Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1649/09.1TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
ARRENDAMENTO
UNIÃO DE FACTO
ACÇÃO
PROCESSO ESPECIAL
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE - 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 381º Nº1 E 1413º DO CPC
Sumário: 1- A requerente da providência cautelar não está obrigada a indicar qual a acção principal de que depende a providência, que vai ser intentada.

2- A acção de que depende a providência cautelar em que um dos membros do casal, que vive em união de facto, pede a saída do outro membro da casa de morada de família arrendada é a acção de atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada de família com processo especial regulado no artigo 1413º do CPC.

3- Não tendo havido esbulho violento e não sendo, por isso, aplicável a restituição provisória da posse, é adequada a providência cautelar não especificada, por não haver outra tipificada na lei que acautele o direito em causa.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... intentou contra , a presente providência cautelar não especificada, alegando que é arrendatária de um apartamento sito na....., Marinha Grande e que desde 14/11/2003 se relacionou sentimentalmente com o requerido, passando a coabitar com ele no referido apartamento, tendo nascido desta união um filho em 28/02/2007, mas sucedendo que a relação entrou em ruptura, passando o requerido a exercer pressão psicológica sobre a requerente, acusando-a de estar conluiada com a família para provocar a separação do casal, e de nada fazer em casa e de que tudo o que faz não é mais do que a sua obrigação, chamando-a “puta” e “vaca”, gritando à frente do filho de ambos e causando instabilidade ao menor, fazendo deliberadamente barulho e provocando discussões pela noite dentro, proibindo a requerente de sair de casa, controlando-lhe os movimentos e não lhe permitindo receber familiares e amigos na sua própria casa.

Mais alegou que o requerido não participa em qualquer despesa doméstica e habita o locado sem qualquer título e contra a vontade da requerente, sendo esta a única arrendatária do mesmo e sem possibilidades económicas para sair de casa.

Alegou ainda que o ambiente e a situação entre o casal é insuportável, tendo já a requerente apresentado queixa crime contra o requerido e receando a requerente pela sua integridade física, pelo que, ao abrigo do artigo 70º nº2 do CC, deverão ser tomadas as providências necessárias para pôr fim a esta situação, sem audiência prévia do requerido, a fim de evitar o agravamento do clima de intimidação e de ameaças.

Concluiu pedindo que seja determinado ao requerido a imediata saída e desocupação do apartamento.    

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A petição inicial foi liminarmente indeferida, com o fundamento de que não existe nenhuma acção em relação à qual a presente providência possa ser instrumental.  

Inconformada, a requerente interpôs recurso, apresentando alegações, onde formula as seguintes conclusões:

1ª) A recorrente deduziu procedimento cautelar não especificado, devidamente, fundamentado de facto e, direito;

2ª) À recorrente não é exigível indicar qual, a acção principal de que, o procedimento cautelar é instrumental;

3ª) A recorrente pretende, apenas socorrer-se da providência prevista no nº2 do art. 70º do CPC e, requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, a fim de, evitar consumação da violação dos seus direitos de personalidade e, pôr fim à perturbação da sua posse enquanto arrendatária do imóvel;

4ª) Por erro de interpretação e, ou aplicação, mas de molde consentâneo, observado os princípios gerais de direito civil e, processual civil, mormente, da defesa da dignidade e, da pessoa humana (direitos de personalidade) e, por isso foram violados as disposições legais atinentes, concretamente, o dispostos nos arts.

JUSTIÇA!

Deve o presente recurso obter provimento e, o douto despacho recorrido ser alterado, em conformidade e, admitido o procedimento cautelar não especificado sem citação do recorrido.

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O recurso foi admitido como apelação com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Cumpre apreciar, sendo a questão a decidir, resultante das conclusões da recorrente, a de saber se a petição inicial deve ou não ser liminarmente indeferida.   

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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

De acordo com o artigo 381º nº1 do CPC, “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”.

Por seu lado, os artigos 383º nº1 e 389º nº1 estatuem que “o procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva” e que a providência caduca “se o requerente não propuser a acção da qual a providência depende dentro de 30 dias…”.

As providências cautelares têm, assim, carácter instrumental e provisório, não sendo elas próprias o fim a atingir pela parte, mas sim o instrumento utilizado para que esta provisoriamente acautele o seu direito, enquanto não é proferida a decisão definitiva (cfr. A. Reis em CPC anotado, vol I, pág. 629). 

Tal decisão definitiva será proferida na acção principal, de que depende a providência.

No caso dos autos, a requerente não indicou o tipo de acção a intentar e de que depende a presente providência.

Mas, como refere nas suas alegações de recurso, não estava obrigada a fazê-lo.

Ao Tribunal caberá apreciar da existência do direito invocado pela requerente – mesmo que, juridicamente, não esteja correctamente qualificado por esta –, da necessidade de o mesmo ser acautelado e da adequação da providência ao caso concreto.

À requerente, no caso da procedência do procedimento, caberá intentar a acção correspondente no prazo legal, sob pena de caducidade da providência.

E o direito invocado pela ora requerente é, manifestamente, o direito de atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada de família na sequência da separação numa união de facto.

Com efeito, dispõe o artigo 4º da Lei 7/2001 de 11/5 (o qual adopta medidas de protecção das uniões de facto) que é aplicável à união de facto o disposto no artigo 84º nº2 do RAU (DL 321-B/90 de 15/10) – actualmente com correspondência no artigo 1105º do CC – por força do qual, em caso de separação do casal e de desacordo sobre a atribuição da casa de morada de família, o Tribunal decidirá sobre a transmissão ou concentração do direito ao arrendamento em favor de uma das partes (cfr. ac. RP de 3/11/2005, em www.dgsi.pt), o que deverá ocorrer no processo especial previsto no artigo 1413º do CPC.

Por outro lado, a lesão do direito invocado pela requerente é constituída pelo litígio existente entre a requerente e o requerido quando à atribuição da casa de morada de família, sendo a gravidade da lesão integrada pela pressão psicológica e instabilidade criada no ambiente existente entre o casal.

Esse ambiente de instabilidade poderá assumir contornos de gravidade que determinem danos irreparáveis ou de difícil reparação (intimidação grave da requerente e do filho do casal, alteração essencial dos hábitos familiares, privação da liberdade pessoal da requerente), justificando a procedência da providência – a que se deverá seguir a acção principal prevista no artigo 1413º do CPC, sob pena de caducidade da providência –; ou poderá constituir apenas um ambiente desagradável não causador de danos apreciáveis, não justificando a procedência da providência – mas sem prejuízo de a requerente poder sempre intentar sempre a acção principal, prevista no artigo 1413º do CPC.

Assim, o grau de litígio entre a requerida e o requerido e do clima de pressão psicológica existente entre o casal deverá ser avaliado e ponderado com a produção de prova, de forma a se apreciar se a gravidade da lesão do direito invocado é ou não suficiente para decretar a providência.

Estão, portanto, sumariamente alegados todos os requisitos exigidos pelo artigo 381º nº1 do CPC, devendo-se apurar oportunamente com mais precisão os requisitos legais da existência de união de facto, bem como avaliar da gravidade e do carácter irreparável do prejuízo invocado e sendo a acção principal de que depende a providência a acção especial de atribuição da casa de morada de família, prevista no artigo 1413º do CPC. 

Igualmente se mostra preenchida a exigência do nº3 do artigo 381º, por força do qual “não são aplicáveis as providências referidas no nº 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte”.

De facto, nenhuma das providências tipificadas na lei previne o risco de lesão ora em causa, sendo certo que, não estando alegada a existência de esbulho violento por parte do requerido, não é possível a aplicação da providência cautelar de restituição provisória da posse (como acontece no caso tratado no ac. RC 3/03/2009, em www.dgsi.pt), restando o recurso à providência cautelar não especificada (cfr. acs RL 18/05/95 e 18/04/96, ambos sumariados em www.dgsi.pt, embora relativos a situação de casamento e não de união de facto).

Conclui-se, então, que a petição inicial está em condições de ser recebida e que os autos deverão prosseguir, com a revogação do despacho recorrido.

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SUMÁRIO.

1- A requerente da providência cautelar não está obrigada a indicar qual a acção principal de que depende a providência, que vai ser intentada.

2- A acção de que depende a providência cautelar em que um dos membros do casal, que vive em união de facto, pede a saída do outro membro da casa de morada de família arrendada é a acção de atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada de família com processo especial regulado no artigo 1413º do CPC.

3- Não tendo havido esbulho violento e não sendo, por isso, aplicável a restituição provisória da posse, é adequada a providência cautelar não especificada, por não haver outra tipificada na lei que acautele o direito em causa. 

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DECISÃO.

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e em revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine o prosseguimento da providência cautelar.  

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Sem custas.