Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
29083/11.6YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: EMPREITADA
DESISTÊNCIA
DONO DA OBRA
INDEMNIZAÇÃO
EMPREITEIRO
Data do Acordão: 11/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INST. CÍVEL DE AVEIRO.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1207º E 1229º DO C.CIVIL.
Sumário: I – A desistência da empreitada por parte do dono da obra, prevista no artº 1229º do Cód. Civil, implica a indemnização ao empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra.

II – Na indemnização deve ser englobado o valor dos gastos e trabalho tidos com toda a obra executada, incluindo com as partes inacabadas e/ou imperfeitas.

III – Ao valor do proveito que o empreiteiro poderia tirar da obra deve deduzir-se o proveito que tenha tirado de outra obra que eventualmente tenha executado no período de tempo em que, não fora a desistência, estaria ocupado com a empreitada suspensa.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         A…, residente na Rua …, instaurou providência de injunção contra M…, residente na Rua …, visando a conferência de força executiva ao respectivo requerimento em que pediu a notificação da R. para lhe pagar a quantia de € 9.896,77, sendo € 9.010,44 a título de capital, € 760,33 de juros de mora vencidos, € 75,00 de outras quantias e € 51,00 € de taxa de justiça paga.

Alegou, para o efeito, que se dedica à actividade de construção civil, no âmbito da qual prestou serviços e vendeu bens à R., que se encontram titulados pela factura nº 0350; e que a R., apesar de diversas interpelações, nunca procedeu ao pagamento do valor em dívida.

Tendo-se frustrado a notificação, foi o processo distribuído ao Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Aveiro, da comarca do Baixo Vouga, onde foi ordenada a citação da R.

Citada, a R. contestou, sustentando que em meados de 2006 solicitou ao A. um orçamento para realização de alguns trabalhos de construção civil na sua moradia de …; que, tendo chegado a acordo, o A. iniciou os trabalhos, mas, em meados de 2007, abandonou a obra sem a ter concluído e com imperfeições, nunca mais tendo contactado a R. que, perante o incumprimento definitivo do A., deu o contrato por resolvido; e que o valor já pago pela R., de € 5.000,00, é superior ou pelo menos igual ao valor do trabalho executado.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferida sentença cujo segmento decisório se transcreve:

“Julgo, nos termos e pelos fundamentos expostos, a acção parcialmente procedente e, por via disso, condeno a Requerida a pagar ao Requerente o que vier a ser liquidado como preço dos trabalhos executados por este, que não inclui os constantes dos nºs. 13, 14, 15, 16 e 17 dos Factos Provados, dentro do preço previamente fixado a forfait pelas partes de € 10.000,00 + 1.675,37.

O preço a encontrar será acrescido de IVA.

Absolvo a Requerida do pedido quanto aos trabalhos não executados.

Custas na proporção de vencido, a encontrar na liquidação. Para já serão suportadas em partes iguais.

Registe e notifique.”

         Inconformado, o A. interpôs recurso, encerrando a sua alegação com as seguintes conclusões:

         …

         A R. respondeu, pugnando pela manutenção do julgado.

         O recurso foi admitido.

         Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as questões seguintes:

         a) Se a factura constitui documento com força probatória suficiente para ser dada como assente a realização dos trabalhos extra e condenar no respectivo pagamento;

         b) Se havia ou não que descontar o custo dos trabalhos executados com defeito;

         c) Se a desistência da empreitada por parte da dona da obra implica indemnização ao empreiteiro do montante que receberia se não tivesse havido desistência.

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         2.2. De direito

         Entendeu-se na sentença recorrida que entre o A., como empreiteiro, e a R., como dona da obra, foi celebrado um contrato de empreitada, definido no artº 1207º do Cód. Civil como o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra mediante um preço.

Apesar de se ter provado que em meados de 2007 o Requerente e os seus trabalhadores estiveram um período sem se deslocarem à obra sem avisarem a Requerida e que durante esse período o Requerente não atendeu os telefonemas da Requerida, não se considerou que tenha havido abandono da obra por parte do A. nem, nele baseada, resolução do contrato por parte da R.

E, porque se deu como assente que quando o Requerente voltou a contactar a Requerida esta o informou de que já tinha contratado outras pessoas para terminarem a obra, concluiu-se que houve desistência da empreitada por parte da R.

Todo o descrito raciocínio é aceite pelo recorrente, que o não põe em causa, também a nós parecendo não merecer qualquer censura.

Apesar de, nos termos dos artºs 405º e 406º do Cód. Civil, o contrato livremente celebrado dever ser pontualmente cumprido, o regime específico do contrato de empreitada admite, no artº 1229º, a desistência por parte do dono da obra.

Com efeito, estabelece o artº 1229º do Cód. Civil:

“O dono da obra pode desistir da empreitada a todo o tempo, ainda que tenha sido iniciada a sua execução, contanto que indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra”.

Em anotação a esta disposição legal, escreveram P. Lima – A. Varela[1]:

“A desistência por parte do dono da obra não corresponde a uma revogação ou resolução unilateral, nem, rigorosamente, a uma denúncia do contrato, dados os especiais efeitos prescritos neste artigo. A empreitada é eficaz até ao momento da desistência, ficando o dono da obra proprietário de tudo aquilo que já estiver executado e dos próprios materiais não incorporados, se o seu custo for computado na indemnização. É além disso obrigado a indemnizar o empreiteiro, não só pelos danos emergentes como pelos lucros cessantes, tal como se houvesse resolução pelo não cumprimento da obrigação imposta ao desistente.

Trata-se, pois, de uma situação sui generis, que não corresponde a nenhuma daquelas figuras, e cujo objectivo é apenas o de dar ao dono da obra a possibilidade de não prosseguir com a empreitada, interrompendo a sua execução para o futuro, o que pode ter a sua justificação nas mais variadas causas: mudança de vida, alteração das condições económicas, etc., ou de prosseguir nela, mas com outro empreiteiro, ou de realizar a obra por outra forma (administração directa, por exemplo).”

         Alguns parágrafos adiante, acrescentam os mesmos autores:

         “A indemnização devida pelo dono da obra incide, em primeiro lugar, sobre os gastos e trabalho. São considerados todos os danos emergentes, sem se atender à utilidade que a parte executada possa ter para o dono.

         A fixação dos gastos e trabalho não está relacionada com o preço da empreitada. Este pode interessar para a fixação dos proveitos, mas não para a fixação do que se gastou em material e trabalho.”

         E um pouco mais adiante ainda:

         “A determinação do proveito que o empreiteiro poderia tirar da obra terá por base a obra completa e não apenas o que foi executado. É àquela, ou melhor, à parte que falta realizar (…) que se refere a parte final do artigo 1229º. Terá, pois, de se atender, para este efeito, ao custo global da empreitada e ao preço fixado. Da subtracção destas duas verbas resultará o lucro.”

         Tendo em conta a letra da lei e os ensinamentos referidos, a indemnização a pagar, no caso dos autos, pela R. ao A., devido à desistência daquela, integrará o valor dos gastos e do trabalho tidos com a parte da obra executada, independentemente dessa parte da obra constar do contrato inicial ou integrar trabalhos extra e de se mostrar concluída ou inacabada, com defeitos ou sem eles[2].

A indemnização referida integrará também o valor do proveito que o A. poderia tirar da obra, isto é, o lucro que, face ao custo dos trabalhos contratados e ao preço acordado, previsivelmente obteria.

A tal valor haverá, contudo, que deduzir o eventual lucro do empreiteiro com outra obra que, porventura, haja realizado no período de tempo em que estaria ocupado com a empreitada suspensa. É o que defende o Prof. Vaz Serra que, a pág. 208 do Ano 104º da RLJ, ensina: “Se o empreiteiro aplicou a sua actividade noutras empreitadas (ou noutro trabalho lucrativo), é razoável que seja deduzido o que assim obteve do que teria adquirido na empreitada suspensa. Atribuir-lhe, sem mais, direito ao proveito que poderia tirar da obra e ao proveito que tirou da outra obra feita no lugar daquela, parece excessivo. E de tal modo que não obstante o texto do artº 1229º, se afigura dever excluir-se, por ir além do razoável e, portanto, do que é de supor ser querido pela lei: se o empreiteiro, por outra aplicação do seu trabalho, feita em lugar da empreitada em questão, obteve algo, deve isso ser deduzido do proveito que no artº 1229º se refere, dado tratar-se aqui de uma «indemnização» e não haver, naquela medida, dano do empreiteiro por desistência da empreitada.”

Contudo, segundo as regras do ónus de prova (artºs 342º e seguintes do Código Civil), caberá ao empreiteiro alegar e provar o valor dos gastos efectuados, dos trabalhos realizados e do proveito que poderia tirar da obra; e ao dono da obra que desistiu da empreitada caberá provar que há deduções a fazer e qual o valor das mesmas, ou seja, que o empreiteiro não parou devido à desistência da empreitada e que durante o período em que a levaria a cabo, realizou outras obras ou trabalhos, obtendo determinado lucro.

         De quanto fica dito decorre que não há, no caso, motivo para distinguir, como o recorrente faz na conclusão 1., entre os trabalhos inicialmente contratados e os trabalhos extra, sendo certo que, como resulta dos artºs 27º, 29º, 33º, 37º e 38º da contestação da R. e dos pontos 18, 19 e 20 do elenco dos factos provados, não corresponde à realidade que a factura emitida pelo A. não tenha, nomeadamente no que aos trabalhos extra tange, sido objecto de impugnação.

         Mas reconhece-se que, tendo em conta o regime legal previsto no artº 1229º do Cód. Civil para a desistência do dono da obra, na indemnização a pagar por este ao empreiteiro devem ser englobados todos os gastos e trabalho efectivamente suportados, incluindo os relativos a obras inacabadas e/ou imperfeitas (cfr. pontos 15., 16. e 17. do elenco dos factos provados)[3].

         Acrescenta-se, por último, que à indemnização devida ao A. haverá que deduzir a quantia já paga pela R. (€ 5.000,00 – cfr. ponto 7. do elenco dos factos provados).

         Logram, pois, êxito parcial as conclusões da alegação do recorrente, o que conduz à parcial procedência da apelação e à, também parcial, revogação da sentença recorrida.

         Sumário (artº 713º, nº 7 do CPC):

         I – A desistência da empreitada por parte do dono da obra, prevista no artº 1229º do Cód. Civil, implica a indemnização ao empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra.

         II – Na indemnização deve ser englobado o valor dos gastos e trabalho tidos com toda a obra executada, incluindo com as partes inacabadas e/ou imperfeitas.

         III – Ao valor do proveito que o empreiteiro poderia tirar da obra deve deduzir-se o proveito que tenha tirado de outra obra que eventualmente tenha executado no período de tempo em que, não fora a desistência, estaria ocupado com a empreitada suspensa.

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, em revogar em parte a sentença recorrida, cujo dispositivo passará a ter a seguinte redacção:

“Julgo, nos termos e pelos fundamentos expostos, a acção parcialmente procedente e, por via disso, condeno a Requerida a pagar ao Requerente uma indemnização – a liquidar posteriormente (artº 661º, nº 2 do Cód. Proc. Civil) – correspondente ao valor dos gastos e trabalho tidos com a parte da empreitada executada (incluindo os relativos a obras inacabadas ou imperfeitas) e ao proveito que o R. poderia tirar da obra.

Essa indemnização – a que acrescerá o pertinente IVA – tem como limite máximo o montante de € 11.675,37 e ao seu valor será deduzida a quantia de € 5.000,00, correspondente à parte do preço da empreitada paga pela R.

Custas na proporção de vencido, a encontrar na liquidação. Para já serão suportadas em partes iguais.

Registe e notifique.”

         As custas da apelação ficam a cargo do apelante e da apelada, na proporção do vencido, que se fixa em ½ (metade) para cada.

Artur Dias (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo


[1] Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, pág. 745.
[2] Em princípio, o valor dos gastos e trabalho com uma obra inacabada ou com defeitos será inferior ao valor dos gastos e trabalho com uma obra concluída e perfeita.
[3] De fora ficam, porque, por definição, não podem existir, quaisquer gastos e trabalho com a parte não realizada da obra (cfr. pontos 13. e 14. do elenco dos factos provados.