para os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da responsabilidade civil extra contratual que servem como elementos de consulta fundamentais para determinar valores de reserva para sinistros, determina a maior das inseguranças financeiras na gestão dos riscos decorrentes da circulação rodoviária quando estão em causa sinistros que envolvam lesões corporais e sequelas.

VII - A questão não é insignificante uma vez que bastará o recurso a um certo “rol de decisões”, para colocar em causa a sua solvabilidade com as consequências ao nível das suas reservas e indiretamente, na manutenção e garantia de valores indemnizatórios para todos os sinistrados dependentes, sem prejuízo do agravamento dos prémios de seguro de determinada comunidade de Tomadores de Seguros.

VIII - A flexibilidade da lei (artigos 564º e 566º nº 3) não reconduz o critério da fixação do montante indemnizatório apenas à equidade: em primeiro lugar, deve atender-se aos pressupostos legais determinados em função do caso concreto, isto é, idade do lesado, tempo de vida ativa e tempo de vida provável, o seu modo de vida e as repercussões que as lesões e sequelas têm a esse nível; em segundo lugar, determinar-se-á um valor, ainda que como mera referência; em terceiro lugar, pondera-se o caso concreto, e “ajusta-se” o valor encontrado, segundo os juízos de equidade.

IX - Da abstração da lei pode resultar desajustamentos entre o que é a justiça decorrente dessa lei e a justiça que é desejável no caso concreto.

X - Nessa ponderação residual é que terá sentido o recurso à equidade.

XI - A apreciação dos critérios da equidade, no que concerne à determinação dos valores indemnizatórios decorrentes de danos não patrimoniais e danos patrimoniais é, por isso, claramente necessária, para melhor aplicação do Direito, sobe pena de cairmos no livre arbítrio, em subjetivismos do julgador, enfim, na aplicação de princípios que apenas encontram raízes na Escola dos defensores do Direito Livre.

XII - A Douta Sentença, não atendeu à tendência dos nossos tribunais para lançar mãos de critérios quantitativos com o objetivo de tornar o mais possível justas, atuais e minimamente discrepantes as indemnizações.

XIII – A Douta Sentença transformou a equidade “adaptativa” ou “corretiva” em equidade “substantiva” na determinação dos valores que consideram aceitáveis.

XIV - Tendo em atenção o exposto e porque a questão em “apreciação é claramente necessária para melhor aplicação do direito”, a Douta Decisão do Tribunal a quo, deveria ter tido em conta, no computo indemnizatório relativo ao dano biológico, o seu reflexo lesivo do qual não resulta qualquer dano patrimonial.

XV – O tribunal a quo fixou em 15.000,00 euros, mas este valor é manifestamente exagerado, tendo em conta a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

XVI - Não se pode avaliar as repercussões do Défice Funcional de 1,99 pontos da Autora, no âmbito do puro dano patrimonial, como se de um dano patrimonial se tratasse.

XVII - Deve deter-se, num valor arbitrado à luz da pura equidade (como se fosse um dano não patrimonial), ponderando-se no máximo para metade do valor fixado (7.500,00).

XVIII – Para o efeito cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de fevereiro de 2018, processo nº 3901/10.4TJNF.G1.S1.

XIX– O valor de 15.000,00 euros, atentas as sequelas da Autora, quase inexistentes (1,99 pontos), é manifestamente exagerado, extravasa qualquer critério minimamente coerente, descredibiliza o princípio da equidade e fere, indubitavelmente o disposto no artigo 566º do Código Civil.

XX - Na fixação do montante indemnizatório por dano não patrimonial em concreto, a Douta Sentença, mais uma vez o que se fez foi fixar um valor arbitrário, como se a equidade substituísse a lei, como se a equidade fosse uma formula reguladora de solução em menosprezo de todos os demais critérios, nomeadamente, os precedentes jurisprudenciais que, embora não sendo fonte de direito imediata, não podem deixar de ser referências necessárias numa melhor aplicação do direito.

XXI – A indemnização arbitrada de 20.000,00 euros é elevada e desajustada da realidade, assim violando princípios como o a equidade, da igualdade e da certeza e segurança jurídicas.

XXII - O valor arbitrado de €20.000,00 a título de danos não patrimoniais afronta manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, devendo por isso o mesmo ser alterado para o valor de 8.000,00 euros.

XXIII - Para o efeito cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de fevereiro de 2018, processo nº 3901/10.4TJNF.G1.S1

XXIV – O Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação da lei, arbitrando quantias manifestamente altas para compensar o designado “dano biológico” da Autora, e bem assim, o dano não patrimonial que merecem a tutela do direito.

XV – O montante da indemnização deverá ser fixado equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, o disposto nos artigos 494º, 496º, 562º, 564 nº 1 e 2 e 566º nº 3 e 4 e ainda o artigo 8º nº 3 todos do Código Civil, tendo de ser, por isso, alterada a Douta Sentença em conformidade com o disposto no artigo 615º alínea b) do Código de Processo Civil.

Perante todo o supra exposto,

A Recorrente pugna pela revogação da Douta Sentença e a sua substituição por Decisão que, tendo em conta os factos provados, decida em conformidade com as Conclusões descritas e faça a acostumada

JUSTIÇA».

A contraparte, em resposta recursiva, pugna pela improcedência do recurso.


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Tal recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e com efeito meramente devolutivo, após o que foi ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.


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II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, importa saber se, em matéria de direito, devem, ou não, ser alterados os montantes arbitrados em sede indemnizatória, seja quanto ao denominado dano biológico, seja já quanto a danos não patrimoniais.


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III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

É a seguinte – sem controvérsia – a factualidade julgada provada e, por isso, a considerar:

«1. No dia 5 de Outubro de 2015, pelas 18h08, ocorreu um acidente de viação ao Km 22,1 da Estrada Nacional n.º 18.

2. Foram intervenientes nesse acidente de viação o veículo ligeiro misto de matrícula BS (...) , conduzido por A (...) , e o veículo de matrícula DT(...) , conduzido por M... por conta e no interesse da Santa Casa da Misericórdia de (...) , sob cujas ordens, direcção e fiscalização prestava as suas funções.

3. O veículo ligeiro misto de matrícula BS (...) circulava na Estrada Nacional n.º 18 no sentido de marcha Guarda-Belmonte.

4. O veículo de matrícula DT(...) circulava na mesma estrada, no sentido de marcha Belmonte-Guarda.

5. No banco traseiro do veículo ligeiro misto de matrícula BS (...) encontravam-se a Autora, sentada no meio, a sua avó materna e a sua mãe S... .

6. Ao sair de uma curva o veículo de matrícula DT(...) , que circulava a velocidade não inferior a 100 Km/hora, entrou em despiste e invadiu a hemi-faixa de rodagem em que seguia o veículo ligeiro misto de matrícula BS (...) .

7. Ao avistar o veículo de matrícula DT(...) , a condutora do veículo ligeiro misto de matrícula BS (...) tentou encostá-lo mais à direita, mas não conseguiu evitar o embate frontal que se verificou na hemi-faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha.

8. Em consequência da violência do embate, o veículo de matrícula DT(...) deu meia volta, tendo ficado imobilizado com a parte da frente virada no sentido Guarda-Belmonte.

9. O veículo ligeiro misto de matrícula BS (...) foi arrastado ainda mais para a sua direita e ficou imobilizado com a parte da frente na berma e as rodas traseiras na faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha, a 2,3 metros e 2 metros do eixo da via.

10. Ambos os veículos ficaram com a parte da frente e com as partes laterais danificadas.

11. Como consequência directa e necessária do embate, a Autora sofreu ferimentos vários e foi transportada para o Centro Hospitalar (...) , na Covilhã, onde permaneceu internada até ao dia 6 de Novembro de 2015.

12. A Autora nasceu no dia 30 de Dezembro de 2007.

13. Atento o sentido de marcha do veículo ligeiro misto de matrícula BS (...) , o local do acidente corresponde a uma recta, com inclinação, que termina descrevendo uma curva para a esquerda.

14. Nesse local a via tem duas hemi-faixas de rodagem, uma para cada sentido de marcha, separadas por uma linha longitudinal contínua.

15. No local do embate a via tem uma largura de 6,8 metros.

16. No sentido de marcha Belmonte-Guarda a via encontra-se sinalizada nos seguintes termos:

- 200 metros antes do local do embate, com um painel que alerta para a necessidade de moderar a velocidade com os sinais de proibição de circular a mais de 50 Km/hora e de perigo devido à existência de um entroncamento;

- 150 metros antes do local do embate, com um sinal vertical de perigo a indicar curva perigosa para a direita;

- 130 metros antes do local do embate, com um sinal vertical de proibição de ultrapassagem;

- 120 metros antes do local do embate, com um sinal vertical de perigo que indica a existência de um entroncamento.

17. No mesmo sentido de marcha, 70 metros antes do local onde ocorreu o embate, estão colocadas bandas de abrandamento que terminam no referido entroncamento.

18. Os condutores de veículos que circulem no sentido de marcha Belmonte-Guarda não avistam a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de menos de trinta metros desde os sinais verticais até à curva para a direita.

19. No momento em que ocorreu o acidente o tempo estava chuvoso e o piso molhado.

20. O veículo de matrícula DT(...) pertencia à Santa Casa da Misericórdia de (...) , que tinha transferido a sua responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do mesmo para a seguradora Ré, através da apólice n.º 8407540.

21. Por conduzir a velocidade não inferior a 100 Km/hora, a condutora do veículo de matrícula DT(...) não conseguiu descrever a curva e perdeu o controlo do veículo, invadindo a hemi-faixa de rodagem esquerda, onde circulava o veículo ligeiro misto de matrícula BS (...) .

22. A condutora do veículo de matrícula DT(...) não adequou a velocidade que imprimiu ao veículo às características da via, nem às condições atmosféricas e não atendeu aos sinais de trânsito existentes na via.

23. A condutora do veículo de matrícula DT(...) não previu que a velocidade a que circulava, nas circunstâncias mencionadas, não lhe permitiria descrever a curva para a direita mantendo-se na hemi-faixa de rodagem em que seguia, que não teria possibilidade de retomar a sua hemi-faixa de rodagem em condições de segurança para os demais utentes da via e que poderiam circular em sentido contrário outros veículos nos quais viesse a embater.

24. O habitáculo do veículo ligeiro misto de matrícula BS (...) encontra-se dividido por uma barra horizontal que separa os bancos da frente dos de trás.

25. A Autora tinha colocado o cinto de segurança que a prendia ao banco apenas na zona da bacia.

26. Em consequência da violência do embate, o tronco da Autora foi projectado para a frente, tendo a mesma batido com a cabeça na barra horizontal do habitáculo, o que lhe provocou um traumatismo crânio-encefálico com hematoma frontal.

27. Em consequência do embate a Autora sofreu ainda traumatismo facial com:

- Hematoma extracraniano frontal direito com enfisema subcutâneo sobre a asa nasal;

- Hematoma orbitário direito;

- Fina “hiperdensidade” adjacente à tábua interna bilateral, homogénea, provável artefacto;

- Presença de tecidos moles nos seios perinasais com nível líquido sugerindo hemossinus generalizado;

- Duvidoso enfisema orbitário esquerdo anterior medial (parte anterior da lâmina papirácea);

- Fractura dos ossos próprios do nariz, com ligeiro desalinhamento ósseo.

28. Devido à violência do embate, o cinto que manteve a Autora presa ao banco do veículo pressionou-lhe a bacia.

29. Em consequência do embate a Autora sofreu fractura da asa do ilíaco direito, ligeiramente cominutiva, envolvendo espinha ilíaca antero-superior. Associa-se a uma extensão horizontal alinhada da fissura à extremidade articular sub-articular da articulação sacroilíaca. Na região da espinha ilíaca antero-superior a fractura é mais cominutiva com vários fragmentos ligeiramente desviados.

30. Em consequência do embate a Autora sofreu fractura da asa do ilíaco esquerdo, relativamente alinhada, mas um pouco mais fragmentada na espinha ilíaca antero-superior e com extensão horizontal bem alinhada posterior à região da articulação sacroilíaca homolateral.

31. Em consequência do embate a Autora sentiu dor e sofreu equimose ao nível da bacia, com incapacidade para fazer extensão do membro inferior esquerdo.

32. Em consequência do embate a Autora fracturou a tíbia esquerda.

33. Enquanto esteve internada no Centro Hospitalar (...) , desde o dia 5 de Outubro até ao dia 6 de Novembro de 2015, a Autora permaneceu sempre acamada e com a perna engessada até à coxa.

34. Durante esse período a Autora tinha a bacia imobilizada.

35. Durante esse período a Autora não conseguia movimentar-se, nem virar-se.

36. Após o acidente, a Autora apresentava lesões no rosto, mal conseguindo abrir os olhos devido aos hematomas que sofreu.

37. No dia 25 de Novembro de 2015 foi retirado o gesso da perna da Autora, tendo a mesma iniciado a marcha com andarilhos e, mais tarde, com canadianas.

38. A Autora manteve acompanhamento em consultas de ortopedia.

39. A Autora iniciou sessões de fisiatria no dia 26 de Novembro de 2015.

40. No dia 9 de Dezembro de 2015 foi proposto à Autora, numa das consultas de ortopedia, um internamento para tratamento de reabilitação intensiva.

41. A Autora submeteu-se à realização desse tratamento entre os dias 17 de Dezembro de 2015 e 15 de Janeiro de 2016, período durante o qual permaneceu internada na Unidade de Internamento de Reabilitação (...) , em Gouveia.

42. A situação clínica, na especialidade de ortopedia, foi considerada estabilizada com danos permanentes, tendo sido concedida alta à Autora no dia 4 de Abril de 2016.

43. Até ao final do mês de Dezembro de 2015 a Autora tinha tonturas e vómitos quando se encontrava em pé.

44. Por esse motivo teve acompanhamento em consultas de neurocirurgia nos dias 28 de Novembro de 2015 e 10 de Dezembro de 2015.

45. Foi concedida alta à Autora, nessa especialidade, no dia 5 de Março de 2016.

46. A Autora viveu o momento do acidente com grande ansiedade e pânico, mantendo-se sempre consciente enquanto o mesmo decorria.

47. A Autora aguardou a chegada dos Bombeiros no interior do veículo ligeiro misto de matrícula BS (...) , presa pela cintura.

48. Nessa altura a Autora encontrava-se apavorada e a chorar.

49. A Autora sentiu grande ansiedade e solidão quando foi transportada pelos Bombeiros, sozinha, até ao Centro Hospitalar (...) .

50. A Autora padece de transtorno pós-concussional, manifestado através de défice da atenção e da memória, necessitando de apoio psicoterapêutico.

51. Durante o período em que esteve internada no Centro Hospitalar (...) a Autora sentiu-se abandonada pela mãe.

52. Durante esse período a mãe da Autora esteve internada na Unidade Local de Saúde da (...) .

53. Durante esse período de internamento apenas o pai da Autora a visitava diariamente, ou à hora do almoço ou à hora do jantar, em virtude de se encontrar a trabalhar e ter que visitar também a sua esposa.

54. Enquanto esteve internada no Centro Hospitalar (...) a Autora deixou de querer falar com a sua mãe ao telefone.

55. Quando lhe foi concedida alta, no dia 6 de Novembro de 2015, a Autora regressou para a sua casa, permanecendo, durante o dia, ao cuidado da sua avó paterna.

56. Em consequência do acidente a Autora não pôde ir à escola entre os dias 6 de Outubro de 2015 e 15 de Janeiro de 2016.

57. Até meados de Janeiro de 2016 a Autora carecia do auxílio de terceiros para tomar banho, subir e descer escadas, permanecer de pé, caminhar, baixar-se e levantar-se.

58. Entre meados de Janeiro de 2016 e o início do mês de Abril de 2016 a Autora continuava a precisar da ajuda de terceiros para subir e descer escadas e para transportar os livros e o material escolar.

59. Quando regressou à escola a Autora sentiu dificuldade em acompanhar a matéria leccionada.

60. Até ao final do ano lectivo a Autora teve fraco aproveitamento escolar.

61. A Autora não frequentou as aulas de actividade física até ao final do ano de 2016.

62. Antes de ter sofrido o acidente a Autora era uma criança destemida, alegre, irrequieta, bem-humorada, comunicativa, divertida, que gostava de brincar, correr, saltar e conviver com as outras crianças.

63. Após o acidente a Autora passou a revelar-se uma criança mais triste e isolada.

64. A Autora apresenta um ligeiro afundamento do osso frontal da direita e um muito discreto desvio dos ossos próprios do nariz.

65. A Autora sente dor em carga no membro inferior esquerdo e na mobilização da coxa femural e sacro-ilíaca esquerda.

66. A Autora sente dor quando se coloca de cócoras e quando salta.

67. A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pela Autora é fixável no dia 4 de Abril de 2016.

68. O défice funcional temporário total sofrido pela Autora é fixável no período de 104 dias.

69. O Quantum Doloris é fixável entre o grau 4 e o grau 6, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

70. O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica sofrido pela Autora é fixável em, pelo menos, 1,99 pontos.

71. O dano estético permanente sofrido pela Autora é fixável entre o grau 2 e o grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente.».

E mostra-se julgado não provado:

«1. A Autora teve medo que o acidente numa mais acabasse.

2. A Autora ouviu o barulho das chapas a amassarem-se, das portas a soltarem-se, dos vidros a quebrarem e dos gritos das restantes ocupantes do veículo em que seguia.

3. A Autora viu o veículo de matrícula DT(...) a invadir o habitáculo do veículo em que seguia.

4. A Autora viu as restantes ocupantes do veículo em que seguia a desmaiarem.

5. A Autora viu-se coberta de sangue.

6. Enquanto aguardava a chegada dos Bombeiros ao local do acidente, a Autora chamava pela mãe, tentando libertar-se.

7. Nesse momento a Autora teve medo de perder a sua mãe para sempre.

8. Durante os vários meses subsequentes a Autora teve medo de perder a sua mãe, acordando de noite, assustada e angustiada, aos gritos e a chamar pela mãe.

9. A Autora evidencia acentuados sintomas de stress pós-traumático, manifestados em situações que lhe façam lembrar o acidente, como irritação, impaciência e tonturas.

10. Enquanto esteve internada no Centro Hospitalar (...) a Autora não colaborava na toma da medicação, fechando a boca e virando a cabeça, e recusava-se a fazer a sua higiene.

11. Durante esse período a Autora não falava com as pessoas que iam visitá-la, continuando a ver televisão sem lhes dar qualquer atenção ou sequer olhar para elas.

12. Quando regressou a casa, nas circunstâncias indicadas em 55. dos factos considerados provados, a Autora discutia com a sua avó paterna, provocava-a, levantava a voz e não lhe obedecia.

13. Antes do acidente a Autora era uma aluna brilhante, com muito bom aproveitamento escolar.

14. Até ao final do ano lectivo de 2015/2016 a Autora teve dificuldades na adaptação e integração na turma, em consequência da sua retracção motivada pelo medo de não estar ao mesmo nível que os colegas.

15. Por causa do acidente de viação que sofreu, a Autora apresentava instabilidade e falta de concentração.

16. Por causa do acidente de viação que sofreu, a Autora não participava nas aulas e, quando era solicitada a participar, ficava frequentemente calada.

17. Por causa do acidente de viação que sofreu, a Autora passou a apresentar falhas de memória.

18. Até ao final do ano de 2016, por causa do acidente, a Autora alheava-se do contexto da aula e da realidade envolvente.

19. Ainda hoje a Autora tem medo de cair, o que a leva a retrair-se no exercício físico.

20. A Autora não entendeu o seu afastamento das aulas de educação física no período que mediou entre o dia 16 de Janeiro de 2016 e o final do ano.

21. A Autora deixou de andar de bicicleta por ter medo de cair e por ter medo que alguém provoque a sua queda.

22. Actualmente a Autora só gosta de jogos isolados, afastando-se de jogos colectivos por ter medo de ser empurrada ou de ser magoada.

23. Actualmente a Autora não convive com as outras crianças.

24. A Autora ainda hoje tem receio de andar de carro.

25. A Autora apresenta claudicação na marcha.

26. A Autora sente dores com a mudança de tempo e com o frio.

27. A Autora padece de dores articulares que a impedem de praticar desporto, pegar em pesos e praticar actividades que careçam de maior esforço físico.

28. A Autora padece de síndrome de stress pós-traumático.».

                                                 ***

 

B) Substância jurídica do recurso

A única questão jurídica agora a tratar prende-se com os montantes indemnizatórios arbitrados na sentença, que a recorrente considera excessivos, matéria que, assim, se apreciará de imediato.

1. - Da indemnização pelo dano biológico

A este título, refere-se na decisão recorrida:

«(…) cumpre atender, em primeiro lugar, ao teor da petição inicial (…), nos termos da qual foi solicitada a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 30.000,00 com fundamento, em síntese, no facto de, em consequência do acidente, a Autora ter sofrido lesões físicas e psíquicas que ainda se mantêm e irão ter repercussões ao longo do seu percurso escolar, académico e profissional, na medida em que lhe impõem um esforço adicional para a aprendizagem, com eventual necessidade de explicações ou aulas suplementares, e impedirão o acesso a algumas profissões com maior exigência física, quer ao nível da aparência, quer ao nível do esforço físico, essencialmente devido à claudicação da marcha, ao desvio dos ossos do nariz e ao afundamento do osso frontal à direita.

(…) são indemnizáveis os danos patrimoniais consistentes na própria afectação da integridade físico-psíquica do lesado, ainda que, em concreto, a mesma não inviabilize o exercício da respectiva actividade profissional ou o lesado não exerça qualquer actividade laboral.».

Assim, pelo dano biológico – lesada menor, estudante, com, pelo menos, 1,99 de défice funcional, numa escala até 100 pontos ([4]) – foi fixada indemnização no montante de € 15.000,00 (correspondente, pois, a metade do que havia sido pedido), pugnando a R./Apelante, por sua vez, pela sua diminuição para o valor de € 7.500,00.

Quanto a tal “dano biológico”, começou a Apelante por defender, após diversas considerações gerais críticas relativamente ao modo díspar como a prática dos nossos tribunais enfrenta, a seu ver, a questão indemnizatória, à luz dos critérios decorrentes da equidade, redundando em inaceitável arbítrio – sempre a seu ver – na fixação das indemnizações, com consequências para os lesados e as seguradoras dos lesantes, que podem percecionar as decisões como injustas, ao menos em termos relativos, que o valor fixado «é manifestamente exagerado, tendo em conta a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça» (conclusão XV), e, entrando na especificidade do caso, que «Não se pode avaliar as repercussões do Défice Funcional de 1,99 pontos da Autora, no âmbito do puro dano patrimonial, como se de um dano patrimonial se tratasse» (conclusão XVI), antes devendo «deter-se, num valor arbitrado à luz da pura equidade (como se fosse um dano não patrimonial), ponderando-se no máximo para metade do valor fixado (7.500,00)» (conclusão XVII), para o que invoca o «Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de fevereiro de 2018, processo nº 3901/10.4TJNF.G1.S1» (conclusão XVII).

Complementa, afirmando que o quantum fixado, «atentas as sequelas da Autora, quase inexistentes (1,99 pontos), é manifestamente exagerado, extravasa qualquer critério minimamente coerente, descredibiliza o princípio da equidade e fere, indubitavelmente o disposto no artigo 566º do Código Civil» (conclusão XVIII).

A contraparte pugna pela justiça de decidido, também nesta parte.

Que dizer?

Deve reconhecer-se que é espinhosa a tarefa de fixar nestes casos o montante indemnizatório adequado, aquele que se revista de inteira justiça para reparação do dano do concreto lesado, sabendo-se que do outro lado está o segurador do lesante, uma entidade do setor segurador que também espera justiça na fixação da reparação.

Também é sabido que a operância da equidade, neste campo, pode levar, ante a fluidez de contornos dos seus padrões, a decisões diferenciadas entre os tribunais, podendo um lesado ser ressarcido com montante indemnizatório substancialmente diverso de outro com um dano semelhante mas sujeito a decisão de outro Julgador.

Ora, é certo que a justiça relativa deve ser preservada, contribuindo-se para a certeza do direito e segurança na sua aplicação, do mesmo modo que para um caminho de fortalecimento do princípio da igualdade entre os cidadãos, afinal, os destinatários do aparelho de justiça, com o que os Tribunais saem credibilizados e prestigiados.

Sem esquecer estes pontos prévios, deve reconhecer-se que é a própria Recorrente que acaba por pedir um julgamento de “valor arbitrado à luz da pura equidade (como se fosse um dano não patrimonial)” (itálico aditado).

Isto é, insurgindo-se contra o aludido relativismo ou mesmo arbítrio, a Apelante vem pugnar por um julgamento exclusivamente à luz da pura equidade, não obstante saber da sua aludida fluidez de contornos.

E também cabe salientar que estamos perante um dano com uma nítida vertente patrimonial (não um dano patrimonial ficcionado), que não pode reduzir-se à categoria de (tratamento de) um hipotético dano não patrimonial, devendo, pois, como feito na sentença em crise, ser valorado e indemnizado como dano patrimonial, mesmo se, no caso, não importa em qualquer perda atual de rendimentos da lesada (ainda criança, estudante, que, por isso, não aufere qualquer rendimento do trabalho), mas que vai limitá-la no futuro, na medida do seu comprovado deficit funcional, nas tarefas laborais  que terá em adulta, assim como nas tarefas não laborais da sua vida diária (domésticas, lúdicas, desportivas, familiares e outras, em que seja necessário usar o corpo), e perante o exigente mercado concorrencial de trabalho, sempre, e quando, tiver de o enfrentar, mormente se vier a enveredar por alguma profissão que obrigue ao uso do corpo no âmbito daquele deficit funcional, o que se reporta ao futuro, de que por ora não pode, obviamente, conhecer-se, a obrigar, por isso, à convocação de critérios de equidade, por só estes poderem responder, pela sua maleabilidade (mas também, e por isso, ausência de definição rígida de contornos), à tarefa da fixação indemnizatória.

Vejamos, então, à luz da indispensável equidade, o concreto dano existente.

Resulta provado que, à data do acidente, a A. era uma criança, que tinha apenas sete anos de idade, sendo, por isso, estudante, e tendo sofrido, como apurado, lesões diversas, mormente traumatismo facial (com hematoma extracraniano frontal direito com enfisema subcutâneo sobre a asa nasal, hematoma orbitário direito, fina “hiperdensidade” adjacente à tábua interna bilateral, presença de tecidos moles nos seios perinasais com nível líquido sugerindo hemossinus generalizado, enfisema orbitário esquerdo anterior medial, fratura dos ossos próprios do nariz, com ligeiro desalinhamento ósseo), bem como fratura da asa do ilíaco direito (ligeiramente cominutiva, envolvendo espinha ilíaca antero-superior, com associação a uma extensão horizontal alinhada da fissura à extremidade articular sub-articular da articulação sacroilíaca, sendo que, na região da espinha ilíaca antero-superior, a fratura é mais cominutiva com vários fragmentos ligeiramente desviados), fratura da asa do ilíaco esquerdo, relativamente alinhada, mas um pouco mais fragmentada na espinha ilíaca antero-superior e com extensão horizontal bem alinhada posterior à região da articulação sacroilíaca homolateral, e fratura da tíbia esquerda.

Tais lesões físicas não ficaram sem rebate funcional, posto vir provado também que a A. padece de dor em carga no membro inferior esquerdo e na mobilização da coxa femural e sacro-ilíaca esquerda, sentindo ainda dor quando se coloca de cócoras e quando salta, não obstante a data da consolidação médico-legal das lesões sofridas ser fixável no dia 4 de abril de 2016.

Compreensível é, assim, que a A. tenha de suportar, para toda a sua vida restante, um “défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em, pelo menos, 1,99 pontos”, o qual não implica, manifestamente, perda de rendimentos, mas apenas esforços acrescidos no desempenho das suas atividades, presentes e futuras, que demandem a utilização da parte do corpo afetada.

Nesta linha, exarou-se assim na sentença:

«(…) a Autora terá que conviver com as limitações que lhe foram provocadas durante um período de vida muito significativo, tendo em conta que a esperança média de vida se encontra actualmente fixada, para indivíduos do sexo feminino, nos 83 anos de idade.

Por outro lado, neste âmbito importa considerar ainda a circunstância de não se ter apurado que o défice funcional permanente de que a Autora padece a impede de desenvolver as actividades a que se dedica.

Contudo, essa circunstância não poderá ser dissociada do facto de, por se encontrar ainda em idade escolar, a Autora, neste momento, apenas se dedicar aos estudos, o que não exclui a possibilidade de, no futuro, dependendo da actividade a que a Autora venha a dedicar-se, poder ter que despender esforços acrescidos por causa do referido défice funcional.

Ou seja, a Autora, durante toda a sua vida activa, vê-se obrigada a adaptar o exercício da actividade profissional que venha a desenvolver às limitações que lhe foram causadas.

Para além disso, é patente que as limitações sofridas pela Autora são bastante significativas, afectando, de forma relevante, o seu dia-a-dia, já que, conforme resultou demonstrado nestes autos, a Autora continua a sentir dor quer ao nível da bacia, quer ao nível da perna esquerda, o que condicionará, necessariamente, a execução de determinados movimentos corporais, assim como a própria capacidade de resistência da Autora.

(…) o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica da Autora foi fixado em apenas, pelo menos, 1,99 pontos, reportando-se a limitações detectadas nas duas áreas corporais mencionadas.

(…)

Tendo em conta os critérios já referidos, nomeadamente no que respeita à idade da Autora, às limitações sofridas no seu dia-a-dia em consequência das dores sentidas e aos esforços suplementares que poderá ter que despender no exercício da actividade profissional a que venha a dedicar-se, afigura-se equilibrada e adequada a atribuição de uma indemnização no valor de € 15.000,00.».

Em contrário, invoca a Apelante o decidido em Ac. STJ de 27/02/2018 ([5]), em cujo sumário pode ler-se:

«I - A fixação da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, emergentes de acidente de viação, com recurso à equidade, envolve a ponderação de elementos não estritamente legais, devendo o STJ limitar a sua intervenção à verificação do uso, no acórdão recorrido, dos critérios ou padrões utilizados em situações análogas.

II - Mostram-se conformes a tais critérios ou padrões, os valores, de 10.000 e de 8.000 euros, atribuídos a título de indemnização dos danos patrimoniais futuros e dos danos não patrimoniais com fundamento no seguinte quadro provado: (i) à data do acidente, o autor tinha 10 anos de idade e era (e é) estudante; (ii) em consequência do acidente, ficou a padecer de um défice permanente da integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos, que demanda maiores esforços no exercício da actividade habitual e demandará perda de capacidade de ganho quando ingressar no mercado de trabalho (iii) sofreu dores aquando do acidente e da convalescença, sendo o quantum doloris de grau 4 (numa escala progressiva de 7); (iv) a repercussão permanente das sequelas nas actividades desportivas e de lazer corresponde ao grau 3 (numa escala progressiva de 7); (v) padeceu de incómodos e de tristeza por força do acidente, das lesões e das sequelas dele decorrentes; (vi) antes do acidente, era uma pessoa saudável, alegre e confiante.».

No caso decidido naquele douto aresto, tratava-se, pois, de um lesado menor, com 10 anos de idade ao tempo do acidente e que era estudante, tendo sofrido um défice permanente da integridade físico-psíquica fixável em 3 pontos, a demandar maiores esforços no exercício da atividade habitual e que demandará perda de capacidade de ganho quando ingressar no mercado de trabalho.

Trata-se, por isso, de uma situação fáctica com contornos algo próximos da situação destes autos, sem esquecer, contudo, a especificidade (ou irrepetibilidade) de cada caso da vida.

Temos vindo a entender, para tal tipo de casos, que, se não está em causa qualquer perda imediata de rendimentos, implicada fica, inelutavelmente, uma maior penosidade no âmbito das atividades diárias – e, provavelmente, no futuro plano laboral –, mas sempre uma empobrecida capacidade (défice) funcional, com desvantagem no exigente mercado laboral, e com alguma repercussão nas tarefas do dia a dia, visto que todo o conjunto dos atos da vida ativa da lesada, na medida em que impliquem a utilização do corpo em atividade física, laboral ou extralaboral, ficam limitados ([6]).

Consabido, pois, que a vida da pessoa não se esgota na sua atividade profissional – esta, de si, relevantíssima –, havendo todo um conjunto de atividades que nela não se integram, mas que fazem parte essencial da vivência/existência do indivíduo (antes, durante e depois do seu tempo de vida ativa/laboral), com inevitável ponderação em sede indemnizatória, na medida em que afetadas/prejudicadas pelo dano permanente sofrido, certo é também que no caso não pode deixar, por outro lado, de valorar-se adequadamente o montante do dano físico-funcional sofrido, fixado em aproximadamente 2 (dois) pontos – «pelo menos, 1,99 pontos, reportando-se a limitações detectadas nas duas áreas corporais mencionadas» –, e não mais, perante um total de 100.

Assim sendo, tendo em conta que a indemnização agora a fixar já se encontra atualizada ([7]) e que é apreciável o lapso de tempo entretanto decorrido (acidente ocorrido em 5 de outubro de 2015), aqui tido como fator de ponderação, vista, por outro lado, a idade da lesado (apenas sete anos ao tempo do acidente, tendo, por isso, a vida pela frente) e os reflexos da incapacidade na sua vida – a maior penosidade a que está exposta vai prolongar-se por toda a sua restante vida, previsivelmente por muitas décadas, atento o padrão da atual esperança média de vida (sexo feminino) –, e adotando a bitola da equidade ([8]), não sendo possível proceder a um cálculo aritmético do dano ([9]), parece-nos adequado e conforme aos padrões indemnizatórios jurisprudências presentes, o montante de 12.500,00já objeto, como dito, de atualização.

Apenas em parte procedem, pois, as conclusões da Apelante, com a consequente alteração, nesta parte, da decisão recorrida.

2. - Da indemnização por danos não patrimoniais

Invoca a R./Apelante, quanto a danos não patrimoniais, que o montante indemnizatório deve ser mitigado de € 20.000,00 para € 8.000,00.

Esgrime com o caráter excessivo e arbitrário da indemnização fixada, estabelecendo paralelo com o já citado acórdão do STJ, que fixou, como visto, uma reparação de € 8.000,00, sob ponderação de que o lesado sofreu dores aquando do acidente e da convalescença, com um quantum doloris de grau 4 (em 7 possíveis), repercussão permanente das sequelas nas atividades desportivas e de lazer corresponde ao grau 3 (em 7), tendo padecido de incómodos e de tristeza por força do acidente, das lesões e das sequelas dele decorrentes, quando antes era uma pessoa saudável, alegre e confiante.

No caso destes autos, vem provado que a A., para além de ter sofrido dores aquando do acidente e da convalescença, com um quantum doloris fixável entre o grau 4 e o grau 6, continua ainda a sofrê-las – sente dor em carga no membro inferior esquerdo e na mobilização da coxa femural e sacro-ilíaca esquerda e sente dor quando se coloca de cócoras e quando salta.

É certo que a A. viveu o momento do acidente com grande ansiedade e pânico, mantendo-se sempre consciente enquanto o mesmo decorria, tendo aguardado a chegada dos Bombeiros no interior do veículo em que seguia, presa pela cintura, altura em que se encontrava apavorada e a chorar.

Sentiu grande ansiedade e solidão quando foi transportada pelos Bombeiros, sozinha, até ao hospitalar, vivência que não será alheia – com o demais então experienciado – à circunstância de ter ficado a padecer de transtorno pós-concussional, manifestado através de défice da atenção e da memória, necessitando de apoio psicoterapêutico.

Em consequência do acidente, não pôde ir à escola entre os dias 6 de outubro de 2015 e 15 de janeiro de 2016, carecendo então do auxílio de terceiros para tomar banho, subir e descer escadas, permanecer de pé, caminhar, baixar-se e levantar-se.

Mesmo entre meados de janeiro de 2016 e o início de abril de 2016 continuava a precisar da ajuda de terceiros para subir e descer escadas e para transportar os livros e o material escolar.

Regressada à escola, sentiu dificuldade em acompanhar a matéria lecionada, tendo por então fraco aproveitamento escolar.

Antes do acidente, a A. era uma criança destemida, alegre, irrequieta, bem-humorada, comunicativa, divertida, que gostava de brincar, correr, saltar e conviver com as outras crianças.

Depois do evento danoso, passou a revelar-se uma criança mais triste e isolada, sendo que apresenta um ligeiro afundamento do osso frontal da direita e um muito discreto desvio dos ossos próprios do nariz.

O seu défice funcional temporário total é fixável no período de 104 dias, sendo o dano estético permanente fixável entre o grau 2 e o grau 4 (em 7).

Ora, vista a amplitude de tais danos morais sofridos, tal como resultantes da factualidade provada, dir-se-á que, mais uma vez, tem de operar aqui – especialmente aqui – o juízo de equidade, de molde a encontrar a justa solução do caso, ressarcindo devidamente a lesada.

Como é consabido, a indemnização por danos não patrimoniais deve ser, em termos de quantum, não irrelevante ou simbólica, mas significativa, visando propiciar compensação adequada quanto ao dano sofrido, com fixação equilibrada e ponderada, de acordo com critérios de equidade, direcionados para as circunstâncias do caso, sem esquecer os padrões jurisprudenciais indemnizatórios atualizados.

Devendo o Tribunal de recurso adotar um critério que apenas considere suscetível de revogação, por inadequada, uma solução que, de forma manifesta, exceda certa margem de liberdade decisória do Tribunal a quo, certo é que, a nosso ver, a indemnização arbitrada in casu extravasa, de algum modo, o âmbito de um exercício razoável do juízo de equidade, mormente à luz da prática jurisprudencial atual e das circunstâncias pessoais da vítima.

Porém, os danos aqui a atender, no âmbito não patrimonial, afiguram-se-nos mais relevantes do que os que foram perspetivados no Ac. STJ em que se estriba a Recorrente.

Note-se que a menor aqui A./Apelada continua ainda a sofrer dores (no membro inferior esquerdo e na mobilização da coxa femural e sacro-ilíaca esquerda e quando se coloca de cócoras ou salta), viveu momentos de grande ansiedade, pânico e solidão, atenta até a sua tenra idade ao tempo do acidente e dos tratamentos, padecendo de transtorno pós-concussional, com défice da atenção e da memória, necessitando de apoio psicoterapêutico e interrompendo prolongadamente a sua atividade escolar, com os prejuízos de aprendizagem inerentes, e tendo passado a mostrar-se uma criança mais triste e isolada, a que não será estranho o seu ligeiro afundamento do osso frontal da direita e desvio, embora muito discreto, dos ossos próprios do nariz.

E como alerta Menezes Cordeiro ([10]), com alguma pertinência para o caso, haverá de superar-se – o que vem sendo feito – as “deprimidas cifras obtidas nos tribunais” (no campo indemnizatório), sendo que a “defesa do sistema segurador faz-se combatendo os acidentes e não as indemnizações.” (cfr. p. 901).

Tudo ponderado – à luz da equidade, ferramenta fértil e valiosa para esta tipologia de casos, no intuito de fixação de reparação adequada à dimensão do dano (que não se quer desvirtuada, nem, muito menos, com laivos de arbitrariedade) –, afigura-se-nos adequado o montante de € 12.500,00, também já atualizado.

Donde que, salvo o devido respeito, deva alterar-se o valor fixado a este título, não podendo manter-se a indemnização atribuída, assim procedendo, em parte, a apelação.

                                                 ***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - O valor indemnizatório pelo denominado dano biológico, sendo indeterminado, deve ser fixado equitativamente, nos termos do disposto no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv..

2. - Perante lesada estudante, de sete anos de idade à data do acidente, cujas lesões causaram um défice funcional permanente correspondente a «pelo menos, 1,99 pontos» (numa escala até 100), o qual, embora compatível com o exercício da atividade habitual, implica esforços acrescidos, limitando-a no seu horizonte escolar e, no futuro, profissional e extraprofissional, até ao fim da vida, e diminuindo-a no âmbito do mercado concorrencial de trabalho, quando tiver de o enfrentar, é adequado, em equidade, fixar em € 12.500,00 o montante indemnizatório, já atualizado, para ressarcir aquele dano.

3. - O quantum da indemnização por danos não patrimoniais deve ser, não irrelevante ou simbólico, mas significativo, visando propiciar compensação quanto ao dano sofrido, com fixação equilibrada e ponderada, de acordo com critérios de equidade, tendo em conta os padrões jurisprudenciais atualizados.

4. - Provando-se que a lesada ficou ferida no acidente, pelo que foi transportada a estabelecimento hospitalar, tendo sido submetida a exames e demorados tratamentos e suportado dores,  num quantum doloris fixável entre o grau 4 e o grau 6 (num máximo de 7), dores essas que ainda continua a sofrer, viveu momentos de grande ansiedade, pânico e solidão, atenta até a sua tenra idade, padecendo de transtorno pós-concussional, com défice da atenção e da memória, necessitando de apoio psicoterapêutico e interrompendo prolongadamente a sua atividade escolar, tendo passado a mostrar-se uma criança mais triste e isolada, ficou com ligeiro afundamento do osso frontal da direita e desvio, embora muito discreto, dos ossos próprios do nariz, sendo o dano estético permanente fixável entre os graus 2 e 4 (num máximo de 7), é adequado, em equidade, arbitrar em € 12.500,00 o montante indemnizatório, também já atualizado, para ressarcir tais danos não patrimoniais.

***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na parcial procedência da apelação, em alterar a decisão recorrida, por forma a fixar os seguintes montantes indemnizatórios (já atualizados):
a) Pelo invocado dano biológico, € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros);
b) Pelos danos não patrimoniais, € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros);
c) A que acrescem juros moratórios nos moldes fixados na sentença, a qual em tudo o mais se mantém.

Custas da ação e da apelação por A./Recorrida e R./Apelante, na proporção do respetivo decaimento (dependente de simples cálculo aritmético).

 

Coimbra, 09/02/2021

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas e em teletrabalho.

Vítor Amaral (Relator)

          Luís Cravo

                                      

Fernando Monteiro


([1]) Refere, erroneamente, fazê-lo para o «Tribunal de Relação de LISBOA», tratando-se de um mero lapso – como é manifesto –, aliás, desculpável, aceitando-se o recurso para este TRC, por ser o competente territorialmente.
([2]) Que se deixam transcritas.
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Tais 100 pontos correspondem à capacidade integral do indivíduo, como consta do relatório pericial junto aos autos.
([5]) Proc. 3901/10.4TJNF.G1.S1 (Cons. Fátima Gomes), em www.dgsi.pt.
([6]) Por isso, o dano funcional terá prolongamento mesmo para além do fim da vida laboral, no plano das tarefas diárias de pessoa reformada.
([7]) Atualização operada na sentença quanto a danos patrimoniais futuros e morais, tendo em conta o critério indicado no Ac. de Uniformização de Jurisprudência (do STJ), de 09/05/2002, Proc. 01A1508 (Cons. Garcia Marques), disponível em www.dgsi.pt, que procedeu à seguinte linha de uniformização: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.
([8]) Nas palavras do Ac. STJ, de 04/04/2002, Proc. 02B205 (Cons. Neves Ribeiro), in www.dgsi.pt, “A equidade que atravessa todo o juízo valorativo para o calculo possível de um dano que corresponde, afinal, à situação virtual da diferença entre o antes e o depois da verificação do evento (artigo 562.º) – a equidade, dizíamos – e para que assuma verdadeiramente essa natureza de justiça do caso, na conhecida definição aristotélica, tem de funcionar nos dois sentidos, como é disso afloramento o que diz o artigo 494.º, do Código Civil. Deve tratar-se igual o que é igual; e diferente o que é diferente!”. E como também já explicitado na jurisprudência, citando doutrina autorizada, «“a equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. E funciona em casos muito restritos, algumas vezes para colmatar as incertezas do material probatório; noutras para corrigir as arestas de uma pura subsunção legal, quando encarada em abstracto… A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da jurisdicidade… A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto… não equivale ao arbítrio; é mesmo a sua negação… é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio. Quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se somente encontrar aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal” (Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 2.ª ed., págs. 103/105)» – cfr. Ac. TRL, de 29/06/2006, Proc. 4860/2006-6 (Rel. Carlos Valverde), in www.dgsi.pt.
([9]) Cujo valor indemnizatório, sendo indeterminado, deve ser fixado equitativamente, nos termos do disposto no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv..
([10]) Em Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, ps. 896 a 901.