Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
303/18.8JALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
ENUMERAÇÃO DOS FACTOS JULGADOS NÃO INDICIADOS
Data do Acordão: 06/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J I CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, 286.º E 308.º DO CPP
Sumário: I – O despacho de não pronúncia deve especificar os factos julgados não indiciados.

II – Tal como os factos julgados indiciados terão que constar do despacho de pronúncia, os factos julgados não indiciados terão que constar do despacho de não pronúncia.

III- Sendo o despacho de não pronúncia um despacho decisório, então este despacho terá que conter as razões de facto e de direito da decisão.

IV - O despacho de não pronúncia uma vez transitado forma caso julgado dentro do processo em que foi proferido, ou seja, forma caso julgado formal, e uma vez que é decisão de mérito, por incidir sobre a relação material controvertida, também forma caso julgado material, isto é, impõe-se fora do processo em que foi proferido.

V- Decidido que seja, por decisão transitada em julgado, não estar indiciada a prática, por um concreto indivíduo, dos factos que lhe foram imputados na acusação, ele não mais pode ser acusado/julgado da prática de tais factos.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO

1.

Acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física, do art. 143º, nº 1, do Código Penal, A… requereu a realização de instrução, no termo da qual foi proferido despacho de não pronúncia.


2.

O Ministério Público recorreu, concluindo que:

1º - o despacho de não pronúncia, de 10-12-2018, não descreveu nem especificou os factos da acusação pública e do RAI que considerou suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados;

2º - o despacho não respeitou os art. 205º, nº 1, da C.R.P. e 97º, nº, 1, al. b), e nº 5, 308º, nº 2 e 283º, do C.P.P., sendo nulo ou, pelo menos, irregular, nos termos dos art. 118º, 119º a contrario, 120º e 123º do C.P.P., tornando a decisão inválida, nos termos do art. 122º, nº 1, do C.P.P.;

3º - o vício dificultou o recurso, mas continuou a correr o prazo para recorrer;

4º - a acusação do arguido A… resultou da conjugação da prova testemunhal, pericial, documental e por reconstituição indicada na acusação, não tendo sido carreada nova prova na fase instrutória;

5º - o julgador deve decidir a favor do arguido se, face à prova, tiver dúvidas sobre qualquer facto, mas tal dúvida tem que ser irredutível, insanável, e perante a prova o tribunal a quo não podia ter ficado com quaisquer dúvidas que justificassem o recurso ao princípio in dúbio pro reo;

6º - as versões apresentadas pelos dois intervenientes, B… e A…, únicas “testemunhas” dos factos, foram credíveis e consistentes em si mesmas mas contraditórias entre si, mas as testemunhas … e …, familiares de A… disseram que o mesmo surgiu ferido e cheio de sangue, que posteriormente viram o B… zangado e a última testemunha viu B… com “sangue na testa a escorrer pela cara", facto corroborado por …, esposa de B…, que declarou que o marido "estava coberto de sangue, na cara e nas roupas" quando regressou a casa;

7º - dos elementos clínicos também resultou que B… apresentou lesões, que terão resultado de traumatismo de natureza contundente e que eram compatíveis com a informação prestada;

8º - A… declarou ter agredido o B… (empurrou-o, pressionou o pescoço daquele e desferiu uma cotovelada, atingindo-o no queixo), apesar de dizer que foi apenas para se defender B… alegou ter sido agredido por aquele;

9º - a versão de B… teve apoio nos elementos probatórios;

10º - há indícios suficientes da prática dos factos vertidos na acusação, pelo que deveria ter-se pronunciado o arguido A… pela prática de um crime de ofensas à integridade física;

11º - o despacho de não pronúncia violou o art. 205º, nº 1, da C.R.P. e os art. 97º, nº 1, al, b), e nº 5, 308º, nº 2 e 283º, do C.P.P., com as consequências legais enunciadas nos art. 118º, 119º, "a contrario", 120º ou, no mínimo, 123º, todos do C.P.P. e não apreciou correctamente a prova produzida, nem retirou as conclusões lógicas que a matéria dada como provada impunha, violando o art. 143º do Código Penal e nos art. 127º e 308º, nº 1, do C.P.P.

3.

Os arguidos responderam.

B… pediu o provimento do recurso, por da análise da prova resultar que sofreu agressões por parte do arguido A….

Alegou, ainda, que a decisão recorrida padecia de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão porque referiu que "ambas as versões são credíveis e revelam consistência, isto é, não têm contradições essenciais" e que "nenhuma razão existe para a prevalência de uma versão sobre a outra", e veio, a final, a dar prevalência à versão do arguido A….

Mais disse que a decisão violou o art. 127º do C.P.P., porque descurou a prova indiciária existente, e que não estava fundamentada de forma coerente e suficiente.

O arguido A… também respondeu, pedindo a improcedência do recurso.

Alegou, além do mais, que a decisão descreveu os elementos probatórios relevantes que foram considerados e discorreu sobre os factos não indiciados, concluindo que os autos não indiciavam que se tivesse abeirado do arguido B… e tivesse desferido socos e cotoveladas. Concluiu que a decisão estava fundamentada nos termos em que a lei obriga.

Relativamente à existência de indícios suficientes dos factos imputados na acusação, alegou que se tivesse apertado o pescoço do arguido B… com força teriam ficado hematomas, que os elementos médicos demonstram a existência de lesões por parte do arguido B…, feitas para se libertar deste, mas não demonstram a existência de crime.

O sr. P.G.A. defendeu o provimento dos recursos.

            Quanto à nulidade da decisão instrutória, disse que esta era clara e prejudicava a apreciação da questão colocada no recurso do despacho de não pronúncia, referente à apreciação da existência de indícios do crime imputado ao arguido A….

            Quanto a recurso da decisão de não pronúncia por falta de indícios, defendeu que a prova existente aponta para a existência de tais indícios e que o arguido A… deve ser pronunciado, nos termos constantes da acusação.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..


*

4.

Dos autos resultam os seguintes elementos, relevantes à decisão:

1º - o Ministério Público acusou B… e A…, nos seguintes termos:

«No dia 26 de Março de 2018, pelas 14 horas, o arguido B… deslocou-se, conduzindo a sua viatura automóvel, de marca "Renault", modelo …, com a matrícula … para os seus terrenos agrícolas situados em …, Leiria.

Ao chegar a um entroncamento do caminho, o arguido B… deparou-se com o arguido A… que conduzia o seu tractor no sentido oposto ao seu.

Nesse momento, o arguido A… imobilizou o tractor que conduzia, saiu do mesmo e dirigiu-se ao arguido B…, que imobilizara a viatura que conduzia (e estava sentado no interior da mesma) e desferiu na face e cabeça do mesmo vários socos com as mãos e cotoveladas com força.

Nesse momento, o arguido B… também desferiu diversos socos na face do arguido A….

De seguida, o arguido A… apertou com as duas mãos e com força o pescoço do arguido B…, o que fez com que este ficasse com falta de ar.

Nesse momento, o arguido B… pegou num machado, com cerca de 50 cms de comprimento, que estava no chão da sua viatura automóvel no intervalo dos dois bancos e desferiu uma pancada com a parte da lâmina de ferro do mesmo na cabeça do arguido A….

O arguido A… largou o pescoço do arguido B… e pegou no machado, tendo ficado os dois arguidos alguns minutos agarrados ao machado.

A certa altura, o arguido A… desferiu uma cotovelada na face do arguido B…, largou o machado e abandonou o local.

A actuação do arguido A… produziu no arguido B … dores na face e no pescoço e as seguintes lesões …

A actuação do arguido B… produziu no arguido A…, dores na grelha costa direita e as seguintes lesões …

Ao actuar do modo descrito o arguido A… cometeu, em autoria material, um crime de ofensa à integridade física, previsto e punível pelos art. 143º, nº 1 e 14º do Código Penal …»;

2º - realizada a instrução a requerimento do arguido A…, por despacho de 10-12-2018, notificado ao mesmo a 11-12-2018, foi proferida a seguinte decisão instrutória:
«… 4. Trata-se de saber, atenta a norma de que se mostra acusado, se o arguido A… “dirigiu-se ao arguido B… e desferiu-lhe na face e na cabeça do mesmo vários socos com as mãos e cotoveladas com força e apertou-lhe o pescoço” como queria e sabia ser proibido …
6. Nesta sede importa saber se há uma possibilidade forte de o arguido ser condenado na pena correspondente ao crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143 nº 1 do C.P..
Para tanto, importa aferir se existe uma razão prevalecente uma vez que no caso estamos diante duas versões que não se conjugam. Uma visão facilitista das coisas, diria que subsiste a dúvida. Não é assim. A dúvida existe perante duas certezas em sentido contrário. Para tanto, impõe-se análise de cada uma das versões, e verificar a inexistência de contradições intrínsecas, razões anormais ao contexto ou a não verificação de uma outra qualquer outra razão capaz de impor uma convicção; acaso nenhum destes critérios impuser uma razão prevalecente, há a dúvida útil e eficaz para efeitos processuais.
7. No caso concreto, ambos seja o arguido A… seja B… revelam ter lesões …
8. De acordo com o relato de B…, o arguido abeirou-se deste, abriu-lhe a porta do veículo automóvel, e de imediato bateu-lhe a soco e cotovelada na cara e cabeça, inclinando-se para trás. Entretanto o arguido A… apertou-lhe o pescoço, e conseguindo chegar ao meio, de entre os dois bancos da viatura, pegou no machado, desferiu no arguido A… um golpe na testa, o que fez com que o arguido A… largasse o seu pescoço, entretanto aquele agarra no machado e ficaram num impasse, terminando quando o arguido A… lhe dá cotovelada na cara, largando o machado, e foi-se embora.
9. De acordo com o relato de A…, quando este se abeira do carro de João, e após conversa, em que este último apelida o arguido B… de “ladrão”, o arguido B… mune-se de um machado retirado da zona do travão de mão e dá-lhe um golpe na cabeça, conseguindo o arguido A… colocar seu braço esquerdo à frente da sua face, amparando o golpe, tendo ainda assim tocado na sua testa. Aí empurrou B…, até ao lugar do pendura, mediante aperto no pescoço, agarrando assim ambos o machado, sendo que B… com a mão livre, a esquerda, arranhava-o na face, e após cerca de 15 minutos, deu cotovelada no queixo de B…, retirando-se.
10. Atenta-se outrossim à reconstituição do facto, cfr. fls. 215 a 262.
E deste conclui-se que as versões não são compatíveis.
11. Ora, ambas as versões são credíveis e revelam consistência, isto é, não têm contradições essenciais. Importa dizer que os intervenientes são as únicas testemunhas do facto globalmente considerado, sendo o que a seguir se passou e foi relatado inócuo. Nenhuma razão existe para a prevalência de uma versão sobre a outra, a não ser mediante uma escolha arbitrária de versões, o que para efeitos processuais corresponde à falta de justificação. A acusação optou claramente por uma das versões. Não se alcança porquê. Há pois terreno para a aplicação do vetusto princípio segundo o qual na dúvida cabe decisão favorável ao réu, no caso ao requerente. Assim, por aplicação do mencionado princípio, dos relatos de ambos, das lesões verificadas e da reconstituição, não se indicia com segurança que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação que arguido A… dirigiu-se a B… e desferiu-lhe na face e na cabeça do mesmo vários socos com as mãos e cotoveladas com força, e apertou-lhe o pescoço, querendo assim agir, bem sabendo que lhe era proibido por lei. Na verdade, esta versão factual, e que se encontra na acusação é negada pelo arguido A… de forma credível uma vez que não é possível com discurso objectivo dizer que a mesma é verdadeira ou é falsa em face da existência das assinaladas versões.
III. Decisão
12. Por tudo o exposto, não se pronuncia A… da prática de um crime de ofensa à integridade física previsto no artigo 143 nº 1 do C.P. …
15. Os autos prosseguirão para conhecimento do restante tema colocado pela acusação em que B… é arguido»;

3º - em 14-12-2018 o Ministério Público arguiu a irregularidade da decisão instrutória por falta de fundamentação, ao abrigo dos art. 97º, nº 5, e 123º do C.P.P., nos seguintes termos:

- a decisão instrutória tem que ser fundamentada, quer relativamente à decisão de facto, enumerando os factos e/ou especificando a tramitação processual subjacente à decisão, quer relativamente à decisão de direito, concretizando em que medida os factos e/ou a tramitação processual violam disposições ou princípios legais, apontando as mesmas, e referindo a concreta consequência da eventual violação;

- o despacho proferido é omisso quanto à decisão de facto porque não descreve nem especifica os factos da acusação considerados suficientemente indiciados e os não indiciados;

- a fundamentação das decisões judiciais deve ser expressa, clara, coerente e suficiente, de forma a ser inteiramente perceptível por todos os intervenientes no processo;

- a decisão proferida padece de nulidade sanável ou, no mínimo, de irregularidade;

4º - por requerimento de 18-1-2018 o Ministério Público recorreu da decisão instrutória, alegando haver indícios suficientes da prática, pelo arguido A…, de um crime de ofensa à integridade física, do art. 143º do Código Penal, e invocando a questão prévia da omissão da narração dos factos indiciados e não indiciados e consequente falta de fundamentação;

5º - por despacho de 24-1-2019 o requerimento do Ministério Público de 14-12-2018 foi indeferido, nos seguintes termos:

«… A decisão mostra-se fundamentada. Na verdade, atende-se aos elementos probatórios com relevantes …, pondera-se e conclui-se descrevendo os factos não indiciados … Na sequência de não haver matéria de facto indiciada, decide-se pela não pronúncia …»;

6º - por requerimento de 5-2-2019 o Ministério Público recorreu da decisão instrutória e do despacho de 24-1-2019;

7º - foi admitido o recurso do despacho que declarou improcedente a nulidade.


*

DECISÃO

Atento o disposto no art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., as questões a decidir respeitam à nulidade/irregularidade da decisão instrutória e à existência de indícios da prática de um crime de ofensa à integridade física por parte do arguido A…..


*

            O Ministério Público arguiu a nulidade ou, pelo menos, a irregularidade da decisão instrutória por falta de fundamentação, ao abrigo dos art. 97º, nº 5, e 123º do C.P.P., alegando que o despacho era omisso quanto à decisão de facto, por não descrever nem especificar os factos da acusação considerados suficientemente indiciados e não indiciados.

            Tendo o requerido sido indeferido veio, depois, interpor recurso, com o mesmo fundamento.

            Sendo discutida na jurisprudência a necessidade o despacho de não pronúncia especificar os factos julgados não indiciados, é nosso entendimento que isso terá que se verificar: tal como os factos julgados indiciados terão que constar do despacho de pronúncia, os factos julgados não indiciados terão que constar do despacho de não pronúncia.

            E isto pelas razões que passamos a enunciar.

            Começando pelo óbvio, o despacho de não pronúncia não é despacho de mero expediente. Decidindo-se nele que os crimes sobre os quais houve instrução não serão objecto de julgamento é, claramente, um acto decisório.

Ora, o art. 205º, nº 1, da Constituição impõe a fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente.

A lei ordinária transpôs este dever constitucional de fundamentação através do art. 97º, nº 5, do C.P.P. que determina que «os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».

Se os actos decisórios são sempre fundamentados, integrando a fundamentação os motivos de facto e de direito da decisão, e se o despacho de não pronúncia é um despacho decisório, então este despacho terá que conter as razões de facto e de direito da decisão.

Para além disso, o art. 308º, nº 2, do C.P.P., cuja epígrafe é “despacho de pronúncia ou de não pronúncia”, dispõe que lhe é «correspondentemente aplicável … o disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo 283º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do nº 1 do artigo anterior».

            E diz o nº 1 do art. 307º que «encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia … podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução».

Parece-nos patente que as normas indicadas do art. 283º se aplicam, também, ao despacho de não pronúncia, sendo que quer no despacho de não pronúncia, quer no despacho de pronúncia, a indicação das razões de facto e de direito da fundamentação pode ser feita por remissão para o RAI ou para a acusação, consoante se trate de um ou do outro.

           

            Há, ainda, uma última razão que impõe que o despacho de não pronúncia contenha a indicação dos factos julgados não indiciados, feita de forma expressa ou por remissão para a acusação ou RAI, que resulta dos seus efeitos de caso julgado.

            Efectivamente, o despacho de não pronúncia transitado em julgado forma caso julgado dentro do processo em que foi proferido, ou seja, forma caso julgado formal, e uma vez que é decisão de mérito, por incidir sobre a relação material controvertida, também forma caso julgado material, isto é, impõe-se fora do processo em que foi proferido. Decidido que seja, por decisão transitada em julgado, não estar indiciada a prática, por um concreto indivíduo, dos factos que lhe foram imputados na acusação, ele não mais pode ser acusado/julgado da prática de tais factos.

            Tendo presente este efeito de caso julgado material e sendo certo que é sobre os factos julgados não suficientemente indiciados que ele se forma, reforçamos a conclusão que estes factos devem ser fixados no despacho de não pronúncia para se saber, sem dúvida, quais os factos que estão a coberto daquele caso julgado.

            Citando as palavras de Maia Costa, no Código de Processo Penal comentado, 2014, pág. 1024, «o despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios deverá fixar expressamente quais os factos considerados não suficientemente indiciados. É que sobre tais factos forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (art. 279º, nº 1) … a tomada de posição sobre aqueles factos terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é».

            O mesmo já havia sido defendido por Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ad., pág. 804, ao dizer que «a narração dos factos que não estão suficientemente indiciados no despacho de não pronúncia é fundamental, porque é sobre esses factos que incide o efeito de caso julgado. A delimitação objectiva e subjectiva rigorosa dos factos no despacho de não pronúncia constitui, pois, a garantia última da segurança jurídica do arguido».

            Vide ainda, nomeadamente, os acórdãos desta relação de 26-10-2011, processo 199/10.8GDCNT.C1, que decidiu que o tribunal da 1ª instância tem que indicar os factos indiciados e os factos não indiciados para que o tribunal da relação saiba a base indiciária tida por assente e possa depois, mediante o confronto da mesma com a prova carreada na instrução, pronunciar-se, e de 16-6-2015, processo 12/11.9GTLRA.C1, do qual consta que a decisão de não pronúncia que não descreve os factos suficientemente indiciados e os factos não suficientemente indiciados não cumpre o nº 2 do art. 308º do C.P.P.

            Concluindo que os factos julgados não indiciados têm que constar do despacho de não pronúncia cabe ver, agora, se o despacho recorrido cumpre essa determinação legal.

            O Ministério Público acusou o arguido A…. da prática dos seguintes factos, que integrou no crime de ofensa à integridade física, do art. 143º, nº 1, do Código Penal:

«No dia 26 de Março de 2018, pelas 14 horas, o arguido B… deslocou-se, conduzindo a sua viatura automóvel, de marca "Renault", modelo …, com a matrícula … para os seus terrenos agrícolas situados em …, Leiria.

Ao chegar a um entroncamento do caminho, o arguido B… deparou-se com o arguido A… que conduzia o seu tractor no sentido oposto ao seu.

Nesse momento, o arguido A… imobilizou o tractor que conduzia, saiu do mesmo e dirigiu-se ao arguido B…, que imobilizara a viatura que conduzia (e estava sentado no interior da mesma) e desferiu na face e cabeça do mesmo vários socos com as mãos e cotoveladas com força.

Nesse momento, o arguido B… também desferiu diversos socos na face do arguido A….

De seguida, o arguido A… apertou com as duas mãos e com força o pescoço do arguido B…, o que fez com que este ficasse com falta de ar.

Nesse momento, o arguido B… pegou num machado, com cerca de 50 cms de comprimento, que estava no chão da sua viatura automóvel no intervalo dos dois bancos e desferiu uma pancada com a parte da lâmina de ferro do mesmo na cabeça do arguido A….

O arguido A… largou o pescoço do arguido B… e pegou no machado, tendo ficado os dois arguidos alguns minutos agarrados ao machado.

A certa altura, o arguido A… desferiu uma cotovelada na face do arguido B…, largou o machado e abandonou o local …» - realçado nosso.

            E é o seguinte o conteúdo do despacho recorrido, no que agora releva:
«… não se indicia com segurança que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação que arguido A… dirigiu-se a B… e desferiu-lhe na face e na cabeça do mesmo vários socos com as mãos e cotoveladas com força, e apertou-lhe o pescoço, querendo assim agir, bem sabendo que lhe era proibido por lei …» - realçado nosso.

            Portanto, o despacho de não pronúncia julgou não indiciado que:

- «No dia 26 de Março de 2018, pelas 14 horas … em …, Leiria» o arguido A…se dirigiu a B… e que lhe tenha desferido na face e cabeça vários socos com as mãos e cotoveladas com força

- e que lhe tenha apertado o pescoço

- querendo assim agir

- e sabendo que isso era proibido por lei.

            Feito o confronto deste despacho com a acusação, concluímos que os factos imputados ao arguido A… na acusação do Ministério Público julgados não indiciados estão descritos no despacho recorrido de forma expressa, clara e completa.

            Não padece, pois, o despacho recorrido do vício imputado.

            Cumpre agora apurar se tal decisão respeitou a prova produzida.


*

A instrução é uma fase processual facultativa, destinada a sindicar a decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito ou deduzir acusação. Conforme dispõe o nº 1 do art. 286º do C.P.P., visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.

            Nos termos do nº 1 do art. 308º do C.P.P. «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».

            Sobre a suficiência dos indícios fala o art. 283º, nº 2, aplicável à instrução por via do art. 308º, nº 2, ambos do C.P.P., nos seguintes termos: «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».

Não obstante não haver um conceito legal de “indícios suficientes” a doutrina e a jurisprudência têm entendido que os indícios são suficientes quando permitem a formação de um juízo de probabilidade sobre a culpabilidade do arguido, com a produção da convicção de que ele poderá vir a ser condenado. A referência que o art. 308º, nº 1, do C.P.P. faz à natureza indiciária da prova para efeitos de pronúncia, conjugada com a noção de “indícios suficientes”, do art. 283º, nº 2, inculca essa ideia da suficiência ligada ao juízo de probabilidade (acórdão da Relação de Coimbra de 31-3-1993, CJ 1993, tomo II, pág. 66).

Mas esta probabilidade tem que ser objectiva e tem que ser mais positiva que negativa, ou seja, para além de as provas recolhidas deverem indiciar a prática, pelo agente, do crime, a convicção formada tem que ser mais no sentido de o agente ter cometido o crime imputado do que de não o ter cometido.

A probabilidade de condenação futura tem, pois, que resultar clara dos indícios do processo.

Mas recordemos que estamos em sede de pronúncia e uma pronúncia é diferente de uma sentença condenatória. Se é evidente que a condenação assenta num juízo seguro da prática, pelo agente, do facto ilícito imputado, já a pronúncia assenta numa probabilidade de futura condenação, embora esta tenha que se sobrepor à possibilidade de absolvição.

No caso foi proferida decisão de não pronúncia do arguido Aníbal Lopes, requerente da instrução, nos seguintes termos:
«…».
            Portanto, o despacho recorrido optou pela versão do arguido A… que, segundo o mesmo despacho, declarou que quando se abeirou «do carro de B…, e após conversa, em que este último apelida o arguido B… de “ladrão”, o arguido B… mune-se de um machado retirado da zona do travão de mão e dá-lhe um golpe na cabeça, conseguindo o arguido A… colocar seu braço esquerdo à frente da sua face, amparando o golpe, tendo ainda assim tocado na sua testa».

           
No entanto, o mesmo despacho referiu que ambas as versões eram credíveis, consistentes e que não tinham contradições essenciais.

            E assim é, efectivamente.

No recurso o Ministério Público começou por convocar o conhecimento da prova pericial constante do processo, integrada pela perícia médico-legal de fls.140 e 141, respeitante a A…, pela de fls.142 e 143, referente a B…, pelo relatório de fls. 264 e 265, relativo a ADN, e pelo relatório de fls. 268 a 270, de B…. No entanto, não indicou porque razão esta prova determinaria a alteração da decisão recorrida, para além da circunstância de dela resultar que o arguido B… apresentou lesões.

Invocou, além disso, a prova por reconstituição, a prova documental e a prova oral, invocando neste particular os depoimentos dos arguidos e de …, …, … e ….

            Vejamos.

           

            …

            Ou seja, de todas as provas referidas resulta a possibilidade razoável de, conforme constava da acusação, o arguido A…, logo depois de ter parado o tractor onde se deslocava, se ter dirigido ao veículo do arguido B…, onde este ainda se encontrava, e logo que se abeirou o ter agredido na face e cabeça, com socos e cotoveladas.

            É certo que esta tese radica na versão de um dos arguidos, mas recordamos que a decisão recorrida teve os depoimentos destes como credíveis e consistentes.

            Ora, se se entendeu que os depoimentos dos arguidos foram credíveis e consistentes é contraditório decidir, depois, na base de um deles, ou seja e usando as palavras daquela decisão, optar «mediante uma escolha arbitrária de versões».

            Recordando, não há dúvida que foram encontrados vestígios hemáticos no interior do veículo do arguido B….

            Portanto, é razoável concluir que quando o arguido A… foi agredido tinha a cabeça no interior do veículo do arguido B….

            E a que propósito é que isto aconteceria?

            Quando foi ouvido o arguido A… explicou que o arguido B… o chamou, que entretanto este abriu a porta do veículo e o entalou e que para ver o conversar com o arguido B… posicionou a cabeça à entrada do carro. E não obstante isto falou com o arguido João de forma serena.

            Sendo certo que o arguido A… tinha que explicar porque razão meteu a cabeça no interior do veículo do arguido B…, deu uma explicação irrazoável. Primeiro o arguido João chamou-o, depois entalou-o e apesar disso o arguido A… falou com ele de forma serena. E falou sobre o quê?

            Ao invés, o arguido B… declarou que quando se encontraram o arguido A… parou o tractor de forma a impedi-lo e continuar a marcha e depois dirigiu-se a ele e começou a dar-lhe socos e cotoveladas quando ainda estava dentro do veículo.

           

            A versão apresentada pelo arguido B… é razoável, consistente, e tem total apoio na restante prova indiciária.


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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, no provimento do recurso, revoga-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que pronuncie o arguido A… pelos factos e crime imputados na acusação do Ministério Público.

Sem custas.

Elaborado em computador, revisto pela relatora, 1ª signatária, e assinado electronicamente – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 26 de Junho de 2019

Olga Maurício (relatora)

Luís Teixeira (adjunto)