Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
110/09.9TATCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: AMEAÇA E COACÇÃO
Data do Acordão: 03/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 153º E 154º, DO C. PENAL
Sumário: Após a revisão do C. Penal de 1995, passou a ser claro que no crime de ameaça não se exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a ameaça seja susceptível de a afectar.
O crime de ameaça deixou, pois, de ser um crime de resultado e de dano.
A ameaça «adequada» é aquela que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, independentemente do seu destinatário ficar, ou não, intimidado.

No crime de coacção, exige-se a verificação do resultado para a sua consumação, ou seja, exige-se que a pessoa objecto da acção de coacção tenha efectivamente sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade.
Mas basta-se com o simples início da execução da conduta coagida, sendo suficiente para a consumação, se o objecto da coacção for a prática de uma acção, que o coagido inicie esta acção.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

            1. No processo n.º 110/09.9TATCS, do Tribunal Judicial de Trancoso, recorre o assistente C... do despacho da Mmª Juíza, datado de 27/10/2011, que decidiu NÃO PRONUNCIAR

- o arguido A..., pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º/1 do CP;

- o arguido B..., pela prática, em concurso efectivo, de um crime de coação p. e p. pelo artigo 154º do CP e um crime de dano p. e p. pelo artigo 212º/1 do CP.

Recorda-se que o Ministério Público, por despacho de 31/5/2011, arquivou o inquérito pela prática de tais crimes, tendo o assistente requerido a abertura da fase instrutória [artigo 287º, n.º 1, alínea b) do CPP], a qual vem a culminar na prolação de um despacho de não pronúncia.

            2. O assistente, motivando o seu recurso, apresenta as seguintes CONCLUSÕES (em transcrição):

                «1- Não pode o recorrente conformar-se com o despacho de não pronúncia em relação aos crimes de dano e coacção imputados ao arguido B..., e crime de ameaça em relação ao arguido A..., por considerar que houve uma incorrecta análise da matéria factual provada e igualmente uma incorrecta interpretação das normas legais aplicáveis;

2- O tipo legal do crime de ameaça não exige expressa ou sequer implicitamente que o mal anunciado seja expresso de uma forma verbal presente e tendo em conta o outro elemento típico de adequação do mal anunciado a causar medo ou inquietação, tanto uma forma verbal presente, como uma forma verbal futura á adequada a causar medo.

3- A tónica do mal anunciado futuro e como refere Taipa de Carvalho, é apenas feita para afastar as situações da ocorrência de um mal eminente, ou seja eminência de execução no sentido em que a expressão é tomada para efeitos de tentativa do art. 22º/2 c), (Comentário Conimbricense do Código Penal).

4- O que se pretende em termos jurídicos penais é que não se confunda o crime de ameaça com a tentativa de execução do crime objecto da ameaça.

5- Sempre que alguém dirija a outrem um anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa acção com os actos de execução do mal anunciado, todo o tempo que durar essa inacção e se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é o futuro, em termos de interpretação da expressão em causa.”

6- Verifica-se portanto que desde que não haja iminência de execução referir-se algum prazo ou não para a concretização do mal anunciado é absolutamente irrelevante.

7- A liberdade, tranquilidade e segurança da vítima não são menos afectados pelo facto de o anúncio do mal se poder concretizar a qualquer momento, muito pelo contrário, e desde que essa concretização não se inicie, consuma-se o crime de ameaça, desde que naturalmente existam os outros requisitos exigidos.

8- O que se exige é que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação., e que de acordo com as regras da experiencia comum, possa ser tomada a sério pela vítima.

9- Por outro lado, ainda que mesmo se considere numa concreta situação, que não existe a característica de mal futuro, (nos termos supra referenciados de iminência de execução), esta circunstancia não deve ser algo que beneficie sem mais, o arguido, pois o que normalmente deveria acontecer, nestes casos, seria a condenação pelo crime anuncio do mal, (eventualmente na forma de tentativa).

10- Não nos podemos ainda esquecer que este critério temporal, como refere Taipa de Carvalho, é um dos critérios para distinguir o crime de ameaça, (mal futuro), do crime de coacção, (violência na coacção, no mal imediato), crime este mais grave, e assim quando a ameaça é de mal imediato, (iminência de execução), já há violência, nomeadamente a de coacção.

11- Tanto causou medo e inquietação ao assistente, o facto de o arguido lhe dizer “espera que já te trato da saúde”, como dizer-lhe “espera que vou tratar-te da saúde”, ou espera que hei-de-te tratar da saúde” ou espera que te irei tratar da saúde”, pois a acção sempre seria realizada no futuro, apenas mais próximo ou mais longínquo consoante as respectivas hipóteses e como não houve eminência de execução, o anúncio do mal, sempre seria como foi, futuro.

12- O arguido ao sair de casa, munido do pau e dirigir-se ao assistente com o mesmo no ar para aquele se ir embora, não tentou com ele agredir o assistente, nem houve qualquer acto de execução nesse sentido., quis apenas e conseguiu provocar-lhe medo e inquietação e prejudicar a sua liberdade de determinação (ao querer impedir que o assistente continuasse o trabalho), porque a sua conduta era adequada a tal, ameaçando-o com a prática de crime contra a integridade física.

13- Na verdade a conduta do arguido até poderia eventualmente consubstanciar o cometimento de dois crimes de ameaças reportando-nos aos dois momentos distintos da sua conduta.

14- Mas mesmo que a conduta seja analisada na globalidade dos dois momentos, nada altera o que supra se referiu,

15- O arguido podia ter agredido o assistente, é um facto, e a possibilidade de o mal se poder consumar a qualquer momento só aumentou o grau de afectação da tranquilidade, liberdade, e segurança do assistente.

16- Mas mesmo que assim não se considerasse, o que apenas por mera hipótese académica, se admite, e se considerasse que a ameaça foi de mal imediato, sempre teria que se considerar consubstanciada a violência do crime de coacção.

17- Quanto à existência de dois crimes de ameaças em vez de um ou de um crime de coacção, em vez do crime de ameaça, poderia a Mma Juíza de instrução actuar nos termos do art. 303º do CPP,

18- Pelo exposto, e uma vez que se encontram indiciados todos os restantes pressupostos do crime imputado ao arguido A..., como decorre da fundamentação do despacho recorrido, deveria ter sido o mesmo pronunciado, nos termos expostos, violando assim, o despacho recorrido o art. 153º do C.P.;

*

19- Quanto ao crime de dano imputado ao arguido B..., compulsada a prova produzida, constata-te que todas as testemunhas que depuseram em sede de inquérito, confirmam que, quando o assistente se encontrava a colocar umas pedras para delimitar as extremas do seu prédio, após a GNR ter ido embora, ter surgido de novo o arguido B..., que entretanto se havia retirado, com uma retroescavadora, retirando as pedras que haviam sido colocadas, e entrando pelo meio do pinhal do assistente, atirou-as para lá, rasgando o terreno e destruindo pinheiros, para além do assistente), nomeadamente a testemunha ..., mãe do arguido. (Conforme consta do despacho de arquivamento).

20- O M.P., considerou no seu despacho de arquivamento que “ a deslocação das pedras colocadas pelo ofendido com os consequentes distúrbios sempre consubstanciaria os dois primeiros requisitos (do crime de dano,) destruição e inutilização de coisas alheias.

21- Considerou-se no entanto, naquele despacho de arquivamento que “o arguido apenas actuou no sentido de remover o sobredito obstáculo porque necessitava de aceder à sua propriedade para e na convicção de que o podia fazer por ser titular de um direito real de servidão e que, em consequência, o arguido ao desobstruir a extrema do terreno do ofendido/assistente para puder passar fê-lo na convicção de que a sua conduta era lícita, ou seja, agiu sem dolo, pois actuou na convicção de estar a exercer o seu direito real de servidão.”

22- Aberta a instrução, sem que se realizassem quaisquer posteriores diligencias probatórias que foram indeferidas, conclui a Mma. Juíza de instrução que não existem indícios suficientes que o arguido tenha cometido o crime de dano.

23- Para além de ter considerado que não se apurou o valor do prejuízo, não devendo ser protegidas as bagatelas penais, e ainda, sem mais qualquer fundamentação, que não ficou demonstrado que o arguido actuou com dolo.

24- O despacho recorrido é absolutamente omisso quanto aos indícios já compilados em sede de inquérito, (e que constam do despacho de arquivamento), sobre a destruição da barreira e remoção das respectivas pedras, não se dando tais factos nem como indiciados, nem como não indiciados.

25- Quanto ao facto de o arguido ter entrado com a retroescavadora pelo meio do pinhal, rasgando o terreno e calcando pinheiros novos, a consideração da falta de indícios é em absoluto ao arrepio da prova já existente nos autos.

26- A destruição de uma barreira, com remoção de pedras, invasão de um pinhal, com danificação do terreno e pinheiros novos, não pode de modo algum ser considerado bagatela penal, bastando ter em atenção os exemplos usualmente referidos pela doutrina e jurisprudência de tais bagatelas;

27- Para além de que as condutas que se encontram indiciadas sempre consubstanciariam a tipicidade do crime, ainda que não se tivesse, para já, apurado o valor dos danos;

28- Não foram alegados quaisquer factos demonstrativos de uma situação de exclusão do dolo, nomeadamente de uma situação de necessidade, de legítima defesa, de situação de perigo actual ou iminente;

29- Pelo contrário, todos os factos indiciados, apontam que o arguido quis praticar os factos, consciente da ilicitude da sua conduta, tendo agido com dolo, dolo esse que resulta necessariamente indiciado de tais factos analisados à luz das regras de experiencia comum.

30- O arguido deveria ter sido pronunciado pelo crime de dano, tendo o despacho recorrido violado o disposto nos arts. 14º e 212º do C.P.;

*

31- Existem nos autos indícios mais que suficientes que o arguido B...cometeu o crime de coacção, atravessando o seu veículo à frente do tractor do assistente com o objectivo de esta parar com o trabalho que efectuava, com duas testemunhas presenciais que confirmam na íntegra o depoimento do assistente e ainda prova documental.

32- A conduta do arguido consubstanciou uma intimidação sobre o assistente, exercendo através da sua conduta uma violência psíquica, (pressão anímica exercida sobre a vitima) que anula ainda que parcialmente a sua vontade ou a coloca numa situação de inferioridade que a impede de actuar como quer.

33- A violência exercida pelo arguido não foi sobre coisas, ou seja não foi sobre o tractor do ofendido, pelo que não tinha que haver qualquer intervenção física entre o veículo do arguido e o tractor do assistente, ou “contacto físico”, como é afirmado.

34- Para o cometimento do crime em causa no se exige que o ofendido possa contornar o obstáculo, mostrando-se bastante que a actuação do arguido tenha sido determinante para que aquele no prosseguisse o seu trabalho, como era sua intenção antes de ser constrangido a tal pela conduta do arguido.

35- Não se exigindo que a intimidação seja irresistível, mas apenas que tenha potencialidade causal para compelir a pessoa contra quem se emprega, a praticar, suportar ou omitir uma acção, e que entre a acção de coacção e o comportamento adoptado, haja uma relação de causalidade.

36- Há ainda que ter em conta todo o circunstancialismo concreto da situação, e principalmente as características físicas e mentais da vítima, e no da generalidade das pessoas, dado o carácter individual do bem protegido, a livre determinação de decisão e acção.

37- Dos factos indiciados analisados mediante as circunstâncias concretas resulta que o arguido ao atravessar (e não parar ou estacionar) o veículo à frente do tractor do assistente, fê-lo com intenção de o constranger e intimidar a parar com o trabalho, o que aconteceu, intimidou o ofendido, usando assim de violência, pressão moral, forçando-o a parar contra a sua vontade e constrangendo-o a uma omissão, sendo adequada ao resultado obtido e pretendido, bem como o mesmo tinha perfeita consciência de que o era.

38- O arguido deveria, assim, ser pronunciado pelo crime de coacção p. e p. pelo art. 154. do C.P., pelo que foi violada pelo despacho recorrido tal disposição legal.

*

Nestes termos, e nos mais de direito aplicável, que V.Exas doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência revogar-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que pronuncie os arguidos pelos crimes que lhes vem imputados».

            3. O Ministério Público da 1ª instância RESPONDEU, opinando pela improcedência do recurso.

Defende o MP o seguinte:

«1. Andou bem o Tribunal de Instrução ao não pronunciar os arguidos A... e B..., atentos os elementos de prova constantes dos autos.

2. Quanto ao crime de ameaça, resulta indiciado nos autos que o arguido A... anunciou que ia buscar uma arma “para tratar da saúde/do assunto”, para logo depois surgir com um pau, com o qual tentou agredir o assistente. Tais actos praticados pelo arguido foram consecutivos, estando em causa um único acto, uma única resolução criminosa.

3. Consequentemente, tais expressões, porque seguidas menos de dez minutos depois, pelas agressões levadas a cabo pelo arguido A..., não tiveram a necessária repercussão no futuro, para que pudessem considerar-se limitadoras da liberdade do ofendido, já que foi praticado, de imediato, o acto propalado (ainda que sobre a forma de tentativa de agressões físicas com um pau), motivo pelo qual não se mostra preenchido o tipo legal de crime de ameaça.

4. Nenhuma prova foi compilada, em inquérito ou instrução, de que o arguido A..., ao tentar agredir o assistente com o pau, pretendesse fazê-lo sair daquele local e não apenas bater-lhe, pelo que inexistem indícios de se ter verificado qualquer conduta que visasse constranger o assistente a tal acção — e não podemos, da intenção de agredir, retirar tal desígnio — razão pela qual não se mostra igualmente preenchido o tipo legal do crime de coacção.

5. Quanto ao crime de dano, consubstanciado na destruição dos pinheiros, seguimos de perto a argumentação tecida pelo Tribunal “a quo” no que diz respeito à falta de indiciação suficiente da prática deste ilícito, já que a única testemunha que disse que o arguido calcou os pinheiros foi a filha do assistente, não tendo as demais testemunhas ouvidas prestado declarações que permitissem sustentar a tese do assistente.

6. Mas ainda que assim não fosse, jamais se poderia considerar que “calcar”, como refere a testemunha ..., seja sinónimo de destruição ou inutilização, tal como impõe o elemento objectivo do tipo. Não se mostra também suficientemente indiciada a quantidade de pinheiros que teria sido afectada ou o valor dos prejuízos verificados (e se os mesmos afectam o limiar mínimo da dignidade penal) — o que inviabiliza a indiciação suficiente da prática do crime de dano.

7. Quanto à remoção das pedras, no âmbito da queixa efectuada e, bem assim, de toda a prova compilada nestes autos, resulta que o assistente se encontrava a vedar com pedras a sua propriedade em dois locais de acesso (entradas) que, segundo ele, se encontrava a ser utilizadas para aceder à sua propriedade e não a construir um muro de divisão, nas estremas dos prédios de arguidos e assistente.

8. A alteração da localização espacial dos pedregulhos não pode, de per si, consubstanciar a prática de qualquer dano, já que não afecta a integridade física da coisa.

9. Existe um conflito entre as partes relativo ao direito de passagem pelo caminho onde foram colocadas aquelas pedras, que os arguidos reivindicam e que o assistente não reconhece, pondo-se em causa o correcto cumprimento do acordado no âmbito de tal processo judicial.

10. Neste processo não foi possível apurar se existe ou não o direito invocado pelos arguidos, até porque este processo não se destina a definir limites de prédios, caminhos ou servidões de passagem, mas é neste contexto que ocorreram os factos denunciados nos presentes autos.

11. Na hipótese desse direito existir, a acção do arguido B...inserir-se-ia na acção directa, prevista no art. 336.° do C. Civil, pois este arguido terá agido na convicção de que as pedras em causa estavam a prejudicar a passagem por aquele local e o acesso aos imóveis do seu pai.

12. E mesmo que se viesse a concluir, em acção cível a propor, que deste modo não era, sempre o arguido teria actuado erro em relação a urna causa de exclusão da ilicitude, ou seja no tocante aos pressupostos da acção directa, por ter sido na convicção de ser legítima a sua actuação, o que afasta o dolo e, obviamente, o preenchimento do tipo subjectivo do crime de dano.

13. Quanto ao crime de coacção, constam dos autos duas versões absolutamente contraditórias: a do assistente, da sua mulher e filha, que afirmam a ocorrência dos factos, e a da testemunha Maria Alice, mãe do arguido, que declara que os factos nunca se verificaram: os militares da GNR que se deslocaram ao local, não confirmam a versão do assistente, nem os elementos documentais, mormente a fotografia junta a fls. 7, demonstra a impossibilidade do assistente continuar a trabalhar - perante duas versões absolutamente contraditórias não pode o Tribunal concluir pela pronúncia e dar mais sustentabilidade à tese do assistente.

14. Acresce que a circunstância do carro ler sido parado à frente do tractor, jamais seria susceptível de integrar a prática do crime de coacção, pois não existe violência, nem sobre o objecto tractor nem psicológica.

15. Ponderando o critério objectivo individual de qualquer homem médio com as
características do assistente e colocado na mesma situação, não vemos como o facto de se estacionar o carro à frente do seu tractor, quando se encontrava a trabalhar, o afecte psicologicamente, ao ponto de o impedir efectivamente de o fazer, até porque, conforme se escreve na decisão recorrida, o assistente  poderia contornar aquele obstáculo, por uma simples manobra daquele tractor».

4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, seguindo, no essencial, a argumentação do Ministério Público de 1ª instância.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (Cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, as duas questões a resolver consistem no seguinte:

1ª- Há indícios de que o arguido A... praticou o crime de ameaça ou o crime de coacção?

2º- Há indícios de que o arguido B...praticou os crimes de dano e de coacção?

            2. O despacho recorrido tem o seguinte teor, sendo da nossa autoria a sistematização do mesmo e a divisão pelas suas partes componentes:
«I. Relatório
1.1. A acusação e o arquivamento

A fls. 105 e ss, foi deduzida pelo assistente C... acusação particular contra o arguido B..., imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º do C.P.

Tal acusação não foi acompanhada pelo Ministério Público, por falta de indícios suficientes da existência do referido crime.

Por despacho de fls. 111 e ss o Ministério Público deduziu ainda despacho de arquivamento pela prática do crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º1 do C.P. imputado ao arguido A... e pela prática de um crime de dano p. e p. pelo artigo 212.º, n.º1 do C.P. imputado ao arguido B....

1.2. O requerimento de abertura de instrução

Não se conformando com o despacho de arquivamento, a fls. 128 e ss, veio o assistente requerer a abertura de instrução, sustentando que o Ministério Público devia ter deduzido acusação contra o arguido A... pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º1 do C.P. e contra o arguido B... pela prática de um crime de dano p. e p. pelo artigo 212.º, n.º1 do C.P. e ainda pela prática de um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154.º do C.P..


1.3. Diligências instrutórias e debate instrutório

Aberta a instrução (fls. 155 e 156), foram indeferidas as diligências de prova requeridas pelo assistente, e foi designado data para debate instrutório, o qual decorreu nos termos e com observância do formalismo legal, conforme se alcança da respectiva acta, tudo em conformidade com o disposto nos artigos 298º, 301º e 302º, todos do Código de Processo Penal.

Cumpre agora, nos termos do artigo 308º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.

II. Saneamento

O Tribunal é competente.

Não há quaisquer nulidades, ilegitimidades, outras excepções, questões prévias ou incidentais que obstem a uma decisão de mérito.

III. Fundamentação 
3.1. Finalidades da Instrução
De acordo com o artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a instrução tem como escopo a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Configura-se, assim, como uma fase, ou expediente processual, sempre optativa, (cfr. n.º 2 do mesmo artigo), destinada a questionar o despacho de arquivamento ou a acusação deduzida.
Para tal é necessária uma apreciação crítica de toda a prova recolhida no inquérito e na instrução, terminando por uma decisão, sobre esta, no sentido da suficiência da mesma - verificação, ou não, dos indícios suficientes, consagrado no n.º 1 do artigo 308.º do Código de Processo Penal - , para envio do processo à fase de julgamento.
Porém, para a pronúncia exige-se prova indiciária de todo diferenciada daquela que se exige na fase de julgamento.
 Com efeito, em sede de instrução, ressume aqui, de um modo particular, o conjunto de indícios dos quais possa resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança, como decorre do teor do art. 283.º, n.º 2 do citado diploma legal.
Indícios suficientes são referências factuais, sinais objectivos de suspeita, indicações de vestígios, enfim, elementos de facto trazidos pelos meios legais probatórios ao processo, que conjugados e relacionados criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir à condenação do arguido pelo crime que lhe é atribuído, (cfr. Acórdão da Relação de Évora, 28-01-97, BMJ 463, página 661).

Assim, será pronunciado o arguido se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação àquele sujeito processual de uma pena ou medida de segurança, ou seja, verificarem-se factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime e a imputação desses factos ao agente. Caso contrário, deve o juiz proferir despacho de não pronúncia.

Destarte, para que seja proferido despacho de pronúncia, embora não se exija uma certeza da existência da infracção é necessário, contudo, que os factos indiciários sejam suficientes e bastantes por forma a que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpabilidade do arguido, impondo, assim, um juízo de probabilidade do que lhe é imputado, (neste sentido cfr. Ac. da Relação de Coimbra de 31/3/93, CJ, ano XVIII, tomo II, pág. 65, e Ac. da Relação do Porto de 12/5/04 in www.dgsi.pt).

Em suma, na fase da instrução, porque não se tem por objectivo alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas tão só um juízo sobre a existência de indícios, de que um crime foi cometido por determinado arguido, as provas recolhidas não constituem pressuposto da decisão de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo, até à fase do julgamento, (Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, III, pág. 178).
Estabelecidas as directrizes orientadoras na prolação de uma decisão instrutória, cumpre então aferir da existência de prova indiciária subsumível aos tipos de crime de crime imputados aos arguidos.

3.2. Do crime de ameaça imputado ao arguido A...
Após despacho de arquivamento pelo Ministério Público, veio o assistente alegar que o arguido A..., no dia 22 de Julho de 2009, com intuito de o assistente parar com a delimitação do seu terreno, sito à … , Aguiar da Beira, o que aquele andava a fazer com a colocação de umas pedras, e após dizer-lhe que já lhe tratava da saúde e que ia buscar uma arma, entrou em casa, (prédio esse contíguo ao do assistente) e saiu munido de um bastão dirigindo-se aquele com o mesmo no ar, e intimidando-o a sair.
Que existem indícios suficientes da prática de tal crime, porquanto ao contrário do que o Ministério Público alega no seu despacho, os agentes da GNR só chegaram ao local depois de tal facto, motivo pelo qual não o podiam confirmar, mas que todas as testemunhas que estavam no local, nomeadamente a esposa e filha do assistente confirmam tal expressão.
Ora, compulsada toda a prova reunida em sede de inquérito verificamos que pese embora a testemunha ..., (esposa do arguido A...) não tenha corroborado tal versão, negando que o seu marido tenha proferido tais expressões ou que tenha estado com um bastão na mão, o certo é que as testemunhas ..., (esposa do assistente) e ..., (filha do assistente), confirmaram tais factos, o que de resto, é, pelo menos em parte, corroborado pela fotografia junta a fls. 6 onde aparece o arguido com um pau na mão.
Já no que diz respeito aos agentes da GNR verifica-se que os mesmos só chegaram ao local, depois destes factos, motivo pelo qual é normal não os terem presenciado.
Isto posto, resta então apurar se efectivamente o arguido deve ser pronunciado pela prática do crime de ameaça.
Comete este crime “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a sua vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Por seu turno quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias no caso no artigo 153.º.

O normativo contido no art. 153.º do CP abre o capítulo IV referente a crimes contra a liberdade das pessoas, sendo hoje concebido como um tipo em que se exige, para a sua consumação, tão só que a ameaça seja de forma adequada a provocar no ofendido esse mesmo medo ou inquietação, ao contrário do CP82 em que era concebido como um crime de resultado, uma vez que para a sua consumação era necessário que se produzisse no ofendido, receio, medo, inquietação ou prejuízo na liberdade de determinação.

Também neste sentido estatuiu o Acórdão do STJ de 2 de Maio de 2002 (em SASTS, 61/67.), segundo o qual, “na actual versão do art. 153.º do Código Penal, o crime de ameaça configura-se, não como um crime de resultado e de dano, mas como um crime de mera acção e de perigo. Deve considerar-se existente sempre que a ameaça com a prática de algum dos crimes referenciados na previsão da norma seja susceptível, segundo a experiência comum, de ser tomada a sério pelo destinatário da mesma, atendendo aos termos da actuação do agente e às circunstâncias do visado, conhecidas daquele, independentemente de o destinatário da ameaça ficar ou não com medo ou inquietação ou prejudicado na sua liberdade de determinação”.

Refere Américo Taipa de Carvalho, (in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 342) que, “há na verdade, uma conexão íntima entre a paz individual e a liberdade de decisão e de acção. Por isto, as expressões “provocar-lhe medo ou inquietação” e “prejudicar a sua liberdade de determinação” não se referem a bens jurídicos autónomos entre si (paz individual e liberdade de determinação), mas ao bem jurídico liberdade pessoal, que vê na paz individual uma condição da sua realização.”.

O mencionado ilícito criminal pode ser cometido por qualquer pessoa, na medida em que o tipo legal não exige qualquer qualificação especial ao sujeito activo.

Por outro lado, trata-se de um crime de perigo concreto, (neste sentido, entre outros, v. os Acs. da RE de 24/04/2001, in CJ, Tomo II, pág. 270 e RC de 16/03/2000, in CJ, Tomo II, pág. 45), na medida em que, para a sua consumação, não se exige a ocorrência de dano, mas também não se basta com a simples ameaça, exigindo-se que, em concreto, a ameaça seja adequada a provocar no ofendido medo ou inquietação.

“O critério para ajuizar da adequação da ameaça para provocar medo ou inquietação ou para prejudicar a liberdade de determinação, deverá ser objectivo e individual: - objectivo, no sentido de que a ameaça deve considerar-se adequada, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida, bem como a personalidade do agente e a susceptibilidade de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa e – individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada”, (Ac. da RL de 09/02/2000, in CJ, Tomo I, pág. 147).

Deste modo, o tipo objectivo é constituído pela prática de actos que configurem uma ameaça.

São três as características essenciais do conceito de ameaça: um mal, de natureza pessoal ou patrimonial, futuro e cuja ocorrência esteja dependente da vontade do agente.

Ora, o mal com que a vítima é ameaçada tem de constituir a prática de um crime de entre aqueles que o tipo legal enumera, ou seja, um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.

A pessoa ameaçada não tem de ser, necessariamente, a que viria, eventualmente, a ser o objecto dessa mesma ameaça, muito embora se considere que tenha de existir uma relação de proximidade entre ambas, porque, de contrário, a ameaça poderá não ser adequada a provocar na vítima medo ou inquietação que prejudique a sua liberdade de determinação.

É ainda essencial que a vítima tenha conhecimento da ameaça, muito embora os meios pelos quais tome conhecimento dessa mesma ameaça possam ser os mais diversos, relevando apenas que aquela chegue ao conhecimento do seu destinatário, ainda que o agente não tenha a intenção de a concretizar.

A ameaça pode, assim, ser praticada por qualquer forma – oral, escrita, gestual –, e para o seu preenchimento, tem de configurar, em si mesma, um facto ilícito típico, que tem de chegar ao conhecimento pessoal do visado ou vítima (quem ameaçar outra pessoa).

Por ultimo, o mal tem de ser futuro, ou seja não iminente.

Neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 16.04.2008, proc. n.º 0717222 , e de 28.11.2007, proc. n.º 0712156, todos em www.dgsi.pt, onde se afirma que no crime de ameaça o mal anunciado tem de ser futuro, não estando preenchido o crime se o mal anunciado é iminente.

            É esta característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que serve de critério para distinguir a acção como crime de ameaça da tentativa de execução do respectivo acto violento.

Tal como é afirmado no Acórdão da Relação do Porto de 22.11.2006, proc. n.º 0614091, em www.dgsi.pt, “haverá crime de ameaça quando alguém diz: “quando te apanhar (momento futuro), vou dar-te uns socos” (anúncio de um mal para a integridade física). Que se distingue do acto intimidatório de execução imediata de ofensa à integridade física quando alguém diz: “ou sais, ou levas já um soco”. Na primeira hipótese, ocorre o anúncio de um mal futuro, limitador da liberdade individual da pessoa ameaçada. Na segunda hipótese ocorre o anúncio de um mal actual, contra a ofensa à integridade física, que começa e acaba ali: ou porque é executado de imediato, integrando o crime de ofensa à integridade física, ou porque o agente ameaçador desiste de o executar, sem que o mal anunciado se projecte na liberdade de decisão e de acção futura da pessoa visada”.

Feitas estas considerações, consideramos que no caso em apreço, a actuação do arguido não configura uma ameaça futura, não configura um anúncio de um mal a praticar no futuro, noutro momento posterior.

Com efeito, após dizer ao assistente que lhe tratava da saúde e que ia buscar uma arma, o arguido entrou em casa, saiu munido de um pau e dirigiu-se ao assistente com o mesmo no ar dizendo para aquele ir embora.

Ou seja, a existir ameaça, esta esgotou-se naquele momento, pois o arguido proferiu um mal iminente, que podia executar no momento, já que tinha um pau consigo.

 Estamos perante uma situação de recorte de vida que se aproxima da tentativa de ofensa, pois naquele contexto, em termos de juízo de causalidade adequada, o arguido, podia agredir/ofender a assistente.

Não o fez, pelo que ficamos pelo acto intimidatório de execução imediata de ofensa à integridade física.

Pelo exposto, e uma vez que a actuação do arguido no caso em apreço configura uma ameaça actual, que se dirigia ao momento presente em que foi proferida, e não o anúncio de um mal a praticar no futuro, noutro momento posterior, não se encontram preenchidos todos os elementos objectivos da prática do crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º do Código Penal, pelo que se impõe a não pronuncia do arguido A... pela prática deste crime.

             3.3. Do crime de dano imputado ao arguido B...
Veio também o assistente alegar que o arguido B..., no dia 22 de Julho de 2009, cerca das 10 h, no prédio do assistente, sito à …, Aguiar da Beira, prédio esse confinante com o do seu pai, quando aquele se encontrava a colocar pedras para delimitar as extremas do seu prédio, num primeiro momento atravessa o seu veículo automóvel ligeiro de mercadorias matricula ... à frente do tractor do assistente (que este estava a utilizar para colocar as pedras) e impede-o de continuar a trabalhar.
E, posteriormente, já após a GNR ter ido embora, o arguido B...que entretanto se havia retirado, voltou com uma rectroescavadora, retirando as pedras que tinham sido colocadas, entrando pelo meio do pinhal, atirando-os para lá, rasgando o terreno e destruindo pinheiros novos.
Que existem indícios suficientes da prática de tal crime, porquanto mesmo que se considerasse ter agido o arguido sem dolo quando retirou as pedras que delimitavam as extremas, o facto de ter entrado no terreno do assistente e ter destruído pinheiros e danificado o terreno do assistente, é crime de dano.
            Parece-nos pois que o assistente divide esta conduta em dois crimes:
            - o crime de coacção relativamente à conduta do arguido ter colocado o seu veículo à frente do tractor do assistente, impedindo-o de continuar a trabalhar;
            - o crime de dano relativamente à conduta do arguido ter retirado as pedras, entrado no meio do pinhal, rasgando-o, ao mesmo tempo que destruía pinheiros novos.
Ora, compulsada toda a prova produzida em inquérito verifica-se que não existem indícios suficientes da prática de tal crime pelo arguido.
Senão vejamos.
A testemunha ... (mãe do arguido) não confirma esses factos. Pelo contrário, afirma que o seu filho parou o seu veículo no caminho público, não tendo atravessado à frente do tractor, (cfr. fls. 25).
 A testemunha ..., (esposa do denunciante) em momento algum do seu depoimento prestado a fls. 27, refere destruição de pinheiros.
Apenas a testemunha ..., (filha do denunciante) é que refere que o arguido “entrou pelo pinhal calcando vários pinheiros, (cfr. fls, 29).
Ora, cremos que os indícios recolhidos não permitem afirmar que o arguido praticou o crime de dano.
Na verdade, comete este crime “quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia".
O bem jurídico protegido é o direito de propriedade, de gozo e fruição de coisas próprias.
Quanto aos elementos objectivos deste tipo de ilícito há que tomar em consideração os conceitos de destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, pertencente a outrem que não o agente do crime.
Exige-se, assim, que a coisa alheia resulte inoperacional por factor exterior à mesma que em nada contende com ela ou com o seu funcionamento, obstando a que o dono tendo a coisa em seu poder e à sua disposição, em condições de funcionar, possa, por razões exteriores, aproveitar as suas potencialidades.
Assim, a acção danosa há-de ser exercida sobre a coisa danificada, atingindo-a na sua substância, seja, destruindo-a, causando-lhe estragos ou desfigurando-a ou alterando-a por forma a torná-la inoperacional, não utilizável.
O tipo subjectivo é constituído pela intenção e consciência de se estar a causar um dano nos objectos da ofendida.
Ora, in casu, não existem indícios de que o arguido B...terá destruído ou inutilizado os pinheiros do assistente.
Na verdade, há apenas uma única testemunha que refere que o arguido calcou os pinheiros, o que é infirmado pelas restantes testemunhas inquiridas, (inclusive pela pela própria esposa do denunciante que não refere tal conduta do arguido).
É assim curioso que o assistente defenda que a esposa/mãe dos arguidos tenha um natural interesse na sua defesa, mas já nada diz quanto ao também natural interesse na causa e na acusação/pronuncia por parte da sua própria filha.
Mas mesmo que se entendesse – o que não se verifica, mas por mera cautela de raciocínio se cogita - que, efectivamente, o arguido calcou os pinheiros, não ficou demonstrado que tal conduta danificou/inutilizou ou destruiu os pinheiros novos.
Com efeito, as fotografias juntas aos autos não mostram nenhum pinheiro destruído e o próprio assistente não alega quantos, nem o valor do prejuízo causado, pelo que, não sendo quantificável tal “danificação”, sempre seria imposto o despacho de arquivamento, e subsequentemente, de não pronuncia por a chamada bagatela penal, que não merece a tutela do direito penal que só intervém em ultima rácio.
Por último, também não ficou demonstrado, com a suficiência e certeza que se impunha para sustentar uma acusação/pronuncia, que o arguido actuou com dolo, pelo que não se lhe pode imputar a prática de crime.
De acordo com artigo 1º, alínea a), do Código de Processo Penal, entende-se como crime “ o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança”.
Assim, quando muito, a tutela dos interesses do assistente, situa-se apenas na esfera do direito civil, a cujos meios terá de recorrer para fazer valer eventuais direitos, caso se mostre necessário.
Pelo exposto, impõe-se a não pronúncia do arguido B... pela prática deste crime de dano.

3.4. Do crime de coacção imputado ao arguido B...
Finalmente, alega também o assistente que o arguido B..., no dia 22 de Julho de 2009, cerca das 10 h, no prédio do assistente, sito à … , Aguiar da Beira, prédio esse confinante com o do seu pai, quando aquele se encontrava a colocar pedras para delimitar as extremas do seu prédio, num primeiro momento atravessa o seu veículo automóvel ligeiro de mercadorias matricula ... à frente do tractor do assistente (que este estava a utilizar para colocar as pedras) e impede-o de continuar a trabalhar.

 No seu entender, tal conduta integra a prática do crime de coacção, p. e p. pelo artigo154º nsº1 e 2 do Código Penal.

 Reza assim aquele normativo:

«1. Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2. A tentativa é punível.”

Da leitura de tal preceito, logo se alcança que o que se pretende proteger com tal normativo é o direito individual de liberdade de acção, de resto constitucionalmente consagrado.

Veja-se o Acórdão RE, de 96.01.30, CJ (A.P.C.), 1996, I, pág. 285, onde se lê que «I - No crime de coacção o interesse protegido é a livre determinação da vontade e da livre expressão da mesma, por parte do ofendido, sendo que a violência em que se consubstancia tanto pode ser física como moral (ou intimidação). II - A inidoneidade do meio ou a carência de objecto (salvo quando manifestas) não constituem obstáculo à incriminação.»

Veja-se, ainda, o Acórdão do S.T.J., de 17-4-1990 (p. 41 610), B.M.J., 396, 222, onde se lê que «I - Pressuposto do crime de coacção simples ou agravada (artigos 156º e 157º do Código Penal) é a perda da liberdade de determinação, o constrangimento em consequência de violências ilegítimas físicas ou morais levando o sujeito a praticar um acto que não deseja ou a não fazer algo que se deseja fazer, ou a ter de suportar, contra vontade uma actividade alheia afectando a livre determinação do indivíduo, protegida constitucionalmente através da inviolabilidade da integridade moral e física de cada um - artigo 24º, nº 1 da Constituição da República. II - O crime de coacção consuma-se no momento em que alguém é violentado a fazer, a omitir ou a suportar o que não quer relevando a permanência do constrangimento não para a consumação mas para a determinação do ilícito.»

A coacção é, pois, a imposição a alguém de uma conduta contra a sua vontade.

Consubstancia-se, como diz a lei, no constrangimento ilegal de outrem por determinado meio e com vista a determinado fim.

Sendo que, constranger é obrigar alguém a assumir uma conduta que não depende da sua vontade, ou seja, é violar a liberdade de autodeterminação.

E a violência constitui o acto de força, físico ou psíquico, que leva alguém a actuar de determinada maneira.

No entanto, como aferir se o acto é ou não susceptível de desencadear o efeito pretendido no ameaçado?

Refere Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricence do Código Penal, parte especial, tomo I, pag.358 que “o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objectivo individual: objectivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual, uma vez que se tem de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente as sub-capacidades (...) do ameaçado(...)”.

O mesmo autor, refere igualmente (pag.359) que “a consumação do crime de coacção basta-se com o simples início da execução da conduta coagida. Se o objecto da coacção foi a prática de uma acção, a coacção consuma-se quando o coagido iniciar esta acção. Se o objecto da coacção for a omissão ou a tolerância de uma determinada acção, a coacção consuma-se no momento em que o coagido é, por causa da violência ou da ameaça, impedido de agir ou reagir”.

 Fazendo a ponte entre os factos, o que é que se constata é que não há, sequer, indícios de que o arguido tenha colocado o seu veículo em frente do tractor do assistente, impedindo-o de continuar a trabalhar.

Com efeito, a testemunha ...diz que o arguido atravessou o seu veículo no caminho público e não à frente do tractor.

Apenas as testemunhas ... e ...é que confirmam tal versão, mas é como já se referiu, estas testemunhas tem um natural interesse na causa já que são esposa e filha do assistente.

Temos, assim, que são como que “anuladas” ambas as versões apresentadas pelo assistente e arguido, pelo que teremos que nos socorrer de testemunhas imparciais, que são os agentes da GNR que chegaram ao local, e que não confirmam a versão do assistente, (cfr. fls. 73 e 100).

De resto, da própria fotografia junta a fls. 7, não demonstra a impossibilidade de o assistente continuar a trabalhar, por exemplo, contornando os eventuais obstáculos que surgissem.

            Resulta do exposto que não existem indícios da prática do crime de coacção.

            De qualquer forma, sempre se chegaria à mesma conclusão, pela própria definição do crime em si. Ou seja, a violência, pressuposta pelo crime de coacção, pode recair sobre coisas, mas tem de haver uma intervenção física sobre elas, um contacto, como por exemplo, furar os pneus do automóvel para impedir que o seu proprietário possa prosseguir viagem, danificar o telhado da casa para forçar o seu inquilino a desocupá-la, (cfr. Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo I, pag.355).

            Queremos com isto dizer que o mero estacionar/parar do veículo à frente de um outro, sem haver qualquer contacto físico, e podendo este seguir por outro caminho, não integra a prática de qualquer crime.

Pelo exposto, impõe-se a não pronúncia do arguido B.... pela prática deste crime de coacção.
*
IV. Decisão
Assim, tendo em conta o acima exposto e atento o disposto no artigo 308.º do Código de Processo Penal, decido:
Não pronunciar os arguidos:
a) A..., pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º1 do C.P.;
b) B... pela prática, em concurso efectivo, de um crime de coacção p. e p. pelo artigo 154.º do C.P. e um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º1 do mesmo diploma legal.
            Custas pelo assistente que se fixam em 3 UC´s, (artigo 8.º, n.º 2 do RCP).
Notifique.
                                                                       *
Uma vez que foi deduzida acusação particular pela prática de um crime de difamação, os autos prosseguirão para julgamento, pelo que, oportunamente, remeta os autos à distribuição, como processo comum, com intervenção do Tribunal Singular».

           

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. O recurso do assistente reporta-se à apreciação da existência dos indícios suficientes para a pronúncia dos arguidos

· A..., pelos crimes de ameaça/coacção

· B..., pelos crimes de dano e coacção,

importando a este Tribunal apreciar e apurar se do inquérito e da instrução resultam indiciados factos que possam conduzir àquela pronúncia.

Para a JIC e para o Ministério Público não há indícios de crimes (não esqueçamos que a posição do MP neste processo é coerente do princípio ao fim, na medida em que tem sustentado o primitivo despacho de arquivamento lavrado nos autos).

Para o assistente existem indícios de crimes.

3.2. Analisemos, à partida, a questão dos «indícios suficientes».

Já o sabemos - a fase da instrução, em processo penal, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não uma causa a julgamento - art. 286º, n.º1 do CPP -, no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação.

A pronúncia só deve ter lugar quando tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente - artigos 283º e 308º, n.º 1 do CPP.

Já na decisão instrutória de não pronúncia, o juiz decide que os autos não estão em condições de prosseguir para a fase de julgamento, por não se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança criminais.

Adianta o art. 308º, n.º 1 do CPP:

“Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Por seu lado, o artigo 283º, n.º2 do mesmo diploma - aplicável por força do disposto no n.º 2 do art. 308º - estipula que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.

Ora, o que se entende, nesta sede, por “indícios suficientes”?

Tem-se tal entendido como a verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar - com um juízo de certeza e não de mera probabilidade - os elementos constitutivos da infracção por que os agentes virão a responder – Acórdão do STJ de 10/12/1992 (pr. n.º 427747, consultado em http://www.dgsi.pt).

O Professor Figueiredo Dias doutrina que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que absolvição. (…) (…) na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação” (Direito Processual Penal, pág. 133-134).

Indícios, no sentido da expressão contida no artigo 308º do CPP, são, assim, vestígios, presunções, suspeitas, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e que o responsável pela sua prática é o arguido, não sendo necessário para a pronúncia uma certeza da existência da infracção, juízo que se guarda como imprescindível para a convicção do juiz do julgamento – basta-se a lei e a doutrina dominante com um grau de suficiência e quantidade de indícios, de forma a que, todos relacionados e conjugados entre si, constituam um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é criminalmente imputado.

De facto, para a pronúncia ou para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, bastando-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência.

Sem esquecer que no juízo de quem pronuncia, tem de estar presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade da sua protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, aqui se invocando preceitos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, com incidência constitucional entre nós, tem sido entendido que esta possibilidade razoável de condenação é um possibilidade mais positiva do que negativa - o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.

Ou seja, os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Traçando o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante, o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta.

O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade de da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim de uma fase preparatória como é a INSTRUÇÃO.

Tal significa que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento.

Veja-se, no entanto, que se logo a este nível do juízo, no plano dos factos, se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não devem ser considerados suficientes, não havendo prova bastante para a pronúncia.

Tal juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (incontornável) de discricionariedade.

A opção por um despacho de pronúncia depende, pois, da existência de prova indiciária, de prima facie, de primeira mas razoável aparência, quanto à verificação dos factos que constituam crime e de que alguém é responsável por esses factos.

Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é necessário, não obstante, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.

A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária.

Como explica Germano Marques da Silva, o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios "enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime".

É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no artigo 308º do CPP.

Chama-se também a atenção para o facto de, nesta fase preliminar do processo, não se visar "alcançar a demonstração da realidade dos factos”, mas apenas sinais de que o crime se verificou, praticado por determinado arguido. Como conclui Germano Marques da Silva, "as provas recolhidas nas fases preliminares o processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de era decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento".

Interpretando o exposto, nesta fase preliminar que é a instrução, não se pretende uma espécie de "julgamento antecipado" nem um juízo de certeza moral e de verdade que são pressupostos da condenação, mas tão só a verificação de existência de indícios de que determinado crime se verificou e que existe uma probabilidade séria, aferida pela positiva e objectivamente, de que o mesmo foi praticado por um ou mais arguidos, e assim se apreciando a decisão do Ministério Público ou do Assistente de acusar.

Nessa verificação deverá, contudo, o julgador interpretar criticamente e no seu prudente arbítrio os indícios recolhidos em sede de inquérito e instrução.

Em qualquer dos casos, essa verificação da suficiência de indícios não implica apreciação do mérito da acusação, no mesmo sentido em que tal ocorre na audiência de julgamento, apenas se julgando a verificação dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento.

3.3. SITUAÇÃO DO ARGUIDO A...

Impõe-se previamente fazer uma incursão sobre os pressupostos das incriminações que, no entender do recorrente, preenchem a conduta do arguido A... – um crime de ameaça e/ou de coacção.

3.3.1. FALEMOS primeiro do imputado crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 do C.Penal.

Determina tal normativo que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de um crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Sujeito passivo de ameaça é o destinatário da ameaça, valendo aqui a ameaça com a prática de um crime, seja ou não na pessoa do ameaçado.

O conhecimento da ameaça por parte do sujeito passivo desta é elemento integrante do tipo objectivo do ilícito de ameaça (vide FIGUEIREDO DIAS, in Actas da Comissão Revisora do C.Penal, 1993, página 232).

Hoje em dia, este ilícito é um crime de perigo concreto – na realidade, já não se exige a ocorrência do dano (efectiva perturbação do ameaçado quanto à sua pessoa ou a bens seus), mas também não basta (diferentemente do C.Penal alemão) a simples ameaça da prática do crime, exigindo-se ainda que tal ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar medo ou inquietação.

Ou seja:

Após a revisão do CP de 1995, passou a ser claro que no crime de ameaça não se exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a ameaça seja susceptível de a afectar.

O crime de ameaça deixou, pois, de ser um crime de resultado e de dano.

Citando SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, Código Penal Anotado, 2ª edição, p. 185: «Como desde logo se alcança, parece-nos não se tratar agora, e ao invés do que sucedia no texto anterior, de um crime de resultado. Na verdade, enquanto no número um do art. 155°do texto de 1982 se exigia que o agente tivesse provocado no sujeito receio, medo, inquietação ou lhe tivesse prejudicado a sua liberdade de determinação, agora basta que o agente se tenha servido de expediente adequado a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação. Assim, desde que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o crime».

Em igual sentido, veja-se a opinião sempre avisada do nosso Mestre de Coimbra, FIGUEIREDO DIAS no seio da Comissão Revisora do Código Penal - cfr. Acta n.° 45.

A ameaça «adequada» é aquela que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, independentemente do seu destinatário ficar, ou não, intimidado.
            São, pois, três as características essenciais do conceito AMEAÇA:
q Mal
q Futuro (não existirá ameaça futura quando, terminado o filme do nosso processo, a história de vida contida nos nossos autos, deixar de haver futuro para aquela ameaça concreta, não sendo ela passível de vir a ser consumada na medida em que se esgotou no momento presente – o mal não pode ser de execução imediata mas ser antes de execução futura)
q Cuja ocorrência dependa da vontade do agente (ou apareça como dependente da vontade do agente)

No que à segunda característica importa, significa isso “que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que neste caso, estar-se-á perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência”. (…) “Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa.”

Como tal, não é toda e qualquer expressão que configura um crime de ameaça.

Há sempre que atender ao contexto das mesmas e ter presente que as palavras têm que ser adequadas a provocar, para o futuro, medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação.

Relativamente ao que deve ser entendido como “futuro”, duas teses se podem degladiar, e isto sem prejuízo de também de se opinar que o que distingue a ameaça do cometimento de um crime e o cometimento desse mesmo crime são as próprias circunstâncias da acção que revelam a intenção que lhe preside (o animus do emissor de tal mensagem):

· há uma tese que defende, a propósito, por exemplo, da expressão “eu mato-te”, proferida numa discussão verbal, que a mesma se esgota nesse momento, por ser dotada de imediatismo, inexistindo crime de ameaça: o que significa que não existirá ameaça futura quando, terminado o filme do nosso processo, a história de vida contida nos nossos autos, deixar de haver futuro para aquela ameaça concreta, não sendo ela passível de vir a ser consumada na medida em que se esgotou no momento presente — repete-se, o mal não pode ser de execução imediata mas ser antes de execução futura;

· Contrariamente, há quem defenda que, nesse caso, há crime de ameaça, na medida em que o mesmo passa a existir logo a partir do momento em que é feita a afirmação.

Damos o nosso assentimento à 1ª tese, a que foi seguida no despacho recorrido.

Apreciada a esta luz, temos indiciado – e aí concordamos que podemos considerar minimamente indiciado que essas frases foram ditas, não nos parecendo correcta a conclusão do despacho de arquivamento do MP – que as frases ditas pelo arguido A... são do seguinte teor, dirigidas ao assistente:

«Espera que já te – lhe ou vos - trato da saúde[2]» e

«Já vou buscar a arma»

Dez minutos depois terá saído de casa «armado» com um bastão, «ameaçando o denunciante para este se ir embora».

Ora, se se é certo que as palavras proferidas pelo arguido e dirigidas ao assistente surgiram num clima de tensão, nada aponta no sentido de aquele último estar realmente a dizer que ia agir no futuro, sendo, ao invés, as palavras proferidas contemporâneas da acção empreendida pelo arguido – o ir munir-se de um «pau» ou «bastão» para agredir o assistente.

Portanto, as palavras proferidas, no contexto expostos, mais não foram do que o acompanhamento e complemento verbal da acção física empreendida, dai decorrendo faltar um dos elementos constitutivos, de natureza objectiva, do crime de ameaça.

Se a ameaça for de um mal a consumar no momento, entramos no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objecto da ameaça, sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível (no caso, não é – cfr. artigos 23º/1 e 143º/1 do CP ).

Mas até pode nem entrar se a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ficar o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali para a frente (cfr., em igual sentido, os Acs. da RLisboa., de 00/2/9, CJ., T 1, 147 e 149, da RCoimbra, de 00/3/16, CJ., T 2, 45; Acórdãos da Relação do Porto de 28/05/2003, processo nº 0340713, de 23/02/2005 processo nº 0510031, de 10/03/2005, processo nº 0510587, de 20-12-2006, processo n.º 0645320, estes em www.dgsi.pt).

No nosso caso, não se pode deixar de considerar que há contemporaneidade das duas acções – as frases ameaçadoras e o munir-se um bastão que exibe perante o assistente, sem o atingir, e que não se pode concluir que tais palavras queriam anunciar uma intenção de agressão ou de morte no futuro.

Aliás, como resulta também da prova atrás referida, vivia-se no momento uma grande tensão devido a problemas dominiais, e é nesse quadro de tensão e de animosidade entre o arguido e o assistente que a acção (ou as acções) se desenrola, o que reforça a dúvida de ele estar realmente a dizer que ia agir no futuro.

Porque, repete-se as palavras foram contemporâneas da acção com o pau, ou mais exactamente, elas foram, dado o contexto exposto, o acompanhamento e o complemento verbal de uma acção física que nem sequer se chegou a consumar.

Como bem refere a decisão recorrida:

«Com efeito, após dizer ao assistente que lhe tratava da saúde e que ia buscar uma arma, o arguido entrou em casa, saiu munido de um pau e dirigiu-se ao assistente com o mesmo no ar dizendo para aquele ir embora.

Ou seja, a existir ameaça, esta esgotou-se naquele momento, pois o arguido proferiu um mal iminente, que podia executar no momento, já que tinha um pau consigo.

 Estamos perante uma situação de recorte de vida que se aproxima da tentativa de ofensa, pois naquele contexto, em termos de juízo de causalidade adequada, o arguido, podia agredir/ofender a assistente.

Não o fez, pelo que ficamos pelo acto intimidatório de execução imediata de ofensa à integridade física».

Por tal motivo, e face ao contexto probatório indiciado, a NÃO PRONÚNCIA pelo crime de ameaça é juridicamente correcta (note-se que esta Relação já julgou caso paralelo em 23/6/010 – Pº 379/08.6PBVIS.C).

3.3.2. Tal não pronúncia também é correcta quanto ao possível crime de coacção, absolutamente inexistente em termos de indícios[3].

Para que se pratique o crime de coacção é necessário que alguém “por meio de violência ou de ameaça com mal importante”, constranja outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade — artigo 154º do CP.

O tipo objectivo de ilícito da coacção consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar urna acção, omitir determinada acção, ou suportar uma acção.

Os meios da coacção são a violência ou a ameaça com mal importante. apresentando-se, assim, como um crime de execução vinculada.

A noção de “violência” implica o emprego de força física (reduzindo a capacidade de defesa da pessoa), podendo, contudo, ser entendida de modo mais amplo, por forma a abranger a violência psíquica (enquanto pressão anímica exercida sobre a vítima).

Um dos critérios orientadores da definição concreta de “mal importante” é o da «adequação da ameaça a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante. Isto é, deverá considerar-se mal importante aquele mal que é capaz de fazer “dobrar” a vontade do ameaçado. Há, portanto, que relacionar a importância ou a gravidade do mal ameaçado com a exigência típica da adequação (imputação objectiva) deste a constranger o ameaçado» (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, T. 1, Coimbra Editora, 1999, pág. 358).

Com a ameaça cria-se no espírito da vítima um fundado receio de grave e iminente mal, capaz de, no caso concreto, paralisar a sua reacção.

Para aferir se a ameaça é ou não bastante para constranger é necessário recorrer a um critério objectivo-individual, no sentido de se ponderar, por um lado, o
critério objectivo do homem médio” e, por outro, atender às características individuais da pessoa ameaçada) -
vide Taipa de Carvalho, ob. cit.. pp. 343 e 344.

Ora, este crime exige a verificação do resultado para a sua consumação, ou seja, exige que a pessoa objecto da acção de coacção tenha efectivamente sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade.

Mas basta-se com o simples início da execução da conduta coagida, sendo suficiente para a consumação, se o objecto da coacção for a prática de uma acção, que o coagido inicie esta acção.

Nos termos do n° 1 do artigo 22° do Código Penal: “há tentativa quando o agente pratica actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, devendo considera-se como tal, de harmonia com o n.° 2 do art. 22.°: os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime os que são idóneos a produzir o resultado típico e os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, são de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.

Ora, para que se verifique “constrangimento” e, desse modo, limitação da liberdade pessoal, tem que existir uma efectiva pressão sobre a pessoa coagida, capaz de a colocar em impossibilidade de resistir, através da gravidade ou importância da ameaça efectuada.

No nosso caso, pode ter existido violência psicológica.

No entanto, e como sabiamente acentua a Exmª Procuradora-Adjunta de 1ª instância:

«Não resulta da prova reunida nos autos, ao contrário do que invoca o assistente, de que a exibição do pau pelo arguido A... tivesse sido acompanhada de qualquer prolação de palavras no sentido de que ele deveria abandonar aquele local.

Com efeito, as testemunhas ouvidas apenas referem que o arguido tentou agredir o assistente com o pau, nada sendo dito quanto a tal matéria.

Nenhuma prova foi compilada, em inquérito ou instrução, de que o arguido A..., ao tentar agredir o assistente com o pau, pretendesse fazê-lo sair dali e não, tão só, bater-lhe.

E tanto assim é que, previamente, o arguido terá dito para saírem dali senão ia buscar uma arma e tratava-lhes da saúde/do assunto, o que parece indiciar que a tentativa de agressão posterior foi antes uma reprimenda pelo facto de não terem abandonado o local (e já não uma forma de os compelir a fazê-lo)».

Em suma, não existem quaisquer indícios probatórios de se ter verificado qualquer conduta do arguido A... que visasse constranger o assistente a tal acção.

3.3.3. Em conclusão, só há que validar o despacho recorrido nesta parte, atinente ao arguido A....

3.4. SITUAÇÃO DO ARGUIDO B...

Impõe-se agora fazer também, neste outro caso, uma incursão sobre os pressupostos das incriminações que, no entender do recorrente, preenchem a conduta do arguido B...– um crime de dano e de coação.

3.4.1. Comecemos pelo crime de dano.

O crime de DANO é caracterizado como crime comum, de sujeito passivo indeterminado, de acção ou omissão, de resultado e uniofensivo.

Na realidade, pode ser cometido por qualquer pessoa, bastando que incida sobre coisa alheia, sendo susceptível de ser cometido na forma omissiva, desde que dolosa, e em que é condição de realização do ilícito a ocorrência de um resultado final de destruição, danificação, desfiguração ou inutilização de uma coisa, assim se ofendendo o bem jurídico “propriedade”.

A acção tem, em qualquer das quatro modalidades, de atingir um limiar mínimo de danosidade social, uma exigência que configura o reverso da exigência de um valor mínimo da coisa.

A destruição (grau máximo de dano) significa a perda total da utilidade da coisa, implicando, normalmente, o sacrifício da sua substância (o processo causal não está tipificado - execução não vinculada).

A danificação abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição, podendo concretizar-se pela produção de uma lesão nova ou pelo agravamento de uma lesão preexistente.

Já a desfiguração abrange os atentados à integridade física que alteram a imagem exterior da coisa, querida pelo respectivo proprietário.

Finalmente, o «tornar não utilizável» refere-se às acções que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função.

«A destruição de uma coisa pode decorrer da sua pura eliminação ou supressão da respectiva autonomia, individualidade, ou capacidade de funcionamento, através de demolição ou desmembramento, ou ainda pela criação de um estado de insusceptibilidade de recuperação» (vide José António Barreiros, “Crimes Contra o Património”).

Ao atingir uma COISA ALHEIA, o agente do crime põe em causa o bem jurídico PROPRIEDADE, o qual é tutelado pelo tipo de crime em apreço.

COISA ALHEIA, para efeitos deste ilícito, é apenas aquela cujo direito de propriedade pertence a outrem, que não o agente (v. g. Acórdão da Relação do Porto de 11/11/1992, in C.J. XVII, Tomo V, página 247), pressupondo a palavra «alheio» a pertença a outra pessoa – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 9 de Abril de 1997, in Col. Jur., Ano XXII, Tomo 11, pág. 146.

Como tal, tem-se entendido, e bem, que se exige, tendencialmente[4], a titularidade do direito de propriedade na pessoa do ofendido típico neste tipo de crime.

O objecto da acção tem, de facto, de constituir uma «coisa alheia» (sendo que o conceito de coisa é aqui mais restrito do que em direito civil — art. 202° do C. Civil), sendo a qualificação da coisa como alheia determinada pelos princípios da lei civil[5], excluindo-se as coisas insusceptíveis de apropriação, as rei nullius, e as coisas pertinentes à propriedade exclusiva do agente.

A nível SUBJECTIVO, o dano punível tem que ser doloso, já que o dano meramente culposo apenas implica ilícito de natureza civil e já não criminal - neste crime, o DOLO consiste na consciência e vontade de destruir, danificar ou desfigurar a coisa alheia, com o fim de lesar a propriedade de outrem.

Portanto, no crime de dano tutela-se, sobretudo, a propriedade plena sobre a coisa alheia danificada, o que abrange a tutela dos direitos de gozo, fruição e guarda (neste sentido, cfr. Costa Andrade, "Comentário Conimbricense do Código Penal", tomo II, Coimbra, 1999, pág. 212; José António Barreiras, "Crimes contra o património no Código Penal de 1995", Lisboa, 1996, pág. 29, e Luís Osório, "Notas ao Código Penal Português", tomo IV, 2.a edição, Coimbra, 1925, pág. 24).

Ora, alega o assistente que o arguido B...derrubou alguns pinheiros novos que lhe pertenciam.

Argumenta o tribunal recorrido que não existem indícios suficientes que permitam afirmar que o arguido praticou tal crime de dano.

E vai analisar os vários depoimentos do inquérito.
«A testemunha ... (mãe do arguido) não confirma esses factos. Pelo contrário, afirma que o seu filho parou o seu veículo no caminho público, não tendo atravessado à frente do tractor, (cfr. fls. 25).
 A testemunha ..., (esposa do denunciante) em momento algum do seu depoimento prestado a fls. 27, refere destruição de pinheiros.
Apenas a testemunha ..., (filha do denunciante) é que refere que o arguido “entrou pelo pinhal calcando vários pinheiros, (cfr. fls 29).
(…)
Na verdade, há apenas uma única testemunha que refere que o arguido calcou os pinheiros, o que é infirmado pelas restantes testemunhas inquiridas, (inclusive pela própria esposa do denunciante que não refere tal conduta do arguido).
É assim curioso que o assistente defenda que a esposa/mãe dos arguidos tenha um natural interesse na sua defesa, mas já nada diz quanto ao também natural interesse na causa e na acusação/pronuncia por parte da sua própria filha».

E fá-lo com acerto.

De facto, apenas temos uma palavra da filha do assistente – também naturalmente comprometida pela versão de seu pai – que fala em «calcar pinheiros», o que até é algo difícil de imaginar.

As fotografias nos autos também nada mostram de relevante, não indicando o assistente qualquer valor para os supostos pinheiros novos destruídos.

Como tal, a falta de prova relevante quanto ao concreto e conclusivo acto de danificação[6] é, por demais, evidente, sem necessidade sequer de entrarmos na análise do elemento subjectivo do crime (houve dolo ou uma causa de exclusão da ilicitude?).

No caso, não há «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição».

Antes pelo contrário.

Por conseguinte, só resta validar, também nesta parte, o DESPACHO DE NÂO PRONÚNCIA.

3.4.2. E houve, da sua parte, a prática de um crime de coacção?

Entende o recorrente que:

· Existem nos autos indícios mais que suficientes que o arguido B...cometeu o crime de coacção, atravessando o seu veículo à frente do tractor do assistente com o objectivo de esta parar com o trabalho que efectuava, com duas testemunhas presenciais que confirmam na íntegra o depoimento do assistente e ainda prova documental.

· A conduta do arguido consubstanciou uma intimidação sobre o assistente, exercendo através da sua conduta uma violência psíquica, (pressão anímica exercida sobre a vitima) que anula ainda que parcialmente a sua vontade ou a coloca numa situação de inferioridade que a impede de actuar como quer.

 Já atrás se analisou o delito em causa (artigo 154º do CP).

O tribunal recorrido argumenta assim:

· ARGUMENTO A - «Fazendo a ponte entre os factos, o que é que se constata é que não há, sequer, indícios de que o arguido tenha colocado o seu veículo em frente do tractor do assistente, impedindo-o de continuar a trabalhar:

o Com efeito, a testemunha ...diz que o arguido atravessou o seu veículo no caminho público e não à frente do tractor.

o Apenas as testemunhas ... e ...é que confirmam tal versão, mas é como já se referiu, estas testemunhas tem um natural interesse na causa já que são esposa e filha do assistente.

o Temos, assim, que são como que “anuladas” ambas as versões apresentadas pelo assistente e arguido, pelo que teremos que nos socorrer de testemunhas imparciais, que são os agentes da GNR que chegaram ao local, e que não confirmam a versão do assistente, (cfr. fls. 73 e 100).

o De resto, da própria fotografia junta a fls. 7, não demonstra a impossibilidade de o assistente continuar a trabalhar, por exemplo, contornando os eventuais obstáculos que surgissem.

· ARGUMENTO B - De qualquer forma, sempre se chegaria à mesma conclusão, pela própria definição do crime em si. Ou seja, a violência, pressuposta pelo crime de coacção, pode recair sobre coisas, mas tem de haver uma intervenção física sobre elas, um contacto, como por exemplo, furar os pneus do automóvel para impedir que o seu proprietário possa prosseguir viagem, danificar o telhado da casa para forçar o seu inquilino a desocupá-la, (cfr. Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricence do Código Penal, parte especial, tomo I, pag.355) - queremos com isto dizer que o mero estacionar/parar do veículo à frente de um outro, sem haver qualquer contacto físico, e podendo este seguir por outro caminho, não integra a prática de qualquer crime.

      Recordemos que no crime de coacção[7] (crime de resultado e em que o bem jurídico tutelado é a livre determinação do indivíduo), a violência, física ou psíquica, tem por objecto imediato a própria pessoa do coagido, ou de terceiros, ou sobre coisas, quer do coagido quer de terceiros, desde que o mal causado nas coisas seja idóneo a afectar sensivelmente a liberdade de acção do coagido, de forma a constranger este a adoptar o comportamento visado pelo agente.

De facto, a «violência» implica, em sentido restrito, o emprego de força física, podendo, no entanto, ser entendida de modo mais amplo, por forma a abranger a violência psíquica (traduzindo-se esta numa pressão anímica exercida sobre a vítima, anulando, ainda que parcialmente, a sua vontade ou colocando-a numa situação de inferioridade que a impede de reagir como queria).

Além disso, o momento essencial para a consideração da consumação do ilícito verifica-se na altura em que o ofendido é violentado, sendo irrelevantes as circunstâncias posteriores a esse momento.

No nosso caso, temos duas pessoas que confirmam a versão do assistente – a sua mulher e a sua filha.

Como tal, apesar da ligação familiar que existe, não vemos a razão pela qual teremos de acreditar menos nelas do que na mulher do arguido A... que nega tal versão.

É certo que as testemunhas imparciais – os guardas da GNR – pouco ou nada viram de relevante pois chegaram ao local após o «incidente» em causa.

Mesmo considerando que há indícios de que a carrinha do arguido B...foi colocado em frente ao tractor do assistente, fica por apurar:

· que tenha sido esse obstáculo a impedir que o assistente deixasse de fazer algo que tinha em mente fazer;

· que tal faixa não tinha largura suficiente para que o assistente conseguisse passar com o seu tractor, contornando a carrinha do arguido, indo fazer o que tinha em mente.

Aqui chegados, há que concordar com a tese defendida pelo despacho recorrido.

A circunstância de um automóvel de mercadorias – com o tamanho e nas condições de fls 7 (foto) - ter sido parado à frente de um tractor jamais consubstanciaria a prática do crime insinuado.

Onde reside aqui a violência sobre a pessoa ou sobre a coisa?

Sobre a coisa, não existe de todo, pois nem contacto físico há sobre o tractor do assistente. Ou seja, não há qualquer mal causado na coisa.
E sobre a pessoa do assistente?
Força física não há.
E psicológica, haverá?
Houve alguma intimidação digna de tutela penal?
A resposta é negativa.
Como já se decidiu, e bem, no Acórdão da Relação de Guimarães de 30/5/2011 (Pº 264/09.4GAPCR.G1):
«Nenhuma acção com estas características foi exercida contra o assistente, ou contra terceiros, de forma a condicionar o assistente.
Ao contrário do alegado pelo magistrado recorrente, a simples colocação do veículo em posição de barrar a passagem não constitui, por si só, necessariamente, um acto de intimidação (…). «Intimidar» significa “inspirar receio, medo, ou temor; apavorar; assustar” – Dicionário de Português, Porto Editora, 3ª ed. Pode alguém barrar o caminho a outrem apenas para o obrigar a ter uma conversa que pretende que seja cordial!».
Analisando a prova constante dos autos, a circunstância do assistente ter cessado os trabalhos ficou-se antes a dever ao exacerbar das emoções entre arguidos e assistente, à tentativa de agressão por parte do arguido A... e à intervenção da Guarda Nacional Republicana, não podendo deste modo imputar-se ao arguido B...a verificação daquele resultado, muito menos pelo facto de ter estacionado o seu veículo automóvel à frente do tractor.  
Ponderando o critério objectivo individual de qualquer homem médio com as características do assistente e colocado na mesma situação, não vemos como o facto de se estacionar o carro à frente do seu tractor, quando se encontrava a trabalhar, o afecte psicologicamente, ao ponto de o impedir efectivamente de o fazer, até porque, conforme se escreve na decisão recorrida, o assistente poderia sempre contornar aquele obstáculo, por uma simples manobra daquele tractor.
É esse o contexto probatório dos autos – aquilo que deles consta e não aquilo que o assistente acha que se provou…
Pelo exposto, impõe-se também a não pronúncia pelo crime de coacção.

3.5. Acabemos da mesma forma como iniciámos esta fundamentação.

Pelos indícios suficientes.

Não ignoramos que no juízo indiciário há que levar em linha de conta o seguinte:

“I - A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame;

II - Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art. 3.º daquela Declaração e 27.º da CRP);

III- Nestes termos, vem-se entendendo que a «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa» - o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, sendo suficientes os indícios quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

IV - [o ambiente do processo penal] é dominado por uma atmosfera densificada de emotividade e conflitualidade. O que deve valer como um estímulo ao exercício quotidiano da tolerância e da disponibilidade para aceitar limiares particularmente qualificados de risco permitido e de sacrifício socialmente adequado do bem jurídico mais intensamente coenvolvido, a saber, a honra.

V - De outra forma, abrir-se-ia a porta a limitações tão drásticas como intoleráveis da liberdade de expressão e actuação dos diferentes sujeitos processuais. Estes não podem viver sob a ameaça constante da invocação das reacções criminais em nome da tutela da honra, uma espada de Dâmocles que só poderia redundar em manifestações perversas de auto-censura» (cf. sumário aposto no Acórdão do STJ de 28/6/2006, visionado em www.dgsi.pt).

De facto, a nosso ver, e atenta a fase processual em que nos encontramos, opinamos no sentido de que inexistem no processo elementos suficientes para levar estes dois arguidos a julgamento (sem prejuízo do crime de natureza particular e da acusação particular deduzida contra o arguido B...), pelo que o recurso interposto só pode improceder.

            III – DISPOSITIVO

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente C... e, em consequência, manter a douta decisão instrutória (despacho de não pronúncia) quanto aos arguidos A... e B....

            Custas pelo recorrente/assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs [artigos515º/1 b) do CPP e 8º/5 do RCP, este remetendo para a Tabela III].


Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)



_______________________________________

(Paulo Guerra)


                                ________________________________________

(Alberto Mira)


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»).
[2] As versões não sempre 100 % coincidentes – ou lhe terá dito «te», «lhe» ou «vos» (cfr. depoimento de fls 29).
[3] Diga-se ainda que nunca poderia o arguido vir a ser condenado pelos dois crimes, assente a mesma factualidade – é certo que o crime de ameaça é constituído por factos também integrantes do crime de coacção, encontrando-se numa relação de concurso aparente e não efectivo com este. Como sabemos o concurso aparente assenta no pressuposto de que várias normas concorrem só em aparência, porquanto uma delas há-de excluir as outras, ocorrendo tal exclusão porque entre as normas em apreço há uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consunção.
Se se apresentam ao mesmo tempo, para se aplicarem a uma certa situação de facto, diversos tipos de crime encontrando-se os respectivos bens jurídicos, uns relativamente aos outros, em tais relações pode suceder que a reacção contra a valoração concreta do bem jurídico realizada pelo tipo enformado pelo valor menos lato se efective já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicos mais extensos.
Quando tal acontece as disposições penais vêm a encontrar-se numa relação de consunção: uma consome já a protecção que a outra visa. E como não pode oferecer dúvidas que a mais ampla, a lex consumens, tem em todo o caso de ser eficaz, é manifesto, sob pena de clara violação do principio ne bis in idem, que a menos ampla, a lex consumta não pode continuar a aplicar-se.
No nosso caso, embora pudessem ser violados formalmente dois preceitos legais, o crime de coacção, punido com pena mais grave, consome o crime de ameaça.

[4] Podendo admitir-se, a este propósito, a tutela do direito do inquilino, enquanto direito de gozo, fruição e guarda de um imóvel (em caso de destruição da coisa arrendada por parte do proprietário, com prejuízo para o arrendatário), estando a jurisprudência e a doutrina muito dividida a este nível.
[5] Não obstante a relatividade dos conceitos jurídicos e a existência de um conceito autónomo de coisa para efeitos penais. Por exemplo, alguém que colhe uma maçã de uma macieira alheia, contra a vontade do dono, ciente de que tal fruto e árvore não lhe pertencem, do ponto de vista civil, está a separar um fruto de uma coisa imóvel e no momento em que se exerce a acção de subtracção não se pode afirmar que esteja a subtrair uma coisa móvel (artigo 204º, nº 1, alínea c), do Código Civil). Porém, cremos que do ponto de vista penal, não se duvidará do preenchimento do tipo objectivo do crime de furto.
[6] Diga-se ainda que a possível alteração da localização espacial de pedras não pode, por si só, consubstanciar a prática de um crime de dano, não se afectando em nada a integridade física da «coisa».
[7] Taipa de Carvalho opina o seguinte:
«Muito debatido, sobretudo pela doutrina alemã, tem sido o conceito de violência. Do conceito tradicional de violência, como intervenção da força física (absoluta ou relativa, consoante elimina,
ou não, qualquer possibilidade de resistência do coagido —
vis phisica absoluta ou vis phisica relativa ou compulsiva) sobre a própria pessoa do coagido, tem a doutrina e a jurisprudência evoluído para um conceito mais amplo de violência que abrange também a violência psíquica.
Esta desmaterialização, espiritualização ou sublimação do conceito de violência faz com que possam
ser consideradas violências
condutas omissivas (como, p. ex., não fornecer alimentos ao familiar paralítico enquanto este não praticar a conduta imposta pelo agente) e condutas que apesar de não se traduzirem na utilização da força física, todavia eliminam ou diminuem a capacidade de decisão ou de resistência
da vítima, como na caso de hipnose ou de embriaguez
mediante engano.
(…)
A violência, pressuposta pelo crime de coacção também pode consistir numa intervenção física sobre coisas, como, p. ex., o furar os pneus do automóveis para impedir que o seu proprietário ou utente possa prosseguir viagem ou danificar o telhado da casa para forçar o seu inquilino a desocupá-la.
As coisas, sobre as quais o agente faz recair o seu acto violento (destruição,
danificação, ou mesmo usurpação da utilização), tanto podem ser do coagido como de terceiro.

Necessário é que o mal causado nas coisas seja adequado a afectar sensivelmente a liberdade de acção do coagido, de forma a constranger este a adoptar o comportamento visado pelo agente».