Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
85/19.6PTLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: CONVERSÃO DA MULTA NÃO PAGA EM PRISÃO SUBSIDIÁRIA
AUDIÇÃO DO CONDENADO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PRISÃO SUBSIDIÁRIA
Data do Acordão: 10/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 49.º DO CP
Sumário: I – A lei não exige que a audição do condenado para se pronunciar sobre a possível conversão da pena de multa não paga em prisão subsidiária se faça de forma presencial.
II – A suspensão da execução da prisão subsidiária aplicada ao condenado em consequência do não pagamento da pena de multa deverá resultar, não de uma iniciativa do tribunal, mas sim de requerimento do condenado.
Decisão Texto Integral:








I - Relatório

       I.1.   V. interpôs recurso do despacho de 23-11-2020, proferido pelo Juízo Local Criminal, Juiz 1, da comarca de Leiria, o qual determinou a conversão da pena de 100 dias de multa aplicada ao arguido naqueles autos, em 66 dias de prisão subsidiária, nos termos dos art.º 49º, n.º 1 do C.P.

       I.2 Apresentou as seguintes conclusões:

       1. Em 23 de Novembro de 2020 o douto tribunal a quo decidiu converter a pena de multa de 100 dias em 66 dias de prisão subsidiária.

       2. A decisão do douto tribunal a quo não teve em conta alguns elementos importantes que impunham solução diversa para o caso concreto.

       3. O douto tribunal a quo tem perfeito conhecimento que o arguido não tem capacidade financeira, nem condições económicas para pagar a pena de multa, uma vez que:

       a) O arguido requereu o pagamento da pena de multa em prestações, tendo sido deferido, por despacho do dia 09.01.2020, o seu pagamento em 5 prestações;

      b) Apesar disso, não conseguiu sequer pagar a primeira prestação, o que implicou o vencimento antecipado das restantes.

       c) Posteriormente requereu o diferimento para o pagamento da pena de multa, o que foi deferido para efetuar o pagamento da pena de multa até ao dia 15.06.2020, o que não aconteceu.

       d) Por oficio da P.S.P. o douto tribunal a quo foi informado que o arguido não tem emprego permanente, encontrando-se actualmente desempregado, nem tem qualquer rendimento ou bens para pagar a pena de multa e vive num barracão.

       4. Ora, o conjunto destes factos, de que o douto tribunal tem pleno conhecimento, evidencia que a razão do não pagamento da multa por razões de carência económica, não é imputável ao arguido.

       5. Ora dispõe o artº 49º nº 3 do C.Penal que «Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro (...)».

        6. “Não tendo o arguido pago a multa, a situação de incumprimento deverá ser analisada no seu conjunto, levando-se em devida conta todas as condições – sociais, familiares, laborais, de saúde, etc. – que poderão ter determinado o seu não pagamento, ao longo desse incumprimento, desde o seu início até à presente data.”

       7. “Coloca-se, assim, a questão da “culpa” desse incumprimento; saber se, a falta de pagamento da multa não é imputável ao arguido -  Ac Tribunal da Relação de Coimbra de 29/06/2016 procº nº 113/12.6GBALD.C1

        8. Segundo Eduardo Correia, a culpa deve ser entendida como censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo diverso; está tal pensamento ligado à aceitação da liberdade do agente, à aceitação do seu «poder de agir doutra

maneira» - mesmo Ac da Rel de Coimbra.

         9. “Como decidiu o TC no Acórdão n.º 491/2000, de 22-11-2000 «a demonstração de que o não pagamento da multa não é imputável ao condenado pode naturalmente fazer-se por via da prova de factos positivos, de onde resulte essa não imputabilidade. Basta pensar, por exemplo, na apresentação de determinados documentos (declaração de rendimentos, recibo do subsídio de desemprego, atestado da Junta de Freguesia, declaração relativa a eventual internamento hospitalar, entre outros), dos quais se deduza não ser imputável ao condenado o não pagamento da multa.” – ainda o referido Ac da Rel de Coimbra.

          10. Razão pela qual o despacho do douto tribunal a quo violou o disposto no artº 49º nº 3 do Código Penal, dado que não deveria ter convertido de imediato a pena de multa em prisão subsidiária, mas antes deveria ter decidido pela suspensão da execução da prisão subsidiária.

          11. Por outro lado, o recorrente entende que previamente à conversão da pena de multa em prisão subsidiária, o tribunal devia ter procedido à audição do arguido, para que este se pronunciasse sobre as razões do incumprimento do pagamento da pena de multa, uma vez que está em causa um acto que o afecta num dos direitos fundamentais de maior valia - o direito à liberdade

          12. As notificações enviadas ao arguido efetuaram-se através do depósito das mesmas no recetáculo do correio, desconhecendo-se se efetivamente o arguido recebeu as diversas notificações para pagar a pena de multa.

          13. Ora a audição do arguido é imprescindível para que o douto tribunal a quo pudesse avaliar as razões hipotéticas do arguido para o não cumprimento do pagamento da pena de multa.

          14. Tal direito do arguido de ser ouvido decorre do artigo 61.º, n.º 1, al. b), do CPP, que, estabelece que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo, e salvas as excepções da lei, dos direitos de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.

          15. O direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão de justiça, das exigências inscritas no Estado de Direito, do espírito do processo como “comparticipação” de todos os interessados na criação da decisão; direito que deve ser assegurado perante quaisquer decisões, sejam do juiz ou de entidades instrutórias, nomeadamente do M.º P.º, sempre que aquelas atinjam directamente a esfera jurídica das pessoas.

          16. O despacho que converte a pena de multa em prisão subsidiária opera uma verdadeira modificação da natureza da pena aplicada (que passa a ser pena detentiva) o que impõe que esse despacho seja rodeado de todas as cautelas (substantivas e não meramente processuais) de modo a que garanta a certeza de que o condenado não tenha de cumprir uma pena de prisão, quando foi condenado em pena de multa e não possui condições económicas de pagar a pena de multa.

          17. O douto tribunal a quo não averiguou sobre as eventuais razões que levaram o arguido ao incumprimento do pagamento da pena de multa, e isso só é possível através da audição antecipada do arguido.

          18. Ora, tendo por referência os princípios do Estado de Direito, do due process, fair process, da proporcionalidade e adequação, afigura-se-nos que foi claramente violado o direito de defesa do arguido, pois que a este não foi dada a oportunidade de apresentar as hipotéticas razões que o levaram ao incumprimento

          19. O douto despacho que converteu a pena de multa em prisão subsidiária, sem ter ouvido previamente o arguido sobre as razões hipotéticas do incumprimento do pagamento da pena de multa, violou o disposto no artº 61º, nº1 b) do C.P.P. e as garantias de defesa do arguido, em particular o direito ao contraditório (art.32, n°s 1 e 5, da CRP), cuja preterição constitui nulidade insanável (art.119, al. c, CPP), o que se invoca desde já.

          20. O douto tribunal a quo interpretou o artº 61º nº1 a) e b) do C. P. Penal no sentido de não ser necessário ser ouvido o arguido para explicar as razões do não pagamento da pena de multa, sendo tal interpretação inconstitucional por violar o disposto no artº 32º nº 1 e 5 da C.R.P.,

         Nestes termos e nos melhores de Direito que Vª EX.as mui doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a decisão recorrida que converteu a pena de multa em prisão subsidiária e em consequência decretar-se a notificação do arguido para esclarecer as razões de tal incumprimento, ou, caso assim não se decida, decretar-se a suspensão da execução da prisão subsidiária, ou declarar-se a nulidade do despacho de que se recorre por violação das garantias de defesa do arguido, em particular o direito ao contraditório (art.32, n°s 1 e 5, da CRP), cuja preterição constitui nulidade insanável (art.119, al .c, CPP) e ainda, declarar-se a inconstitucionalidade do douto despacho na interpretação dada pelo mesmo , do artº 61º nº 1 a) e b) do C.P.P. por entender ser desnecessário a notificação para audição do arguido para vir esclarecer as razões do não cumprimento do pagamento da multa por violação do artº 32º nº 1 e 5 da C.R.P.

 

    

     I.3. Notificado o Ministério Público, veio o mesmo responder ao recurso do arguido apresentando as seguintes conclusões:

     1. Discorda o recorrente da decisão de conversão da pena de multa de 100 dias em 66 dias de prisão subsidiária.

     2. Do compulso dos autos, verificamos que o arguido requereu o pagamento da multa em prestações, o que lhe foi deferido, tendo sido determinado o pagamento da

mesma em cinco prestações, conforme despacho do dia 9/1/2020, notificado, através de postal simples com prova de depósito (doravante PD) a 14/1/2020.

     3. Verificando-se o incumprimento da primeira e segunda prestações, cujo vencimento havia ocorrido em 31/1/2020 e 28/2/2020, foram as prestações julgadas vencidas e notificado o arguido para pagamento integral da multa, no dia 19/5/2020.

     4. Contudo, o arguido, nada pagou, nem nada esclareceu quanto a esse mesmo incumprimento.

     5. Nessa sequência, foi o arguido notificado no dia 8/10/2020, através de PD, para “querendo, proceder ao pagamento da multa em falta e/ou “provar que a razão do não pagamento da multa não lhe é imputável”, sob pena da multa ser convertida em prisão subsidiária, que o arguido terá de cumprir.

     6. Contudo, mais uma vez, nada juntou/comprovou, assim como nada esclareceu quanto aos motivos de não cumprimento.

       7. Assim, da análise aos autos, constata-se que nada foi junto de forma a comprovar que o não pagamento, quer das prestações, quer do valor integral, se deveu por motivo não imputável ao arguido, o que em abstracto, poderia determinar uma suspensão da execução da prisão subsidiária,

       8. Com efeito, o arguido pura e simplesmente nada esclareceu, revelando total e absoluto desinteresse pela situação em concreto,

       9. Não obstante a inércia do arguido, o tribunal, em diversas ocasiões, procedeu à “audição” do arguido para requerer, justificar ou comprovar o que melhor lhe aprouvesse.

       10. Tal audição, com vista ao contraditório, basta-se com a notificação por via postal, não sendo necessário que a mesma ocorra de forma presencial.

       11. Pelo exposto, entendemos que se deverá confirmar a decisão de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, nos exatos termos que constam da sentença proferida.

       12. Salvo melhor entendimento, consideramos que não assiste razão ao recorrente, pelo que, louvando-nos da douta sentença que fez correcta apreciação dos factos e aplicação do direito, entendemos que a mesma não merece censura, devendo o recurso ser julgado improcedente por não provado, mantendo-se a sentença nos seus precisos termos.

 

         I.2 O Ex.º Procurador do Ministério Público junto a este tribunal, emitiu parecer no sentido de acompanhar a resposta do Ministério Público junto ao tribunal a quo   

 
   II – Fundamentação de Facto

   É o seguinte o despacho sob recurso, na parte que agora interessa:

   V. foi condenado nos presentes autos na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 5,00€, no total de 500,00€.

   Por despacho proferido no dia 09.01.2020, foi o arguido autorizado a proceder ao pagamento da multa em 5 prestações mensais, iguais e sucessivas no valor unitário de 100,00€. Porém, porquanto o arguido não procedeu ao pagamento da primeira prestação, vencida no dia 31.01.2020, nem das prestações subsequentes, por despacho proferido no dia 24.04.2020, foi declarado o vencimento imediato de todas as prestações vincendas com reporte ao dia 31.01.2020 e foi o arguido notificado para proceder ao pagamento integral da multa no prazo de 10 dias.

Ainda assim, na sequência do requerimento apresentado pelo arguido no dia 11.05.2020, foi-lhe deferido o diferimento do prazo para proceder ao pagamento da pena de multa até 15.06.2020.

Até ao momento, o arguido não procedeu ao pagamento da multa (total ou parcialmente), não justificou a sua falta, nem requereu a substituição da multa por trabalho a favor da comunidade.

Considerando os elementos que constam dos autos (cf. ofício da PSP de 27.07.2020),

mostra-se inviável o cumprimento coercivo da pena de multa. O Ministério Público promove a conversão da pena de multa não paga em pena de prisão subsidiária.

Notificado o arguido para, querendo, se pronunciar face ao disposto no n.º 1 do art. 49.º do Cód. Penal, o mesmo nada disse ou requereu.

Assim, ao abrigo do n.º 1 do art. 49.º do Cód. Penal, converto a pena de multa aplicada ao arguido em 66 (sessenta e seis) dias de prisão subsidiária que o mesmo deverá cumprir. Para o efeito, consigna-se que a importância a descontar na multa por cada dia em que o arguido estiver detido é de 7,58€ (sete euros e cinquenta e oito cêntimos), informação esta que deverá constar nos respectivos mandados – cf. o art. 491.º-A n.º 3 do CPP.

Notifique, sendo o arguido na pessoa do Il. Defensor e pessoalmente através de PD na morada do TIR (cf. o art. 113.º n.º 1 al. c) do CPP), com a informação de que pode, a todo o tempo, evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo, ou em parte, a multa em que foi condenado nos termos do n.º 2 do art. 49.º do Cód. Penal.

 
       III  - Fundamentação de Facto

       a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).

     

       b) São as seguintes as questões a apreciar nestes autos:

       i) Saber se a decisão recorrida violou o disposto no art.º 49, n.º 3 do C. P. por não ter admitido a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão;

       ii) Aferir se deve ser revogado o despacho recorrido, por se verificar a sua nulidade, tendo sido violado o seu direito de defesa e o direito ao contraditório, nos termos do art.º 61º, nº1 al. a) e b) e 119º do CPP.

c) Iniciando a apreciação do recurso, a norma a considerar é o art 49º do Cód. Penal, que dispõe:
1 - Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.
2 - O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.
 3 - Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.
4 – (…)

  

       c) Recorde-se que o arguido, após ter sido condenado em pena de um crime, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, veio solicitar o pagamento da pena de multa em prestações, o que foi deferido por despacho de 9-1-2020, autorizando-se o pagamento da multa em 5 prestações mensais, iguais e sucessivas no valor unitário de 100,00€. Todavia, o arguido não procedeu ao pagamento de qualquer prestação, sendo declarado o vencimento de todas as prestações vincendas, notificando-se o arguido para proceder ao pagamento integral da multa no prazo de 10 dias.

           O arguido apresentou ainda um requerimento no sentido de ser deferido o prazo para proceder ao pagamento da pena de multa, o que foi concedido, até 15.06.2020, mantendo-se a situação de incumprimento, o que motivou a conversão da pena de multa em prisão subsidiária, após a realização de diligências/pesquisas realizadas para averiguar da existência de bens/direitos penhoráveis.

          d) Defende o arguido, no primeiro grupo de conclusões (2ª a 10ª), que o tribunal a quo violou o disposto no artº 49º nº 3 do Código Penal, dado que não deveria ter convertido de imediato a pena de multa em prisão subsidiária, mas antes deveria ter decidido pela suspensão da execução da prisão subsidiária, uma vez que o mesmo tribunal tinha conhecimento que o arguido não tinha capacidade financeira, nem condições económicas para pagar a pena de multa, o que resultava da circunstância de ter requerido o pagamento da pena de multa em prestações, sem o conseguir cumprir, e de informações recolhidas, das quis resulta que o arguido não tem qualquer rendimento ou bens para pagar a pena de multa.

          

          e) Apreciando:

          Em primeiro lugar, importa salientar, que uma das características mais marcantes do actual ordenamento penal português resultante da reforma legislativa de 1982, assenta na ideia de que as sanções privativas da liberdade constituem a última ratio da política criminal, aqui relevando os princípios da necessidade/subsidiariedade da intervenção penal e da proporcionalidade das sanções penais (art 18º n.º 2 da CRP e, por exemplo os arts 70º e 98º do Cód. Penal) – cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, p. 17, Ed. Almedina.

          Em coerência com essa orientação, o legislador de 1982  privilegiou a pena de multa, em contraponto com a pena de prisão, elevando-a a pena principal, vertente que veio a ser aprofundada com a revisão operada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, onde se pode ler no preâmbulo que “impõe-se, pois, devolver à pena de multa a efectividade que lhe cabe.  A dignificação da multa enquanto medida punitiva e dissuasora passa por um significativo aumento, quer na duração (…)  quer no montante máximo diário (…). E assim sendo, afastado o carácter residual ou secundário que a pena de multa assumia antes de 1982, o legislador rodeou aquela pena dos mecanismos aptos a acentuar a sua natureza de verdadeira pena criminal, conferindo-lhe a dignidade que esse estatuto reclamava, sob pena de não conseguir responder ao desafio de relegar a pena detentiva para o papel de ultima ratio do sistema penal. E tal desiderato passou – para além do mais -   pelo estabelecimento de um sistema de execução da pena orientado para a preservação da dignidade penal da pena pecuniária, visando evitar que esta se convertesse numa (…) forma disfarçada de absolvição ou (…) de uma dispensa ou isenção da pena que se não tem a coragem de proferir “-  Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime», § 123. 

             Assim sendo, a interpretação do regime legal relativo à execução da pena de multa,  “deverá ser em sintonia com as finalidades apontadas às penas; sem que se ignore, pois, em momento algum, no decurso da respectiva execução, que constituindo a pena de multa uma verdadeira pena criminal haverá que assegurar sempre a tutela do bem jurídico violado e a reintegração social do condenado, qualquer que seja a modalidade da execução que venha a ser seguida, porquanto é através da execução da pena, qualquer que ela seja, que se confere razão prática à sentença condenatória e se asseguram as finalidades de prevenção. Dito de outro modo, precisamente porque se trata de uma pena criminal, o condenado tem que a sentir como tal, sob pena de frustração das finalidades visadas através da sua aplicação; razão que justifica que as alternativas de cumprimento da pena de multa exijam a sua intervenção concreta e interessada, pois é a ele que cabe explicar o não cumprimento da pena em que foi condenado e para cujo cumprimento foi devidamente notificado sendo, pois, ao condenado que cabe requerer a suspensão da pena de prisão subsidiária e provar que o não pagamento lhe não é imputável -   – cfr. Ac. desta Rel. de Coimbra de 13-5-12020, processo n.º 36/16.6T9LSA-A.C1, in www.dgsi.pt, que seguimos de perto, e Paulo Pinto de Albuquerque, C.P.P. anotado, 3ª edição, p. 1237.

          

           f) Concluímos assim que o condenado em pena de multa, só poderá beneficiar de algum mecanismo da suspensão da prisão subsidiária caso o requeira expressamente.

           E é essa conclusão que se impõe, não só face à salvaguarda dos efeitos que a pena de multa deve produzir, atenta a sua dignidade de pena principal, como ainda da interpretação da própria lei.

           Assim, o tribunal após decidir pela aplicação de uma pena de multa ao condenado, cabe a este a iniciativa de pedir o diferimento do prazo de pagamento ou o pagamento em prestações (como aliás ocorreu no caso em apreciação), o que resulta das expressões («…o tribunal pode autorizar (…) ou permitir…» -  art. 47º, nº 3, do Cód. Penal.

           Tal como se estabelece expressamente, que a substituição da multa por dias de trabalho depende de manifestação e vontade do condenado nesse sentido («A requerimento do condenado (…)» -  art. 48º, nº 1, do CP.

          

           g) E igualmente a suspensão da prisão subsidiária aplicada em consequência do não pagamento da pena de multa, deverá resultar não de uma iniciativa do tribunal, mas sim de um requerimento do condenado, o que se retira da expressão «Se o condenado provar - art. 49º, nº 3, do Cód. Penal, ou ainda da redacção do art. 491º, nº 3, do CPP: «(…) parecer do Ministério Público, quando este não tenha sido o requerente», o que implica que a suspensão tem que ser requerida pelo M.P., ou pelo condenado.

           Se o tribunal – como defende o recorrente - tivesse o dever de oficiosamente suspender a aplicação da prisão subsidiária sempre que tivesse conhecimento que aparentemente a situação económica do condenado não lhe permitia pagar a pena de multa, então deixaria de fazer sentido  a previsão normativa do  n.º 3 do art 49º do Cód. Penal; Exigindo o n.º 2 do mesmo art 49º,  como pressuposto de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, que o tribunal tente a execução patrimonial, no caso de a mesma se frustrar por inexistência de bens (como ocorreu no caso), então imediatamente o tribunal deveria suspender a execução da  pena subsidiária, sem qualquer iniciativa do condenado nesse sentido, e sem ter que alegar e provar que a razão do pagamento não lhe é imputável, o que tornaria inútil, e mesmo contraditório o referido n.º 3 do art 49.

              h)  Em suma; a pena de multa não se traduz numa indiferenciada  prestação patrimonial a favor do Estado, na qual se realizam diligências no sentido de apurar património que possa satisfazer aquela dívida, suspendendo-se o seu  pagamento, caso não se encontrem bens ou rendimentos penhoráveis, como se de uma simples execução por custas se tratasse; a pena de multa, ainda que se concretizando através de um sacrifício patrimonial,  é uma verdadeira pena, dotada de distinta dignidade jurídico-penal, visando a sua aplicação as finalidades descritas no art 40º do Cód. Penal, tanto que se procura a sua efectivação através da privação de liberdade, situação que não ocorre relativamente à não satisfação de qualquer outra prestação pecuniária no nosso ordenamento jurídico.

              Essa específica natureza de pena, exige que após o seu incumprimento, e sua conversão em prisão subsidiária, seja o condenado a requerer especificamente a suspensão dessa prisão, como aliás resulta da interpretação na redacção das normas acima citadas.

              i) Passamos agora à segunda questão, constante das conclusões 12ª e ss., e que se relaciona com a eventual nulidade do despacho recorrido, por inobservância do princípio do contraditório e preterição do direito de defesa do arguido, face ao art.º 61º, nº1 al. a) e b) e 119º do CPP.

             Apreciando, diga-se que após algumas divergências, a nossa jurisprudência defende hoje de forma maioritária que o tribunal, sob pena de nulidade  (art 119º al. c) e 61º n.º 1 al. b), ambos do C.P.P.), deve ouvir o condenado previamente à conversão da pena de multa, de modo a possibilitar que este se pronuncie sobre a mesma conversão, designadamente invocando que o não cumprimento da pena não resulta de culpa sua – cfr., entre muitos, e a título de exemplo, o Ac. desta Rel. de Coimbra de 11-9-2019, processo n.º 31/15.6IDCTB.C2, in www.dgsi.pt. 

            No caso, em momento anterior ao da prolação do despacho recorrido que converteu a pena de multa em prisão subsidiária, o arguido foi notificado, por carta depositada na morada constante do TIR, para se pronunciar sobre o não pagamento de qualquer prestação relativa à pena de multa, e sobre a possibilidade de aplicação do art 49º n.º 1 do Cód. Penal, isto é, sobre a possível conversão da pena de multa em prisão subsidiária, o que o recorrente não contesta.

             Foi assim dada oportunidade ao arguido para se pronunciar em momento anterior à conversão em prisão subsidiária.          

           j) O direito do arguido a ser ouvido, significa direito a pronunciar-se antes de ser tomada uma decisão que pessoalmente o afecte, e não tem de consistir sempre numa audição pessoal e oral– cfr. Henriques Gaspar e outros, C.P.P. Comentado, Almedina, 2.ª edição, 2016, p. 184.

           A lei não exige que a audição do arguido para se pronunciar sobre a possível conversão da pena de multa em prisão subsidiária se faça de forma presencial, nem se vêem razões para que fosse imposta esta solução  - no sentido agora defendido, cf. o Ac. desta Rel. de Coimbra de 29-06-2016, processo n.º 3479/09.1TACBR.C1, o Ac. da Rel. de Lisboa de 24-11-2020, processo n.º 81/17.2S6LSB.L1-5, e o Ac. da Rel. de Évora de 26-4-2018, processo n.º 21/14.5PESTB.E1, todos em www.dgsi.pt. onde se citam ainda outros arestos concordantes.
     
IV - Dispositivo

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido, confirmando integralmente a sentença proferida.

 Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC`s.

  Coimbra, 13 de Outubro de 2021

         João Novais (relator)


                         

         Elisa Sales (adjunta)