Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
668/16.6T8ACB-AC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
PRAZO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 01/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - AL - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.120, 121, 123 CIRE
Sumário: I – O prazo de seis meses a que alude o art. 123º, nº 1, do CIRE tem o seu início no momento em que o administrador da insolvência toma conhecimento dos pressupostos do direito de resolução ou no momento em que podia e devia ter tomado esse conhecimento se actuasse com a diligência que lhe era exigível.

II – O conhecimento que releva para efeitos de contagem do referido prazo de caducidade reporta-se aos concretos factos/pressupostos que foram invocados para fundamentar a resolução e não à existência/inexistência de quaisquer outros factos/pressupostos que, em abstracto, pudessem eventualmente ser ponderados para efeitos de resolução do acto.

Decisão Texto Integral:











Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

C (…), Ld.ª, com sede (…) Freguesia do (...), Concelho de (...), veio instaurar a presente acção contra a Massa Insolvente de C (…) & C (…), S.A., com vista à impugnação da resolução – operada pelo Sr. Administrador da Insolvência – do negócio de compra e venda que havia sido celebrado em 29/04/2016 entre a Autora e a Insolvente.

Alegou, na parte que agora releva: que a insolvência foi declarada por sentença proferida em 11/05/2016; que, por carta registada com aviso de recepção, datada de 07/05/2018 – confirmada por notificação judicial avulsa efectuada em 09/05/2018 – o Sr. Administrador declarou resolver o contrato de compra e venda que havia sido celebrado em 29/04/2016, entre a Autora e a Insolvente, referente a uma fracção do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o nº 855; que, à data da resolução, o direito de a ela proceder já havia caducado por ter decorrido o prazo de seis meses a que alude o artigo 123º, b), do CIRE; que o aludido prazo de seis meses começou a correr no momento em que o administrador teve conhecimento do acto e tal ocorreu em 29/04/2016 data em que o acto foi inscrito no registo; que, além do mais, no âmbito de acção de impugnação que anteriormente foi instaurada relativamente à resolução do contrato promessa na sequência do qual veio a ser celebrado o negócio de compra e venda em causa nos autos, o Sr. Administrador tomou efectivo conhecimento do negócio em 08/03/2017 (data em que foi citado para aquela acção onde se alegava que já havia sido celebrada a escritura definitiva que foi junta a esses autos); que, no âmbito dessa acção (a que corresponde o apenso R), o tribunal notificou expressamente a aqui Ré para fazer prova da impugnação da escritura de compra e venda, uma vez que, no artigo 21º da sua contestação – apresentada a 20.04.2017 –, o Senhor AI dizia que iria prontamente proceder à resolução da escritura de compra e venda enunciada na petição e que, não obstante esse facto, o Sr. AI não procedeu a tal resolução no prazo dos 6 meses, apesar de ter pleno conhecimento do acto.

Conclui pedindo que seja julgada procedente a excepção de caducidade.

A Ré contestou e, no que toca à invocada excepção de caducidade, alegou que ela não se verificava, dizendo, em resumo: que o prazo de caducidade só se inicia aquando do conhecimento por parte do AI de todos os pressupostos que podem fundamentar a resolução; que, no caso, o conhecimento de todos os elementos fundamentais mostrou-se dificultado dada a existência de relevantes discrepâncias entre o contrato promessa e o contrato definitivo que implicaram a necessidade de proceder à análise pormenorizada da contabilidade da insolvente e dos diversos documentos arquivados por esta e que não se encontravam na sua posse, bem como de documentos que não se encontravam arquivados mas que foram requeridos a diversas instituições; que o tratamento e análise dessa informação só terminou em Maio de 2018 e que, como tal, foi apenas neste momento que tomou efectivo conhecimento dos fundamentos e conteúdo do negócio.

Com esses fundamentos, conclui pela improcedência da invocada excepção de caducidade.

A Autora respondeu, reafirmando a sua posição inicial.

Foi realizada a audiência prévia no âmbito da qual foi dada às partes a possibilidade de se pronunciarem nos termos do art.º 591º, n.º 1, al. b) do CPC.

Na sequência desse acto, foi proferido despacho saneador onde se decidiu julgar a acção procedente, em face da procedência da excepção de caducidade do direito à resolução em benefício da massa insolvente do contrato de compra e venda da fracção A do prédio urbano descrito na CRP de (...) sob o número 855.

A Ré, Massa Insolvente de C (…)& C (…), S.A., veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

A Autora veio apresentar contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

(…)


/////

II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se caducou (ou não) o direito de resolver o negócio em causa nos autos em benefício da massa insolvente, o que, no presente caso, envolve a questão de saber se o prazo de seis meses a que alude o art. 123º, nº 1, do CIRE tem o seu início no momento em que o administrador da insolvência toma conhecimento da realização do acto a resolver ou se tal prazo apenas se inicia quando o administrador da insolvência toma conhecimento de todos os pressupostos necessários para a existência do direito de resolução.


/////

III.

Dos elementos que constam dos presentes autos e do apenso R resultam os seguintes factos com relevância para a decisão:

1) Por carta registada com aviso de recepção datada de 7 de Maio de 2018, e confirmada por notificação judicial avulsa concretizada a 9/5/2018, ambas dirigidas à Autora, a massa insolvente da C (…) & C (…), S.A., comunicou a resolução extrajudicial da escritura de compra e venda de 29/4/2016 celebrada entre a Autora C (…), Lda., e a Insolvente referente à fracção A do prédio descrito na CRP de (...) com o nº 855.

2) Por via da escritura referida no ponto anterior, a Insolvente, por intermédio de procurador ((…)) declarou vender à aqui Autora – e esta declarou comprar – a fracção designada pela letra “A” do prédio supra descrito, pelo preço de 120.000,00€, mais tendo sido declarado: que o valor de 67.000,00€ era pago nessa data (declarando a primeira outorgante já o ter recebido); que o valor de 53.000,00€ se considerava pago por compensação de igual valor de que a sociedade compradora era credora da devedora; que a compensação agora efectuada substituía a compensação que havia sido acordada no contrato promessa celebrado em 03/03/2016 e que do valor constante das contas correntes anexas ao contrato promessa apenas ficava compensado o valor de 53.000,00€.

3) No dia 03/03/2016, havia sido celebrado entre a Insolvente e a aqui Autora um contrato promessa por via do qual a primeira declarou prometer vender à segunda e esta prometeu comprar  a fracção designada pela letra “A” do prédio supra descrito, pelo preço de 120.000,00€, ali se declarando que o valor de 72.702,74€ seria considerado como pago em compensação de igual montante que a sociedade compradora era credora da vendedora, de acordo com o que resulta das contas correntes entre ambas as sociedades, valor que era tido como sinal e princípio de pagamento e que o remanescente do preço – 47.297,26€ - seria pago no dia da outorga da escritura. Mais se declarou que, se na data da outorga da escritura definitiva a sociedade compradora fosse credora da vendedora de outros montantes já vencidos àquela data, esses valores seriam igualmente compensados com o valor do preço ainda em dívida.

4) Por carta registada com aviso de recepção dirigida à Autora e por esta recebida em 21/10/2016, o Sr. Administrador da Insolvência declarou proceder à resolução do aludido contrato promessa em benefício da massa insolvente com fundamento na sua prejudicialidade para a massa e na existência de má-fé (alegando, em resumo: que a Autora, por força das relações comerciais que manteve com a Insolvente ao longo de vários anos, tinha conhecimento da sua situação de insolvência; que o contrato era prejudicial à massa em virtude de uma parte do preço não ter sido recebida pela Insolvente e ter sido paga mediante compensação com créditos da Autora e que o contrato havia sido celebrado com o intuito de beneficiar a Autora em relação aos demais credores).

5) Em 10/01/2017, a Autora instaurou acção com vista à impugnação da resolução do contrato promessa (acção que corresponde ao apenso R), alegando, designadamente, que o contrato prometido já havia sido celebrado em 29/04/2016 e juntando aos autos a respectiva escritura de compra e venda.

6) Tal petição inicial chegou ao conhecimento da aqui Ré, por via da sua citação efectuada no apenso R a 8/3/2017.

7) Na contestação que apresentou em 20/04/2017, no referido apenso, a Ré alegou nos arts. 19º a 21º: “…segundo o que se infere do documento junto com a petição sob o n.º 2- escritura – os motivos que fundamentaram a resolução do contrato promessa compra e venda mantêm-se (…) aos quais acrescerão outros, dos quais o Administrador da Insolvência (A.I), não tem ainda cabal conhecimento, nomeadamente, no que toca à prejudicialidade para a massa insolvente (…) Razão pela qual o A.I irá, prontamente, PROCEDER À RESOLUÇÃO da escritura de compra e venda, enunciada na petição”.

8) Conforme referido no ponto 1, o Sr. Administrador veio a proceder à resolução do contrato definitivo (compra e venda) por carta com aviso de recepção datada de 7 de Maio de 2018, e confirmada por notificação judicial avulsa concretizada a 9/5/2018 (resolução que veio a ser impugnada pela Autora dando origem aos presentes autos) com fundamento na sua prejudicialidade para a massa e na existência de má-fé (alegando, em resumo: que o acto é prejudicial à massa na medida em que o valor de mercado da fracção era de pelo menos 120.000,00€ e só parte do preço havia sido pago com a entrega à insolvente de 67.000,00€, sendo certo que o restante preço não havia sido pago mas sim abatido ao saldo credor que a aqui Autora detinha sobre a Insolvente proveniente de fornecimentos; que, por essa razão, existiu um prejuízo de 53.000,00€ para a massa insolvente e credores; que a Autora obteve uma vantagem ou preferência relativamente a outros credores porque viu imediatamente paga uma parte do seu crédito sem necessidade de concorrer com os restantes credores da insolvente; que a Autora foi fornecedora da Insolvente durante largos anos e por isso conhecia a sua situação económica e financeira e sabia da situação da insolvência; que o negócio era um plano arquitectado pelo procurador da insolvente e pelos sócios gerentes da Autora no sentido de beneficiar a Autora em relação aos demais credores, razão pela qual fizeram o contrato promessa poucos dias antes da entrada em juízo do processo de insolvência  e celebraram a escritura de compra e venda 43 dias após a entrada desse processo, tendo sido a escritura outorgada por procurador bem sabendo que a Presidente da Administração estava gravemente doente e internada em hospital de saúde mental).

9) O referido apenso R – respeitante à impugnação da resolução efectuada relativamente ao contrato promessa – veio a terminar por decisão proferida em 08/07/2019 que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide (em virtude de já ter sido celebrado o contrato prometido).


/////

IV.

Analisemos, então, o objecto do recurso que, conforme referido supra, consiste apenas em saber se caducou (ou não) o direito de resolver o negócio em causa nos autos em benefício da massa insolvente.

Tal questão remete-nos para o artigo 123º do CIRE em cujo nº 1 se dispõe que a resolução pode ser efectuada pelo administrador da insolvência nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da insolvência.

Importa referir, desde já, que, apesar de a epígrafe da norma em questão aludir a “prescrição”, tem-se entendido que o está aí em causa é um prazo de caducidade[1].

O prazo que está em causa no presente recurso é o prazo de seis meses a que alude a disposição legal supracitada e, no que toca esse prazo, suscitou-se alguma controvérsia a propósito do momento em que se inicia a sua contagem. Na verdade, há quem entenda que o “conhecimento do acto” a que se reporta a citada disposição legal é o mero conhecimento do “acto ou negócio puro e simples” que se pretende resolver e há quem entenda que esse conhecimento – que marca o início do prazo – implica também o conhecimento dos pressupostos necessários para a existência do direito de resolução.

A decisão recorrida adoptou a primeira posição que foi igualmente adoptada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03/12/2015 (proferido no processo n.º 7/13.8TBFZZ), pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12/05/2014 (proferido no processo n.º 3324/10.5TBSTS) e pelos Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 10/04/2014 (proferido no processo n.º 738/12.0TBFAF) e de 17/05/2018 (proferido no processo nº 896/16.4T8VRL-I.G1)[2]. Na perspectiva da Apelante, deve ser adoptada a segunda posição.

Uma leitura literal da referida norma – onde apenas se alude ao “conhecimento do acto” – apontará, efectivamente, para a interpretação acolhida na decisão recorrida. E até se compreenderia que assim fosse, uma vez que, apesar de o prazo de seis meses não ser, em termos objectivos, um prazo muito longo é, apesar de tudo, um prazo dilatado – tendo em conta que estamos no âmbito de um processo urgente ao qual o legislador pretendeu atribuir celeridade – que seria, em abstracto, suficiente para que o administrador, após o conhecimento do acto, procedesse a todas as diligências e averiguações necessárias no sentido de apurar a existência dos demais pressupostos do direito de resolução. Aquele prazo de seis meses destinar-se-ia, portanto, a proceder às averiguações necessárias para apurar a verificação dos pressupostos da resolução, já que poderá não fazer muito sentido que, depois de ter pleno conhecimento de todos esses pressupostos, o administrador da insolvência disponha ainda de um prazo de seis meses para proceder a tal resolução.

A verdade é que não tem sido esse o entendimento adoptado pelo STJ que, de forma unânime (pelo menos assim nos pareceu), tem vindo a entender que o início daquele prazo de seis meses apenas se inicia quando o administrador tem conhecimento de todos os pressupostos do direito de resolução (não bastando, portanto, o mero conhecimento do acto a resolver). Nesse sentido se pronunciaram os seguintes Acórdãos do STJ: Acórdão de 18/10/2016 (processo nº 7/13.8TBFZZ-G.E1.S1); Acórdão de 27/10/2016 (processo n.º 653/13.0TBBGC-F.G1.S1); Acórdão de 27/10/2016 (processo n.º 3158/11.0TJVNF-H.G1.S1); Acórdão de 18/09/2018 (processo n.º 195/14.6TYVNG-E.P1.S1.); Acórdão de 08/01/2019 (processo nº 7313/12.7TBMAI-G.P1.S1) e Acórdão do STJ de 04/07/2019 (processo nº 493/12.3TJCBR-K.P1.S2)[3], ainda que se ressalve a possibilidade de se vir a demonstrar que o administrador da insolvência não actuou com a diligência que lhe era exigível, caso em que se deve contar o prazo desde o momento em que o administrador devia ter conhecido aqueles pressupostos (cfr. designadamente o Acórdão supracitado que foi proferido no processo 653/13.0TBBGC-F.G1.S1).

Não encontramos razões suficientemente válidas para discordar da posição do STJ que se adequa, aliás, à regra geral que está consagrada na lei civil a propósito da caducidade segundo a qual o prazo de caducidade começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido (cfr. art. 329º do CC). Com efeito e conforme resulta do disposto nos arts. 120º e 121º do CIRE, a resolução em benefício da massa insolvente pressupõe a verificação de determinados pressupostos ou circunstâncias que, pelo menos em algumas situações, ultrapassam o acto em questão e não são imediatamente perceptíveis ou cognoscíveis. Nessas circunstâncias, o mero conhecimento do acto poderá não habilitar o administrador da insolvência a proceder à sua resolução; o administrador só está em condições de proceder à resolução a partir do momento em que tenha conhecimento de todos os factos que integram os pressupostos legalmente exigidos para o efeito e, portanto, será a partir desse momento, que o direito pode ser exercido e que, como tal, se deve iniciar a contagem do prazo de caducidade.

No entanto, essa afirmação carece de algumas precisões, sob pena de se deixar na total disponibilidade do administrador a gestão daquele prazo e o poder de definir em que momento se encontra na posse de todos os elementos sem que a parte afectada pela resolução tenha qualquer possibilidade real de alegar e provar a caducidade do direito pelo decurso do aludido prazo de seis meses.

Em primeiro lugar, cabe precisar – em conformidade com a posição adoptada por alguns dos acórdãos supracitados, designadamente o Acórdão de 27/10/2016 proferido no processo n.º 653/13.0TBBGC-F.G1.S1 – que ao efectivo conhecimento dos pressupostos da resolução deve ser equiparada a situação em que o administrador estava em condições de tomar esse conhecimento se actuasse com a diligência que lhe era exigível. Assim, o referido prazo de seis meses terá o seu início no momento em que o administrador da insolvência toma conhecimento dos pressupostos do direito de resolução ou no momento em que podia e devia ter tomado esse conhecimento se actuasse com a diligência que lhe era exigível.

Em segundo lugar, cabe precisar que o conhecimento que releva para efeitos de contagem do referido prazo de caducidade não poderá reportar-se à existência ou inexistência de todos os factos/pressupostos que, em abstracto, pudessem eventualmente ser ponderados para efeitos de resolução; o conhecimento que releva para esse efeito terá que se reportar aos concretos factos/pressupostos que foram invocados para fundamentar a resolução. A entender-se de outro modo, tal significaria que, na prática, o administrador de insolvência apenas ficaria sujeito ao prazo de dois anos a contar da data da insolvência, uma vez que a parte afectada pela resolução nunca teria qualquer possibilidade real de alegar e provar o momento em que o administrador teria tomado conhecimento da inexistência de outros factos que, eventualmente, também pudessem servir de fundamento à resolução. A parte afectada pela resolução apenas terá a possibilidade de alegar e provar o momento em que o administrador tomou conhecimento – ou devia ter tomado – dos factos/fundamentos que foram invocados para proceder à resolução e, portanto, sob pena de perder qualquer utilidade a fixação do referido prazo de seis meses, será o conhecimento – por parte do administrador – desses concretos fundamentos que releva para efeitos de caducidade.

Feitas essas considerações, regressemos ao caso dos autos.

Não há dúvida de que o Sr. Administrador tomou conhecimento da celebração do contrato de compra e venda (cuja resolução está em causa nos autos) em 08/03/2017 aquando da sua citação no âmbito do apenso “R” onde estava em causa a impugnação da resolução que havia sido efectuada relativamente ao contrato-promessa em cumprimento do qual veio a ser celebrado o negócio (compra e venda) que está em causa nestes autos.

E, na nossa perspectiva, foi também nesse momento que tomou conhecimento dos demais pressupostos em que fundamentou a resolução do acto aqui em causa.

Vejamos porquê.

O Sr. Administrador procedeu a tal resolução ao abrigo do disposto no art. 120º do CIRE com fundamento na prejudicialidade do acto e na existência de má-fé por parte da Autora, alegando, em resumo: que o acto é prejudicial à massa na medida em que uma parte do preço não foi pago efectivamente tendo sido abatido ao saldo credor que a aqui Autora detinha sobre a Insolvente proveniente de fornecimentos; que, nessas circunstâncias, existiu um prejuízo de 53.000,00€; que, com o acto em questão, a Autora obteve uma vantagem ou preferência relativamente a outros credores porque viu imediatamente paga uma parte do seu crédito sem necessidade de concorrer com os restantes credores da insolvente; que a Autora actuou de má-fé uma vez que, tendo sido fornecedora da Insolvente durante largos anos, conhecia a sua situação económica e financeira e sabia da situação da insolvência; que o negócio em questão correspondeu a um plano arquitectado pelo procurador da Insolvente e pelos sócios gerentes da Autora no sentido de beneficiar a Autora em relação aos demais credores, razão pela qual celebraram o contrato promessa poucos dias antes da entrada em juízo do processo de insolvência  e celebraram a escritura de compra e venda 43 dias após a entrada desse processo (escritura que foi outorgada por procurador bem sabendo que a Presidente da Administração estava gravemente doente e internada em hospital de saúde de mental).

Tendo sido essa a fundamentação da resolução, facilmente se constata que o prejuízo para a massa que foi invocado se reconduz ao facto de uma parte do preço não ter sido paga mediante a efectiva entrega do valor correspondente, mas sim mediante compensação com créditos que a Autora detinha sobre a Insolvente e que a má-fé se traduz no facto de a Autora ter conhecimento da situação de insolvência por força das relações comerciais que mantinha com a Insolvente há vários anos.

Sucede que esses mesmos factos ou circunstâncias já haviam sido invocados pelo Sr. Administrador para fundamentar a resolução do contrato-promessa a que havia procedido em Outubro de 2016, sendo certo que esse contrato já previa que uma parte do preço fosse paga mediante compensação com créditos da Autora sobre a Insolvente. Nessas circunstâncias, quando tomou conhecimento de que o contrato definitivo (em causa nos presentes autos) já havia sido celebrado e quando tomou conhecimento do exacto conteúdo e teor desse contrato – conhecimento que tomou em 08/03/2017 por via da citação que lhe foi efectuada no apenso R – o Sr. Administrador adquiriu conhecimento imediato de que os pressupostos da resolução que havia invocado relativamente ao contrato promessa também se verificavam relativamente ao contrato definitivo, uma vez que este contrato correspondia, no essencial, ao que havia sido estabelecido no contrato promessa. Tal como acontecia no contrato promessa, o contrato definitivo estabelecia que uma parte do preço seria paga mediante compensação com créditos que a Autora detinha sobre a Insolvente (importando notar, aliás, que o valor estabelecido no contrato definitivo que seria pago mediante compensação de créditos até era inferior àquele que se encontrava estabelecido no contrato promessa). O Sr. Administrador não carecia, portanto, de qualquer outro elemento para concluir – como veio a concluir – que o contrato definitivo também era prejudicial à massa. Qualquer investigação e análise da contabilidade e documentos que fosse necessária para concluir pela prejudicialidade do acto já teria sido efectuada antes de proceder à resolução do contrato promessa uma vez que os fundamentos aí invocados reconduzem-se aos mesmos factos que vieram a servir de fundamento para a resolução do contrato definitivo.

Argumenta a Apelante que o Sr. Administrador teve necessidade de obter, analisar e cruzar informações resultantes da contabilidade (faturas, pagamentos…) com outros documentos (contratos de empreitada, documentação interna quanto ao cumprimento dos contratos e retenções realizadas como garantia…) e, bem assim, interpelar a Administradora da Insolvente e ex-funcionários da insolvente, com vista a perceber do seu conhecimento do negócio e da sua prejudicialidade e da má-fé dos seus intervenientes. Admitimos que sim, até porque, tendo sido estabelecido que uma parte do preço seria paga por compensação com créditos que a Autora detinha sobre a Insolvente, seria necessário averiguar a efectiva existência dos créditos a compensar. Sucede, porém, que essa averiguação já teria sido efectuada uma vez que, conforme dissemos, o Sr. Administrador já havia procedido à resolução do contrato promessa onde essa compensação também estava prevista.

Alude ainda a Apelante ao facto de a escritura ter sido outorgada por pessoa diversa da Administradora da Insolvente, tendo sido celebrada através de procurador – ex-trabalhador da insolvente - em data que a Administradora se encontrava internada desde 22/04/2016 com grave doença do foro psiquiátrico, e ao facto de o procurador que subscreveu a escritura de compra e venda ser arguido em processo crime por factos relacionados com a outorga de escrituras de compra e venda, realizadas no mesmo hiato temporal, consubstanciando tais factos a prática do crime de abuso de confiança. Não vislumbramos, porém, a relevância dessa alegação, uma vez que esses factos não serviram para fundamentar a resolução. A resolução do contrato de compra e venda (em causa nos presentes autos) não se fundamentou em factos diferentes daqueles que já haviam sido invocados para fundamentar a resolução do contrato promessa; os factos que fundamentaram aquela resolução são exactamente os mesmos que já haviam sido invocados na resolução do contrato promessa cujo conteúdo era essencialmente idêntico, impondo-se, por isso, concluir que, quando tomou conhecimento do contrato de compra e venda – o que, como foi referido, aconteceu em 08/03/2017 –  o Sr. Administrador adquiriu também o conhecimento dos pressupostos que veio a invocar para proceder à resolução deste contrato. Isso mesmo foi reconhecido pelo Sr. Administrador na contestação do apenso R – apresentada em 20/04/2017 – onde afirmou que os motivos que fundamentaram a resolução do contrato promessa mantinham-se relativamente ao contrato definitivo, razão pela qual iria, prontamente, proceder à resolução do contrato de compra e venda. E ainda que, à data, tivesse admitido a possibilidade de existirem outros fundamentos que ainda não eram do seu conhecimento, a verdade é que a resolução que veio a efectuar não se baseou em fundamentos novos e diferentes daqueles que, naquela data, já eram do seu conhecimento.

Nessas circunstâncias e sendo certo, conforme referimos, que o conhecimento que releva para efeito de contagem do prazo de caducidade terá que se reportar aos concretos factos/pressupostos que foram invocados para fundamentar a resolução, impõe-se concluir que, à data em que foi efectuada a resolução (Maio de 2018), já havia decorrido o prazo de seis meses a que alude o nº 1 do art. 123º do CIRE, tendo caducado, por isso, o direito de proceder a tal resolução.

Em face do exposto e ainda que com fundamentos não inteiramente coincidentes, confirma-se a decisão recorrida que julgou a acção procedente, em face da procedência da excepção de caducidade do direito à resolução em benefício da massa insolvente do contrato de compra e venda da fracção em causa nos autos.


*****

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – O prazo de seis meses a que alude o art. 123º, nº 1, do CIRE tem o seu início no momento em que o administrador da insolvência toma conhecimento dos pressupostos do direito de resolução ou no momento em que podia e devia ter tomado esse conhecimento se actuasse com a diligência que lhe era exigível.

II – O conhecimento que releva para efeitos de contagem do referido prazo de caducidade reporta-se aos concretos factos/pressupostos que foram invocados para fundamentar a resolução e não à existência/inexistência de quaisquer outros factos/pressupostos que, em abstracto, pudessem eventualmente ser ponderados para efeitos de resolução do acto.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

                              Coimbra, 21/01/2020

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora)

Maria João Areias

Ferreira Lopes

 


[1] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, pág.438 e Acórdão do STJ de 04/07/2019 (processo nº 493/12.3TJCBR-K.P1.S2), disponível em http://www.dgsi.pt.
[2] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Todos disponíveis em http://dgsi.pt.