Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2772/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. COELHO DE MATOS
Descritores: VENDA DE OBJECTOS DECLARADOS PERDIDOS A FAVOR DO ESTADO
Data do Acordão: 12/16/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: PORTARIA N.º 10.725, DE 12-08-44 E DL N.º 12.487, DE 14-10-26
Sumário:
I - Não têm natureza jurisdicional os actos de venda de objectos declarados perdidos a favor do Estado, nos termos da Portaria n.º 10.725, de 12-08-44 e DL n.º 12.487, de 14-10-26.
II - Por isso é de indeferir in limine a acção proposta pelo Ministério Público com vista à venda ou destruição de objectos declarados perdidos a favor do estado, em decisões proferidas em processos, designadamente de natureza penal.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. O Ministério Público, fez distribuir, na comarca de Aveiro, uma acção cível com processo especial, nos termos previstos no Decreto n.º12.487, de 14/10/1926 e na Portaria n.º10725, de 12/08/1944, para destruição e venda judicial de objectos declarados perdidos a favor do Estado, em diversos processos.
Apresenta uma relação detalhada de todas as apreensões, com o comprovativo da decisão definitiva que os declarou perdidos a favor do Estado, e promove a destruição daqueles que não têm valor venal e a venda, por negociação particular, dos que têm valor.

2. Louvando-se no n.º 2 do artigo 202º da Constituição da República, o sr. Juiz entende que não é da competência dos tribunais judiciais proceder à venda de bens já declarados perdidos a favor do Estado e indeferiu liminarmente a petição inicial, por falta de interesse em agir.
É desta decisão que vem o presente agravo, cuja motivação termina com as seguintes conclusões:
1) A legitimidade e o interesse em agir do Ministério Público, em representação do Estado, para intentar a presente acção advém-lhe dos comandos normativos do Decreto n.º 12487 de 14.10.26 e da Portaria n.º 10725 de 12.08.44, que se encontram em vigor (nunca foram revogados por qualquer diploma legislativo).
2) Diplomas que conferem legitimidade ao Ministério Público apenas para promover a venda judicial dos objectos declarados perdidos a favor do Estado e prescritos a favor da Fazenda Nacional e não para a ordenar ou efectivar.
3) Bem como lhe conferem interesse em agir, em representação do Estado, que se traduz, em, a final, na obtenção do produto resultante da venda segundo as regras próprias aplicáveis à venda judicial, cujos trâmites processuais podem ser eventualmente questionados por potenciais interessados na aquisição dos objectos declarados perdidos a favor do Estado.
4) Litígios que, a existirem, deverão ser dirimidos e decididos no âmbito de um processo judicial.
5) Ao indeferir liminarmente a petição inicial, o Mmo. Juiz violou o disposto no art. 14.º do Decreto n.º 12487 de 14.10.26, a Portaria n.º 10725 de 12.08.44 e o art. 99.º da lei n.º 3/99 de 13.01.


3. Não foram apresentadas contra-alegações. Foi proferido despacho a confirmar o decidido. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre agora conhecer e decidir, com base nos dados disponíveis e supra citados.
Considerando que as conclusões da alegação do recorrente definem o âmbito do recurso (artigos 684º, 2 e 3 e 690º, 1, e 4 do Código de Processo Civil) ressalta das conclusões supra transcritas que o recorrente coloca em crise a sentença recorrida na medida em que ela pressupõe não haver, da parte do Ministério Público, interesse em agir. Daí o argumentar que tal interesse lhe advém das disposições normativas dos citados Decreto n.º 12487 de 14.10.26, e da Portaria n.º 10725 de 12.08.44, para depois concluir que a acção deveria prosseguir como acção cível da competência do tribunal recorrido.
Mas não é verdadeiramente esta a questão. O que está em causa é saber se à pretensão do Ministério Público corresponde uma acção judicial e não se tem interesse em agir para intentar essa acção. A questão é a de saber se, para vender e destruir bens do Estado, este tem de recorrer aos tribunais judiciais e aí pedir a tutela da lei. O interesse em agir de que se fala na decisão recorrida só faz sentido quando se trata de apresentar ao tribunal uma pretensão para que seja examinada e se providencie conforme ao direito.
Escrevemos na redacção do acórdão de 26/05/1998, Apelação n.º 292/98 que, “o interesse em agir tem lugar quando se verifica um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência de um direito a apreciar. A incerteza deve ser objectiva e grave. Não basta a dúvida subjectiva do demandante ou o seu interesse puramente académico em ver definido o caso pelos tribunais. Importa que a certeza resulte de um facto exterior; que seja capaz de trazer um sério prejuízo ao demandante, impedindo-o de tirar do seu direito a plenitude das vantagens que ele comportaria”. ( Para um melhor conhecimento desta questão, consulte-se Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, vol. II, pag. 803. e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag. 79.
)
O argumento do recorrente tem mais a ver com a legitimidade ou legitimação do Ministério Público para promover a venda destes bens do Estado. A acção é outra coisa: é o recurso ao tribunal para dirimir um conflito de interesses. E este “recurso ao tribunal” pressupõe, entre o mais, que o autor tenha o “interesse em agir” de que se fala.
É certo que também ressalta das conclusões que esta visão das coisas esteve presente na douta argumentação do recorrente, quando diz que esta venda deve fazer-se “segundo as regras próprias aplicáveis à venda judicial, cujos trâmites processuais podem ser eventualmente questionados por potenciais interessados na aquisição dos objectos declarados perdidos a favor do Estado. Litígios que, a existirem, deverão ser dirimidos e decididos no âmbito de um processo judicial”.
Com o devido respeito, temos por certo que há aqui um equívoco manifesto. É que na venda judicial (pense-se na venda em processo de execução, v.g.) o tribunal não vende aquilo que o autor, seu proprietário, pretende vender. Vende sim aquilo que o credor diz que é do devedor e deve responder pelo débito, o que não exclui que outros possam opor-se, invocando a sua propriedade, ou o próprio devedor opondo a ilegalidade da venda, ou terceiros queiram preferir na compra ou remir a venda.
Também na venda efectuada na acção de divisão de coisa comum (outro exemplo) o tribunal vende porque é a solução legalmente prevista para proceder à divisão em valor do que não é indivisível em substância. Em qualquer destes casos existe, como é óbvio, um conflito de interesses que justificou o uso da acção.
Ou seja, esta venda judicial pressupõe, por princípio, a hipótese de interesses conflituantes. Ao passo que a venda de bens já definitivamente propriedade do Estado e que o Estado quer vender não pressupõe, porque não existe em circunstância alguma, qualquer conflito dessa natureza. Não existe em relação à propriedade e posse, porque essa questão está já ultrapassada; e não existe em relação a preferentes, porque qualquer pessoa pode comprar e quem tiver interesse é só apresentar-se e fazer a sua oferta. A ter de existir aqui um processo é só de natureza administrativa, para controle e registo das operações e nunca para dirimir interesses legalmente protegidos.


4. A Constituição da República, ao estatuir sobre a função jurisdicional, diz que “na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados” (artigo 202º, n.º 2). Ou seja, a função jurisdicional pressupõe qualquer das hipóteses aí contempladas e onde, claramente, não se enquadra a hipótese de venda de bens do Estado, ou de particulares, fora de casos que pressupõem um conflito de interesses. Aliás, isto vem ao encontro da norma do artigo 3º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo a qual a acção pressupõe sempre um conflito de interesses. É, pois, impensável, no nosso sistema processual civil a existência de uma acção que não tenha subjacente um conflito de interesses.
A presente acção é proposta com base no disposto no art.14º do Decreto n.º 12487 de 14.10.26 e na Portaria n.º 10725 de 12.8.44.
Diz o artigo 14º do Decreto n.º 12487:
1. Todos os objectos e quantias não reclamados pelas partes, no prazo de três meses após o trânsito em julgado das decisões finais proferidas nos respectivos processos, prescreverão a favor da Fazenda Pública e o seu produto dará entrada na Caixa Geral de Depósitos.
2. Para a execução do disposto no parágrafo anterior os juizes respectivos farão proceder à venda dos objectos que forem prescrevendo, nas épocas e pelas formas que julgarem mais oportunas e económicas.
E dispunha a Portaria n.º 10725 que os delegados e subdelegados, nas respectivas comarcas e julgados municipais, deviam promover a venda em hasta pública, no mês de Janeiro, dos instrumentos dos crimes, que não interessassem ao instituto de criminologia, lavrando-se os competentes autos de venda nas secretarias judiciais e sendo o seu produto remetido, por aqueles magistrados à Direcção Geral dos Serviços Prisionais.
Que os juizes fizessem proceder à venda dos objectos apreendidos nos processos a seu cargo, sob promoção do Ministério Público, nada teria de anormal na actual conjuntura judiciária. E então, e só então, teriam algum sentido útil os preceitos acabados de citar.
Mas daí a fazer depender a venda desses objectos da existência duma acção autónoma sem que lhe subjaza um conflito de interesses é que parece nem ser imposto por tais preceitos, nem caber nos limites da competência dos tribunais judiciais.
Por isso, temos por certo que o sistema jurídico processual que emergiu da nova ordem jurídico constitucional não contém uma acção autónoma para venda dos bens do Estado sem que se lhe associe um conflito de interesses a dirimir.
A venda de empresas públicas e as comparticipações do Estado noutras empresas não passou por qualquer acção nos tribunais, como é sabido. Não passou nem tinha que passar. Porque razão haveria de passar a venda de pequenos objectos?
Ademais, sabendo-se que a tendência legislativa actual vai no sentido de fazer expurgar dos tribunais as pequenas bagatelas, reservando a sua actuação para tudo o que exija um contraditório e uma sentença de mérito, não faz hoje qualquer sentido interpretar as disposições do Decreto n.º 12487 de 14.10.26 e da Portaria n.º 10725 de 12.8.44 de modo a submeter à jurisdição dos tribunais tarefas como as de vender objectos apreendidos em processos crime e declarados perdidos a favor do Estado nas decisões neles proferidas.
Não se ignora que esta até pode ter sido uma prática corrente, tão antigos que são esses diplomas. Um acórdão desta Relação tirado da sessão de 19/11/2002 (recurso n.º 1443/02, publicado na CJ, Tomo V, 18) condescende com essa prática, apesar de não ser essa a questão a que foi chamado a pronunciar-se. Mas já o acórdão da mesma Relação, de 17/12/2002, publicado na mesma CJ, a pags. 33 e 34, que teve como objecto a questão ora em apreço, vai no sentido de negar aos tribunais a competência para proceder à venda desses objectos.
Parece que só agora se agita esta questão e já se vão pronunciando outros tribunais superiores no mesmo sentido. Assim, já em 20/01/2000 a Relação do Porto decidia que “a venda ou a destruição dos objectos apreendidos em processo crime constituem mero desenvolvimento, ainda que em requerimento autónomo, da decisão proferida no processo criminal respectivo” e que “são (....) os juízos de competência especializada cível incompetentes em razão da matéria para ordenarem tais actos”.( Cfr. www.trp.pt)
E muito recentemente ( Agravo n.º 1059/03 - 6.ª Secção, acórdão de 29-04-2003, em www.stj.pt ) o STJ decidiu que “os actos de venda de objectos declarados perdidos a favor do Estado, nos termos da Portaria n.º 10.725, de 12-08-44 e DL n.º 12.487, de 14-10-26, não têm natureza jurisdicional, devendo desenrolar-se burocraticamente nas secretarias judiciais, não se justificando a intervenção do tribunal cível (em comarca com competências especializadas crime e cível), para decidir a venda promovida pelo Ministério Público, sendo de confirmar o aresto da Relação que entendeu ocorrer falta de interesse em agir por parte do Ministério Público”.
Que dizer então? Que é também nosso entendimento, pelas apontadas razões, que a questão não é só de mera falta de interesse em agir, porque este até pressupõe a possibilidade de existência da acção; o autor é que, carecendo de interesse em agir, não apresenta esse requisito – pressuposto inominado- para que a acção possa ser admitida. A questão é ainda mais radical (parece ser este o termo); trata-se duma questão que nem sequer é da competência dos tribunais. Não têm natureza jurisdicional os actos de venda de objectos declarados perdidos a favor do Estado, nos termos da Portaria n.º 10.725, de 12-08-44 e DL n.º 12.487, de 14-10-26.
Por isso é de indeferir in limine a acção proposta pelo Ministério Público com vista à venda ou destruição de objectos declarados perdidos a favor do estado, em decisões proferidas em processos, designadamente de natureza penal.

5. Decisão
Pelo exposto, acordam os juizes desta Relação em negar provimento ao agravo, confirmando o decidido em primeira instância.
Sem custas.
Coimbra, 16 de Dezembro de 2003