Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
492/07.7TAMGR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Data do Acordão: 12/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 30º, 203º,204º, Nº1,AL. F) E 212º DO CP E 283ºE 311ºDO CPP
Sumário: 1. A exigência de indicação precisa na acusação dos factos imputados ao arguido, emanação clara do princípio acusatório consagrado na Constituição, art. 32º nº 5, tem como implicação directa, que ninguém pode ser julgado por um crime sem precedência de acusação por esse crime, deduzida por órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Só assim ficam satisfeitas as garantias de defesa que este preceito constitucional consagra.
2.No caso vertente, a acusação rejeitada indicava para os bens subtraídos e apropriados pelos arguidos, valor não concretamente apurado, mas estimado em várias centenas de euros. E indicava prejuízos causados pelos arguidos, de vários milhares de euros, mais concretamente 380.000,00€. E, imputa a prática de um crime de furto p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nº 1, al. f), do CP.
3.A não autonomização do crime de dano pode resultar do entendimento de que não se verifica concurso real, mas concurso aparente, entendendo-se que os prejuízos causados que poderiam integrar a materialidade do dano, são em simultâneo elemento constitutivo da qualificação do furto.
4.De qualquer modo, parece não poder haver lugar a rejeição da acusação porque (mesmo tendo-se por necessário concretizar o valor dos objectos “furtados”) pelo menos haveria factos consubstanciadores do crime de furto simples, e se se entendesse haver lugar a autonomização dos factos que consubstanciam o “dano”, seriam factos autonomizáveis e sobre os quais se poderia lançar mão em tempo oportuno do disposto nos arts. 358º ou 359º do CPP.
5.Assim, e não havendo patente erro de qualificação, não há que corrigir seja o que for, e o juiz nesta, fase processual, não pode adiantar-se a qualquer possível e posterior verificação desse erro, que a verificar-se agrava a posição dos arguidos.
Decisão Texto Integral: No processo supra identificado, após distribuição, pelo juiz competente foi proferido despacho a rejeitar a acusação do Mº Pº, por entender ser, a mesma, manifestamente nula.
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Deste despacho interpôs recurso o Magistrado do Mº Pº, formulando as seguintes conclusões:
1- Os arguidos He S… foram acusados pela prática de um crime de furto, em co-autoria material, p. e p. pelos arts. 203° e 204° n° 1 aI. f) do C. Penal.
2- Para praticarem o crime de furto, os arguidos provocaram danos nas instalações objecto da sua actuação.
3- Embora de forma não absolutamente exacta, o valor dos bens subtraídos foi indicado.
4- A Mma Juíza proferiu despacho de não recebimento da acusação por, no seu entender, o Ministério Público ter omitido a incriminação quanto ao crime de dano e não ter indicado o valor exacto dos bens subtraídos.
5- A destruição, no todo ou em parte, de coisa alheia constitui a prática de um crime de dano, conforme prevê o art. 212° do C. Penal, Porém, quando esses estragos têm por fim a apropriação de uma coisa móvel também alheia, então o crime de dano perde autonomia e a sua punição é consumida pelo crime que o agente teve intenção de praticar, ou seja o de furto. Este tem sido o entendimento quer da doutrina quer da jurisprudência.
6- O valor dos bens subtraídos são um elemento objectivo relevante quer para qualificar quer para desqualificar o crime de furto - arts 203°, 204° nº 1 al. a) e 204° n° 2 al. a) e 4 do C. Penal.
7- Apesar de não ter sido possível calcular o valor exacto dos bens apropriados, como aliás acontece inúmeras vezes, foi indicado um valor estimativo e esse valor permite, sem margem para dúvidas, qualificar o crime pelo valor elevado, pelo menos.
8- Aliás, como referido, o crime pelo qual os arguidos foram acusados não se mostra qualificado pela circunstância valor mas pela circunstância da introdução em lugar vedado, funcionando aquela como agravante da medida da pena, como dispõe o n° 3 do já citado art. 204° do C. Penal.
9- A acusação não enferma de qualquer nulidade nem se lhe podem ser apontados os vícios previstos no art. 311 ° nºs 2 e 3 do C.P .Penal.
10- O Tribunal ao recusar o recebimento da acusação tal como se apresenta violou o disposto nos arts 30° nº 1, 202°, 203°, 204° do C. Penal e 311° do C.P. Penal.
Deve ser revogado o despacho recorrido e determinada a sua substituição por outro que receba a acusação.
Não foi apresentada resposta.
Nesta Relação, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir:
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É do seguinte teor o despacho recorrido:
O Ministério Público deduziu acusação a fls. 49, e segs. contra os arguidos H.. e S…, melhor identificados nos autos, requerendo o seu julgamento perante Tribunal singular pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 203 e 204/1/f) do Código Penal.
Reporta-se a acusação ao local do furto como edifício em construção na zona Industrial que alberga o Centro Empresarial, propriedade da Autarquia.
Quanto ao modo de actuação descreve os arguidos fizeram um buraco na rede das traseiras no edifício, entraram no logradouro e dali no edifício, que ainda não estava fechado.
Refere ainda que os arguidos partiram e tornaram completamente inutilizáveis geradores eléctricos rebentaram o quadro geral de electricidade, cortaram fios eléctricos e levaram-nos, abriram um buraco no tecto falsos e retiraram todos os fios que atravessavam a zona superior do edifício.
Os fios valiam centenas de euros.
Os prejuízos causados ascendem a € 380.000. Mais aponta a conduta dos arguidos como dolosa.
No entanto, apesar de fazer constar na acusação estes últimos factos, que aliás foram objecto de denúncia, não se tomou posição designadamente no sentido de arquivar ou acusar pelo crime de dano.
Certo é que constando em parte da acusação, não podem ser ignorados.
Ora, tal como se mostra formulada encontra-se ferida de nulidade, como adiante se explicitará, atenta a falta de alegação de factos atinentes ao crime imputado aos arguidos, a saber o valor do objecto furtado.
Dispõe o n.º 3 do art. 283 do Código de Processo Penal, na alínea b) que a acusação contém, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar e o tempo, a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da medida da sanção que lhe deva ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
As definições legais mostram-se explanadas no art. 202 do Código Penal: «Para efeito do disposto nos artigos seguintes considera-se: a) Valor elevado: aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto; b) Valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto; c) Valor diminuto: aquele que não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto; ( ... ).
De acordo com o artigo 3° da Lei n° 65/98, de 2 de Setembro, para efeitos das alíneas a), b) e c), o valor da unidade de conta é o estabelecido nos termos dos artigos 5 e 6/1, do Decreto-Lei n" 212/89, de 30 de Junho.
Ora, tal como se encontra formulada a acusação não pode ser recebida para ser levada a julgamento visto que é omissa quanto à indicação da disposições também aplicáveis dos arts. 213/2/a) e 202/b) do Código Penal, sendo certo que nessa peça processual se refere os elevados prejuízos, indicando-os, sem que quanto a esse ilícito se conclua pela indicação da norma aplicável (cfr. art. 283/3/c) do Código de Processo Penal).
Acresce que não tendo usado o mecanismo previsto no art. 16/3 do Código de Processo Penal a verificar-se em julgamento, e só nesse momento seria possível fazê-lo caso fosse recebida a acusação, poderia estar vedado ao Tribunal o conhecimento do mérito a apreciação da causa e a prolação da decisão, verificada a excepção da incompetência, atenta a moldura penal abstracta de prisão aplicável aos crimes, no caso especifico do furto qualificado do n. ° 1 do art. 204 do Código Penal (até 5 anos) e do art. 213/2/a) e 202/b) do Código Penal (de 2 a 8 anos de prisão), que extravasa os 5 anos, conforme previsão dos arts. 14/2/b), 16, 32 e 33 todos do Código de Processo Penal.
O que redundaria na prática de uma série de actos inúteis desde a notificação nos termos do art. 313 do Código de Processo Penal, até à audiência em si, e como tal proibidos por lei nos moldes a que alude o art. 137 do Código de Processo Civil aqui aplicável.
O art. 311/1 do Código de Processo Penal prevê a apreciação das nulidades e questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa e desde logo se possa conhecer, o que agora se faz.
Pelo exposto, e com fundamento nas disposições legais atrás invocadas, rejeito a acusação, por manifestamente nula.
Notifique.
Após trânsito devolva aos SMP.
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Analisando:
O despacho recorrido insere-se, é proferido ao abrigo do disposto no art. 311 do CPP, entendendo-se haver fundamento de rejeição da acusação, por a mesma ser manifestamente nula.
- Porque não concretiza o valor dos bens furtados;
- Porque não autonomiza os factos integradores do crime de dano, com indicação das disposições penais aplicáveis.
Embora sob a capa da nulidade, o que o juiz faz é pronunciar-se sobre o mérito do objecto da causa, sendo certo que deste faz parte a qualificação jurídica.
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A acusação deve conter a narração clara, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e, indicar as disposições legais aplicáveis, cabendo ao juiz rejeitá-la quando não satisfaz os requisitos formais previstos no art. 283 al. b) e c), do CPP.
A exigência de indicação precisa na acusação dos factos imputados ao arguido, emanação clara do princípio acusatório consagrado na Constituição, art. 32 nº 5, tem como implicação directa, que ninguém pode ser julgado por um crime sem precedência de acusação por esse crime, deduzida por órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Só assim ficam satisfeitas as garantias de defesa que este preceito constitucional consagra.
Há a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles possa convenientemente defender-se, e para que não possa ser surpreendido em julgamento com factos que a acusação não lhe tivesse posto «diante dos olhos».
No caso vertente, a acusação rejeitada indicava para os bens subtraídos e apropriados pelos arguidos, valor não concretamente apurado, mas estimado em várias centenas de euros. E indicava prejuízos causados pelos arguidos, de vários milhares de euros, mais concretamente 380.000,00€.
E, imputa a prática de um crime de furto p. e p. pelos arts. 203 e 204 nº 1 al. f) do CP.
Valor estimado em várias centenas de euros, certamente, e de acordo com as regras da experiência, que é superior a uma centena, 100,00€, pelo que afastada ficaria a hipótese de desqualificação, tendo em conta o disposto no nº 4 do art. 204 e a al. c) do art. 202, ambos do CP.
Por outro lado, a não autonomização do crime de dano pode resultar do entendimento de que não se verifica concurso real, ma concurso aparente, entendendo-se que os prejuízos causados que poderiam integrar a materialidade do dano, são em simultâneo elemento constitutivo da qualificação do furto.
Para a apropriação dos fios eléctricos já aplicados, destruíram três quadros eléctricos e rebentaram o quadro geral de electricidade e destruíram o tecto falso abrindo buracos.
Estes actos “danosos” foram todos necessários para a apropriação dos fios eléctricos?
No entender da acusação parece que sim, desse entendimento resultando que não haveria concurso real, mas sim concurso aparente de crimes, por os “factos danosos” qualificarem o “furto”.
De qualquer modo, parece não poder haver lugar a rejeição da acusação porque (mesmo tendo-se por necessário concretizar o valor dos objectos “furtados”) pelo menos haveria factos consubstanciadores do crime de furto simples, e se se entendesse haver lugar a autonomização dos factos que consubstanciam o “dano”, seriam factos autonomizáveis e sobre os quais se poderia lançar mão em tempo oportuno do disposto nos arts. 358 ou 359 do CPP.
Conforme refere o Prof. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 58, o nosso actual sistema de processo penal consagra a estrutura acusatória do processo. E nem o facto de tal estrutura ter, no nosso Código de Processo Penal, algumas limitações, elas limitam-se apenas à fase do inquérito. Isto significa que o juiz tem de ser imparcial relativamente às posições assumidas pela acusação e pela defesa e, por isso, não pode nunca assumir a veste de acusador, ainda que indirectamente provocando a acusação do Mº Pº ou definindo-lhe os termos.
Acrescentando, no processo penal, a acusação é que define o objecto do processo e este integra não só os factos mas também a pretensão que nela se formula.
O juiz do futuro julgamento, com a posição de independência em relação quer ao acusador quer ao acusado, não pode nem deve ultrapassar o objecto que lhe é submetido, sendo certo que este compreende a qualificação jurídica, até porque um dos requisitos obrigatórios da acusação é a indicação das normas legais aplicáveis.
Como se refere no Ac. desta Relação de 05-01-2000, in Col. Jurisp. Tomo I, pág. 42, “o juiz não pode, no despacho a que se refere o art. 311, sem mais, alterar a qualificação jurídica dos factos. Exige-o a estrutura acusatória do processo e a posição do juiz nesta fase processual. Nesta o juiz deve limitar-se a pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa (art. 311 nº 1) e não pronunciar-se sobre o próprio mérito do objecto da causa, sendo certo que deste faz parte a qualificação jurídica. Tomar posição sobre ela será tomar posição como defensor ou como acusador, uma vez que ainda não exerce funções de julgador nem pode antecipar-se a elas”.
Assim parece-nos acertado concluir como no Acórdão desta Relação referido:
- Qualificar os factos acusados como um crime como constituindo vários crimes, é efectuar uma alteração substancial da acusação.
- Se o juiz, ao proferir o despacho a que se refere o art. 311, verificar que há um claro erro na subsunção dos factos às normas incriminadoras, deve rejeitar a acusação, permitindo ao acusador a rectificação de tal erro.
- Se o erro é apenas possível, não pode, sob pena de alterar o objecto do processo e assumir a posição de acusador, alterar (ou mandar alterar) a qualificação jurídica dos factos, sobretudo se esta agrava a posição do arguido.
No caso em apreço, resulta que o Mº Pº tomou uma posição em determinado sentido (concurso aparente de crimes) quanto à qualificação jurídica dos factos que acusa. Posição que será seguida, ou não em julgamento e face aos factos que se apurarem.
Como refere o Exmº PGA, as questões suscitadas “são discutíveis”, frisando “o quão complexa é a questão do concurso entre os crimes de dano e furto”.
Assim, e não havendo patente erro de qualificação, não há que corrigir seja o que for, e o juiz nesta, fase processual, não pode adiantar-se a qualquer possível e posterior verificação desse erro, que a verificar-se agrava a posição dos arguidos. “Só o julgamento o dirá e só então terá lugar a solução do caso com recurso ao art. 359” –Ac. desta Relação seguido.
Face ao exposto, temos como procedente o recurso, sendo de revogar o despacho recorrido.
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Decisão:
Pelo que exposto ficou, acordam na Relação de Coimbra e Secção Criminal, em:
Julgar o recurso procedente e em consequência revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que receba a acusação e prossiga com os autos.
Sem custas.
Coimbra,
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