Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
448/07.0TBCBR-A.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: FIANÇA
SUBSIDIARIEDADE
BENEFÍCIO DA EXCUSSÃO PRÉVIA
EXCEPÇÕES
PERDA DA QUALIDADE
SÓCIO
GERENTE
CADUCIDADE
Data do Acordão: 03/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 627º E 638º DO C.CIV.
Sumário: I – A “fiança” – como garantia obrigacional especial - é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor.

II – São duas as características que essencialmente definem tal figura contratual: a acessoriedade e a subsidiariedade – ou benefício de excussão (artºs 627º, nº 2 e 638º CC).

III – Muito embora o referido princípio da subsidiariedade seja a regra na fiança, todavia ele comporta excepções, quer de carácter geral (artº 640º, als. a) e b) do CC) quer de carácter mais especial ou excepcional (artº 101º do Código Comercial), levando a que uma vez verificadas as situações nelas contempladas não ocorra o denominado benefício de excussão.

IV – A jurisprudência orienta-se unanimemente no sentido de que a perda das qualidades de sócio ou de gerente por parte do fiador não determina a caducidade da fiança prestada desde que a sua subsistência se não mostre condicionada à manutenção de qualquer daquelas qualidades.

Decisão Texto Integral:                         Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

Na 1ª secção das Varas de Competência Mista e Juízos Criminais de Coimbra, A..., residente na ..., intentou, por apenso à execução comum com o nº 448/07.0TBCBR, oposição à execução contra a ali exequente, “B..., S. A.”, com sede na ..., alegando que o executado opoente, embora tendo-se obrigado como fiador da sociedade “C...”, no âmbito de contrato de financiamento sob a forma de abertura de crédito, celebrado entre tal sociedade (como mutuária) e a aqui exequente (como mutuante) em 29/11/1991, ficou desobrigado por força de respectiva alteração contratual de 20/12/2002, em que foi alterada a cláusula relativa à fiança, tendo as partes pretendido que o opoente deixasse de estar vinculado à prestação da fiança, o que se traduz em revogação da fiança por si primitivamente prestada, pelo que o título dado à execução não é oponível ao aqui executado/opoente;
- já em 07/02/1997 o aqui opoente havia cedido a sua quota aos outros sócios da sociedade mutuária, deixando de ser sócio desta, motivo pelo qual na alteração do contrato de financiamento datada de 15/02/2000 o opoente já não consta como fiador, dado que essa garantia só foi por si prestada enquanto sócio da mutuária;
- associados ao ora opoente, foram indicados à penhora dois bens: a prestação mensal de aposentação paga pelo Centro Nacional de Pensões e o prédio urbano sito na freguesia da ..., concelho da ..., inscrito na respectiva matriz predial sob o art.º ....º;
- este imóvel é bem comum do casal, pelo que deveria ter sido citado o cônjuge, D..., nos termos do disposto na al. a) do n.º 3 do art.º 864.º do CPCiv., o que não ocorreu.
Conclui pela procedência da oposição, julgando-se extinta a execução relativamente ao aqui opoente, com as legais consequências.
Recebida a oposição, a exequente contestou impugnando que nunca a exequente quis desvincular o opoente como fiador solidário e principal pagador das obrigações decorrentes do contrato de 26/11/1991, nem tal pretensão lhe foi apresentada pelo opoente;
- por isso, apesar de não ter subscrito as alterações contratuais de 15/02/2000, 20/12/2002 e 13/07/2004, o aqui opoente manteve-se e mantém-se vinculado nos termos da fiança prestada no contrato de 26/11/1991 e respectivas alterações ulteriores;
- alterações e modificações essas inicialmente autorizadas de forma expressa por todos os fiadores;
- sendo que consta expressamente do clausulado do contrato que a renovação não acarreta qualquer novação, mantendo-se na integra as garantias constituídas, ao que o opoente deu o seu acordo;
- de tais alterações resultou benefício para todos os intervenientes no contrato inicial, designadamente para o ora opoente, de quem não foi exigida a assinatura, para além do mais, pela dificuldade ao tempo em a obter;
- pelo facto de o opoente ter entretanto cedido a sua quota social aos restantes sócios da sociedade mutuária e de ter renunciado à sua gerência não deixou de se manter vinculado às obrigações que pessoalmente assumiu como fiador solidário e principal pagador, independentemente de ser, ou não, seu sócio.  
Concluiu pela improcedência da oposição, por não provada.
Designada data para realização da audiência preliminar, foi depois proferido despacho saneador-sentença que conheceu do mérito da oposição, concluindo-se por ocorrer abuso do direito de execução da fiança em relação ao opoente, pelo que foi julgada procedente a oposição, com a consequente extinção da instância executiva relativamente ao aqui opoente.
Recorreu a exequente/oposta, vindo a apelação a ser julgada procedente, com a consequente revogação da decisão impugnada, ordenando-se o prosseguimento do processo (cfr. acórdão de fls. 176 a 206).
Elaborada a base instrutória e seleccionados os factos assentes realizou-se julgamento e foi proferida sentença na qual se decidiu julgar “improcedente, por não provada, a presente oposição, com a consequente subsistência integral da acção executiva.”.
Inconformado com esta decisão dela interpôs recurso o opoente A..., concluindo que:
[…]
A recorrida contra alegou protestando a manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação
A primeira instância deu como provada a seguinte matéria de facto:
[…]
… …

Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil), nem criar decisões sobre matéria nova, a Apelação do recorrente pretende que a sentença recorrida seja alterada no sentido de se decidir que ele deixou de ser fiador e responsável perante a recorrida, desde 20 de Dezembro de 2002 e, ainda, que existe na execução falta de citação do cônjuge do recorrente.

   Quanto à citação do cônjuge do executado:

[…]

 

Quanto ao objecto (principal) do recurso.  

O argumento fundamental do recorrente parece que tem por enunciado o de que, foi no exercício de uma actividade comercial que a sociedade, de que o ora apelante era sócio-gerente, celebrou o contrato de abertura de crédito com a recorrida e foi nessa qualidade de sócio-gerente que ele se constituiu fiador daquela, e nessa conformidade apenas enquanto se mantivesse essa qualidade, na qual constituiu a garantia, poderia ser considerado como fiador.

A circunstância da falta de comunicação à recorrida, por parte do apelante, da cessação da sua qualidade de sócio da aludida sociedade – e consequente intenção de se desonerar da respectiva fiança – não deve desmerecer, no entender do Apelante, este entendimento por ter sido a própria recorrida que introduziu uma autêntica alteração à fiança prestada quando em 20 de Dezembro de 2002, por documento, liberta por sua própria iniciativa o ora apelante, enquanto fiador, sendo certo que o seu nome já nem consta do elenco de contraentes ali exposto.

Analisando, situamos a questão a resolver no domínio das garantia das obrigações, lembrando que para além das simples garantias gerais (tendo por objecto o património do devedor) comuns a todos os credores, podem ainda estes exigir a fixação de outras garantias específicas tendentes a salvaguardar os seus interesses no caso de incumprimento das obrigações estabelecidas pela parte com a qual contrataram.

Garantias especiais essas que podem assumir a natureza real ou pessoal, sabendo-se também que as garantias pessoais são aquelas em que através delas outras pessoas, além do devedor, ficam responsáveis, com o seu património, pelo cumprimento da obrigação.

E entre essas garantias específicas ou especiais destaca-se, como sua figura-tipo, a fiança, cujo regime geral se encontra fixado no artº 627 e ss do C. Civil e que, em termos jurídicos, se costuma definir e conceptualizar como o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor (cfr., por todos, o prof. A. Varela, in “Das Obrigações em Geral, vol. II, 6ª ed., pág. 475).

São duas as características que essencialmente definem tal figura contratual: a acessoriedade e a subsidiariedade.

A acessoriedade, como primeiro desses traços caracterizadores (o mais essencial dos dois), encontra a sua expressão no nº 2 do artº 627 do C.C., e consiste no facto de a fiança ficar subordinada a acompanhar a obrigação afiançada, com as consequências que se encontram fixadas nos artºs 628, 631, 632, 634, 637 e 651, todos daquele mesmo diploma legal (e cujo teor aqui nos dispensamos de transcrever). Como escreve o mesmo A. Varela, atrás citado (in Ob. cit., pág. 471), o fiador é um verdadeiro devedor, mas a obrigação que assume é acessória da que recai sobre o obrigado, entendida esta nos termos e com as consequências previstas nestes últimos normativos legais citados, e muito especialmente no sentido de que tal obrigação que assume é a do devedor (principal) e não uma obrigação própria e autónoma da daquele.

Por sua vez, podemos dizer que a subsidiariedade (que não pode ser vista de forma totalmente isolada daquela primeira característica) é um benefício estabelecido exclusivamente a favor do fiador (do qual pode lançar mão, a par de outros meios de defesa colocados ao dispor do afiançado e que estão ligados à característica da acessoriedade) e que se traduz no princípio segundo o qual o fiador só responderá pelo pagamento da obrigação se e quando se provar que o património do devedor (afiançado) é insuficiente para a solver. Por outras palavras, a subsidiariedade concretiza-se no chamado benefício de excussão, o qual, por sua vez, consiste no direito que o fiador tem de recusar o cumprimento da obrigação enquanto não estiverem executidos todos os bens do devedor principal, princípio esse que se encontra consagrado no artº 638 do C.C., ao estipular-se ali que “ao fiador é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver executido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito (nº 1), podendo ainda, inclusive, o fiador continuar a recusar o seu cumprimento, mesmo para além dessa excussão, se provar que o crédito não foi satisfeito por culpa do credor (cfr. nº 2 de tal normativo).

Muito embora tal princípio (de subsidiariedade e que é aquele que para o caso aqui mais nos interessa) seja a regra na fiança, todavia, ele comporta excepções, quer de carácter geral quer de carácter mais especial ou excepcional, levando a que uma vez verificadas as situações nelas contempladas não ocorra o denominado benefício de excussão.

No que concerne às primeiras, elas ocorrem nas situações previstas nas als. a) e b) do artº 640 do C.C., destacando-se aqui a referida naquela primeira alínea e que tem lugar sempre que o fiador houver renunciado (de forma expressa ou tácita) a tal benefício e, em especial, se tiver assumido a obrigação de principal pagador.
Entre o segundo tipo de excepções (especialmente previstas), convém destacar aqui aquela situação que decorre da previsão do artº 101 do Código Comercial, onde se prevê e estipula que “todo o fiador de obrigação mercantil, ainda que não seja comerciante,
será solidário com o respectivo afiançado”. (sublinhado nosso).
A razão de ser dessa doutrina estatuída em tal normativo excepcional tem a ver, como vem sendo dominantemente entendido, com as especiais características e exigências da actividade económica em causa.

Daí resulta que em tal situação (tal como sucede com as situações de excepção previstas no citado art. 640 do CC) o fiador não goza também do benefício de excussão prévia – havendo mesmo quem afirme que nessa particular situação vigora aí o regime de solidariedade passiva (ainda que porventura imperfeita), podendo o credor demandar tanto fiador como o afiançado, sozinhos ou conjuntamente, sem que o primeiro se possa recusar a cumprir sem estar executido (todo ou em parte) o património do último, sendo certo que no caso de cumprir pode depois vir a exigir do afiançado tudo o que pagou.

Em resumo, a fiança, depois de estabelecida, está vocacionada para apenas cessar quando terminar a obrigação garantida (art. 651) o que é uma consequência da apontada natureza acessória da garantia, sem embargo do regime particular quer quanto à invalidade da obrigação principal (art. 632), quer quanto ao caso julgado (art. 635) e prescrição (art. 636) e sem esquecer a possibilidade de, por acordo das partes, estas poderem fazer finalizar a fiança.

Observado sumariamente o regime da fiança, no que interessa à decisão a proferir, delimitada pelas conclusões de recurso, o recorrente não questiona a validade da fiança que prestou, nem que dela faziam parte as obrigações futuras (refinanciamentos) decorrentes do contrato de abertura de crédito (constante de fls. 18 a 25) mas antes protesta a sua responsabilidade como fiador, e pelo pagamento da obrigação afiançada, a partir do momento em que deixou de ser sócio da devedora principal.

Como se fez notar no acórdão já proferido anteriormente nestes autos, a questão de saber o que acontece a uma fiança (omnibus) prestada por uma pessoa numa qualidade que entretanto venha a perder, nomeadamente pelo sócio que posteriormente deixe de ter essa qualidade, é matéria debatida na doutrina com diversas soluções, defendendo alguns[1] que sempre que um sócio de uma sociedade declare que garantirá como fiador o cumprimento das obrigações que a sociedade a que pertence venha a assumir no futuro tal declaração deve ser interpretada mesmo que nela não se contenha essa restrição ou ressalva, no sentido de que a garantia prestada abrange apenas as obrigações que venham a ser assumidas pela devedora enquanto o garante for sócio dela e tal só assim não será se houver uma inequívoca manifestação de vontade no sentido de a declaração valer mesmo para as obrigações que a sociedade venha a assumir depois do sócio deixar de o ser, importando a cessação da qualidade de sócio a caducidade automática da garantia prestada.

Solução semelhante é a firmada no direito brasileiro sendo que a característica de automatismo é diferida para o prazo de sessenta dias a contar da comunicação que o fiador terá de realizar ao credor comunicando-lhe a perda da qualidade de sócio[2].

Sustentam outros[3] que, por regra, não sendo natural uma interpretação segundo a qual os sócios se queiram responsabilizar pelas dívidas da sociedade para lá do momento em que deixem de ser sócios dela e participantes do seu capital social e que tal, determinará na generalidade dos casos que a perda da qualidade de sócio extingue a obrigação da garantia relativamente a uma nova obrigação constituída se no momento da constituição o credor tinha conhecimento da perda pelo garante da qualidade de sócio.              

“Porém, a caducidade automática da fiança com a perda da qualidade de sócio é, mesmo no contexto doutrinário, apenas uma proposta de solução possível pois na verdade há quem veja na cessação da qualidade de sócio, dadas certas condições, apenas um motivo que torne insustentável a vinculação do fiador e, portanto, um simples fundamento de resolução por justa causa do negócio constitutivo da garantia.

Nesta perspectiva a justa causa para a resolução decorreria do facto de a cessação  da qualidade de sócio ser susceptível, caso não seja acompanhada da vinculação fidejussória , de trazer ao fiador riscos acrescidos e não domináveis, traduzidos num aumento das suas responsabilidades, tornando inexigível a continuação do acordo de fiança. À resolução que naturalmente deveria ser comunicada ao credor, associar-se-ia apenas a uma eficácia ex-nunc. No que tange à fiança prestada pelo sócio-gerente que entretanto tenha cessado essa função sem resolver o contrato de garantia mas em que demonstra que o banco credor teve efectivo conhecimento do facto, admite-se, porém, que o comportamento do banco credor que exija do fiador a responsabilidade, depois do conhecimento daquela cessação de funções, pode ser abusivo, uma vez que os bancos devem agir de boa-fé, não facultando crédito à empresa com o pretexto formal-documental, de não terem recebido nenhuma declaração de resolução, quando era público na praça o abandono pelo fiador do palco dos acontecimentos da empresa[4].”        

A jurisprudência orienta-se no entanto unânime no sentido de que a perda das qualidades de sócio ou de gerente por parte do fiador não determina a caducidade da fiança prestada desde que a sua subsistência se não mostre condicionada à manutenção de qualquer daquelas qualidades[5], posição que é também defendida pelo Prof. Meneses Cordeiro (in Col., Ano XVII (1992) – 3º/55 e segs.).

Entendemos nós que, de acordo com as características apontadas para a fiança e tendo presentes todos os interesses em causa, nomeadamente o de que a garantia é decalcada sobre a obrigação principal e, em regra, coincide com ela, extinguindo-se apenas com o seu cumprimento, a solução sustentada pela jurisprudência é a que melhor responde à problemática enunciada e a que com mais certeza e segurança valora a liberdade contratual e a exigência do cumprimento pontual dos contratos.  

Ora, concluindo-se, a partir da leitura interpretação do contrato de abertura de crédito em conta corrente, que a qualidade de sócio em que foi prestada a fiança por parte do ora Apelante não significava qualquer condição no sentido de que, terminada essa qualidade ele ficava desobrigado como fiador, o domínio em que se deve centrar a atenção é no de apurar se a credora, ora apelada, o libertou dessa obrigação de fiador quando através de documento de alteração da fiança de 20 de Dezembro de 2000 não incluiu o seu nome no elenco desses fiadores, sendo que, de facto, ele havia deixado de ser sócio-gerente da sociedade, obrigada principal.

Dissemos que ao abrigo da liberdade contratual e da plena autonomia da vontade era possível às partes terem deixado consignado no negócio jurídico que as fianças prestadas o eram exclusivamente na condição de sócios da sociedade devedora e que as responsabilidades de fiadores cessariam com a perda dessa qualidade. Porém não havendo semelhante cláusula no contrato de abertura de crédito, a matéria de facto fornecida pela prova, e que não foi impugnada, revela que no artigo 1º da base instrutória se perguntava se o aqui opoente apenas quis prestar a fiança dos autos enquanto sócio da sociedade C...e tal mereceu como resposta que “o aqui opoente quis prestar a fiança dos autos por ser sócio da sociedade C....”, acrescentando-se ainda que a resposta ao artigo segundo da mesma base revela que a aquilo que era do conhecimento da exequente era tão simplesmente isso (e não que apenas nessa qualidade o fiador se queria obrigar). 

A ausência de certificação probatória de que os ora Apelante e Apelada tivessem querido, ao celebrarem o acordo de fiança, que esta se limitasse ao período tempo em que aquele fosse sócio (ou sócio-gerente) da sociedade, ainda que tal tivesse sido imperfeitamente expresso no documento, retira bondade ao argumento segundo o qual a evidência de o Apelante ser sócio da sociedade afiançada bastaria para fazer concluir que a única interpretação válida e consistente dessa evidência seria a de converter em notório o facto de qualquer sócio que preste fiança à sociedade só deseja ser responsável pela fiança enquanto sócio, como sustenta o recorrente.

Parece-nos evidente que sendo a fiança prestada também no interesse do credor não é apenas a posição do fiador que merece tutela do direito, o que resulta da ideia base já enunciada de que a obrigação de fiança, decalcada sobre a obrigação principal, tem por natureza a mesma extensão temporal desta (art. 651 CC). E ainda que resulte como absolutamente natural que o fiador, depois de prestada a fiança, tenha todo o interesse em se libertar dela quanto antes porque a sua posição de garante apenas lhe confere uma obrigação de pagamento ou, maxime, o sócio que é fiador da sociedade não tenha interesse algum em continuar com essa obrigação depois de ter perdido essa qualidade, não é só este interesse que preside à interpretação que deve realizar-se das cláusula da fiança mas sim deve ter-se presente que a fiança como garantia da obrigação dura, por regra, até a obrigação garantida ter sido cumprida e que o credor com a garantia pretende, em regra, que até ao integral cumprimento o credor esteja acompanhado na obrigação de pagamento pelo fiador.

Não cremos pois que se possa defender que a perda da qualidade de sócio pelo fiador da sociedade é fundamento para a extinção da fiança quando o teor das cláusulas contratuais ou a prova feita sobre a contratação das partes não permita concluir que foi isso que elas quiseram ao contratar e, no caso presente, tal não pode concluir-se como anteriormente observámos.

Não esquecemos que o Apelante centra o seu protesto no facto de perguntar que “sentido poderia fazer faria no âmbito dos usos comerciais, a manutenção de uma fiança que obriga, precisamente, quem a constituiu única e exclusivamente ao tempo - e nunca antes !- em que era sócio gerente de uma das partes outorgantes de um contrato de abertura de crédito em conta – corrente, tendo em vista a facilitação das operações comerciais?”. Contudo essa resposta já a demos anteriormente quando referimos que a fiança tem por regra a extensão da obrigação principal e dura até que esta seja cumprida, não sendo a qualidade societária do fiador, salvo se isso tiver sido acordado, que fixa a extensão da fiança. E isto porque, uma vez mais o repetimos, o interesse da garantia é o de acompanhar até ao cumprimento a obrigação principal.  

Ainda que o Apelante quisesse apenas ter sido fiador enquanto fosse sócio da sociedade devedora, não resultando provado que isso tenha sido objecto de acordo e de aceitação pela devedora, tem de ter-se a fiança como prestada até que a obrigação principal fosse cumprida ou até que, posteriormente, tenha havido acordo em sentido diverso que libertasse o fiador.

Avançando na decisão e questionando agora se através da alteração contratual de 20 de Dezembro de 2000 (constante de fls. 163 a 167) a credora expressamente declarou a vontade de desobrigar o ora Apelante da fiança ou, pelo menos, revelou uma manifestação de vontade inequívoca nesse sentido, cujo comportamento contraditório posterior significasse um abuso de direito, observamos que o principal argumento apresentado, neste domínio, é o de que tendo ele deixado de ser sócio em 7-2-1997 e renunciado à gerência da sociedade devedora (al. G dos Factos Assentes), quando em Dezembro de 2000 vem a ser produzida alteração ao contrato de abertura de crédito, nesse documento que titula a alteração, o seu nome não é incluído na lista dos fiadores. E destes factos retira a conclusão de que a partir desse momento e em virtude da sua não inclusão nesse documento, a credora excluiu-o como fiador.

Analisando essa alteração, a primeira conclusão que retemos é que quer Apelante quer Apelada a aceitaram nos autos, não como um novo contrato de abertura de crédito mas sim, pacificamente, como uma alteração ao inicialmente acordado.

Ora, ficou estabelecido no contrato de abertura de crédito em conta corrente que o mesmo se renovava automaticamente [clausula 3. al.b)] e que tais renovações não importavam qualquer novação nem perda das garantias prestadas que se mantinham integralmente (cláusula 12), acrescentando-se que o Apelante aceitou essas condições, aprovando-as e deu acordo a eventuais alterações que viessem a ser convencionadas entre a B... e a mutuária (vd. doc. de fls. 121 e 122 e al. C dos Factos Assentes).

Podendo afirmar-se um desequilíbrio de posições entre a do credor e a do fiador e mesmo que este, através dos acordos firmados, ficava limitado na capacidade de reagir à consequências que para si resultassem das alterações que viessem a ser acordadas pelos mutuante e mutuário na obrigação principal, certo é que, esse desequilíbrio, proveniente da vontade negocial das partes livremente expresso em conformidade com a lei, é inteiramente válido.

A circunstância de no documento de alteração de Dezembro de 2000 não figurar o nome do Apelante no elenco dos fiadores parece ter efectivamente relacção com a de que, nessa altura, aquele já não ser sócio da devedora mas, objectivamente, por referência à autorização prévia a todas as alterações do contrato de abertura de crédito, nos termos aí fixados, concedida pelos fiadores no momento da constituição da fiança, não nos parece sustentável retirar daí a conclusão imediata e sem mais de que a credora tenha julgado extinta a obrigação do recorrente.

Disse-se que a fiança nos termos em que foi acordada não reduziu a sua eficácia e existência à condição de sócio (ou sócio-gerente) por parte do fiador e que, assim, tal garantia estaria destinada a existir até ao cumprimento integral da obrigação garantida, salvo se outra coisa viesse a ser acordada.

A alteração ao contrato de abertura de crédito em conta corrente não fixando qualquer nova fiança, partindo desse contrato inicial e do elenco das suas obrigações, introduziu-lhe as modificações expressas, razão pela qual se não pode em nosso entender, sem quaisquer outros elementos, que algum dos fiadores o tenha deixado de ser só porque o seu nome não figura na lista dos que aí são mencionados, mesmo que se tenha alguma reserva legítima em considerar que se trata de uma mera coincidência. Porém, diferente de aceitar que possa existir uma relação entre a perda da qualidade de sócio e o não figurar no elenco dos fiadores no documento de alteração a alteração de Dezembro de 2000, é o de concluir que tais circunstâncias conjugadas, apenas possam significar a libertação por parte da credora da fiança prestada pelo Apelante.

Salvaguardando o exagero do raciocínio, da mesma forma que não seria admissível concluir que alguém que não fosse fiador mas a quem o fiador sócio tivesse cedido a sua quota, passasse a sê-lo (fiador) em virtude do seu nome figurar no documento de alteração, também não cremos que por o fiador que deixou de ser sócio deixar de figurar no documento aludido no elenco dos que ali são sócios fiadores, o exima das responsabilidades da garantia e isto porque o essencial é averiguar em que termos e extensão foi a fiança acordada e, depois, se alguma alteração ocorrida posteriormente, maxime, uma declaração de vontade expressa ou tácita do credor extinguiu a fiança.

Não é portanto o facto de o recorrente não figurar no elenco dos fiadores no documento de alteração, mesmo que nesse momento o credor tivesse conhecimento que ele já não é sócio, que faz concluir, por si só, a extinção da sua responsabilidade enquanto garante mas sim saber, através da prova, de forma inequívoca, se essa não inclusão na lista dos fiadores correspondeu a uma manifestação de vontade por parte do credor em exclui-lo dos fiadores e é isso que, em nosso entender, não nos é permitido concluir dos factos provados nos autos, bastando lembrar, para reforçar a exigência de elementos de onde decorresse a manifestação de vontade da credora de liberar a fiança, a possibilidade segundo juízos de normalidade de na elaboração do documento de alteração, se terem levado em consideração os sócios que ainda o eram nessa data de acordo com os documentos de registo comercial, sem que tal quisesse corresponder a uma actualização dos fiadores excluindo alguns.

Não se sabendo se quando foi elaborado o documento que titula a alteração do contrato em Dezembro de 2000 a recorrida conhecia ou não que o recorrente tinha deixado de ser sócio da devedora e ignorando-se, sem possibilidade de a matéria provado o permitir saber, se essa omissão na lista dos fiadores quando nela apareciam apenas os que ainda eram sócios correspondia a uma intenção de não mais reclamar do Apelante qualquer garantia, tudo o que temos por seguro é o certificar a manutenção da fiança.

Veja-se em ilustração do que dissemos que, se tivesse ficado provado que o recorrente tinha dado conhecimento à credora, ora recorrida, que deixara de ser sócio e que assim considerava finda a sua responsabilidade pela garantia, a exclusão no documento do nome do Apelante como fiador poderia ser considerado segundo as regras de experiência comum como uma resposta tácita de concordância aquele entendimento e comunicação do fiador e, do mesmo passo, a posterior pretensão da credora obter dele o pagamento como uma comportamento abusivo e contraditório com o anterior. Contudo, os autos não fornecem elementos de cuja conjugação se possa estabelecer um semelhante raciocínio e nesse sentido o mais que o Apelante poderia fazer, e não fez, seria o de questionar se a falta de comunicação do teor dessas alterações (de Dezembro de 2000) não poderiam ter como consequência não lhe serem tais alterações aplicáveis.

E em remate, represtinamos aqui, a propósito da invocação do abuso de direito, aquilo que no acórdão proferido neste mesmo processo se disse a esse respeito advertindo para que “os comportamentos sucessivos contraditórios, assacáveis à apelante, consistem na desvinculação do executado da fiança e na exigência, por via da execução, do cumprimento da obrigação garantida, respectivamente.

É exacto que o executado alegou que já em 20 de Dezembro de 2002, a apelante não o considerava vinculado à prestação da fiança. Contudo, a exequente foi terminante, na resposta à oposição, na afirmação que nunca desvinculou nem teve intenção de desvincular o oponente da fiança.

(…) Já se assinalou que, ao menos de harmonia com certo entendimento do problema, que, no caso de fiança prestada pelo sócio gerente que perdeu essa qualidade e não resolveu o contrato de garantia, mas em que o credor teve conhecimento daquela perda, este, se exigir que o fiador honre a garantia, é susceptível de ficar incurso em abuso. Prevenindo a consequência que decorre desta leitura das coisas, a exequente, teve o cuidado de, no articulado de contestação, alegar, que o opoente não lhe apresentou qualquer pretensão de desvinculação e que não teve qualquer espécie de intervenção na cedência da quota do opoente na sociedade comercial afiançada nem no acto de renúncia daquele à gerência.”.

E se se definiu então que uma eventual solução poderia estar dependente da certificação dos factos relativos à dependência da fiança relativamente à qualidade de sócio do opoente, à desvinculação ou à intenção de desvinculação deste pela exequente da fiança e à ausência da comunicação, pelo executado, da pretensão de desvinculação, importa depois de produzida a prova concluir que quer a interpretação dos dispositivos legais referentes à fiança, quer os factos dispensados pela prova feita nos autos e que não foi impugnada são de forma a manter a sentença recorrida e a julgar improcedente a Apelação.

… …

Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar improcedente a Apelação e em consequência manter a decisão recorrida.

Custas pelo Apelante.


Manuel Capelo (Relator)
Jacinto Meca
Falcão de Magalhães

[1] Vd. Henriques Mesquita, Fiança, CJ, XI, IV, pg.23 a 29

[2] O art. 835 do Código Civil Brasileiro de 2002 (que substituiu o de 1916) estabelece que “o [sócio] fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação ao credor”, entendendo a jurisprudência brasileira que “Não obstante a distinção entre a pessoa do sócio e a pessoa jurídica, é possível a exoneração da garantia prestada à sociedade após a retirada dos sócios aos quais se deu a garantia originalmente, bastando uma notificação extrajudicial da vontade de exoneração da fiança, ou caso não seja suficiente “a impetração de uma acção judicial”. Vd.Recurso Especial n. 843.377-SP (2006/0090110-0) de 18.09.2007, in http://br.vlex.com/vid/-41823583.

Na vigência do Código Civil de 1916, a orientação jurisprudencial do Tribunal Superior Brasileiro (Corte Superior) era a mesma mas com a exigência de que a exoneração deveria realizar-se por meio de distrato ou pela propositura de acção declaratória de exoneração da fiança, nos termos do artigo 1.500 desse Código Civil.
[3] Vd. Evaristo Mendes , Garantias bancárias, Natureza RDES, XXXVII, 1995, p. 457 e 458
[4] Vd. Manuel Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória da dívida, sobre o sentido da vinculação do fiador, Almedina, Coimbra, 2000, p. 1142 a 1145.
[5] Vd. Acs. R.L de 7-10-86 e de 1-10-92, do STJ de 10-10-93 , in CJ, XI, IV, p. 79, XVII, IV, p. 163 e CJ, STJ,I,III, p. 122 e ainda acs. do STJ, de 03.02.99 – CJ/STJ – 1º/75; de 30.09.99  – CJ/STJ – 3º/48 – ac. da Rel. de Coimbra, de 19.10.99 – Col. – 4º/37; Rel. Porto TRP de 9-5-2005 – no proc. 0551660 e de 1-7-97 no proc. 9621524 in dgsi.pt