Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2547/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: ÁGUAS
CURSO NATURAL E SUA ALTERAÇÃO ARTIFICIAL
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Data do Acordão: 11/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 829º-A E 1351º C. CIV. .
Sumário: I – No artº 1351º do C. Civ. consagra-se o princípio de que as águas devem seguir o seu curso natural, sem que os utentes delas ou os donos dos prédios imponham
a outros a alteração artificial (por meio de obras do homem) desse fluxo normal .

II – O proprietário prejudicado pode opor-se às obras feitas noutro prédio, que desviem o curso das águas (que embaracem o seu escoamento) ou o tornem mais gravoso, mesmo que os dois prédios se encontrem separados por uma via pública ou um outro terreno particular, podendo, ainda, obter, independentemente de quaisquer danos que já se tenham verificado, a destruição das obras tendentes a alterar o curso normal das águas .

III – Os juros, à taxa de 5%, que se alude no artº 4º do artº 829º-A, do C. Civ., consubstanciam em si uma verdadeira sanção pecuniária complusória, que não precisa sequer de ser alegada e declarada pelo tribunal, já que ela resulta automaticamente da lei, e que é devida, a acrescer aos juros moratórios, após a data do trânsito em julgado da sentença .

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. Os autores, A... e sua mulher, B..., instauraram contra os réus, C... e marido, D..., a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, alegando para o efeito e, em síntese, o seguinte:
Serem os autores e réus donos dos prédios, respectivamente, identificados nos artºs 1º e 10º da pi, que confrontam entre si, situando-se o prédio dos últimos num nível superior.
Os réus realizaram diversas obras naquele seu prédio, das quais resultou, de forma ilícita, a alteração da topografia do seu terreno e a subida da sua cota de nível, o que fez com que as águas vindas do seu prédio passassem a invadir, em maior caudal do que sucedia antes, o prédio dos autores. E de tal modo que, na sequência de chuvas intensas ocorridas em 2/3/2003, as águas pluviais, vindas do prédio dos réus, invadiram o prédio dos autores causado-lhes diversos danos de natureza patrimonial e não patrimonial.
Pelo que terminaram os autores pedindo a condenação dos réus a:
a) reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio identificado em 1º da petição inicial;
b) reconhecer que, no seu prédio, procederam à realização de obras de construção de muros, abertura de buracos, reposição de terras barrentas e soltas, obras e alterações de que resultaram a subida da cota de nível do seu terreno, a subida da pressão de terras exercida sobre o seu muro, uma maior impermeabilização do terreno dos réus e o encaminhamento de águas pluviais e escorrentes sobre o seu prédio;
c) reconhecer que o seu prédio não está sujeito ao escoamento das águas pluviais ou outras, limpas ou sujas, que provêm do prédio dos réus;
d) efectuar, no prazo máximo de 60 dias após o trânsito em julgado da sentença, as obras e trabalhos para retirar as terras que depositaram no seu terreno até que seja reposta a mesma cota de nível de terras anteriormente existente no seu terreno, tanto na parte contígua ao seu prédio como na parte mais distante;
e) tapar todas as aberturas que abriram nos seus muros e deitam directamente para o seu prédio;
f) fazer as obras de reforço do muro dos réus e as obras de impermeabilização, por forma a que a pressão das terras sobre o seu muro seja reduzida e que as águas pluviais sejam desviadas do seu prédio para este não sofrer enchentes, escorrências ou infiltrações;
g) absterem-se de encaminhar as águas, lamas e escorrências na direcção do seu prédio, alterando e fazendo a sobras necessárias a tal fim;
i) indemnizá-los das despesas e danos materiais causados nos muros, piscina, quintal e terraço pela enchente do dia 2.01.03, no valor de 8.068,14 euros.
j) indemnizá-los pelos danos morais, no valor de 1.250 euros;
l) valores acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e de sanção pecuniária compulsória.

2. Os réus contestaram, alegando, em síntese, que o prédio dos autores, situando-se a um nível inferior, tem de receber as águas pluviais que provêm do seu. Porém, ao nele terem levado a efeito a realização de obras, nomeadamente ao taparem e murarem o mesmo, os autores impediram o curso normal das águas pluviais, dando, assim, causa aos danos que eventualmente tenham sofrido.
Nesses termos, pediram a improcedência da acção e em contra-atacaram ainda, pedindo, em reconvenção, a condenação dos autores a:
a) reconhecer a sua propriedade sobre o prédio identificado no artigo 3º da contestação;
b) reconhecer que, por via do alteamento do muro dos réus, as águas pluviais não invadem o prédio dos autores;
c) reconhecer que o seu prédio, sendo inferior, está sujeito a receber as águas pluviais que procedem do prédio dos réus;
d) efectuar no seu prédio, no prazo máximo de 60 dias após o trânsito em julgado da sentença, as obras necessárias a permitir o normal escoamento das águas pluviais, designadamente a construção de um colector cuja ligação seja feita ao existente no prédio dos réus e encaminhamento para a via pública, abertura de barbacans ao longo do muro.

3. No seu articulado de réplica, os autores contraditaram a versão dos factos dada pelos autores, pugnando pela improcedência da reconvenção e pela procedência da sua acção.

4. No despacho saneador afirmou-se a validade e a regularidade da lide, tendo-se, de seguida, procedido à elaboração da selecção da matéria de facto, a qual não foi objecto de qualquer censura.

5. Procedeu-se, mais tarde, à realização do julgamento, sem que as respostas aos diversos pontos da base instrutória continuassem a merecer qualquer censura das partes.

6. Seguiu-se a prolação da douta sentença que, a final, decidiu nos seguintes termos:
“julgamos a acção parcialmente procedente e, em consequência condenamos os réus a:
- reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o prédio identificado em 1º da petição inicial ;
- no prazo de 60 dias, retirarem as terras que depositaram no seu terreno até que seja reposta a mesma cota de nível de terras anteriormente existente no seu terreno, tanto na parte contígua ao seu prédio como na parte mais distante;
- no prazo de 60 dias, a taparem a abertura que abriram no muro contíguo ao prédio dos autores e a deitar directamente para ele;
- a absterem-se de encaminhar as águas, lamas e escorrências na direcção do prédio dos autores;
- a indemnizarem os autores na quantia global de 3.621,93 (três mil, seiscentos vinte e um euros, noventa e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a citação, sobre a quantia de 2.621,93 euros e, a igual taxa, sobre a quantia de 1000 euros, desde esta sentença, e de sanção pecuniária compulsória, no mais os absolvendo do pedido.
3. Julgamos a reconvenção parcialmente procedente e condenamos os autores a:
- reconhecer a propriedade dos réus sobre o prédio identificado no artigo 3º da contestação;
- reconhecer que o seu prédio, sendo inferior, está sujeito a receber as águas pluviais que, sem qualquer intervenção do homem, procedem do prédio dos réus;
- a efectuarem no seu prédio, no prazo de 60 dias, as obras necessárias a permitir o normal escoamento das águas pluviais, designadamente a abertura de barbacãs ao longo do muro que confina com o prédio dos réus, no mais os absolvendo do pedido.”

7. Não se tendo conformado com tal sentença, os réus dela interpuseram recurso, o qual foi admitido como apelação.

8. Nas correspondentes alegações de recurso que apresentaram, os réus concluíram as mesmas nos seguintes termos:
(…)
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II- Fundamentação
1- Delimitação do objecto do recurso.
Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artºs 690, nº 1, e 684, nº 3 do CPC), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (cfr. nº 2 – finé - do artº 660 do CPC).
Vem também sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a derimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
1.1 Ora compulsando as conclusões do recurso, verifica-se que a grande questão aqui apreciar se traduz em saber se a sentença recorrida subsumiu incorrectamente, ou não, o direito aos factos (e no que concerne às particulares matérias que adiante indicaremos)?
***
2. Os factos
Dado que a decisão sobre a matéria de facto não foi objecto de impugnação, e dado não se vislumbrarem razões para a sua alteração oficiosa (à luz do artº 712 , nº 1, do CPC), devem ter-se como assentes os seguintes factos dados como provados pela 1ª instância:
(…)
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3. O direito
3.1 Começaremos por dizer que, como decorre das conclusões motivatórias do mesmo, o recurso não se insurge quanto à parte da sentença que condenou os reús-apelantes a reconhecer o direito de propriedade sobre o prédio dos autores (direito esse que, aliás, os mesmos nunca puseram em causa ao longo da acção, tal como de igual modo sucedeu por parte dos autores em relação ao prédio daqueles), nem quanto à parte da sentença que, julgando parcialmente procedente a sua reconvenção, condenou os autores nos termos que acima se deixaram exarados.
A irresignação dos apelantes, ao afirmarem que houve uma incorrecta subsunção do direito aos factos, tem apenas a ver com aquela parte da sentença que os condenou a :
a) No prazo de 60 dias, retirarem as terras que depositaram no seu terreno até que seja reposta a mesma cota de nível de terras anteriormente existente no mesmo, tanto na parte contígua ao seu prédio como na parte mais distante e a taparem a abertura que abriram no muro contíguo ao prédio dos autores e a deitar directamente para ele;
b) A absterem-se de encaminhar as águas, lamas e escorrências na direcção do prédio dos autores;
c) E a indemnizarem os autores na quantia global ali estipulada, acrescida de juros moratórios e ainda de sanção pecuniária compulsória.
No essencial, defendem os apelantes que não se verificam os pressupostos legais para o efeito, e nomeadamente que se fez uma incorrecta interpretação das normas jurídicas aplicáveis ao caso, ao ponto mesmo de considerarem inconstitucional, por violação do direito à propriedade privada consagrado no artº 62 da CRPort, a interpretação ali feita (com referência ao artº 1305 do CC) de que as obras levadas a cabo no seu prédio violam os limites e as restrições impostos por lei, sendo ainda certo que no tocante à indemnização e sanção compulsória ali atribuídas, deveriam sempre as mesmas ser excluídas, à luz do artº 570 do CC, em virtude de os autores também terem contribuído para a produção dos danos de que emergem.
3.2 Apreciemos então.
Convém, desde já, dizer que a sentença recorrida se encontra elaborada de forma que, em nossa perspectiva, merece o nosso aplauso, analisando e tratando de forma minuciosa e com apropósito as várias situações controvertidas e bem assim os diversos institutos jurídicos aplicáveis a cada uma delas, pelo que nos termos do disposto no nº 5 do artº 713 do CPC nos poderíamos limitar a remeter para os seus fundamentos. Porém, não o faremos totalmente dado que existem, a nosso ver, algumas soluções que precisam de ser refeitas, como adiante veremos, sendo que, no que concerne à questão de fundo (relacionadas com as obras efectuadas pelos autores e réus e com as suas consequências), iremos dispensarmo-nos de grandes alongamentos dada a forma, repetimo-lo, proficiente como a mesma foi abordada (no confronto do direito com os factos), pelo que, por via disso e remetendo quanto ao demais para o exarado na douta sentença, a nossa análise será feita de forma mais superficial.
O caso configurado nestes autos cai, claramente, na “alçada” da previsão do artº 1351 do Código Civil – diploma ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente o normativo sem a indicação da sua origem -, sendo, por isso, à sua luz que, fundamentalmente, deve ser decidido.
Normativo esse que, sob a epígrafe “escoamento natural das águas”, preceitua o seguinte:
Nº 1 “Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente”. (sublinhado nosso)
Nº 2 “Nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida”. (sublinhado nosso)
Em tal normativo consagra-se, assim, o princípio de que as águas devem seguir o seu curso natural, sem que os utentes delas ou os donos dos prédios imponham a outros a alteração artificial (por meio de obras do homem) desse fluxo normal. Princípio que já vem, aliás, do velho direito romano, sendo que, ainda hoje, praticamente todas as legislações do mundo contemporâneo, com tradições no direito, aceitam que nem o proprietário do prédio superior deve aliter aquam mittere quam natura solet e que nem em relação ao prédio inferior opere facto inhire aquam, quae natura fluat, per suun agrum decurrere. Doutrina essa que se encontra, como vimos, consagrada no acima citado nº 2 do artº 1351. Muito embora as fontes romanistas se refiram especialmente à aqua pluvia, o certo é que cedo se atribuiu um conteúdo genérico à doutrina, de forma a abranger no seu dispositivo todas as águas correntes, qualquer que seja a sua origem. (vidé, a propósito, e por todos, os prof. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª Ed., Coimbra Editora, págs. 1902”).
Constitui hoje entendimento, praticamente pacífico, que o referido artº 1351 não pressupõe, necessariamente, que os prédios (o superior – de onde provêm as águas -, e o inferior – o que as recebe ) sejam contíguos. O que apenas se exige é que um dos prédios seja superior em relação ao outro, para que, assim, possa verificar-se o decurso normal.
Portanto, como resulta do aludido artigo 1351, e como escrevem os sobreditos Mestres (in “Ob. cit., pág. 193”), “o proprietário prejudicado pode opor-se às obras feitas noutro prédio, que desviem o curso das águas (que embarecem o seu escoamento, acrescentamos nós) ou o tornem mais gravoso, mesmo que os dois prédios se encontrem separados por uma via pública, ou um terreno particular.” Sendo que, um pouco mais adiante, aqueles insígnes mestres continuam a discorrer nos seguintes termos: “Do artigo 1351 depreende-se que o proprietário do prédio inferior terá direito a ser indemnizado dos danos que lhe advenham do escoamento das águas em termos diferentes dos prescritos, tal como o proprietário do prédio superior tem direito a ver reparado o dano que lhe cause o estorvo causado ao exercício normal do seu direito. Mas do preceito resulta ainda a possibilidade de obter, independentemente de quaisquer danos que já se tenham verificado, a destruição das obras (restitutio operis) tendentes a alterar o curso normal das águas...”. (sublinhado nosso)
Vem também sendo pacificamente entendido que, por um lado, a violação dos comandos insertos em tal normativo faz incorrer o infractor na prática de um acto ilícito, e, por outro lado, que nesse normativo se consagra mais uma das muitas limitações ou restrições ao exercício (pleno) do direito de propriedade, aliás, expressamente previstas no artº 1305 (ao definir o conteúdo de tal direito). Vidé ainda, a propósito do tema, e entre outros, Ac. RC de 16/11/99, in “CJ, Ano XXIV, T5 – 29”; Ac. do STJ de 9/5/95, in “CJ, Acs. do STJ, Ano III, T3 – 104”; Ac. do STJ de 3/10/91, in “BMJ 410 – 776”; Ac. RE de 15/3/90, in “CJ, Ano XV, T2 – 227” e Ac. RLx, de 9/11/79, CJ Ano IV, T5 – 1597”).
Resulta da matéria factual apurada, que prédio dos autores e dos réus são confinantes entre si e que o prédio dos primeiros se situa num plano ou cota de nível inferior ao dos últimos. Desnível esse que já ocorria quando os mesmos ainda eram amanhados como terrenos agrícolas, e que mais se acentuou com as construções das habitações que entretanto neles foram implantadas (cfr. n ºs 2.6, 2.7 e 2.8).
Portanto, os réus são proprietários do prédio superior e os autores proprietários do prédio inferior.
Desse modo, o prédio dos autores está sujeito a receber as águas que decorrem do prédio dos réus e bem assim como a terra e os entulhos que elas arrastam na sua corrente. Todavia, tal sujeição, apenas abrange aquilo que é uma decorrência natural, ou seja, que resulta da natureza (e já não aquilo que é motivado ou provocado pela “mão” do homem).
Do cotejo da matéria factual dada como assente, verifica-se que, quer os réus, quer os autores, violaram o comando inserto no citado artº 1351. Os primeiros, realizando obras (artificiais) no seu prédio que, claramente, agravaram o escoamento das referidas águas, e bem assim da terra e do entulho por elas arrastadas, que decorre do seu prédio para o prédio dos autores (cfr., nomeadamente, nºs 2.20 a 2.24, 2.25 a 2.26, 2.29 a 2.30 e ss; 2.38 a 2.39, 2.47 – 2ª parte – e 2.14 - 2ª parte ), e os últimos realizando, por sua vez, também algumas obras (artificiais) que estorvaram e estorvam tal escoamento (natural) – cfr., nomeadamente, nºs 2.11, 2.12, 2.47 e 2.48.
Daí se impor - como, aliás, cada daqueles proprietários reclamou -, tal como acima se deixou expresso, e mesmo independentemente da ocorrência de qualquer dano, a destruição ou eliminação de tais obras (restittutio operis) que agravaram ou estorvaram (o que, aliás, continua a suceder) o escoamento (natural) de tais águas do prédio dos réus para o prédio dos autores, tal como, esse propósito, se ordenou, a final, na sentença recorrida.
E daí, no que a tal concerne, não nos merecer censura a douta sentença.
É certo que na referida sentença se condenou ainda, além do mais, os réus, “a absterem-se de encaminhar as águas, lamas e escorrências na direcção do prédio dos autores”. Uma leitura, menos atenta, poderia levar à conclusão, porventura, precipitada de que tal colidiria com o estatuído no nº 1 do citado artº 1351, pois, como acima se viu e resulta de tal normativo, os prédios inferiores estão sujeitos a receber dos prédios superiores não só as águas que naturalmente deles decorrem como também a terra e os entulhos arrastadas pela sua corrente. Só que isso se refere, e como tal tem de ser interpretado, às águas, lamas e escorrências que não são naturais, isto é, que resultam daquelas obras feitas pelos réus. Entendimento esse que, aliás, se extrai daquela parte, referente ao pedido reconvencional dos réus, em que se condenou os autores a “reconhecer que o seu prédio, sendo inferior, está sujeito a receber as águas pluviais que, sem qualquer intervenção do homem, procedem do prédio dos réus”.
Não vislumbramos, assim, por tudo o exposto, que tenha sido feita qualquer violação do artº 1344 do CC ou sequer mesmo feita qualquer afronta constitucional, e nomeadamente ao artº 62 da nossa Lei Fundamental. Pois, como é sabido, o direito à propriedade privada, e mais concretamente o direito de propriedade (especificamente na sua componente do direito de uso e fruição plena dos bens de que se é proprietário) não é um direito absoluto, isto é, não é garantido em termos absolutos, tal como, aliás, decorre da parte final do nº 1 do citado artº 62 da própria CRPort e do segmento final do nº 1 do artº 1305 do CC. Na verdade, o referido direito está sujeito a limitações ou restrições, por forma a proteger outros interesses considerados igualmente relevantes, como sucede, por ex., com as situações configuradas no citado artº 1351, onde, para além da protecção ou tutela de interesses de ordem pública, se visa ainda garantir a coexistência direitos idênticos a favor de pessoas diferentes - o que impõe, pois, que esse direito, que é elástico, se retraia perante tais situações. (vidé, entre outros, os profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª ed. Coimbra Editora, pág. 330 a 333”).
Quanto à indemnização atribuída aos autores.
No que concerne à indemnização atribuída pela sentença recorrida aos autores, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, a sua concessão, a cargo dos réus, não nos merece censura, tanto mais que os últimos não colocam directamente em causa, neste seu recurso, a ocorrência desses danos, os montantes e a forma ali encontrados para indemnizar os mesmos (pelo que, de qualquer modo, sempre, quanto a tais aspectos, nos remeteríamos, ao abrigo do disposto no supra citado artº 713, nº 5 do CPC, para a sua respectiva fundamentação), muito embora defendam que referida indemnização deva ser excluída, à luz do artº 570 do CC.
Danos esses que, fundamentalmente, foram provocados, em dia de chuvas intensas, pelas águas pluviais vindas do terreno dos réus que galgaram o muro do prédio dos autores, e devido às obras levadas a efeito por aqueles (cfr., nomeadamente, nºs 2.30 a 2.37, e 2.42 a 2.46).
Como acima já deixámos escrito, a violação do citado artº 1351 faz incorrer o seu infractor na prática de um facto ilícíto, ficando o lesado, por via dele, com o direito a ser ressarcido.
Não existem, a nosso ver, dúvidas quanto ao preenchimento de todos os pressupostos legais que permitem aos autores ser indemnizados por tais danos (cfr. ainda artºs 483, 562, 563, 566 e 496, nº 1).
Ora no fundo, e como resulta do atrás exposto, a responsabilidade (extracontratual) civil dos réus tem a ver com o facto de as obras que realizaram no seu prédio terem agravado o escoamento das águas, dele emanadas, para o prédio dos autores.
Porém, acima também se concluiu, à semelhança, aliás, do que foi feito na sentença recorrida, que os autores igualmente infringiram o aludido preceito legal, já que realizaram obras (vg. construção de muros) no seu prédio que estorvam o escoamento das águas pluviais (naturais) decorrentes do prédio (superior) dos réus, ou seja, impedindo o natural escoamento de tais águas e interrompendo mesmo o curso das mesmas (cfr., novamente, nºs 2.47 e 2.49). Pelo que, como tal, também os autores incorreram na prática, culposa, de um acto ilícito.
Desse modo, face a tudo o atrás exposto e tendo em conta a origem ou a causa dos danos que sofreram, somos levados a concluir que os autores, com aquela sua conduta, também concorreram para a produção (ou, pelo menos, agravamento) de tais danos.
Estamos, pois, perante uma situação de concausalidade ou de conculpabilidade.
Ora, dispõe o artº 570, nº 1, que “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
Assim, perante os factos acima expostos, e à falta de mais e melhores elementos, afigura-se-nos ser de dosear em igual medida a culpa dos réus e dos autores para a produção dos danos sofridos pelos últimos.
Logo, face a tal e ao abrigo daquele normativo legal, e até também à luz da equidade, decide-se reduzir para metade o montante indemnizatório a pagar pelos réus aos autores, que, assim, de € 3.621,93 passa para € 1.810,97, revogando-se, nessa medida, a douta sentença recorrida.
Quanto à sanção compulsória
Como resulta do acima exarado, a srª juiz a quo fez, no final da sua sentença, acrescer aquele montante indemnizatório dos respectivos juros moratórios e “de sanção compulsória” (sic).
Defendem ainda os apelantes que tal sanção compulsória deve ser excluída, por não se compreender.
Como é sabido, a sanção pecuniária compulsória foi consagrada no nosso ordenamento jurídico pelo DL nº 262/89 de 16/6, plasmando-a no artº 829-A que então aditou ao Código Civil. Consagração essa que teve a sua fonte de inspiração no modelo francês das astreintes.
Sem nos alongarmos muito - que o caso, a nosso ver, não justifica - sempre diremos que tal sanção visa, essencialmente, uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois, com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto, por outro lado, se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis. (Para mais e melhores desenvolvimentos, vidé os profs. Calvão da Silva, in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág. 395 e ss” e Pinto Monteiro, in “ROA, 46º - 673”).
Fundamentalmente, tal sanção pecuniária compulsória foi pensada mais para as prestações de facto infungível, positivo ou negativo, a qual, nesses casos, só pode ser fixada requerimento do credor, e num montante que deve ser estabelecido segundo juízos ou critérios de razoabilidade, e que se destina, em partes iguais, ao credor e ao Estado (cfr. nºs 1, 2 e 3 do citado artº 829-A).
Porém, ela também pode existir quando se trate de obrigações ou de simples pagamentos a efectuar em dinheiro corrente.
A esse propósito estatui o nº 4 daquele normativo que “quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes também forem devidos, ou à indemnização a que houver lugar”. (sublinhado nosso)
Vem sendo dominantemente entendido que aqueles juros, à taxa de 5%, que se alude no nº 4 do citado artº 829-A, consubstanciam em si uma verdadeira sanção pecuniária compulsória, que não precisa sequer de ser alegada e declarada pelo tribunal, já que ela resulta automaticamente da lei, e que é devida, a acrescer aos juros moratórios, após a data do trânsito em julgado da sentença (vidé, entre outros, Ac. RE de 13/10/98, in “BMJ 480 – 568”; Ac. do STJ de 5/6/97, in “AD, 421 – 114”; Ac. RLx de 16/5/95, in “CJ, Ano XX, T3 – 105”; Ac. RE de 11/4/96, in “CJ, Ano XXI, T2 – 278” e Ac. RP de 9/5/91, in “CJ, Ano XVI, T3 – 228”).
Ora é precisamente a esta sanção pecuniária compulsória, concernente somente à obrigação ou indemnização ali fixada em dinheiro, prevista no citado nº 4 do artº 829-A, que a srª juiz a quo se refere, a qual, como vimos, é automática, pelo que nem sequer precisava de ser declarada.
Daí que, também quanto a tal aspecto, a sentença recorrida não nos mereça censura, devendo, nessa parte, igualmente improceder o recurso.
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III- Decisão
Assim, em face de tudo o atrás exposto, acorda-se em conceder apenas parcial provimento ao recurso, reduzindo-se o montante indemnizatório, que a havia sido fixado na douta sentença recorrida, a pagar pelos réus-apelantes aos autores-apelados, para a quantia total de € 1.810,97 (mil oitocentos e dez euros e noventa e sete euros), mantendo-se, quanto ao demais, o ali decidido.
Custas da acção, da reconvenção e do recurso pelos réus-apelantes e autores-apelados na proporção do respectivo decaimento, e que para o efeito se fixa em ¾ para os primeiros e em ¼ para os últimos.

Coimbra, 2005/11/15