Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
147/20.7T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: VALOR DA ACÇÃO
PEDIDO GENÉRICO
DESPACHO SANEADOR
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DO VALOR DA ACÇÃO
REDUÇÃO DO VALOR DA ACÇÃO
REMESSA AO TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL DA COMARCA DE CASTELO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 305.º, 306.º E 310.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I) Mesmo no caso de dedução de um pedido genérico, o autor está obrigado a indicar o valor da acção.

II) Apesar da concordância ou da anuência de uma das partes ao valor indicado pela outra, o tribunal deve fixar o valor da acção pela aplicação dos critérios legais enunciados para o efeito.

III) Embora deva ocorrer normalmente no despacho saneador, nada obsta a que a fixação do valor da acção ocorra anteriormente a tal despacho.

IV) A redução oficiosa do valor da acção não determina a sua remessa para o juízo local cível ou para o juízo de competência genérica da acção que tenha sido proposta num juízo central cível por ser este o competente face ao valor indicado pelo autor.

Decisão Texto Integral:





Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

Nos presentes autos de ação declarativa comum de resolução do contrato de arrendamento instaurados por A…, na qualidade de arrendatário rural, contra os senhorios B…, S.A.,

com os seguintes fundamentos, que aqui se sintetizam:

A. e RR celebraram entre si, no dia 1 de junho de 2018 e com vigor imediato, um contrato de arrendamento rural pelo período de 10 anos, com uma renda anual de 5.000 €, tendo por objeto uma casa de habitação, uma parcela de terreno com aptidão agrícola e uma área total de 40,100 m2, 2 km de vedações, 3 pavilhões agrícolas, regadio barragem, poço e furo;

sustentado nestas estruturas e funcionalidades básicas da exploração agrícola, frutícola e pecuária, o requerente apresentou projeto de apoio aos subsídios e financiamentos majorados pelo IFAP, iniciando, na data do arrendamento, a correspondente atividade agrícola e pecuárias, a qual se mantém na atualidade;

vindo-se a apurar que os três pavilhões agrícolas eram clandestinos e omissos na matriz, com a impossibilidade de utilização desses pavilhões, ficou muito reduzida a capacidade de preencher as condições legais indispensáveis à continuação e realização do projeto do A., porquanto, terá de proceder à legalização daquelas construções, sendo certo que, os organismos públicos não podem subsidiar ou financiar explorações apoiadas em construções de génese ilegal ou clandestinas;

mantendo-se ainda o requerente em atividade, a aludida exploração arrendada na parte agrícola e frutícolas não limitada pelas condições emergente da raiz legal das instalações,

propõe o requerente uma redução proporcional do preço da compra opcional e da renda anual para um valor proporcional de 3.000 €;

tendo o autor entregue já o valor correspondente 3 anos de renda, tem direito à devolução de 6.900 € pela impossibilidade efetiva de utilização dos pavilhões;

esta situação tem causado ao autor inúmeros prejuízos, deixando, nomeadamente, de conseguir concretizar um contrato de fornecimento de plantas de Goji, cujos prejuízos na sua determinação teriam de ser relegados para execução de sentença, numa estimativa de 40.000 €.

Para cumprimento das exigências processuais indica como valor de ação o que se encontra plasmado contratualmente como preço de opção de compra, 160.000 €.

Conclui, pedindo que:

1. se declare resolvido o contrato de arrendamento rural por incumprimento culposo e inadequação aos fins da atividade agrícola, frutícola e pecuária, com efeitos a parte de 21 de maio de 2020;

2. se reduza a renda para o valor de 300 € com efeitos retroativos ao início da sua vigência;

3. compensando o valor excedente das rendas pagas com a parte da renda vencida de 1 de dezembro de 2019, e condenando-se os RR. a reembolsar o Autor pelo excedente;

4. condenando-o ao pagamento de uma indemnização pecuniárias por valor arbitrado em valor jamais inferior a 14.000,00 €

5. e dos danos patrimoniais emergentes da redução de possibilidades de exploração plena do locado e lucros cessantes em valor que venha a ser contabilizado e comprovado em liquidação de sentença.

Os Réus apresentam contestação, impugnando o valor de 160.000 € dado pelo autor à ação, por não nos encontramos perante uma ação em que se pretenda fazer valer o seu direito de propriedade; o autor deixa para o tribunal a fixação dos valores arbitrados, apenas defendendo um valor mínimo de 14.000,000 €, pelo que, face ao art. 299º, ns. 1 e 2, deve atender-se ao momento da propositura da ação exceto quando haja reconvenção; o autor pretende o arbitramento e liquidação em sentença de outros valores, contudo, nestes casos, há que atender ao valor inicial (pedido liquido na P.I.), sendo esse valor apenas corrigido na sequência da ação quando o processo se mostre com todos os elementos necessário.

Concluem impugnando o valor da causa indicado pelo autor, nos termos do art. 305º, nº1, oferecendo os RR. o único valor (líquido) indicado pelo Autor, de 14.000,00 €, como valor da causa, sem prejuízo da soma do valor da reconvenção que será deduzido (5.519,13€ + 188,62€), atribuindo assim à ação o valor total de 19.707,75 €.

Apresentando articulado de Réplica, o Autor começa por responder ao incidente de valor da ação, alegando que, tendo embora liquidado para efeitos tributários no petitório final pelo valor de 14.300 €, o contrato de arrendamento rural continha na sua génese uma opção de compra, opção que se mantém vigente até preclusão do direito do autor em acionar ou até decisão da primeira ação, anulando e substituindo as demais condições contratadas; sendo uma opção válida na subsistência do contrato e configurando um valor de substituição de direitos contratados, logo não cumuláveis, afigurou-se ao A. ser este maior valor de 160.000,00 €, a considerar para efeitos tributários na presente ação, nos termos do art. 297º, ns. e 3 do CPC; mais estranham que os RR. venham expandir a tese, correta, de cumulação dos pedidos principal e reconvencional, venham depois indicar como valor da ação apenas o pedido da sua reconvenção, reduzindo a este o valor da taxa de justiça liquidada e paga.

O Juiz ao quo profere então o seguinte despacho:

“Posto isto, e em face ao incidente de valor levantada nos autos, notifique a autora a fim de se pronunciar expressamente quanto ao requerido, com a expressa comunicação de que do seu silêncio se retirará concordância com o ali peticionado, nos termos do art. 303º, 305º, nº1, sendo tal prazo de 10 dias, o autor nada veio dizer.

Seguidamente, pelo juiz a quo é proferido, o seguinte Despacho, de que agora se recorre:

“(…) Face a tal foi determinado nos termos do despacho com a ref. 32675649 que “em face ao incidente de valor levantada nos autos, notifique a A. a fim de se pronunciar expressamente quanto ao requerido quanto a tal, em face ao ali invocado/alegado, com a expressa cominação que do seu silêncio se retirará a concordância com o ali peticionado, nos termos do artigo 302 e 305.º n.º 1 do C.P.C., sendo tal no prazo de dez dias.

Na sequencia de tal notificação, nada foi dito, daí se retirando a concordância com tal e do mesmo resultou, e em suma, a fixação do valor da causa em 19.707,75€ (14.000,00€ + 5.519,13€ + 188,62€) nos termos do artigo 305.º n.º 1 e artigo 299.º n.º 2, todos do CPC.)


*

(…) No caso “sub judice”, as partes acabaram por chegar a acordo, sendo que por via de tal impõe-se a fixação do valor da causa em 19.707,75€ (14.000,00€ + 5.519,13€ + 188,62€) nos termos do artigo 305.º n.º 1 e artigo 299.º n.º 2, todos do CPC.)

Pelo que é este o valor em que deverá fixar os autos, nos termos dos supra expostos e conforme os citados normativos, o que se determina.

(…)

E em consequência:

importa dar cumprimento ao disposto no artigo 310.º n.º 1 do C.P.C e em face ao exposto, cabe verificar a excepção dilatória de incompetência relativa em função do valor desta Instancia Central, nos termos do artigo 577.º, al. a), NCPC, declarando a mesmo incompetente para julgar os presentes autos e, em face ao valor dos mesmos determinar, anos termos do artigo 105.º, n.º 3 do CPC ex-vi 130.º n.º 1 a) da LOTJ, determinando por isso e após transito a remessa dos mesmos para o Tribunal competente, a Instancia Local Cível do Fundão.”


*

Não se conformando com tal decisão, o autor dela interpõe recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

(…)


*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões levantadas pela Apelante e pela Apelada nas suas alegações de recurso são as seguintes:
1. Se a decisão sobre o valor da causa deveria ter sido proferida em sede de despacho saneador.
2. Se a ausência de resposta por parte do Autor equivale a acordo ou aceitação do valor proposto pelo Réu.
3.  Se é de alterar o valor da ação principal
4. Se a alteração do valor da causa afeta a competência do tribunal.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Se a decisão sobre o valor da causa deveria ter sido proferida em sede de despacho saneador.

Encontramo-nos aqui perante uma “não questão” ou pelo, menos, sem qualquer relevo processual.

O valor da causa é, segundo o nº2 do artigo 305º do CPC, e em regra, “fixado no despacho saneador” e, uma vez que a sua determinação pode contender com a competência do tribunal, em caso de impugnação do valor indicado pelo Autor, o juiz deverá iniciar o despacho saneador precisamente pela fixação do valor da causa, uma vez que, só se se vier a considerar competente, poderá apreciar as demais questões do artigo 595º CPC.

Contudo, e embora seja apontado o despacho saneador como o momento em que o juiz deve a apreciar a questão do valor, naquelas situações em que a fixação de um valor judicial diverso do inicialmente indicado pelo autor pode ter implicações processuais relevantes – nomeadamente, determinação na tramitação processual (arts. 597º), modificação da competência do tribunal (art. 301º, nº1), necessidade de constituição de advogado no processo, sob pena de absolvição do réu na instância ou de ineficácia na defesa (art. 40º, nº1) –, é da maior conveniência que a intervenção do juiz para fixar o valor ocorra mesmo antes do despacho saneador, ficando reservadas para tal despacho as intervenções em que se não vislumbre o risco de decisão a proferir contender com aqueles fatores[1].

No caso em apreço, terminados os articulados e apercebendo-se o juiz da impugnação do valor da causa efetuada pelos Réus na sua contestação, era, assim, este o momento adequado para apreciar a impugnação ao valor da ação levantada pelos RR. – tanto mais, que, decidindo-se por fixar o valor da causa abaixo da alçada do tribunal central, considerou-se incompetente pelo que nada mais poderia apreciar nos autos.

Improcedem, pois, as alegações do Apelante a tal respeito.


*

2. Valor da falta de resposta do autor à notificação que lhe foi feita pelo tribunal

Deduzida pelos Réus impugnação ao valor atribuído pelo autor à ação, o juiz a quo determinou a notificação do autor, nos seguintes termos:

 “em face ao incidente de valor levantada nos autos, notifique a A. a fim de se pronunciar expressamente quanto ao requerido quanto a tal, em face ao ali invocado/alegado, com a expressa cominação que do seu silêncio se retirará a concordância com o ali peticionado, nos termos do artigo 302 e 305.º n.º 1 do C.P.C., sendo tal no prazo de dez dias.”

E, nada tendo o autor dito na sequência de tal notificação, pelo juiz a quo foi então proferido o seguinte despacho a fixar o valor da ação:

“Na sequencia de tal notificação, nada foi dito, daí se retirando a concordância com tal e do mesmo resultou, e em suma, a fixação do valor da causa em 19.707,75€ (14.000,00€ + 5.519,13€ + 188,62€) nos termos do artigo 305.º n.º 1 e artigo 299.º n.º 2, todos do CPC.)


*

(…) No caso “sub judice”, as partes acabaram por chegar a acordo, sendo que por via de tal impõe-se a fixação do valor da causa em 19.707,75€ (14.000,00€ + 5.519,13€ + 188,62€) nos termos do artigo 305.º n.º 1 e artigo 299.º n.º 2, todos do CPC.)

Pelo que é este o valor em que deverá fixar os autos, nos termos dos supra expostos e conforme os citados normativos, o que se determina.”

 Insurge-se o Apelante contra o decidido sustentando que o convite feito pelo tribunal a quo, para se pronunciar quanto ao incidente de valor, não pode produzir qualquer efeito com o sentido de concordância do valor indicado pelos Réus.

Cumpre, assim, apreciar a questão de saber se: i) o silêncio do autor pode ter o efeito de aceitação do valor indicado pelo Réu na sua impugnação; ii) se o autor se remeteu efetivamente ao silêncio e não se pronunciou sobre a questão controvertida do valor da ação.

No artigo 305º, ns. 1 e 5, do CPC, admite-se que, independentemente da impugnação que o réu possa ter deduzido ao valor indicado pelo outro à ação, “nos articulados seguintes podem as partes acordar em qualquer valor” e que “a falta de impugnação por parte do Réu significa que aceita o valor atribuído à causa pelo autor”.

Embora o valor possa ser determinado por acordo expresso das partes (segunda parte do nº1 e n2,), ou por falta de impugnação do valor atribuído pelo autor (nº4), o valor acordado não vincula o juiz (art. 306). Com as alterações do DL 303/2007, passou o juiz a ter sempre que fixar o valor da causa, nunca ficando dispensado de examinar a objetividade decorrente do acordo das partes, expresso ou tácito[2].

Assim, e desde logo, ainda que se considerasse haver acordo, este acordo ou aceitação nunca seriam vinculativos para o juiz, como resulta do disposto no artigo 306º. Ou seja, ainda que pudéssemos afirmar que o comportamento do autor poderia ser entendido como aceitação do valor proposto para a ação pelos Réus na sua contestação, nunca o juiz se encontraria dispensado de analisar os elementos objetivos constantes dos autos com relevância para a determinação do valor da ação, ainda que de tal análise se viesse a afastar do valor acordado entre as partes.

Contudo, no caso em apreço, não descortinamos qualquer atitude do autor que possa ser entendida como de aceitação, expressa ou tácita, do valor proposto pelo réu no incidente de impugnação do valor da causa que deduzem na sua contestação.

Com efeito, não só, aquando da apresentação do Requerimento Inicial da presente ação, o autor não se limita a indicar o valor que atribuiu à causa, como explica por que motivos fáticos e de direito, opta por atribuir à causa o valor de 160.00,00 €, como ainda, na Réplica, veio expressamente responder ao incidente de impugnação do valor da causa deduzidos pelos RR., voltando a sustentar o valor de 160.000, 00 € por si inicialmente proposto e insurgindo-se com o valor proposto pelos RR e contra os critérios em que os mesmos se apoiaram.

Surge-nos, assim, como incompreensível como, após o autor ter respondido expressa e formalmente sobre o incidente de impugnação do valor da ação deduzido pelos RR., opondo-se à pretensão deste e mantendo a sua posição de que à ação deverá ser fixado o valor por si indicado na P.I., o juiz determina a sua notificação para se pronunciar sobre o incidente de impugnação “com a expressa cominação que o seu silêncio se retirará a concordância com o ali peticionado.” A única explicação que encontramos para tal convite reside na eventualidade de o tribunal não se ter apercebido da resposta do autor a tal incidente contida no articulado de Réplica.

Não há, assim, qualquer aceitação ou concordância por parte do autor relativamente ao valor proposto pelos RR. na impugnação que deduzem ao valor da ação.

De qualquer modo, ainda que assim não fosse, independentemente das posições assumidas pelas partes – falta de impugnação do valor atribuído pelo autor, considerando-se que o aceita, apresentação de um novo valor que é aceite pelo autor, manutenção de divergência entre as partes relativamente ao valor da ação –, o juiz terá sempre de se debruçar sobre o assunto e fixar o valor da causa, sem estar vinculado a qualquer dos valores indicados ou aceites por aquelas (artigo 306º, nº1)[3].

Ou seja, não se encontrava o juiz dispensado de analisar o valor da causa à luz dos critérios legais previstos nos artigos 297º e ss. do CPC, divergindo do valor proposto pelas partes, caso reconhecesse não corresponder aquele ao resultante de tais critérios legais.

3. Qual o valor que corresponde à causa principal

O autor intenta a presente ação pretendendo ver reconhecido o seu direito à resolução do contrato de arrendamento por incumprimento culposo do senhorio e inadequação do aos fins de atividade agrícola, frutícola e pecuária, com efeitos a partir de 21 de maio de 2020, pedindo:

- que se reconheça o direito à redução da renda, para o valor anual de 300 € com efeitos retroativos com inicio à sua vigência;

 - compensação do valor excedente das rendas pagas com a parte da renda vencida em 1 de dezembro de 2019, condenando-se os RR a reembolsar o A. pelo remanescente, num valor total de 6.900 €;

- indemnização por danos morais em valor não inferior a 14.000 €;

- indemnização por danos patrimoniais, a liquidar em execução de sentença e que estima em 40.000 €.

Operando a resolução do contrato por parte do inquilino por mera comunicação ao senhorio[4], a propositura da presente ação apenas se justifica pelas consequências que ele pretende retirar da imputabilidade de tal resolução ao senhorio, ou seja, pelas pretensões que formula relativamente à redução do valor da renda e compensação com os montantes já por si pagos e pelas indemnizações por si peticionadas.

Ou seja, pretendendo o autor, com a presente ação, obter determinadas quantias em dinheiro, o valor da causa corresponderá à soma dos valores de todas elas (artigo 297º).

Constatamos, contudo, que, relativamente a um dos pedidos indemnizatórios, é formulado um pedido genérico, relegando-se a determinação do seu montante para momento posterior (ao abrigo do disposto nos arts. 556º, nº1, al. b), e nº2, CPC).

Contudo, e ao contrário do sustentado pelos RR/Apelados, a circunstância de o artigo 566º do Código Civil dispor que “quem exigir indemnização não necessita de indicar a importância exata em que avalia os danos” não desobriga a parte de atribuir um concreto valor à sua pretensão indemnizatória, de acordo com os critérios do artigo 297º do CPC.

Mesmo nas circunstâncias em que a utilidade económica imediata do pedido (art. 296º) ainda não é quantificável em termos objetivos, dependendo de vicissitudes posteriores (art. 299º, nº 4, do CPC), o valor processual deve ser fixado, ainda que provisoriamente, a partir dos elementos objetivos que já decorram dos autos, sendo submetido a ajustamentos quando o processo fornecer outros elementos reveladores do real interesse económico da ação.

Como tal, a utilidade económica da presente ação corresponderá à soma dos seguintes valores:

- 6.900 €, correspondente ao valor que o autor alegadamente terá pago a mais, na hipótese da procedência da sua pretensão à redução retroativa do valor da renda;

- 14.000,00 €, correspondente à indemnização por danos morais;

- 40.000,00 €, respeitante à indemnização por danos patrimoniais, a liquidar em momento posterior;

Ou seja, o valor da ação corresponderá a 60.900 €, ao qual deverá ser somado o valor da reconvenção[5].

3. Se a alteração do valor da causa era relevante para efeito de determinação da competência do tribunal

Segundo o artigo 310º do CPC, quando se apure, pela decisão definitiva do incidente de verificação do valor da causa, que o tribunal é incompetente, são os autos oficiosamente remetidos ao tribunal competente, sem prejuízo do disposto no nº3: ou seja, “o tribunal mantém a sua competência quando seja oficiosamente fixada à causa um valor inferior ao indicado pelo autor.”

A ideia que preside ao diferente tratamento dado à situação em que é fixada à causa um valor superior ao indicado pelo autor – remessa oficiosa para o tribunal competente – e à situação em que é fixada à causa um valor inferior ao inicialmente indicado pelo autor – caso em que o tribunal mantém a sua competência –, “é a de que sendo mais garantístico o julgamento realizado na instancia central, as partes dele não devem ser privadas por o autor ter atribuído à causa um valor inferior ao real (o que não acontece no inverso)[6]”.

Como sustentam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, o circunstancialismo relevante para o apuramento da competência do tribunal fixa-se no momento em que a ação é proposta, “a exceção ao princípio da estabilidade da instância, permitindo-se que o seu vértice seja alterado, só deve ser autorizada para dar satisfação a um outro princípio: o acesso (pela contraparte) ao direito ao julgamento mais garantístico realizado por uma grandes instancia cível (…) Se não estiver em causa uma preterição do direito ao julgamento por uma instância de categoria superior, o princípio da instabilidade da instancia não pode ser violado – a satisfação de qualquer outro princípio não o justifica ou cauciona –, não determinando a alteação do valor da causa a alteração do tribunal competente[7]”.

Também Abrantes Geraldes Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, em anotação ao artigo 310º, chamam a atenção de que “se ação tiver sido instaurada num juízo central cível, por ser este o competente face ao valor indicado pelo autor, ou seja, por esse valor ser superior a € 50.000,00 €, a redução oficiosa já não determina a remessa para o juízo local cível (ou para o juízo de competência genérica)[8]”.

Ou seja, tendo o juiz a quo fixado à causa um valor inferior ao indicado pelo autor no Requerimento Inicial, não poderia o tribunal, pela via da redução do valor da causa abaixo dos 50.000 €, ter-se decidido pela incompetência da Instância Central, determinando a remessa para a Instância Local Cível do Fundão.

A Apelação é de proceder na sua quase totalidade.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, e revogando-se a decisão recorrida:

- fixa-se o valor da ação em 60.900,00 € (ao qual se deverá somar o valor de 5.707,75 €, fixado à reconvenção),

- determina-se a manutenção da competência da Instância Central Cível.

Custas do incidente de impugnação do valor e da apelação, a suportar pelo Apelante/autor e RR/Apelados, na proporção do vencimento.

                                                                 Coimbra, 12 de outubro de 2020

                                                                              

(…)


[1] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luiz Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração Artigos 1ª a 702º”, Almedina, p.356.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, Artigos 1º a 361º, 3ª ed. Almedina, nota 2, ao artigo 305º e nota 2. ao artigo 306º, pp. 600-601. Em igual sentido se pronuncia o Acórdão do STJ de 07-03-2019, relatado por Abrantes Geraldes, disponível in www.dgsi.pt., “Até às alterações que o DL nº 303/07, de 24-8, introduziu no CPC de 1961 e que vigoraram a partir de 1-1-08, quando ocorria tal discrepância, era dado, por regra, relevo ao acordo expresso ou tácito das partes, intervindo o juiz apenas quando o acordo obtido pelas partes a esse respeito estivesse “em flagrante oposição com a realidade” (art. 315º, nº 1, do CPC de 1961, na versão anterior àquele diploma). Na prática judiciária, a frequente passividade ou mesmo uma certa lassidão no controlo desse aspeto de natureza puramente adjetiva conduzia bastas vezes à sobreposição da vontade das partes aos critérios legais. Foi esse resultado que o legislador pretendeu impedir com medidas que foram introduzidas pelo DL nº 303/07 no CPC de 1961 e que se traduziram essencialmente na alteração do art. 315º, nº 1, que passou a impor ao juiz, em todos os processos, a verificação do valor processual, independentemente da posição assumida pelas partes.”
[3] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Arts. 1º a 702º, Almedina, pp.355-356.
[4] Artigos 26º e 29º, nº1 do DL 294/2009, de 14 de Agosto.
[5] O valor atribuído à reconvenção pelo Réu e pelo tribunal a quo não se nos afigura correto – segundo o nº1 do artigo 298º, na ação de despejo, o valor é o da renda de dois anos e meio, acrescido do valor das rendas em dívida ou do valor da indemnização requerida, consoante o que for superior, quando os RR. lhe atribuíram unicamente o valor das rendas em divida e respetivos juros de mora, valor aceite pelo tribunal –, mas as partes com ele se conformaram, pelo que, nessa parte a decisão recorrida se encontra ao abrigo do caso julgado.
[6] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 3ªed., p. 606, nota 3 ao art. 610º.
[7] Paulo Ramos de Faria e Ana Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma”, 2013, Vol. I, Almedina, 264.
[8] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, p. 360.