Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
106/21.2T9SCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: ANTECEDENTES CRIMINAIS
REGISTO CRIMINAL
CANCELAMENTO
PROIBIÇÃO DE PROVA
Data do Acordão: 03/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SANTA COMBA DÃO – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART. 11.º DA LEI 37/2015, DE 05-05
Sumário: I – A consideração de um certificado de registo criminal que contemple decisões que, nos termos legais, dele já não deveriam constar, constitui uma verdadeira proibição de prova.

II – Verificando-se que o tribunal violou essa proibição de valoração de prova, daí resultará a necessidade de repensar e, eventualmente, reformular, quer a escolha quer a medida da pena em que o arguido foi condenado, expurgando da respectiva fundamentação todas as decisões inscritas no certificado de registo criminal cujos prazos de vigência já tenham cessado.

Decisão Texto Integral:



Acórdão, deliberado em conferência, na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


*

I. AA veio interpor recurso da sentença proferida no processo comum singular nº 106/21.2T9SCD, do Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão – J1, Tribunal da Comarca de Viseu, que julgou provada a acusação e o condenou:

1- Pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido nos termos dos artigos 348º, nº 1, al. a) do Código Penal, por referência ao artigo 152º, nos 1, al. a) e 3 do Código da Estrada e 69º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão;

2. Pela prática de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido nos termos dos artigos 348º, nº 2 do Código Penal, por referência ao artigo 154º, nos 1 e 2 do Código da Estrada e 69º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão;

3. Em cúmulo jurídico, condenou o arguido AA na pena única de 6 meses de prisão;

4. Declarou a pena de 6 meses de prisão aplicada ao arguido suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano com sujeição a regime de prova executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, o qual, atendendo à natureza dos factos objeto deste processo, um dos deveres a ser previsto nesse plano de reinserção social será o da obrigação de o arguido frequentar programa específico de prevenção da sinistralidade rodoviária (artigo 53º nº 1 e 2 do Código Penal);

5. Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, previsto pelo artigo 69º nº 1 al. c) do Código Penal, pelo período de 3 (três) meses;

6. Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, previsto pelo artigo 69º nº 1 al. c) do Código Penal, pelo período de 5 (cinco) meses;

7. Em cúmulo jurídico condenar o arguido AA na pena acessória única de proibição de conduzir veículos com motor de 6 (seis) meses.


*

     I.1. Sentença recorrida (transcrição dos segmentos com interesse para a apreciação do recurso)

«(…)

A) Factos provados

1) No dia 14-09-2020, cerca das 23h45m, na ... (…), em (…), o arguido conduzia o veículo automóvel, de matrícula (…);

2) Nessas circunstâncias de tempo e lugar, foi-lhe dada ordem de paragem, pelo 1º Sargento BB, da GNR ..., que se encontrava devidamente uniformizado;

3) Tendo o referido militar solicitado ao arguido que se submetesse ao teste de despistagem de alcoolemia, através do sopro do ar expirado, em aparelho portátil qualitativo, o arguido, embora nunca tenha declarado que se recusava a fazer o teste, por diversas vezes efetuou um sopro incapaz de dar um resultado positivo, não tendo dado qualquer explicação para tal;

4) Perante tal conduta, foi o arguido advertido de que teria de se descolar ao Posto da GNR de ..., para realizar o teste no aparelho quantitativo, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática do crime de desobediência;

5) Apesar de ter ficando plenamente ciente das consequências da sua conduta, o arguido continuou a recusar-se a deslocar-se ao Posto da GNR de ... para realização do teste no aparelho quantitativo;

6) Detido e conduzido coercivamente ao Posto da GNR de ..., o arguido recusou-se a assinar qualquer documento;

7) Apesar disso, foi o arguido advertido verbalmente de que, tendo-se recusado a realizar o teste de alcoolemia, estava impedido de conduzir nas 12 horas seguintes, isto é, até às 11h45m do dia 15-09-2020, tendo ficado consciente de tal impedimento;

8) Todavia, pelas 1h45m do dia 15-09-2020, na EN..., em (…), (…), o arguido voltou a conduzir o veículo automóvel, de matrícula ...-...-RN;

9) O arguido sabia que não podia recusar-se a efetuar o exame de pesquisa de álcool e que, ao fazê-lo, incorreria em responsabilidade criminal;

10) Mais sabia o arguido que, depois de se recusar a efetuar tal exame, estava impedido de conduzir pelo período de 12 horas;

11) Agiu, em tudo, livre, voluntária a conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta prevista e punida por lei.

12) O arguido já foi anteriormente condenado nos seguintes processos:

I – Comum Singular nº 53/09...., do Tribunal Judicial ..., pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, por factos de 10/04/2009, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, por sentença proferida a 11/11/2009 e transitada em julgado a 11/12/2009;

II – Comum Singular nº 184/12...., do Tribunal Judicial ..., pela prática de um crime de falsificação ou contrafação de documento e um crime de burla simples, por factos de 29/11/2011, na pena única de 270 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, por sentença proferida a 28/05/2015 e transitada em julgado a 18/06/2015;

13) O arguido, tem a 4ª classe de escolaridade, é pastor, atividade pela qual aufere cerca de € 500,00 mensais, vive em casa própria pela qual paga €200,00 a título de empréstimo, pagando ainda € 180,00 a título de empréstimo com um trator. Vive com a esposa e com o filho de 6 anos de idade, sendo a esposa empregada fabril e auferindo o ordenado mínimo nacional. (…)


*
III MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
(…)
*
V DA ESCOLHA E MEDIDA CONCRETA DA PENA
(…)
*
Quanto à medida da pena:
(…).
*
VI DO CÚMULO JURÍDICO DE PENAS

(…)

*
VIII PENA ACESSÓRIA
 (…).

I.2. Recurso do arguido (conclusões)

1. Ao condenar o ora Recorrente pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido nos termos dos artigos 348º, nº 1, al. a) do Código Penal, por referência ao artigo 152º, nos 1, al. a) e 3 do Código da Estrada e 69º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão;

2. Condenar o Recorrente pela prática um crime de desobediência qualificada, previsto e punido nos termos dos artigos 348º, nº 2 do Código Penal, por referência ao artigo 154º, nos 1 e 2 do Código da Estrada e 69º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão;

3. Violou o vertido nos artigos 40.º, 70.º. 71.º do Código Penal, pois não deu preferência à pena de multa devendo e podendo fazê-lo, optando pela pena privativa de liberdade, escudando – se nos antecedentes criminais do Arguido, bem sabendo serem crimes de natureza diversa, isto é não são crimes de natureza rodoviária, nem com estes conexos e caducos.

4. Ao considerar fatores determinantes na opção pela medida da pena, os antecedentes criminais do Arguido, ao justificar a opção pela pena privativa de liberdade em detrimento da pena de multa, com base no Certificado de Registo Criminal do Arguido, violou não só o artigo 11.º da Lei n.º 37/2005 de 5 de Maio, como também o Principio da Igualdade consagrado na CRP no artigo 13..

5. Antes e assim, e porque provado à saciedade no ponto 12 dos factos provados, o Arguido beneficia do ínsito do artigo 11.º da Lei n.º 37 / 2005 de 5 de Maio, pois já decorreram mais de 5 anos sobre a extinção das penas e, entretanto, não ocorreu nova condenação por crime de qualquer natureza.

6. Estas decisões que aplicaram estas penas já deviam estar canceladas, cessando a sua vigência no Registo Criminal.

7. Não tendo sido canceladas por manifesta inoperância dos Serviços de Registo Central.

8. Violação manifesta do Principio da Igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP

9. Pois devia o Arguido ser tratado pelo Tribunal a quo como qualquer outro Arguido, isto é, como o Arguido relativamente ao qual se procedeu ao cancelamento das decisões inscritas no Registo Criminal, nos termos do artigo 11.º da Lei n.º 37 / 2005 de 5 de Maio e não ter sido objeto de novas condenações.

10. Não o fazendo o Tribunal a quo violou não só a referida Lei como o Principio da Igualdade, Principio Constitucional.

11. Ainda na medida em que na sentença recorrida não foi dada preferência à pena não privativa da liberdade capaz de no caso concreto realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, violou o disposto nos artigos 40.º, 43.º, 70.º e 71.º do CP.

12. A pena aplicada, tendo como um dos fatores determinantes os antecedentes criminais do Arguido é além de ilegal, excessiva, pelo que deve a presente sentença ser revogada e substituída por uma outra que opte pela pena de multa em detrimento da pena privativa da liberdade cumprindo assim os fins de prevenção geral e especial.

13. Em relação ao preenchimento do crime de desobediência simples, atente – se não ter o Arguido recusado submeter – se ao teste qualitativo.

14. Submeteu – se ao teste pelo menos 6 vezes, uma a seu pedido.

15. Pese embora a equiparação legal de que o resultado “sopro insuficiente” ou resultado inconclusivo, para a verificação da existência ou não, de álcool no sangue não pode deixar de se considerar recusa, isto porque o desvalor da ação e o resultado conseguido pelo agente são os mesmos.

16. Sempre se dirá, nunca o Arguido ter pretendido deixar de expirar a quantidade de ar pelo tempo suficiente para que o aparelho realizasse o teste.

17. Atente – se submeteu – se ao teste pelo menos 6 vezes e uma a seu pedido-

18. O Arguido não bebe,

19. E porque “o crime de desobediência já havia sido consumado aquando da recusa em os acompanhar ao Posto, não mais foi solicitado ao arguido que realizasse o teste de alcoolémia.

20. Ademais não resulta da prova dada como provada que o Arguido propositadamente não quis expirar o ar ou o tempo suficiente para a realização do teste.

21. Ignorou o Tribunal as declarações do Arguido e as da Testemunha (…).

22. O Arguido não bebe pois tem um problema de saúde.

23. Existiu um pré- juízo do Julgador que atribui maior credibilidade ás declarações dos Militares da GNR em detrimento das declarações do Arguido e Testemunhas (…) e (…).

24. As declarações dos Militares da GNR têm o mesmo valor que as restantes.

25. Ao decidir de outra forma, violou o Tribunal a quo entre outros os Princípios Constitucionais da Presunção da Inocência, o in dúbio pro reo e o Principio da Igualdade, vide respetivamente o artigo 13.º e 32 .º da CRP.

26. Não existem nos autos factos que permitam concluir que naquelas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritas na Acusação, o Arguido tenha propositadamente boicotado o exame.

27. Conhece – se apenas o resultado inconclusivo do exame, desconhecendo – se a sua causa, se o aparelho portátil qualitativo utilizado padecia ou não de qualquer deficiência ou anomalia no seu funcionamento, se ocorreram ou não irregularidades no seu manuseamento ou sequer consta dos factos provados que o mesmo estivesse aprovado para o efeito, nos termos do artigo 135.º do Código da Estrada.

28. Tais circunstâncias deviam ter pesado a favor do Arguido nos termos do artigo 32.º da CRP.

29. A sentença neste segmento padece de um vício insanável, erro notório de apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º do CPP. A qual se traduz em erro de julgamento de matéria de facto, nos termos do artigo 412.º. n.º 3 do CPP, a impor que se dê como não provada a matéria que consta do n.º 3 dos factos provados.

30. Devendo o Arguido ser absolvido do crime de desobediência punido nos termos do artigo 348.º, nº 1, al, a) do CP por referência ao artigo 152.º nos 1 al. a) e 3 do Código da Estrada e 69.º , n.º 1 al. a) do CP.

31. Porque o crime de desobediência é um crime doloso e o Arguido agiu sem culpa.

32. O Arguido é primário no que a este tipo criminal concerne, crimes rodoviários e conexos.

33. Logo a opção pela pena de prisão em detrimento da pena de multa, viola também os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade em nada contribuindo para os fins de prevenção geral e especial.

34. Condenado ainda o Arguido por um crime de desobediência qualificada, p.p. nos termos dos artigos 348.º, n.º 2 do CP por referência ao artigo 154.º nos 1 e 2 do Código da Estrada e 69.º, n.º 1, al. a) do CP.

35. Facto provado no ponto n.º 8 dos factos provados, que assenta apenas no depoimento do Militar da GNR, desacompanhado de qualquer outro elemento de prova e contraditado pelo Arguido e Testemunha (…).

36. Depoimento do Militar da GNR (…), que inusitadamente, sozinho, estava numa estrada secundária, àquela hora, numa operação de fiscalização, tendo escolhido o local a seu bel prazer, deu ordem de paragem ao Arguido, este não parou, foi no seu encalce, com as luzes e sinais sonoros ligados, tendo solicitado informação à central, que não tem dúvidas que era o arguido que ia a conduzir o veiculo, não tendo visualizado qualquer outra pessoa no interior do veículo.

37. Assim, tal facto nunca devia ser levado a factos dados como provados, sob o n.º 8.

38. Porque não corroborado por mais nenhuma prova e contraditado pelo Arguido e Testemunha (…).

39. Ainda porque extrai-se da ata na parte da fundamentação da sentença que o Tribunal a quo, sobrevalorizando o depoimento do Militar da GNR, verteu nesta, factos e atos não constantes da acusação, por ele afirmados.

40. Factos e atos novos não comunicados ao Arguido, não podendo este defender-se em tempo, configurando uma verdadeira alteração substancial dos factos, não constando da acusação.

41. Pelo que este facto dado como provado no n.º 8 dos factos provados, alicerçado apenas e só no depoimento do Militar da GNR, prova de tal facto baseada em factos não conhecidos do Arguido,

42. Facto dado como provado no n.º 8 dos factos provados que se fundamenta em factos novos, não conhecidos e não comunicados ao Arguido, não podendo este tomar posição sobre os mesmos, logo não podem produzir nenhum efeito porque nulos.

43. Em parte alguma da acusação está referida a “ordem de paragem”, a tentativa de abordagem do Arguido, “após o arguido incumprir a ordem de paragem, foram no encalce do mesmo com as luzes e os sinais sonoros ligados “, tendo solicitado informação à central que confirmou tratar – se que o veiculo pertencia ao condutor “, “que era o arguido a conduzir e não viu mais ninguém no veiculo.”

44. Tudo factos novos, não constantes da acusação, não conhecidos do arguido, não podendo este defender – se dos mesmos que atente – se fundamentaram à falta de outros, sustentaram a convicção do Tribunal a quo e conduziram a que este desse como provado o ponto n.º 8 dos factos dados como provados.

45. Ponto n.º 8 dos factos dados como provados que terá de ser revogado e substituído por outro que refira não provado, porque prova alicerçada numa alteração substancial dos factos não conhecida do arguido, logo nula e de nenhum efeito.

46. Factos que não podiam ser tomados em conta pelo Tribunal a quo para o efeito da condenação do arguido neste processo.

47. Nulidade consignada no artigo 379.º do CPP pois violados de forma indelével os artigos 358.º e 359.º do CPP entre outros.

48. No que concerne a pena acessória, foi o Arguido condenado duas vezes pelo mesmo crime, pois o crime de desobediência qualificada contem já dentro da sua esfera de proteção a punição do estado de alcoolemia previamente revelado, dentro das 12 horas subsequentes, além da desobediência à notificação para não o fazer sob pena de incorrer naquele crime especifico.

49. Englobando o crime de desobediência qualificada o estado de alcoolemia que determinou a notificação para o não fazer sob pena de incorrer naquele crime, existirá uma relação de especialidade em que a condenação sob o estado de embriaguez já é sancionado pela desobediência à ordem para não fazer naquele estado.

50. Logo o Arguido só poderá ser punido pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, em concurso real efetivo com o crime de desobediência qualificada – à notificação para não conduzir nas 12 horas subsequentes á realização do teste de alcoolemia sob pena de incorrer na prática deste crime.

51. Sob pena de dupla punição do mesmo desvalor jurídico – penal, proibida pelo principio ne bis in iden, consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da CRP.

52. Ao fazê-lo o Tribunal a quo, violou este principio, condenou duas vezes o arguido pelo mesmo crime.

53. Dupla punição, inconstitucional proibida pelo artigo 29.º n.º 5 da CRP.

54. Pelo que, deverá ser revogada a punição do segundo crime, aquele em que o arguido foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses, porque conduziu nas 12 horas subsequentes, a final o crime de desobediência qualificada.


*

I.3. O Ministério Público, em 1ª instância, não respondeu ao recurso.

I.4. Parecer do Ministério Público na Relação (em síntese)

- Não assiste razão ao recorrente no que respeita às apreciações que faz relativamente à matéria de facto que preenche os elementos dos tipos legais pelos quais o arguido foi condenado;

- Merece ponderação, no sentido da sua procedência, a motivação relativa à factualidade resultante do certificado de registo criminal do arguido e às consequências que daí possam ser retiradas.


*


    I.5. Objecto do recurso e sua apreciação

O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente.

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, e devem por isso ser concisas, precisas e claras. Se estas ficam aquém, a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões, e se vão além da motivação também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).

De acordo com tais premissas, cabe apreciar as seguintes questões (que se enunciam por ordem lógica de conhecimento):

a) Nulidade da sentença, prevista no art. 379º, por violação dos arts. 358º e 359º, todos do Código de Processo Penal;

b) Cancelamento do registo criminal, nos termos do art. 11º da Lei n.º 37/2015, de 5.5;

c) Alteração da matéria de facto, por erro notório de apreciação da prova e erro de julgamento, nos termos do artigo 410º do Código de Processo Penal, e em violação dos princípios da igualdade e in dubio pro reo, previstos nos arts. 13º e 32º da Constituição da República Portuguesa;

d) Violação do principio ne bis in idem, consagrado no art. 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa; e

e) Medida da pena (opção pela pena de multa, violando e fazendo errada aplicação dos artigos 40º, 43º, 70º e 71º do Código Penal).

Conhecendo,

Nulidade da sentença:

O recorrente defende que o facto dado como provado sob o n.º 8 se alicerçou em “alteração substancial dos factos não conhecida do arguido, logo nula e de nenhum efeito”, pelo que não podiam ser tomados em consideração para efeitos de condenação do arguido.

Convoca as normas constantes dos arts. 379º, 358º e 359º do Código de Processo Penal.

O art. 379º, n.º 1, al. b), estatui que “é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º”.

O art. 359º (único em causa face à motivação e conclusões recursivas, uma vez que o recorrente reclama ter ocorrido uma alteração substancial de factos), no seu n.º 1, declara que “uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância”. Como é sabido, “alteração substancial dos factos” é a que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso, ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis – art. 1º, al. f), do Código de Processo Penal.

No caso, o facto colocado em crise é o seguinte: “8) Todavia, pelas 1h45m do dia 15-09-2020, na EN..., em (…), (…), o arguido voltou a conduzir o veículo automóvel, de matrícula (…)”. E tal facto constava precisamente do ponto 8 da acusação deduzida pelo Ministério Público nos autos, sem qualquer alteração.

Assim, uma alteração na prova deste facto terá de ser efetuada através da impugnação da matéria de facto.

Torna-se, desta forma, ininteligível esta invocação do recorrente, porquanto de forma manifesta não procedeu o tribunal a quo, na sentença ou em ata, a qualquer alteração dos factos descritos na acusação, que delimitam o objeto do processo em concreto.

Depreende-se, aliás, confundir o recorrente o relato por uma testemunha das circunstâncias em que ocorreram os factos com os próprios factos relevantes para a decisão, e que constituem o objeto do processo. Naturalmente que sem qualquer relevo para efeitos de alteração substancial dos factos.

Conclui-se não enfermar a sentença da invocada nulidade.


*

B.  Cancelamento do registo criminal

Defende o recorrente que as anteriores condenações sofridas, constantes do facto provado em 12, deveriam ter sido canceladas, o que não ocorreu por manifesta inoperância dos serviços de registo central a que é alheio, e em violação ao art. 13º da Constituição da República Portuguesa. Por essa razão, não poderiam ter sido consideradas para a medida da pena concreta.

  Vejamos:

O tribunal a quo deu como provados os seguintes antecedentes criminais do arguido:
12) O arguido já foi anteriormente condenado nos seguintes processos:
I – Comum Singular nº 53/09...., do Tribunal Judicial ..., pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, por factos de 10/04/2009, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, por sentença proferida a 11/11/2009 e transitada em julgado a 11/12/2009;

II – Comum Singular nº 184/12...., do Tribunal Judicial ..., pela prática de um crime de falsificação ou contrafação de documento e um crime de burla simples, por factos de 29/11/2011, na pena única de 270 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, por sentença proferida a 28/05/2015 e transitada em julgado a 18/06/2015;

O art. 11º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, aplicável ao caso sub judice, estabelece o seguinte, na parte que interessa:

1- As decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal nos seguintes prazos:

(…) b) Decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal. Decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza; (…)

2- Quando a decisão tenha aplicado pena principal e pena acessória, os prazos previstos no número anterior contam-se a partir da extinção da pena de maior duração. (…)

5 - A cessação da vigência das decisões não aproveita ao condenado quanto às perdas definitivas que lhe resultarem da condenação, não prejudica os direitos que desta advierem para o ofendido ou para terceiros nem sana, por si só, a nulidade dos atos praticados pelo condenado durante a incapacidade.

6 - As decisões cuja vigência haja cessado são mantidas em ficheiro informático próprio durante um período máximo de 3 anos, o qual apenas pode ser acedido pelos serviços de identificação criminal para efeito de reposição de registo indevidamente cancelado ou retirado, e findo aquele prazo máximo são canceladas de forma irrevogável.

Compulsado o certificado de registo criminal do recorrente que se encontra nos autos, verificamos que as penas de multa em que foi condenado foram declaradas extintas pelo pagamento, respetivamente, a 16.6.2010 e 8.4.2015.

Posteriormente a esta última data, não consta do CRC qualquer condenação posterior, por crime de qualquer natureza.

Decorre do exposto, sem margem para dúvidas, que à data da prolação da sentença dos autos tinha decorrido o prazo de vigência no registo criminal das penas anteriormente sofridas pelo recorrente.

O cancelamento dos registos é uma imposição legal. Uma vez verificada a hipótese contemplada na previsão da norma que determina o cancelamento, o registo da condenação deixa de poder ser considerado (contra o arguido), assim sucedendo independentemente da circunstância de se ter ou não procedido prontamente à real efetivação do cancelamento ([1]).

A questão deve ser enquadrada no âmbito das proibições de prova, conforme se refere no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 13/2016, do Supremo Tribunal de Justiça ([2]), constando da sua fundamentação o seguinte: “Consoante a finalidade que preside à obtenção de informação nele contida, o registo ora se assume como um meio de prova (…), meio de prova esse sujeito aos princípios gerais do direito processual penal (onde o cancelamento para fins judiciais constitui verdadeira proibição de prova)…”.

Ao sistema de registo deve presidir uma intenção de restringir uma estigmatização social do delinquente. Por esta razão, e na mesma senda, refere Almeida Costa ([3]), “(…) O cancelamento dos cadastros parece implicar uma proibição de prova quanto aos factos por ele abrangidos. A ser de outro modo, não se compreenderia o fundamento da sua consagração. Ao incidir sobre o mecanismo em que, por definição, assenta a informação dos tribunais, o legislador só pode ter querido significar que, doravante, as sentenças canceladas se consideram extintas no plano jurídico, não se lhes ligando quaisquer efeitos de tal natureza (v.g. quanto à medida da pena)”.

Verificando-se que Tribunal a quo violou uma proibição de valoração de prova, tal resultará na necessidade de repensar e, eventualmente, reformular, quer a escolha quer a medida da pena em que o arguido foi condenado, expurgando da respetiva fundamentação todos os registos constantes do CRC (perante a evidente relevância do CRC, por fornecer informação importante para a determinação da sanção, a escolha e a medida da pena).

Assim, em caso de arguidos não primários, na determinação da pena há que avaliar os efeitos das condenações anteriores no comportamento do condenado, ou seja, saber das concretas sanções anteriormente experimentadas, aquilatar do seu maior ou menor sucesso, da resposta que penas idênticas possam ou não oferecer para o caso concreto, sobretudo quando a nova pena a proferir seja a de prisão. Antecedentes criminais significativos evidenciam, em princípio, necessidades de prevenção especial mais elevadas.

No caso da sentença objeto de impugnação.  os antecedentes criminais do arguido foram sopesados e valorados contra ele, ou seja, como circunstância agravante geral. Ora, o aproveitamento judicial de informação que só por anomalia do sistema se mantém no CRC, além de ilegal, viola o princípio constitucional da igualdade, pois permite distinguir um arguido de um outro cujo CRC, nas mesmas condições, se encontre devidamente “limpo”. ([4]).

Ocorrendo motivo para que sejam consideradas canceladas as decisões condenatórias descritas no facto provado em 12, deverá o mesmo ser eliminado da matéria de facto – o que se determina.

As consequências desta eliminação serão extraídas no conhecimento da medida concreta da pena aplicada, objeto igualmente de impugnação.   


*

C. Alteração da decisão sobre a matéria de facto:

O recurso sobre a matéria de facto pode processar-se por duas vias: a arguição de vício do texto da decisão, nos termos do art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e o recurso amplo ou efetivo em matéria de facto, previsto no art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP.

No segundo caso, o recorrente tem de se socorrer das provas examinadas na audiência da primeira instância, tratando-se aqui de autêntico recurso que tem por objeto a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. Este deve especificar, sob pena de rejeição:

- os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;

- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e

- as provas que devem ser renovadas (artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal).

            E quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efetuar-se por referência ao consignado em ata (quanto ao meio de prova registado, seu início e termo), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412º, nº4, do Código de Processo Penal).

Na peça recursiva, pese embora o recorrente se insurja contra a valoração efetuada da prova produzida (conclusões 13 a 24, 26 e 27, 35 a 39 e 41), nomeadamente a valorização das declarações dos militares da GNR inquiridos em julgamento, o  recorrente não cumpriu o rigoroso ónus estabelecido no artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal. Aliás, em lado algum da peça recursiva o recorrente declara pretender efetuar uma impugnação da matéria de facto, limitando-se a discordar da credibilidade conferida pelo tribunal a quo a determinadas declarações, que nem sequer transcreve, não referindo as concretas passagens quer das declarações do arguido, quer do depoimento da testemunha (…), em que assentaria uma extração de a decisão relativa à matéria de facto ser contrária à prova produzida.

Não tendo procedido à impugnação da matéria de facto, resta-nos apurar se a sentença enferma de algum dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal – de que se socorre o recorrente.

  Objeto de discordância é o facto provado sob o n.º 8: “Todavia, pelas 1h45m do dia 15-09-2020, na EN..., em ..., ..., o arguido voltou a conduzir o veículo automóvel, de matrícula ...-...-RN”.

A norma constante do n.º 2 do art. 410º do Código de Processo Penal refere-se a vícios da decisão, sendo considerados como incidente sobre matéria de direito, porquanto terão de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e versar sobre uma das seguintes vertentes:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou seja, que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida, por se verificar lacuna no apuramento dos factos (e não da prova) necessários à decisão de direito;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, isto é, a contradição na própria matéria de facto fundamento da decisão de direito, seja entre os factos declarados provados e não provados, quer entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Assim, “há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão ente os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente” ([5]);

c) Erro notório na apreciação da prova, que é a desconformidade entre os factos provados e a prova produzida em audiência, o erro ostensivo e evidente que qualquer homem de formação média dele dá imediatamente conta, através do que consta da decisão recorrida, por se fundar em juízos ilógicos, arbitrários ou que desrespeitem as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis ([6]).

Para o efeito, discorre o arguido sobre a desconsideração das declarações que prestou em audiência de julgamento, contra a valorização das delarações prestadas por determinadas testemunhas, insurgindo-se contra a credibilidade dada a esta pelo tribunal a quo, e a testemunhas que refere terem sido parciais nos seus depoimentos, classificando esta opção como erro notório na apreciação da prova.

Salvo o devido respeito, não invoca o recorrente qualquer dos vícios da decisão previstos na norma invocada (art. 410º, n.º 2). Na verdade, nenhuma contradição ou erro notório na apreciação da prova vêm invocados na motivação e nas conclusões enunciadas pelo recorrente, antes resultando que o recorrente pura e simplesmente discorda da avaliação da prova produzida efetuada pela primeira instância.

É que, compulsada a factualidade apurada e a fundamentação vertida na decisão recorrida, não se vislumbra, através da análise do texto da decisão (requisito fundamental para a aplicabilidade do n.º 2 do art. 410º do CPP), a existência de qualquer contradição na fundamentação, ou entre os fundamentos e a decisão, ou ainda qualquer contradição entre os factos provados e não provados (contradição que não vem, aliás, concretamente invocada pelo recorrente).

Por outro lado, constituindo o erro notório na apreciação da prova uma desconformidade com a prova produzida em julgamento ou com as regras da experiência (a saber, decidiu-se contra o que se provou ou não provou, ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido), nunca se inclui no mesmo uma sindicância do recorrente à forma como o tribunal recorrido valorou as provas perante si produzidas em audiência de julgamento, segundo o princípio da livre apreciação da prova, consignado no art. 127º do Código de Processo Penal.

Pretendendo o recorrente sindicar a valorização dos meios de prova efetuada pelo tribunal recorrido, e que determinou o assentamento dos factos objeto do presente recurso, encontramo-nos no âmbito do recurso amplo da matéria de facto, a que alude o art. 412º do Código de Processo Penal – que o recorrente não efetuou, como se viu.

Concluímos não enfermar a sentença proferida do vício invocado.


*

- Quanto à invocada violação dos princípios da igualdade e in dubio pro reo:

O princípio in dubio pro reo opera depois da valoração judicial dos meios de prova, nos casos de ausência de convicção para além da dúvida razoável sobre os factos. Não vemos, neste sentido, a pertinência da sua invocação pelo recorrente, uma vez que não se coloca a questão do juiz ter (ou dever ter) deparado com qualquer dúvida insanável sobre a verificação de factos.

De igual modo não se vislumbra, nem o recorrente esclarece, a razão da invocação da violação do princípio da igualdade, que se mostra impercetível.

Porque destituído de fundamento sério e válido, improcederá o recurso nesta parte.


*


D. Violação do princípio ne bis in idem:

O princípio ne bis in idem encontra consagração constitucional no art. 29º, n.º 5, da Lei Fundamental, que reza o seguinte: “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.

O recorrente encontra-se condenado pela prática de dois crimes de desobediência, um deles na forma qualificada – o primeiro por se ter recusado a submeter ao teste de pesquisa de álcool no ar expirado, e o segundo por ter conduzido veículo automóvel nas 12 horas após a recusa, apesar de advertido em ambas as ocasiões de que incorreria em crime de desobediência caso atuasse dessa forma.

Se bem interpretamos a confusa e desordenada motivação recursiva, vem alegado que entre o crime de condução sob estado de embriaguez e o crime de desobediência à ordem para não conduzir em estado de embriaguez. Incorre em manifesta confusão, porquanto não foi condenado pela prática de qualquer crime de condução em estado de embriaguez.

A pluralidade de crimes é determinada, como se sabe, pela ocorrência de diversas e distintas resoluções criminosas. No caso dos autos, e atendendo à factualidade provada, o recorrente foi advertido, em duas ocasiões distintas, que a sua conduta, igualmente distinta – a primeira, consubstanciada na recusa de submissão ao teste de álcool, e a segunda violando a proibição de conduzir o veículo -, o faria incorrer em crime de desobediência. Das duas vezes decidiu desobedecer, através de condutas distintas, extraindo-se duas e diferentes resoluções criminosas (de desobedecer).

O facto de ter sido condenado pela prática dos dois crimes de desobediência não resulta na condenação pela prática do mesmo crime, uma vez que nos encontramos perante dois crimes perfeitamente distintos, a que presidiu a cada um deles uma distinta resolução criminosa.

Não ocorreu, assim, qualquer dupla condenação pelo mesmo crime, justificando-se in totum, pelas razões explicitadas na subsunção jurídica efetuada na sentença recorrida, a condenação do arguido em pena (principal e acessória) pelo crime de desobediência qualificada.


*

E. Da medida das penas          

Os crimes de desobediência praticados pelo recorrente são puníveis com as seguintes penas abstratas:

- prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, para o crime de desobediência simples – art. 348º, n.º 1, al. a), do Código Penal; e

- prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, para o crime de desobediência qualificada – art. 348º, n.º 2, do Código Penal.

Em primeiro lugar, peticiona o recorrente a sua condenação em pena de multa, e não em pena de prisão.

O art. 70º do Código Penal impõe ao juiz que, no caso de ao crime ser aplicável pena privativa em alternativa com pena não privativa da liberdade, opte pela aplicação da pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as exigências de prevenção.

O tribunal a quo assentou a decisão de aplicação da pena privativa da liberdade nos antecedentes criminais do arguido, por ter sido anteriormente condenado, por duas vezes, em penas de multa, que não lograram afastá-lo da criminalidade.

Conforme se viu, a pena aplicada teve na sua base factos (antecedentes criminais) que foram eliminados do acervo factual a considerar. Na ausência de anteriores condenações registadas, nada impede que se opte pela aplicação de pena não privativa da liberdade, antes se tratando de um dever vinculado do tribunal, face à factualidade apurada no tocante às condições pessoais do arguido.

Cumpre agora determinar a medida concreta da pena e a pena única a aplicar ao arguido, dentro das molduras abstratas da pena de multa referidas.

Conforme impõe o art. 40º do Código Penal, as penas são fixadas em função da culpa e da prevenção, sendo o seu limite máximo delimitado pela medida da culpa revelada pelo arguido nos factos praticados, e o mínimo aquela pena que em concreto seja suscetível ainda de proteger de forma eficaz os bens jurídicos tutelados na norma incriminadora.

Importa que se considere a personalidade do agente, manifestada no facto, de forma a determinar o desvalor ético-jurídico da sua conduta, e o grau de desconformidade com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida dessa desconformação corresponde à medida da censura do agente ([7]), sendo “a prevenção geral positiva (e não a culpa) que fornece uma moldura dentro da qual vão atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que, em última instância, vão determinar a medida da pena” ([8]).

No tocante à pena de multa, o nosso sistema penal adotou o denominado sistema dos dias-de-multa (art. 47º do CP), desdobrando-se a tarefa do juiz, no achamento da pena de multa em concreto, em dois momentos distintos: em primeiro lugar, deve fixar o número de dias de multa, de acordo com os critérios referidos, e estabelecidos nos arts. 71º e 41º do CP. Depois, num segundo momento, o tribunal fixa o quantitativo diário, entre 5 e 500 euros, em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais – art. 47º, n.º 2, do CP. O sistema em vigor permite ajustar a pena de multa à diferença da capacidade económica dos condenados, conseguindo-se assim uma maior igualdade e justiça no sacrifício que a pena lhe vai impor.

De acordo com os quadros normativos relativos à finalidade das penas (a  aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade  e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa -artigo 40º, nºs 1e 2, do Código Penal) e determinação da sua medida (em função da culpa e das exigências de prevenção – artigo 71º, nº1, do Código Penal) deve à pena (destinada a proteger o mínimo ético-jurídico fundamental) ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção.

Entre aquele limite mínimo de garantia da prevenção e máximo da culpa do agente (culpa que, naturalmente, é insusceptível de ser medida com exactidão), a pena é determinada em concreto por todos os factores do caso, previstos nomeadamente no nº 2 do referido artigo 71º, que relevem para a adequar tanto quanto possível à ilicitude da acção e culpa do agente.

Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio ético-retributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha da pena, principio este tendencial, uma vez que podem apresentar incompatibilidade.

Para além de clamar pela desconsideração dos antecedentes criminais, no que foi atendido, o recorrente está de acordo com as considerações efectuadas na sentença em relação:

1º às elevadas exigências de prevenção geral;

2º à intensidade do dolo (na modalidade de dolo direto - [9]);

3º às necessidades de prevenção especial tendencialmente reduzidas, extraídos que foram os antecedentes criminais.

Os fatores de prevenção geral são importantes, tendo em conta a frequência e danosidade social dos crimes cometidos. Mas não se pode ignorar que o legislador, na diversidade que atribui às molduras penais, manifesta a maior ou menor relevância ético-social do bem jurídico protegido pela respectiva norma (ilicitude) e colocou a desobediência ao nível do pequeno ilícito.

Tendo em consideração os fatores enunciados, entende-se adequada a fixação das penas de multa em 50 e 100 dias, respetivamente.

Importando efetuar o cúmulo jurídico destas penas, nos termos do art. 78º, n.º 1, do Código Penal, como fatores relevantes consideraremos terem os crimes sido cometidos dentro de um curto período temporal, podendo extrair-se que se tratou de uma conduta ocasional do recorrente – o que se considerará como facto favorável na consideração da personalidade do agente.

A pena única será, assim, fixada em 70 dias.

Quanto ao quantitativo diário, deverá ser fixado entre € 5 e € 500 – art. 47º, n.º 2, do Código Penal.

Na consideração da situação económica e financeira do condenado, deve-se atender a todos os seus rendimentos (do trabalho, de capital, patrimonial e outros), e deduzidos os gastos essenciais ([10]). Assim, o tribunal deve considerar a situação presente do condenado e adequar o quantitativo da pena de multa para um montante cujo cumprimento seja possível, mas que se traduza numa verdadeira pena, ou seja, que tenha um carácter aflitivo e lhe imponha sacrifício, essencial para a realização das funções preventiva e retributiva da pena ([11]). Só assim a pena de multa poderá ser considerada uma autêntica pena, pois de contrário o condenado não sentiria qualquer desconforto, podendo a aplicação da pena ser-lhe indiferente, contra a realização das finalidades de prevenção que prossegue.

No caso dos autos, o tribunal recorrido deu como provado que o arguido aufere mensalmente cerca de € 500, paga uma prestação bancária de cerca de € 1800,00 por mês pela compra de um trator, vive em casa própria pagando um empréstimo de € 200,00, e vive com a mulher, empregada fabril que ganha o salário mínimo nacional, e um filho de 6 anos de idade.

A situação económica do recorrente terá de ser considerada débil, pelo que se fixará a taxa diária em € 6.

Da medida da pena acessória

O artigo 69º, nº 1, al. c), do Código Penal estabelece como limites mínimo e máximo, respectivamente 3 meses e 3 anos.

Estabelece a norma referida o seguinte: “É condenado na proibição de conduzir veículos automóveis com motor por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido… por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para deteção de condução de veículo sob efeito do álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo”.

Assim, enquanto ao primeiro crime de desobediência cometido – de recusa de submissão ao teste de pesquisa de álcool – é aplicável a pena acessória, o mesmo não sucede com o segundo crime, que se refere a uma conduta que se não encontra tipificada em nenhuma das alíneas do n.º 1 do art. 69º do Código Penal.

Pelo exposto, mantém-se em exclusivo a pena acessória aplicada pela 1ª instância ao crime de desobediência simples, que foi fixada no mínimo legal de 3 meses.


*

III. Decisão:

Pelo exposto, concede-se parcial provimento ao recurso e, em consequência, considera-se não escrito o facto provado em 12, e condena-se o arguido AA:

Pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, n.º 1, al. a), e 69º, n.º 1, al. c), do Código Penal, por referência ao art. 152º, n.ºs 1, al. a), e 3 do Código da Estrada, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 6, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis a motor pelo período de 3 meses;

a) Pela prática de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 348º, n.º 2, do Código Penal, por referência ao art. 154º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, na pena de 1000 dias de multa, à taxa diária de € 6;

b) Efetuando o cúmulo jurídico das penas aplicadas, decide-se condenar o arguido AA na pena única de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis a motor pelo período de 3 (três) meses.


***

Sem tributação.

Coimbra, 2 de março de 2022

Ana Carolina Cardoso (relatora – processei e revi)

João Novais (adjunto)




[1] - Ac. da Relação do Porto de 22.9.2021, rel. Paulo Costa, proc. 96/21.1GAMCN.P1, em www.dgsi.pt, entre outros.
[2] - De 7.7.2016, publicado no DR, I Série, n.º 193, de 7.10.2016.
[3] - in “O Registo Criminal – História, Direito comparado, Análise político-criminal do instituto”, Coimbra Editora, 1985.
[4] - cf. Acórdão da Relação de Évora de 10.05.2016, rel. Ana Barata Brito, proc. 216/14.2GBODM.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[5]- Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8ª ed., pág. 77-78.
[6] - Cf. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pág. 72 e ss., e Germano Marques da Silva, direito Processual Penal Português, Do Procedimento, Univ. Católica, 2018, pág. 323 e ss.
[7] - cf., entre outros, Acórdão desta Relação de 11.3.2009, no proc. 717/03.8TAFIG.C1, em www.dgsi-pt
[8] - cf. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, pág. 45.
[9] - Não encontrando qualquer assento na factualidade provada o facto de ter atuado com dolo, facto provado que não foi objeto de impugnação.
[10] - cf. Maria João Antunes, ob. Cit., págs. 48-49.
[11] - v. Ac. da RC de 8.3.2017, no proc. 415/09.9GASPS.C1, e Ac. da Rel. de Évora de 22.9.2015, no proc. 634/15.9PBSTB.E1, em www.dgsi.pt