Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
141/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: DÍVIDA
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO
Data do Acordão: 04/12/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 376º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I – Tendo a autora sido notificada da junção do original de uma factura, cuja emissão lhe é atribuída, sem que impugne tal documento, este faz prova plena quanto aos factos compreendidos nessa factura, nos termos do disposto no artº 376º do Código Civil.
II – Não obstante a autora não ter sido condenada como litigante de má fé na 1ª instância, deve, no entanto, sê-lo na Relação se, nada tendo dito aquando da junção do original de uma factura por ela emitida, vem agora, na sua contra-alegação, afirmar que “não se sabe ao certo a que se refere a factura (papel) apresentada pelos Réus, que terá o Réu marido ido à própria sede da Recorrida e sem que houvesse qualquer entrega de mercadoria, terá ficado com uma factura, que não dizia respeito à sua mercadoria e à data da entrega como se ficou a provar no tribunal”.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A..., demandou, em 13/10/2000, pelo Tribunal da comarca de Águeda, na presente acção declarativa, sob a forma de processo sumario, B... e mulher, C..., pedindo a condenação destes a pagarem-lhe a quantia de € 5.740,71 (Esc. 1.150.910$00), acrescida de juros vincendos à taxa legal de 10%, desde 13.10.2000 até efectivo e integral pagamento.
Alega para tanto, em síntese, que no exercício da sua actividade comercial forneceu à Ré mediante a contrapartida do preço, uma mobília de cozinha que importou no montante de € 7.013,98 (Esc. 1.406.176$00), conforme factura junta aos autos.
Por conta do aludido fornecimento, entregou o réu marido à autora a quantia de € 2.493,99 (Esc. 500.000$00), nada mais tendo pago, pelo que, se encontra em dívida o montante de € 4.519,99 (Esc. 906.176$00), por cujo pagamento são responsáveis os réus.
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Os réus contestaram, alegando que pagaram integralmente a dívida em causa, não lhes tendo sido entregue pela autora o respectivo recibo de quitação.
Arguem ainda a prescrição presuntiva prevista no art. 317º, al. b) do C. Civil, alegando que decorreram mais de dois anos entre a data da factura e a citação dos réus para a acção.
Alegam que a autora litiga de má-fé, não só por vir peticionar uma dívida já paga, mas também por ter rasurado a data da cópia da factura que juntou com a



p.i., para, desse modo, obstar à prescrição presuntiva.
Terminam pedindo a improcedência da acção e a condenação da autora como litigante de má-fé.
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Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou válida e regular a instância.
Relegou-se para final o conhecimento da excepção de prescrição presuntiva arguida pelos réus.
Procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e controvertida, com reclamação dos réus, que foi parcialmente deferida, conforme despacho de fls. 87 e segs.
Realizou-se julgamento com gravação da prova, no termo do qual se decidiu, sem reclamações, a matéria de facto.
Foi proferida a sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando os réus a pagarem à autora a quantia de 4.519,99 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
I - A autora é uma sociedade comercial por quotas, que se dedica ao fabrico, venda e revenda de todo o tipo de móveis de cozinha, e trabalhos de carpintaria - (al. A) dos Factos Assentes).
II - No exercício dessa sua actividade, e a solicitação do réu marido, em 1998, a autora forneceu uma mobília de cozinha completa em castanho, com lava loiça, exaustor, forno, placa, com tampos em granito de cor cinzenta e cadeiras - (al. B).
III - A obra totalmente acabada (cozinha), incluindo mão de obra, materiais e respectivos electrodomésticos, importaram em 1.406.176$00 - (al. C).
IV - Por conta do respectivo montante (dívida), o réu marido entregou à autora a quantia de 500.000$00 - (al. D).



V- A autora não entregou aos réus qualquer recibo de quitação pelo pagamento aludido em D) - (resp. ao quesito 4º).
VI - A autora, através da sua gerência ou funcionário, escreveu na cópia da factura junta a fls. 5, no local da data de emissão, “15.10.98” - (resp. ao quesito 6º).
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Inconformados, interpuseram os réus recurso de apelação, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª- O Tribunal a quo julgou incorrectamente o ponto de facto relativo à data em que foram efectuados o fornecimento em causa, devendo dar-se por provado que o mesmo ocorreu em 25/09/1998.
2ª- Não tendo a prova testemunhal servido para fundamentar a convicção do Tribunal quanto à prova de tal facto, dado ser inconclusiva, encontram-se nos autos todos os elementos necessários para decidir tal questão de facto, ou seja, quer a cópia da factura junta pela autora, quer o original da mesma factura junto pelos réus, da qual consta a data de 25/09/1998, constando dos dois documentos a data de carga e descarga de 25/09/1998.
3ª- Em virtude da sua não impugnação pela autora a factura original junta pelos réus faz prova plena quanto à respectiva data de emissão, assim como quanto à data de carga e descarga das mercadorias, sendo que neste caso, tal até resulta do acordo das partes – artºs 374º, nº 1 e 376º, nº 1 do Código Civil.
4ª- Provou-se ainda que foi a autora quem, na cópia da factura que juntou escreveu a data falsa de 15/10/1998 e que não passou recibo sequer da quantia parcial cujo pagamento foi dado como provado.
5ª- Deverá dar-se, pois, como provado que o fornecimento e contrato em causa ocorreu em 25/09/1998, sendo certo que, de qualquer modo, os réus apenas foram citados para a acção em 02/11/2000.
6ª- Tendo os réus, porque pagaram integralmente a factura em causa, não lhes tendo sido emitido e entregue o respectivo recibo pela autora, invocado a excepção de prescrição presuntiva, e tendo decorrido desde a data do fornecimento até à citação mais


de dois anos, a referida excepção deverá ser considerada procedente absolvendo-se os mesmos integralmente do pedido.
7ª- A sentença recorrida errou no julgamento do referido ponto de facto, devendo dar-se como provado que o fornecimento ocorreu em 25/09/1998, não tendo aplicado correctamente o direito, violando o disposto nos artºs 374º, nº 1 e 376º, nº 1 do Código Civil, assim como o disposto no artº 317º, al. b) do mesmo diploma, devendo os réus, com a correcta aplicação das normas invocadas e a revogação da sentença em crise, verem julgada procedente a excepção invocada e serem absolvidos integralmente do pedido.
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A autora contra-alegou, defendendo a confirmação da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o tribunal da relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
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Os recorrentes pretendem, com o presente recurso, que seja julgada procedente a excepção de prescrição por eles invocada, em virtude de terem decorrido mais de dois anos entre a data em que ocorreu o fornecimento em causa e a sua citação para a acção, devendo para o efeito dar-se por provado que tal fornecimento ocorreu em 25/09/1998, encontrando-se nos autos todos os elementos necessários para decidir tal questão de facto, ou seja, quer a cópia da factura junta pela autora, quer o original da mesma factura junto pelos réus.
Ora, vejamos.
A autora alegou no artº 2º da petição inicial que, no dia 15 de Outubro de 1998, a solicitação do réu marido, forneceu uma mobília de cozinha completa em castanho, com lava loiça, exaustor, forno, placa, com os tampos em granito de cor cinza,


cadeiras, conforme melhor consta no doc. nº 1.
Tal documento é a cópia da factura nº 1790, passada por A... (ora autora/recorrente) em nome de B... (ora réu/recorrido), e na qual vem descriminada a referida mobília de cozinha.
Consta da mesma a data de emissão de 15 de 10 de 1998, a qual se encontra emendada.
Os réus juntaram, com a contestação, o original dessa factura.
A data da emissão dela constante é a de 25 de Setembro de 1998, a qual, ao contrário do que sucede com a cópia, não se encontra emendada.
À excepção da referida data da emissão, o original e a cópia coincidem em tudo o resto, constando deles como “Local de Carga: V. Grou”, “Dia: 25/9/98”, “H. 9H50”, “Carro: Canter e TP-72-41” e “Local de Descarga: Águeda”.
A autora foi notificada da junção do original da aludida factura, não impugnando tal documento.
O artº 376º do Código Civil trata da força probatória dos documentos particulares, estabelecendo, na parte que aqui interessa:
1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (…).
2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
Resulta, claramente, desta norma que o documento particular só faz prova plena quanto aos factos compreendidos nas declarações atribuídas ao seu autor, na medida em que contrárias aos interesses do declarante, podendo o documento ser invocado, como prova plena, pelo declaratário, contra o declarante, seu autor.
Por isso, face à não impugnação do documento junto pelos réus (original da factura emitida pela autora) e ao disposto no referido artº 376º do Código Civil, nomeadamente no que diz respeito à indivisibilidade da declaração, deveria ter sido considerado como assente o factualismo atrás descrito e, portanto, que a data da


emissão da factura nº 1790 é a de 25 de Setembro de 1998, que, como vimos, coincide com a do fornecimento da mercadoria.
Assim sendo, haveria que decidir a acção no saneador, uma vez que, à data da propositura da acção, já haviam decorrido mais de dois anos sobre a data do nascimento do crédito da autora (cfr. artº 879º do Código Civil), encontrando-se o mesmo prescrito de acordo com o disposto no artº 317º, al. b), do mesmo Código.
Note-se que os réus, ao reclamarem da selecção da matéria de facto, pretenderam que fosse considerado como assente que a autora emitiu, carimbou e assinou, com data de 25 de Setembro de 1998, a factura junta à contestação dos réus, por insuficiência da matéria de facto assente, com a consequente retirada da matéria quesitada sob os pontos 1º e 2º, por excesso (nestes quesitos pergunta-se, respectivamente, se o fornecimento da mobília ocorreu a 15-10 ou a 25-9).
Há, assim, que revogar a sentença recorrida, julgando verificado prescrito o crédito da autora, absolvendo os réus do pedido.
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Os réus pediram, na contestação, a condenação da autora como litigante de má fé, o que não veio a suceder, por constar da sentença que não se vislumbrava, face à matéria de facto provada, litigância de má fé por banda da autora.
Se tal decisão se aceita em relação ao comportamento da autora na 1ª instância, o mesmo já não sucede relativamente à oposição por esta deduzida ao presente recurso.
Como atrás referimos, a autora nada disse aquando da junção, com a contestação, do original da factura nº 1790.
No entanto, vem agora, na sua contra-alegação, afirmar que “não se sabe ao certo a que se refere a factura (papel) apresentada pelos Réus, que terá o Réu marido ido à própria sede da Recorrida e sem que houvesse qualquer entrega de mercadoria, terá ficado com uma factura, que não dizia respeito à sua mercadoria e à data da entrega como se ficou a provar no Tribunal”.
Como é possível fazer tal afirmação se, como se disse, a factura junta pelos réus coincide totalmente, excepto no que diz respeito à data da emissão, com a cópia junta pela autora com a petição inicial?


Só litigando de má fé, deduzindo oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, face ao disposto no artº 456º, nº 2, al. a), do código de Processo Civil.
Entende-se, por isso, que a autora deverá ser condenada como litigante de má fé.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em:
A) - Dar provimento ao recurso e, embora com outros fundamentos, revogar a sentença recorrida, julgando procedente a excepção de prescrição do crédito da autora, absolvendo os réus do pedido.
B) - Ordenar, ao abrigo do disposto no artº 3º do Código de Processo Civil, a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem sobre a questão da condenação da recorrida como litigante de má fé.
C) - Condenar a recorrida nas custas, tanto nesta como na 1ª instância.