Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1019/05.0GCVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCIPIO DA IMEDIAÇÃO
PRINCIPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCIPIO IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 02/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 2.º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 127.º; 355.º; E 412.º, N.ºS 3 E 4; 428.º DO C.P.P..
Sumário: I. - A sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações (cfr. ac. do S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt): 1ª) – a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam; 2ª) - a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações; 3ª) - a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso; 4ª) - a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º].
II. - A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe, sendo, essencialmente, a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
III. - Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. E não será a circunstância, normal nas lides judiciais, de se contraporem, pela prova pessoal (declarações e testemunhos), versões distintas, a impor que o julgador seja conduzido, irremediavelmente, a uma situação de dúvida insuperável. A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados, não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos.
Decisão Texto Integral: 16

I – RELATÓRIO
1. No processo comum com intervenção do tribunal singular registado sob o n.º1019/05.0GCVIS, a correr termos no 2.º Juízo de competência especializada criminal de Viseu, a arguida …, melhor identificada nos autos, foi submetida a julgamento pelos factos constantes da acusação deduzida nestes autos pela imputada violação do «disposto nos arts. 18.º n.º1 e 24.ºn.º1, ambos do C.E., punidos nos termos do n.º3 das citadas disposições, tornando-se autora, em concurso ideal homogéneo, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p.p. no art. 148.º n.º1 do C.P.».
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu condenar a arguida na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante de € 600,00 (seiscentos euros), pela prática, como autora material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal.
2. Inconformada, a arguida interpôs recurso, formulando, na motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1.Foi a ora recorrente condenada pela prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência inconsciente, nos termos do artigo 148.º do Código Penal.
2. A sentença baseou-se nos depoimentos da assistente e do seu marido, a testemunha A…, depoimentos necessariamente parciais e nada isentos (gravados em suporte digital (CD), devidamente identificado.
3.Em sede de audiência de discussão e julgamento foram lidas as declarações prestadas por J… a fls 50 e 51 dos autos recorridos.
4. Declarações que sempre e pelo menos deveriam ter instalado a dúvida no pensamento do julgador, porquanto as mesmas invalidam as declarações da assistente e do seu marido.
5.Na realidade, a assistente e o seu marido disseram, que no momento do embate estavam parados há já algum tempo atrás do veículo da testemunha …, mais disseram que tinham ultrapassado o veículo da recorrente muito antes, onde a via tinha três faixas.
6. Ora, como poderiam estar parados há minutos, se o veículo que se encontrava à sua frente estava a abrandar. Para além de que a testemunha … disse ainda que sempre teve a percepção de que quem seguia atrás de si era o veiculo da recorrente e que nunca se apercebeu do ligeiro.
7. Ora, estas duas versões não coincidem. E salvo o devido respeito e elevada consideração pelo digníssimo Tribunal recorrido, tendo que ponderar entre valorar uma versão ou outra, sempre terá de cair o lado da razão para a versão da testemunha …, o qual não tem interesse nenhum nesta causa.
8. E também o depoimento da testemunha …, soldado da GNR (gravado em suporte digital (CD) devidamente identificado) esclareceu que, ao contrário do que foi dito pela assistente e pelo seu marido, não havia trânsito em sentido inverso, porque a estrada era cortada de modo a permitir a passagem de máquinas de um lado ao outro da estrada.
9. Ficou ainda patente que a arguida seguia dentro dos limites de velocidade permitidos por lei.
10.E não pode deixar de se referir nestas conclusões que, tendo em conta a experiência da vida e de acidente a que todos os dias assistimos, que se o embate do veículo da recorrente tivesse ocorrido como relata a acusação, o veiculo ligeiro ter-se-ia enfaixado por debaixo do camião conduzido pela testemunha J… .
11. Não é tão pouco credível que, num acidente com as características relatadas pela acusação, o veículo rodopie.
12. Pelo que se impunha a aceitação da verdade, ou seja a aceitação da versão da recorrente, versão aliás sustentadas pelo croqui do acidente elaborado pela GNR, e que foi aceite pela Companhia de Seguros do veículo onde seguia a assistente; Companhia de Seguros que assumiu a culpa total do seu segurado pela ocorrência do acidente.
13. Nessa conformidade sempre se haveria de dar como não provadas as alíneas H), R), S) e X) dos factos provados e provados os factos 1), 2), 3), 4) e 5) dos factos não provados.
14.A douta sentença recorrida viola assim o disposto no artigo 148.º, n.º1 do CP, pelo que deve ser substituída por outra em que se absolva a arguida.
3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, sustentando a confirmação da sentença recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição parcial):
1 - Por douta sentença de fls. 346 a 352, foi a arguida condenada, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €6, pela prática como autora material de um crime de ofensas à integridade física por negligência, p.p. pelo art.148° n.º1 do Cód.Penal.
2 - Nos termos do Art. 127° CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Tal princípio não é, logicamente uma apreciação imotivável e arbitrária da prova que foi produzida nos autos, já que é com a referida prova que se terá de decidir.
3 - Ora, ouvidas as cassetes e sobretudo lida a fundamentação da sentença quanto à convicção do Tribunal no que reporta à matéria de facto provada e não provada, verificamos, sem sombra para dúvidas, que na audiência de julgamento ficaram à saciedade provados os factos de que a arguida vinha acusada e pelos quais foi condenada, sendo a leitura de tal convicção do Tribunal suficiente para se perceber o raciocínio lógico que permitiu ao Tribunal a quo decidir pela condenação ora posta em crise.
4 - Deste modo, em nosso entender, nada há a censurar relativamente à matéria de facto dada como provada e não provada, e bem assim quanto à sua fundamentação, ora Impugnadas e que deverão merecer a total concordância desse Tribunal.
5 - Da análise do croquis (junto a fls.6) e que foi confirmado pelo seu autor, a testemunha …, mais resulta ainda que o primeiro embate se deu ao centro da parte da frente do veículo conduzido pela arguida e o segundo embate ter-se-á dado entre o lado frontal esquerdo do veículo ligeiro XM-00-00 e o veículo pesado que o precedia.
6 - As declarações da testemunha …, legalmente lidas em sede de audiência de julgamento com a concordância de todos os intervenientes em nada abalam o teor dos depoimentos das já referidas testemunhas, e bem assim o decidido pela Mmo Juiz já que aquele refere expressamente apenas ter sentido o embate do ligeiro no camião por si conduzido, não sabendo há quanto tempo seria esse ligeiro o carro que o precederia, que, segundo diz, deduz “assim que tivesse ultrapassado o n.º1 (ou seja, a arguida) muito poucos minutos antes do acidente”, ora se o veículo ligeiro ultrapassou a arguida minutos, ainda que poucos, antes do acidente, então não o estava a ultrapassar no momento imediatamente antes em que se deu o embate.
7 - De facto, e segundo até a tese da arguida, na qual jamais poderemos acreditar., e já veremos porquê, se aquela seguia naquele momento a uma velocidade de 77 ou 78 Km/h. então uns minutos antes (e fazemos a conta pelo mínimo, ou seja 2) sempre teria essa ultrapassagem acontecido cerca de 2,56Km antes, e não imediatamente antes do acidente.
8 - Pelo contrário, a arguida sim relata toda uma tese incredível e desconforme às normas e às
regras gerais do acontecer.
9 - Da análise do tacógrafo e respectivo relatório pericial resulta que ao chegar ao local do acidente a arguida circulava a 77Km/h havendo um abrandamento brusco para os 50 Km/h velocidade a que seguia quando se dá o embate no ligeiro.
10 - E a ausência de rastos de travagem também por si reforça a convicção de que a arguida parou quando imobilizou o seu veículo o que, como relatou a assistente, ocorreu quando embateu no veiculo ligeiro em que esta seguia,
11 - O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO é uma imposição dirigida ao Juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões diferentes e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do Julgador, só podendo ser afirmada, quando do texto da decisão recorrida, decorrer, de forma evidente, que o tribunal, na dúvida, decidiu contra o arguido.
12 - Ora conforme já vimos o Tribunal a quo não teve quaisquer dúvidas quanto à ocorrência dos factos que considerou provados, posição com a qual, como supra já se expôs, também nós concordamos, e não havendo dúvidas, antes certezas resultantes de se terem provado todos os factos de que o arguido se encontrava acusado, nada justificava a aplicação do dito princípio, pelo que Também neste ponto deve igualmente improceder o recurso.
(…)
4. A assistente … também respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência (fls. 425 e seguintes).
5. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de que deverá improceder.
6. Respondeu a recorrente, mantendo a posição assumida no recurso.
7. Foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2 (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.99, CJ/STJ, Ano VI, Tomo II, p. 196).
Atento o teor das conclusões, identificam-se como questões que a recorrente pretende sejam apreciadas: a impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos H), R), S) e X) dos factos provados (e que a recorrente pretende sejam considerados não provados), bem como aos pontos 1), 2), 3), 4) e 5) dos factos não provados (que a recorrente entende terem sido provados).
2. A sentença recorrida
2.1. Na sentença proferida na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
A) No dia 5 de Setembro de 2005, pelas 14 horas, a arguida conduzia o veículo automóvel pesado de mercadorias, com a matrícula 00-00-XD, no Itinerário Principal n.º 5 (IP 5), no sentido Aveiro/Viseu.
B) Ao km 75,1, junto à saída Routar – Boa Aldeia – Viseu, o IP configura uma recta, tendo a via a largura de 7 metros, com duas faixas de rodagem, sendo uma para cada sentido de trânsito, que são separadas por traço longitudinal contínuo.
C) Nas circunstâncias de tempo e lugar acima referidas, estava bom tempo.
D) Naquele local e na referida data e hora, circulavam vários veículos no IP 5, em ambos os sentidos, havendo grande intensidade de tráfego.
E) A arguida circulava, tripulando o veículo identificado em A), e antes de chegar àquele local (km 75,1 do IP 5), a uma velocidade variável, oscilando entre os 60 km/hora e os 87 km/hora, pelo menos.
F) Ao chegar ao km 75,1 do IP 5, a arguida circulava à velocidade de, pelo menos, 77 km/hora.
G) Precedendo o veículo conduzido pela arguida, seguia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula XM-00-00, conduzido por … e propriedade deste, que circulava no sentido mesmo sentido de marcha (Aveiro/Viseu).
H) Ao chegar àquele local do IP 5, o veículo conduzido pela arguida, que ia animado da velocidade, nesse momento, de pelo menos 50 km/hora, embateu, com a sua parte frontal, na traseira do veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula XM-00-00, projectando-o contra o veículo pesado de mercadorias, com a matrícula 00-00-RE, que, por sua vez, o precedia.
I) No referido local, não foram registados rastos de travagem.
J) No interior do veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula XM-00-00, seguiam, para além do seu condutor, a mulher deste e ora assistente, …, e os filhos menores de ambos, … e …, nascidos a 10/07/1997 e a 15/11/2000, respectivamente.
L) Na sequência do embate e por causa deste, todas estas pessoas sofreram ferimentos.
M) Como consequência directa do acidente descrito, … sofreu traumatismo abdominal e dores cervicais, que lhe determinaram um período de doença de 1 (um) dia, sem afectação da capacidade para o trabalho profissional.
N) Como consequência directa do acidente descrito, a assistente … sofreu traumatismo no ombro direito, bacia e costelas, com dor à compressão do tórax e dor esternal, resultando em traumatismo cervical e lombar, que lhe determinaram um período de doença de 169 (cento e sessenta e nove) dias, com afectação da capacidade para o trabalho.
O) Como consequência directa do acidente descrito, … sofreu traumatismo no pé esquerdo, com dor no tendão de Aquiles, que lhe determinaram um período de doença de 1 (um) dia, sem afectação da capacidade para o desempenho da actividade da sua vida diária.
P) Como consequência directa do acidente descrito, … sofreu dores abdominais, com abdómen difusamente doloroso à palpação, mas sem defesa, o que lhe determinou um período de doença de 1 (um) dia, sem afectação da capacidade para o desempenho da actividade da sua vida diária.
Q) Todos os ocupantes do veículo ligeiro de passageiros acima identificado receberam tratamento hospitalar, na sequência do acidente, no Hospital de São Teotónio.
R) O acidente supra relatado resultou da conduta da arguida, que agiu de forma inconsiderada e descuidada, sem a cautela e a precaução que devia e podia ter observado, na condução do veículo automóvel pesado de mercadorias identificado, bem sabendo que desrespeitava as regras estradais que lhe impunham que regulasse a velocidade do veículo que tripulava, tendo em conta as condições da estrada e a intensidade de trânsito no local, e que efectuasse, em condições de segurança, as manobras necessárias a fazer parar esse veículo no espaço livre e visível à sua frente e a manter entre o seu veículo e o que a precedia a necessária distância, para evitar qualquer acidente, o que não previu viesse a acontecer.
S) A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta e punida por lei.
T) A arguida não tem antecedentes criminais.
Mais se provou:
U) A arguida é camionista e, na data referida em A), efectuava transporte de mercadorias, ao serviço da empresa J…, Lda., proprietária do veículo pesado de mercadorias que então conduzia.
V) Espírito Santo, Companhia de Seguros, S.A., para a qual A… proprietário do veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula XM-00-00, havia transferido a responsabilidade civil emergente da respectiva circulação, pagou à J…, Lda., a 09/06/2006, a quantia de € 646,36, para regularização do sinistro participado.
Também se provou:
X) Na data, hora e local acima referidos em A) e B), decorriam obras de beneficiação do IP 5, encontrando-se o tráfego condicionado, por estar aberta apenas uma faixa de rodagem, circulando os veículos alternadamente, por essa única faixa, ora no sentido Aveiro/Viseu, ora no sentido inverso, mediante sinalização efectuada por operário que ali se encontrava.
Z) No momento do embate, o tráfego no sentido Aveiro/Viseu estava parado, em fila.
AA) Naquele local, no sentido Aveiro/Viseu, a via tem inclinação ascendente.
2.2. Quanto a factos não provados consignou-se como não demonstrado (transcrição):
Com relevância para a causa, resultaram não provados os factos seguintes:
1) Ao chegar ao km 75,1 (Routar – Boa Aldeia – Viseu), a arguida apercebeu-se de que o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula XM-00-00, começou a ultrapassar um veículo pesado de mercadorias, que circulava imediatamente atrás do veículo que a arguida tripulava, tendo começado tal manobra num local onde se encontra uma linha de traço contínuo.
2) O veículo ligeiro de passageiros completou a manobra, ultrapassando também a arguida, ainda sobre o traço contínuo.
3) Alguns metros adiante, a arguida apercebeu-se de que o veículo ligeiro de passageiros, não tendo tempo de travar, embatera num outro veículo automóvel, que estava parado na faixa da direita, em que ambos circulavam.
4) Ao deparar-se com esse acidente, a arguida travou, tendo conseguido parar o seu veículo.
5) O veículo ligeiro de passageiros, ao embater no veículo que se encontrava imobilizado, não conseguiu estabilizar-se, tendo feito “ricochete”, vindo embater na parte frontal esquerda do veículo conduzido pela arguida.
2.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
O tribunal fundou-se, para a formação da sua convicção, quanto aos factos provados, na ponderação crítica e à luz das regras da experiência comum da prova produzida e contraditada em sede de audiência de julgamento, mormente nas declarações da assistente, das testemunhas e nos documentos e relatórios periciais juntos aos autos.
Foi particularmente importante a conjugação e confrontação dos elementos documentais do processo com os depoimentos produzidos no julgamento ou submetidos a contraditório, quer para prova das características do local do acidente, das circunstâncias em que o mesmo ocorreu, quer para prova da própria actuação da arguida, quer ainda para prova das consequências do acidente.
Entre os elementos probatórios relevantes para esse efeito, destacam-se a participação de acidente de fls. 5 e ss., os elementos clínicos da assistente e do ofendido e testemunha … (fls. 16 e ss. e 25 e ss.), as fotografias de fls. 108 a 111, os relatórios dos exames médico-legais realizados aos quatro ofendidos (fls. 117 e ss., 121 e ss., 125 e ss., 129 e ss. e 155 e ss.), os documentos de fls. 289 a 290, relativos ao seguro e ao pagamento da quantia para regularização do sinistro participado, e o relatório pericial de apreciação do tacógrafo (que foi também analisado em audiência de julgamento) constante de fls. 317 e ss..
Este acervo probatório foi apreciado conjuntamente com as declarações da assistente, da testemunha e ofendido … e da testemunha …, agente da GNR que procedeu à elaboração da participação do acidente, e ainda com a leitura das declarações de fls. 50 e 51 e 69 e 70, prestadas por … e ….
Destacam-se as declarações da assistente e das duas primeiras testemunhas, sempre apreciadas à luz das regras da experiência e não perdendo de vista o teor da prova documental e pericial dos autos, que vieram a resultar numa exposição consonante e consistente do acidente e do comportamento daqueles que nele intervieram, designadamente a arguida.
Tanto a assistente como as testemunhas se mostraram coerentes, sinceras, espontâneas e seguras, não se suscitando dúvidas acerca da veracidade dos seus depoimentos, que foram expressivos e credíveis. Mesmo tratando-se das pessoas envolvidas directamente nos factos, a assistente e a primeira testemunha mencionada conseguiram explicar ao tribunal, de forma imparcial, correcta, sem hesitações e perfeitamente compatível com a normalidade da experiência, em que circunstâncias se deu o embate (o tráfego que existia, as obras na estrada, o tempo que fazia, etc.), bem como o modo como o embate se processou e como actuaram os próprios e também a arguida.
Em particular no que toca à actuação irreflectida da arguida, o tribunal alicerçou-se, para a respectiva prova, na conjugação de todos os elementos probatórios apontados, apreciados à luz das regras da experiência. Pelo modo como sucedeu o acidente e considerando especialmente a velocidade que imprimia ao veículo e a forma como veio a embater no veículo dos ofendidos, apenas podia o tribunal concluir, como sucederia com qualquer pessoa com uma mediana atenção e um comportamento considerado normal e adequado pelos padrões sociais dominantes, que a arguida agiu de modo impensado e desprevenido, contrariamente ao que poderia e deveria ter feito, pois era-lhe exigível a atenção que se demanda a qualquer condutor médio.
Já a versão da arguida não obteve qualquer acolhimento. A forma como narrou o acidente ao tribunal não encontrou apoio em qualquer elemento de prova (seja documental, pericial ou testemunhal), bem pelo contrário. Apresentou um relato notoriamente parcial e comprometido, que não tem sequer consonância com as regras da experiência nem com a maneira como se comportam os condutores e os veículos, aquando de um embate. A sua versão foi francamente inverosímil e, por isso, não mereceu qualquer crédito, até porque nada houve que levasse sequer a criar uma dúvida no espírito do tribunal no sentido do alegado pela arguida.
As suas declarações foram sobretudo contrariadas pelo teor da participação do acidente (da qual decorre a posição dos veículos após o embate e a inexistência de quaisquer rastos de travagem) e pelo relatório do exame pericial feito ao tacógrafo do veículo conduzido pela arguida (do qual emergem, deduzidas as margens de erro aí expressas, as velocidades a que este seguia, antes de atingir o local do acidente e depois aí, na altura do próprio embate). Daí resulta inequivocamente que o acidente não se verificou da maneira como a arguida avançou, que sempre se afiguraria, diga-se, pelo menos bizarra (e que veio até a revelar-se contraditória, pois se a arguida disse ter travado a tempo e com a distância suficiente, não se compreende como ficou tão perto do veículo ligeiro, após o embate e o dito “ricochete”), mas sim do modo como consta dos factos provados.
Assim, da apreciação das declarações da arguida, teve necessariamente o tribunal que dar como não provados os factos da contestação e aqueles que por ela foram declarados na audiência de julgamento.
A ausência de antecedentes criminais da arguida decorreu da análise do certificado do registo criminal de fls. 255.
3. Apreciando
3.1.Como dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma doravante designado de C.P.P.), os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito. Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º3 e 431.º do C.P.P., ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Resulta da análise da motivação que a recorrente discorda da matéria de facto dada como provada e não provada.
3.2. É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P.Penal.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.Penal:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.). É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411.º, n.º4.
3.3. Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º – também neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt].
3.4. Explicitado o entendimento sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, importa entrar, agora, na reapreciação dessa matéria dentro dos limites e condicionalismos acima referidos.
Examinada a prova gravada, constata-se que as versões da arguida, por um lado, e da assistente e do seu marido, por outro, são contrastantes.
O tribunal acolheu a versão apresentada pela assistente e pela testemunha …, quanto à produção do acidente, assinalando que «Tanto a assistente como as testemunhas se mostraram coerentes, sinceras, espontâneas e seguras, não se suscitando dúvidas acerca da veracidade dos seus depoimentos, que foram expressivos e credíveis. Mesmo tratando-se das pessoas envolvidas directamente nos factos, a assistente e a primeira testemunha mencionada conseguiram explicar ao tribunal, de forma imparcial, correcta, sem hesitações e perfeitamente compatível com a normalidade da experiência, em que circunstâncias se deu o embate (o tráfego que existia, as obras na estrada, o tempo que fazia, etc.), bem como o modo como o embate se processou e como actuaram os próprios e também a arguida.»
Diversamente, referindo-se às declarações da arguida, o tribunal a quo assinalou: «A forma como narrou o acidente ao tribunal não encontrou apoio em qualquer elemento de prova (seja documental, pericial ou testemunhal), bem pelo contrário. Apresentou um relato notoriamente parcial e comprometido, que não tem sequer consonância com as regras da experiência nem com a maneira como se comportam os condutores e os veículos, aquando de um embate. A sua versão foi francamente inverosímil e, por isso, não mereceu qualquer crédito, até porque nada houve que levasse sequer a criar uma dúvida no espírito do tribunal no sentido do alegado pela arguida
Além do mais, o tribunal não se bastou com declarações e depoimentos, tendo igualmente considerado, como se explicita na sentença, o teor da participação «da qual decorre a posição dos veículos após o embate e a inexistência de quaisquer rastos de travagem» e o relatório do exame pericial feito ao tacógrafo do veículo conduzido pela arguida «do qual emergem, deduzidas as margens de erro aí expressas, as velocidades a que este seguia, antes de atingir o local do acidente e depois aí, na altura do próprio embate».
Como já se assinalou, ao contrário do que ocorreu com a 1.ª instância, este tribunal não beneficia da imediação, estando limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
Na falta da imediação, o que podemos dizer é que a audição a que procedemos da prova gravada não desmente o juízo efectuado pela 1.ª instância quanto à credibilidade dos depoimentos.
Invoca a recorrente que a sua versão dos factos é verosímil, enquanto as declarações da assistente teriam sido produzidas «em tom nervoso e manifestamente exaltada, com manifesto “tremelique” de voz, associado à falta de verdade».
Ora, o que se alcança da audição dos CDs, não corrobora o entendimento da recorrente e não põe minimamente em crise a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida.
No que toca às declarações da arguida, são diversas as incongruências que se identificam na sua versão dos factos.
Diz que seguia no IP 5, num troço com inclinação ascendente atento o sentido da sua marcha, carregada com 24 toneladas de papel. Seguia devagar. Apercebe-se pelo espelho que vinha um carro a ultrapassar um contínuo. E acrescenta:
«Apercebi-me de um camião parado em cima, o homem da obra a mandar parar com um Stop e eu ia a subir e parei. Ele bateu-me no canto esquerdo no pisca. Ele bate no camião com uns contentores. Parece que ainda estou a ver os contentores verdes que estavam a minha frente. (…) bate no meu carro e anda ali a bailar»
Logo a seguir, diz que o veículo ligeiro em que seguia a assistente havia ultrapassado um certo camião que seguia atrás do pesado que a arguida conduzia, mas não só, pois ao ser perguntada sobre se «eles já vinham a ultrapassar o camião que vinha atrás de si?» responde «Já. Vinham a ultrapassar os outros todos.». Esta afirmação pressupõe terem sido ultrapassados vários veículos.
Seguidamente, porém, parece que só parou a viatura que conduzia quando foi embatida no pisca do lado esquerdo e não por se ter apercebido de um camião parado à sua frente e da presença de um indivíduo com um Stop:
Juíza: Com 24 toneladas e meia de papel. Olhe, e depois? A senhora diz que ele bateu no da frente ..
Arguida: Sim. Bateu-me primeiro no pisca do lado esquerdo. Ao bater no meu pisca, ao entrar
Juíza: E aí a senhora conseguiu parar ou ainda prosseguiu a marcha? Quando ele lhe tocou?
Arguida: Não. Não, eu parei logo ali naquele momento. Quando ele bateu eu parei logo. Foi logo assim.
Juíza: E ele bateu no da frente?
Arguida: Bateu no da frente, dos contentores. Fez ricochete e foi bater a mim.
Aliás, numa passagem gravada no CD 1 (00:25:23), lá admitiu que só se apercebeu do indivíduo da obra que estava a regular o trânsito com as raquetes, já depois do embate e quando já estava fora do camião.
Tendo exemplificado, com referência ao espaço da sala de audiências, a distância a que ficou do camião com os contentores que a precedia, a arguida disse que o ligeiro em que seguia a assistente teria ido bater no referido camião, feito ricochete, indo embater com a traseira na grelha do veículo por si conduzido, andando depois «ali às voltas» e a «bater no separador de um lado e do outro. Parou logo ali o trânsito todo».
O que significa que no espaço entre o camião da arguida, já parado, e o camião que seguia à sua frente, o veículo ligeiro teria ido embater no camião com os contentores, sendo depois projectado para trás de forma a ir bater na grelha frontal do camião da arguida, nos separadores «de um lado e do outro», dando as tais «voltas» e andando «ali à roda», voltando a encaixar-se entre os dois camiões, conforme a sua posição final. Atente-se, a este respeito, as distâncias evidenciadas pelo croquis entre a posição final da viatura da arguida e o veículo pesado que precedia o ligeiro onde seguia a assistente.
A M.ma Juíza não deixou de fazer notar à arguida alguma estranheza quanto à explicação dada, confrontando-a, depois, com a circunstância de não ter sido constatada a existência de quaisquer rastos de travagem.
A arguida, que conforme se demonstrou a partir da análise do tacógrafo e ficou provado, seguia a uma velocidade variável, oscilando entre os 60 km/hora e os 87 km/hora, pelo menos [facto E)]; que ao chegar ao km 75,1 do IP 5, circulava à velocidade de, pelo menos, 77 km/hora [facto F)]; e que no momento do embate (o da paragem repentina) seguia a pelo menos 50 km/hora [facto H), 1.ª parte], quando questionada sobre a inexistência de rastos de travagem respondeu que «se eu vinha a subir como é que vou travar?» Porém, mais adiante, lá admitiu, com dificuldade e num discurso particularmente confuso e incoerente – até inverosímil, quanto à maior facilidade de um camião, carregado com 24 toneladas, parar mais facilmente a descer do que a subir – que havia travado.
Porém, já fica por explicar a circunstância de, na versão da arguida, o ligeiro vir em ultrapassagem de diversos veículos, o que o obrigaria, necessariamente, a suplantar a velocidade a que seguiam os veículos ultrapassados, incluindo o que era conduzido pela arguida, e ter, a dado momento, virado para o lado direito, de modo a embater no pisca esquerdo do camião da arguida, indo depois bater no camião com os contentores parado à frente, com o ricochete e as «voltas» descritas, tudo isto sem que se tenham observado rastos de travagem. Ora, efectivamente, se o ligeiro vinha em ultrapassagem de pelo menos dois camiões e, ainda assim, logrou virar para a direita e encaixar-se entre o camião que a arguida conduzia e o camião com os contentores, natural é que tivesse travado e que essa travagem tivesse deixado alguma sinalização no pavimento.
A este respeito importa salientar que a testemunha …, soldado da G.N.R. que elaborou o auto de notícia, disse em audiência, de forma clara, que não existiam rastos de travagem, nem na hemi-faixa de rodagem da esquerda, nem na direita. Mais: quando perguntado sobre se os danos verificados no camião conduzido pela arguida, seriam frontais, na grelha, respondeu afirmativamente.
E quanto à sinalização das obras, disse a arguida não se ter apercebido de qualquer outra sinalização para além do tal indivíduo com as raquetes – que, afinal, só viu já depois do acidente, a fazer fé nas suas palavras.
Porém, a testemunha …, diversamente, disse que as obras estavam sinalizadas, que «estavam lá os cones de água, tem um termo técnico, chamamos àquilo separadores de plástico». Questionado sobre se tal acontecia antes da própria obra ou só no local desta, respondeu que «eles por acaso sinalizam aquilo bem, com bastante antecedência» e que «as obras estavam sinalizadas».
Importa realçar que relativamente a alguns passos das declarações da arguida transcritas na motivação do recurso constata-se existirem desfasamentos em relação ao que efectivamente se colhe da audição do registo gravado.
É o que ocorre, por exemplo, com a descrição das manobras que estariam a ser realizadas no local das obras e a possibilidade de existência de dois indivíduos com raquetes a orientar o trânsito, para permitir a passagem do camião das obras de um lado para o outro. Ouvida a gravação, constante do CD1, verifica-se que a arguida não disse ter visto alguém com uma raquete a mandar parar o trânsito que vinha do lado oposto, tendo respondido, simplesmente, «não reparei», diversamente do que consta da passagem transcrita.
Mais concretamente sobre o ponto de facto X), a própria arguida, questionada pela M.ma Juíza, corroborou que havia trânsito da faixa contrária, como se infere do registo no CD 1 (00:13:48): «havia muito trânsito que até pararam logo».
Em suma: nada decorre da audição do registo da prova, no que toca às declarações da arguida, que coloque em crise a apreciação efectuada pelo tribunal a quo quanto a falta de credibilidade e verosimilhança das mesmas, tendo presente o que se escreve na fundamentação, ao dizer-se: «As suas declarações foram sobretudo contrariadas pelo teor da participação do acidente (da qual decorre a posição dos veículos após o embate e a inexistência de quaisquer rastos de travagem) e pelo relatório do exame pericial feito ao tacógrafo do veículo conduzido pela arguida (do qual emergem, deduzidas as margens de erro aí expressas, as velocidades a que este seguia, antes de atingir o local do acidente e depois aí, na altura do próprio embate). Daí resulta inequivocamente que o acidente não se verificou da maneira como a arguida avançou, que sempre se afiguraria, diga-se, pelo menos bizarra (e que veio até a revelar-se contraditória, pois se a arguida disse ter travado a tempo e com a distância suficiente, não se compreende como ficou tão perto do veículo ligeiro, após o embate e o dito “ricochete”), mas sim do modo como consta dos factos provados.»
Note-se que, a dado passo, a arguida identifica o alegado condutor do camião que seguiria atrás de si e teria sido também ultrapassado pelo ligeiro, como sendo … e, mais adiante, como S… .
Desta pessoa não há notícia nos autos e o único «S…» inquirido foi a testemunha …, cujo depoimento prestado em inquérito foi lido em audiência, nos termos legais, dizendo «que não assistiu ao acidente, apenas viu alguns objectos saltarem para a faixa de rodagem» e que «desconhece as causas do referido acidente, e apenas reconheceu essa mesma viatura envolvida no acidente, por esta o ter ultrapassado anteriormente», ultrapassagem que terá acontecido «antes da saída de Tondela, junto a um fontanário, num parque de estacionamento, numa descida desse mesmo itinerário». Não se vê, pois, que deste depoimento algo resulte que venha em apoio da posição da arguida.
Quanto à testemunha …, cujo depoimento prestado no inquérito também foi objecto de leitura em audiência, nos termos legais: esta testemunha confirmou a existência de obras e de um indivíduo da obra com uma placa na mão; confirmou ter sido embatido pelo veículo ligeiro «que seguia na sua traseira e preocupou-se desde logo em não embater no que seguia à sua frente, não tendo por isso olhado a tempo de ver algo mais»; disse não saber há quanto tempo o ligeiro seguiria atrás de si, deduzindo que esse veículo ligeiro «tivesse ultrapassado o número 1» (ou seja, o da arguida) «muito poucos minutos antes do acidente».
Ora, se o veículo ligeiro em que seguia a assistente ultrapassou o camião conduzido pela arguida alguns minutos, ainda que poucos, antes do acidente, teremos de concluir que não o estava a ultrapassar no momento imediatamente anterior ao embate. E se a arguida seguia às velocidades dadas como provadas, é legítimo concluir que a referida ultrapassagem não terá acontecido no momento imediatamente antecedente do embate.
Quanto às declarações da assistente e ao testemunho de …, a sentença recorrida não deixa de mencionar que se trata de pessoas «envolvidas directamente nos factos». Porém, isso não significa que tais declarações e depoimentos devam ser, por isso, desvalorizados. O que se impõe é que o tribunal esteja atento a todos os factores que podem ser condicionantes da credibilidade e atendibilidade da prova. E, no caso, a motivação realça que, apesar de se tratar de pessoas envolvidas nos factos, os depoimentos em causa «foram expressivos e credíveis», e que «conseguiram explicar ao tribunal, de forma imparcial, correcta, sem hesitações e perfeitamente compatível com a normalidade da experiência, em que circunstâncias se deu o embate (o tráfego que existia, as obras na estrada, o tempo que fazia, etc.), bem como o modo como o embate se processou e como actuaram os próprios e também a arguida.»
Algumas discrepâncias entre os depoimentos da assistente e da testemunha … não afectam o essencial da versão factual apresentada, sendo facilmente compreensível que sendo a testemunha quem assumia a condução automóvel tivesse uma percepção diferente da marcha em relação aos demais que o acompanhavam no veículo.
E ambos são coincidentes na afirmação de que assim que a testemunha … teve a percepção, pelo retrovisor, de que o ligeiro iria ser embatido pelo camião conduzido pela arguida, desligou o motor do veículo e segurou o volante.
Insistiu a defesa da arguida de que, a ser verdadeira a versão da acusação, o veículo ligeiro teria de ficar, necessariamente, enfaixado debaixo do camião que estava à sua frente.
E até remete para passagens das declarações da assistente em que esta terá referido que o ligeiro ficou totalmente prensado e que o choque com o camião da arguida «foi todo de lado».
A este respeito, e com base na gravação da prova em CD, constatamos que as declarações da assistente foram diversas.
Disse a assistente, a perguntas formuladas pela M.ma Juíza no sentido de esclarecer algumas questões colocadas pelo Ex.mo Advogado da arguida, no essencial, o seguinte:
- que havia uma fila parada para ceder passagem aos veículos que vinham em sentido contrário;
- que o ligeiro estava parado;
- que o camião da arguida bateu «e o carro com o impacto de trás encolheu»;
- que o ligeiro foi embater na traseira do camião da frente;
- que o que encolheu «foi a parte de trás, a parte da frente não encolheu muito»;
- que «os meninos ficaram sem sítio nenhum, as portas de trás ficaram … quando digo prensar, o meu marido tirou a filha pela frente pelo vidro, não pela porta, pelo vidro da frente».
E, esclarecendo o que pretendia dizer ao utilizar a expressão «prensar», respondeu que «(…) o choque foi todo de trás», «de trás, todo»; «a parte de trás toda desfeita», ao que a M.ma Juíza perguntou «a carroçaria encolhida, não é?», obtendo como resposta «exactamente».
Temos, pois, que a assistente declarou que o veículo ligeiro em que seguia foi embatido na traseira pelo camião conduzido pela arguida; que em virtude desse embate, foi projectado e embateu na traseira do camião que se encontrava à sua frente; que o choque foi todo «de trás» e que a parte traseira do ligeiro foi a mais danificada – o que descreveu como «prensada»; que depois o veículo ligeiro girou sobre a direita e ficou «virado para os montes».
Em parte alguma a assistente declarou que o embate «foi todo de lado», como pretende a recorrente, em abono da sua versão.
No mais, os segmentos de declarações e depoimentos seleccionados pela recorrente não permitem inferir que a decisão da matéria de facto devesse ter sido diferente.
Designadamente, não se identifica a invocada contradição com a realidade e a lógica dos acontecimentos.
A recorrente socorre-se, também, do depoimento da já referida testemunha ….
Não vislumbramos, porém, que o testemunho da referida testemunha – que foi quem elaborou a participação – abale a restante prova produzida e devesse conduzir a uma diferente decisão sobre a matéria de facto.
Desde logo, a testemunha não presenciou o acidente.
Apesar de referir que não existiam no local placas amarelas que limitassem especialmente a velocidade, mencionou, como já atrás se disse, que as obras estavam sinalizadas com antecedência.
Confirmou a participação elaborada, deu explicações sobre o croquis e as fotografias juntas aos autos, mencionou a inexistência de rastos de travagens, deu esclarecimentos sobre o posicionamento final dos veículos envolvidos no acidente e sobre a interpretação dos dados constantes do registo do tacógrafo.
Quanto a danos nos veículos pesados, disse que o camião da frente «não tinha praticamente nada» e que o camião conduzido pela arguida «tinha poucos danos», localizando-os na grelha da frente «mais do que isso não posso dizer» e acrescentando que seriam danos frontais, ligeiramente «do lado esquerdo».
A dada altura, o Ex.mo Advogado relatou resumidamente a versão da arguida, limitando-se a testemunha a referir que «havia lá uma pessoa que disse que o veículo vinha a ultrapassar». Mas também acrescentou que não identificou essa pessoa, que as pessoas gostam de falar e dar opiniões e depois «esquivam-se».
Quanto à questão de saber se seria forçoso que um embate traseiro pelo camião da arguida determinasse que o veículo ligeiro se enfaixasse no camião da frente, respondeu, com base na sua experiência, que isso dependia das velocidades, do que se depreende que não tinha necessariamente de acontecer, dependendo das circunstâncias.
Não se vê, pois, como pode pretender a arguida que o depoimento desta testemunha avaliza inteiramente a sua versão e contraria a que foi acolhida na sentença.
Em suma: analisada a prova, na perspectiva dos concretos pontos de factos questionados, não se evidencia existir qualquer erro no julgamento da matéria de facto.
Por um lado, da sentença recorrida resulta que o tribunal a quo analisou a documentação junta – entre as quais se inclui fotografias, participação, o relatório pericial de apreciação do tacógrafo –, considerou as declarações e os testemunhos prestados, tudo sopesou no âmbito da livre apreciação da prova (artigo 127.º do C.P.P.) e acabou por decidir quanto à matéria de facto.
Da decisão recorrida e da sua confrontação com os elementos de prova referidos pela recorrente não se infere que, no processo de valoração e decisão, no âmbito da livre apreciação, tenha o tribunal a quo actuado contra a lei ou de modo desconforme à prova produzida ou aos ditames da razão, da lógica e da experiência comum.
Por outro lado, a existência de versões contraditórias – que é corrente nos casos julgados em tribunal – não tinha que conduzir, necessariamente, o julgador a uma situação de dúvida insanável.
Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. E não será a circunstância, normal nas lides judiciais, de se contraporem, pela prova pessoal (declarações e testemunhos), versões distintas, a impor que o julgador seja conduzido, irremediavelmente, a uma situação de dúvida insuperável. A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados, não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão, certamente difícil, de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos.
Ora, não resulta da sentença que o tribunal tenha a quo ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objectiva e motivável – e que, a partir desse estado dubitativo, tenha procedido à fixação dos factos provados desfavoráveis à arguida.
Não se encontrando o tribunal a quo nesse estado de dúvida, razão pela qual não havia que apelar ao princípio in dubio, também nada nos permite concluir que o devesse estar, mostrando-se a sua convicção estribada na prova produzida em termos que, nos termos supra expostos, não merecem censura.
3.5. Face ao exposto, conclui-se que a matéria de facto provada e não provada deve ser mantida, designadamente no que toca aos pontos de facto questionados – pontos H), R), S) e X) dos factos provados e pontos 1), 2), 3), 4) e 5) dos factos não provados –, pelo que, nada mais havendo a decidir, o recurso terá de improceder.
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.