Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
211/08.0TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: CRIME DE HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
CRIME DE OMISSÃO DE AUXÍLIO
CONCURSO REAL
PENSÕES DE SOBREVIVÊNCIA
SUBROGAÇÃO
Data do Acordão: 05/26/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 13º, 14º,15º, 137º Nº 2 ,200º Nº 2 DO CÓD. PENAL, 4º, 29º E 33ª DA LEI Nº32/2002, DE 20/12, DL 58/89 DE 22/02.
Sumário: 1. O crime de omissão de auxílio é considerado como um crime de omissão própria ou pura, também designado de mera omissão ou omissão simples.
2. Tratando-se de um crime de omissão própria ou pura, não existe um dever jurídico que obriga a evitar um qualquer resultado. Implica o dever de prestar auxílio necessário a afastar o perigo resultante duma concreta situação, o que não é a mesma coisa que necessário a afastar um certo resultado. Daí que o resultado lhe seja alheio.
3. Os crimes de homicídio negligente e de omissão de auxílio ocorrem em concurso real, dado tratar-se de normas jurídicas que tutelam bens jurídicos distintos, não havendo entre eles relação de especialidade ou consumpção, sendo o primeiro imputado a título negligente (art° 15° do CP) e o segundo apenas pode ser imputado a título doloso, por não estar expressamente prevista uma actuação negligente.
Havendo um culpado no acidente, que transferiu a sua responsabilidade civil extracontratual para a seguradora é sobre estes que impende o obrigação de reembolso, o primeiro por via da culpa na eclosão do acidente e esta, por via do contrato de seguro através do qual transferiu a sua responsabilidade.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

Em processo comum e ao abrigo do disposto no art.o 16º n.º 3 do Cód. Proc. Penal perante Tribunal singular, o Ministério Público deduziu acusação contra: N..., melhor identificado nos autos, a quem imputa os factos descritos na acusação de fls. 158 e ss., integrativos da prática, segundo a qualificação jurídica operada e em concurso efectivo, das contra-ordenações p. e p. pelos art.os 24º n.os 1 e 3 e 25º n.os 1. d) e 2 e 101º n.ºs 1 e 5 do Cód. da Estrada, um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo 137º nº 2 do Cód. Penal e um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artº 200º nº 2 do Cód. Penal.
O Ministério Público requer, ainda, que o Tribunal aplique a pena acessória de proibição de conduzir, nos termos do art.o 69° nº 1 aI. a) do Cód. Penal e decrete a cassação do título de condução, ao abrigo do art.o 101º nº 1 aI. a) do mesmo diploma legal.
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A fls. 196 e ss. veio o "Instituto de Segurança Social" deduzir pedido de reembolso de prestações contra "G... - Companhia de Seguros, S.A.", peticionando a condenação desta no pagamento das prestações já pagas aos familiares da vítima mortal do acidente, bem como no pagamento das que, na pendência do processo, a impetrante continue a satisfazer aos beneficiários.
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Finalmente, a fls. 283, M..., viúva da vítima mortal do acidente, veio constituir-se assistente.
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A final foi proferida a seguinte decisão:
Condenar o arguido como autor material de um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo art.o 137º n.os 1 e 2 do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 1 mês de prisão;
Como autor material de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art.o 200° nº 2 do Cód. Penal, na pena de 10 meses de prisão;
Em cúmulo, na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Julgar extinto, por prescrição, o procedimento contra­ ordenacional
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Na procedência parcial do pedido de reembolso formulado pelo Instituto de Segurança Social, condenar a "G... - Companhia de Seguros, S.A." no pagamento da quantia de € 11.923,91 (onze mil, novecentos e vinte e três euros e noventa e um cêntimos), acrescida de juros, desde a notificação para contestar até efectivo e integral pagamento.
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Inconformados, recorrem a Seguradora e o arguido, conclusando, respectivamente:
Recurso da Seguradora:
1 - O demandante pagou à viúva de A..., J..., e ao filho menor de ambos, F..., o total de 11.923,91€, a título de pensões de sobrevivência no período de Junho de 2005 a Maio de 2008.
Por sua vez,
2 - A demandada indemnizou, em 28.12.2005, os herdeiros de A..., J..., o filho menor F... e a filha S..., no montante de 145.000€ por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do acidente dos autos.
3 - Não são cumuláveis os valores da pensão de sobrevivência e o indemnizatório devido pela seguradora no quadro da responsabilidade civil por facto ilícito, por ela assumida por via do contrato de seguro, em razão da perda do rendimento do trabalho. Isto porque,
4 - A referida cumulação corresponderia a um duplo pagamento aos beneficiários, situação que ofenderia as regras próprias do enriquecimento sem causa estabelecidas nos arts. 476º e ss do C.C.
5 - J... e o filho, F..., herdeiros da infeliz vítima, beneficiaram de uma cumulação indevida que, por força da condenação em apreço, constitui um enriquecimento injusto em prejuízo da demandada.
6 - No caso concreto, não é possível proceder à dedução dos valores pagos pelo ISS a título de prestações de sobrevivência ao montante da indemnização paga no quadro da responsabilidade civil por facto ilícito uma vez que apesar de indemnizados em 12.2005 pela perda de rendimento do trabalho do falecido, J... e o filho continuaram a receber aquelas prestações.
Logo,
7 - Para obviar, por um lado, à cumulação indevida por parte de J... e de F..., e, por outro, ao prejuízo da demandada, deveria ser determinada a suspensão pelo demandante do pagamento das pensões de sobrevivência que continua a pagar àqueles beneficiários até perfazer o montante condenatório, isto é, até atingir a quantia de 11.923,91€, absolvendo-se, desta forma, a demandada de reembolsar ao ISS um valor que já pagou aos herdeiros do falecido.
8 - Decidindo nos moldes em que o fez, a douta sentença recorrida acolheu uma cumulação indevida de benefícios em prejuízo da demandada, violando, assim, as regras do enriquecimento sem causa consagradas no artº. 473º e ss do Código Civil.
Nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida na parte recorrida, só assim se fazendo Justiça
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Recurso do arguido:
1. A solidariedade social ou humana não constitui o bem jurídico protegido pelo preceito incriminador da "omissão de auxílio", mas sim fundamento legitimador do dever geral de auxílio, protegendo sim a vida, a integridade física e a liberdade.
2. Encontrando-se a vítima do acidente já morta, cadáver, não se lhe poderia prestar qualquer auxílio, pelo que a prática do crime de omissão de auxílio se torna impossível, dado que não se violou qualquer bem jurídico protegido pelo preceito.
3. Inexiste concurso efectivo de crimes entre o crime de homicídio negligente e o crime de omissão de auxílio, devendo o Arguido responder apenas por um crime, o de homicídio negligente.
4. Ao Arguido foi aplicada uma pena inferior a cinco anos de prisão, cumprindo-se assim o pressuposto formal para a suspensão da execução da pena e o pressuposto de ordem material, a verificação, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do caso, de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do Arguido no futuro, é propício ao mesmo, dados os factos provados em Juízo, mormente o Relatório Social da DGRS.
5. Os factos considerados pelo Tribunal “a quo" sobre a personalidade do agente, são totalmente favoráveis à aplicação de uma pena de substituição, nomeadamente à suspensão da execução da pena de prisão.
6. A pena efectiva de prisão a que o Arguido foi condenado não é a única forma de alcançar as finalidades visadas com a punição, nem a privação de liberdade é o único meio adequado de estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade na vigência da norma violada.
7. O Arguido encontra-se inserido familiar, social e profissionalmente e o cumprimento efectivo da pena de prisão terá efeitos muito gravosos, marcando irremediavelmente a sua vida futura, gerando efeitos inversos aos pretendidos.
8. A aplicação da pena de prisão efectiva opera uma “dessocialização" e uma desintegração" na sociedade do arguido.
9. A douta Sentença “a quo" violou o disposto nos artigos 50º e 200º do Código Penal.
Termos em que,
Deve a Sentença recorrida ser revoga da na parte em que condene o Arguido pela prática do crime de omissão de auxílio, julgando a acusação parcialmente improcedente e absolvendo dela o Arguido, bem como deve ser proferida Decisão que, julgando procedente a acusação pelo crime de homicídio negligente, suspenda a execução da mesma, por se cumprirem os requisitos do artigo 50º, Código Penal, assim se fazendo JUSTIÇA!
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Respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público e a assistente J…, pugnando pela improcedência do recurso com a consequente manutenção da decisão recorrida.
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Nesta Instância, emitiu Parecer, a Ex.ma Procuradora Geral Adjunta., pronunciando-se no sentido de que poderá considerar-se o crime homicídio como de negligência simples, com reflexo na medida da pena que, defende ser suspensa com o cumprimento de deveres, entre eles o previsto no artº 51º nº1 al c) do Cód. Penal
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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Para tanto temos de ter em conta que o tribunal recorrido julgou os seguintes:
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Factos provados
Da acusação
1. No dia 10 de Maio de 2005, cerca das 6h e 10m, na Estrada Nacional n.º lC2, ao Km 183,2, freguesia de Antanhol, área desta comarca, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula 69-29-EL, no sentido Coimbra - Pombal (Norte - Sul);
2. A via, no local, desenvolve-se em recta, sem obstáculos à visibilidade, existindo uma faixa de rodagem, atendo o sentido do arguido, o sentido Norte - Sul, e duas em sentido contrário, com duplo traço contínuo assinalado no solo separando os dois sentidos de marcha, sendo o piso asfaltado;
3. A estrada possui três vias (uma no sentido Norte - Sul e duas no sentido Sul - Norte) medindo cada via 3,30m de largura, sendo a estrada marginada por bermas asfaltadas com 1 m de largura cada;
4. Não existia qualquer passadeira para peões assinalada no local;
5. O arguido seguia desatento, imprimindo ao veículo uma velocidade superior ao aconselhável;
6. O arguido provinha dos festejos da "Queima das Fitas", que decorreram na altura e onde havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade não determinada, sendo que quando localizado pelo modo que a seguir se descreve, ou seja, pelas 11 h e 41 m do mesmo dia, mês e ano, o arguido ainda acusava uma TAS de 0,25 g/I, conforme resulta do teor do exame constante de fls. 11 e que aqui se dá por reproduzido;
7. Nas mesmas circunstâncias de tempo seguia a pé A..., com um colecte reflector vestido;
8. Ao chegar ao local mencionado, onde à direita da via, atento o sentido do arguido, se situa um posto de abastecimento de combustíveis Galp", o referido A…, que estava ao lado esquerdo da via atento o sentido Norte - Sul, decidiu atravessar a pé e em toda a largura da via, a mencionada E.N.;
9. Depois de verificar que nas proximidades não havia nenhum veículo, iniciou tal tarefa, atravessando a via da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do arguido;
10. O arguido, não obstante a visibilidade do local lhe permitir, ao início da recta, atentar no posicionamento do peão, continuou a sua marcha, sem travar, sem abrandar ou sem se desviar – sendo que em sentido contrário, inexistia trânsito, o que lhe permitia contornar a vítima.
11. Já o peão tinha feito a quase totalidade da travessia da via, tendo já atravessado as duas faixas de rodagem do sentido sul-norte e a quase totalidade do sentido norte-sul, onde o arguido seguia, quando foi embatido pelo veículo condizido pelo arguido o qual, devido à forma descuidada como conduzia, não dominou o veículo ou contornou o peão, não obstante inexistir qualquer impedimento de trânsito para a realização de uma manobra de desvio;
12. O embate entre o veículo e o peão ocorreu na via mais à direita, atento o sentido de marcha do arguido, sendo que o peão já estava a terminar a travessia, tendo o arguido embatido no peão com a parte da frente, lado direito, do veículo por si conduzido;
13. Deste embate e queda que se lhe seguiu resultaram para a vítima as lesões examinadas e descritas no auto e relatório de autópsia de fls. 67º a 75º do 2º vol., cujo teor se dá por reproduzido, designadamente lesões traumáticas crâbeo-meningo-encefálicas, vertebro-meningo-medulares dorsais, toráxico abdominais e dos membros, lesões estas que foram causa adequada da morte de A....
14. O arguido embateu com o seu veículo na vítima, tendo ficado no veículo vestígios biológicos os quais foram identificados como pertencentes a A…, conforme resulta do teor dos relatórios de fls. 54 a 57, do 1º vol., 20 a 23, 59, 60, 109 e 119 a 122, que aqui se reproduzem.
15. Com o violência do impacto a vítima, com o seu corpo, partiu os faróis da frente, lado direito, do veículo e o pára-brisas, lado direito, tendo sido projectada, ficando imobilizada no chão, numa estrada nacional, de madrugada, com nítidos sinais de lesões graves, ficando inanimado no solo sem esboçar gesto de poder seguir o seu caminho;
16. Apesar de ser notório a qualquer cidadão médio e comum, como o foi ao arguido, que a vítima poderia estar em risco de vida e que necessitaria de cuidados médicos emergentes, o arguido desinteressou-se da vítima, que assim se encontrava devido ao comportamento do arguido, prosseguindo a sua marcha sem parar, sem prestar socorro, sem providenciar pelo chamamento de auxílio médico ou verificar se alguém o fazia, deixando a vítima entregue à sua sorte;
17. O arguido, ao agir como o descrito, sabia que um condutor médio e prudente, perante a aproximação de um peão em plena travessia da via, não conduziria o veículo do modo como o fez, impondo-se-Ihe regras de cuidado que era capaz de cumprir e não acatou, designada mente imprimir menor movimento à viatura, travando se necessário e/ou contornando o peão, manobras que sem sequer esboçou fazer, sendo que nenhum obstáculo existia à realização de tais manobras em segurança, sabendo que tal lhe estava vedado por lei;
18. O arguido, não obstante se ter apercebido, até pela violência do embate, que a vítima teria sofrido traumatismos graves, estaria em risco de vida e que necessitaria de urgente socorro médico, o que era notório para qualquer cidadão médio, quis e conseguiu deixar, contudo, a vítima prostrada e inanimada no solo, sem ajuda, sem pedir ou se certificar que alguém chamava socorro médico, deixando-a abandonada à sua sorte, prosseguindo a sua marcha indiferente ao destino da vítima, sem providenciar por ajuda, agindo nesta parte de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que a sua conduta lhe estava vedada por lei;
Da contestação
19. O arguido regressava a casa, pela Estrada Nacional nº 1,sentido Coimbra - Pombal;
20. Foi diagnosticado ao arguido uma epilepsia extra-temporal que por vezes o faz ter ausência de memória;
Do pedido de reembolso
21. Com base no falecimento, em 2005.05.10, do beneficiário nº 11265942877, A…, em consequência do acidente a que os autos dizem respeito, foram requeridas ao ISS/CNP, pela viúva J..., por si e em representação do seu filho menor, F..., prestações por morte, as quais foram deferidas;
22. Em consequência o ISS/CNP pagou à referida J…. e filho, a título de Subsídio por Morte, a quantia de € 2.968,08 e, a título de Pensão de Sobrevivência, no período de Junho de 2005 a Maio de 2008, o total de € 11.923,91 à viúva, sendo o valor mensal, à data da última prestação paga, de € 220,72 e, ao filho, no mesmo período, o valor de € 2.975,84, sendo o valor mensal, à data da última prestação, de € 73,57;
23. O proprietário do 00-00-EL havia transferido a responsabilidade civil por acidentes de viação decorrentes da circulação do veículo para a demandada seguradora através de contrato de seguro;
Da contestação da demandada
24. À data do acidente o arguido mantinha com a demandada um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº 203040179, relativo ao veículo ligeiro de matrícula 00-00-EL;
25. A demandada indemnizou, em 2005.12.28, os herdeiros de A..., J..., o filho menor F... e a filha S..., no montante de € 145.000,00 por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do acidente, conforme recibo de quitação de fls. 233 e ss. que aqui se reproduz;
Mais se provou
26. Na estrada por onde o arguido seguia e antes do local do embate eram visíveis outros peregrinos a caminhar pela berma da estrada e com quem o arguido se cruzara;
27. Desde o início da recta e até ao local do embate o arguido percorreu uma distância não inferior a 500 m;
28. Quando a vítima e dois peregrinos que o acompanhavam iniciaram a travessia da via, o veículo do arguido encontrava-se no início da referida recta, convencendo-se aqueles que teriam tempo para proceder à travessia em segurança;
29. O embate no peão ocorreu em local não concretamente apurado do pavimento asfaltado mas já quando aquele se encontrava junto do traço delimitador da berma direita, atento o sentido de marcha do arguido;
30. Após o embate o arguido prosseguiu a marcha à mesma velocidade a que seguia e que era, antes do acidente, em quantitativo não apurado mas não inferior a 90 Km/h;
31. Com a força do embate o peão foi projectado, ficando o corpo a mais de 50 m daquele local, tendo o óbito sido verificado no local pelas 6h e 20m;
32. O piso, aquando do acidente, encontrava-se húmido devido a uns chuviscos que ocorreram antes;
33. A vítima, pouco antes do acidente, havia colocado, sobre o colecte reflector referido em 7., uma capa de chuva de cor amarela;
34. Após o embate o arguido prosseguiu a sua marcha, conduzindo o veículo até à sua residência, à frente da qual o deixou estacionado, seguindo depois, cerca das 7h e 30m e em transporte distinto, para o seu emprego, onde se encontrava a trabalhar quando foi contactado pela GNR, não tendo, após o acidente, ingerido qualquer bebida alcoólica;
35. O arguido é o terceiro de 5 filhos de um casal residente na localidade de N…, Ansião, com uma dinâmica relacional estável, bem inserido socialmente e com uma situação económica equilibrada;
36. o arguido iniciou o percurso escolar na idade própria, terminando aos 16/17 anos de idade com a conclusão do 9° ano, sem alusão a problemas comportamentais;
37. Após conclusão da escolaridade o arguido frequentou um curso de formação profissional de "reparação de electrodomésticos de linha branca, electricidade industrial e alta tensão", com a duração de 18 meses;
38. O arguido desde muito jovem que acompanha os pais na actividade agrícola, tendo hábitos de trabalho estruturados e boa imagem junto da comunidade;
39. O arguido exerce a sua actividade profissional na área da construção civil, sendo actualmente estucador de 2° classe;
40. O arguido vive com os pais e 3 irmãos;
41. O arguido aufere, na sua actividade profissional, quantia não inferior a € 500,00;
42. O arguido não tem antecedentes criminais ou contra­ -ordenacionais.
Factos não provados
Da acusação
- O tempo estava seco;
- O trânsito, na ocasião, era intenso;
- O arguido verificou, com antecedência, que a vítima já iniciara a travessia da via;
Da contestação
O arguido, desde que tirou a carta, sempre conduziu com zelo e diligência, obedecendo às regras de trânsito e respeitando os restantes utilizadores das vias de circulação;
O arguido ingeriu bebidas alcoólicas mas em quantidades reduzidas por saber que iria conduzir;
-Imprimia ao veículo uma velocidade "moderada";
A cerca de 300m do local do embate existia uma passagem aérea para peões que o peão não utilizou;
O arguido não tem memória do acidente.
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Os restantes factos, não especificamente dados como provados ou não provados, ou são apenas a negação ou afirmação de outros especificamente considerados provados ou não provados, ou são conclusivos (em termos factuais ou de Direito), ou contém matéria irrelevante para a decisão da causa.
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O tribunal fundamentou a sua decisão acerca da matéria de facto nos seguintes termos:

Os factos dados como provados resultaram do conjunto da prova testemunhal produzida em julgamento e documentos juntos, nos termos que a seguir se explicitam, prova que se encontra registada, e da directa percepção que o Tribunal teve da mesma, observando o comportamento e postura das testemunhas e valorando toda a prova à luz dos critérios de experiência comum.
O arguido, nas declarações que prestou, afirma não se recordar do acidente em virtude de patologia que o afecta. Ainda assim e quanto ao que refere lembrar-se, apresenta uma versão que mitiga, de alguma forma, a sua responsabilidade ou a transfere, inclusivamente, para o peão como, aliás, consta da sua contestação. Embora o arguido afirme que não se recorda do acidente refere, no entanto, que estivera nos festejos da "Queima das Fitas" mas que a ingestão de bebidas alcoólicas foi parcimoniosa, o mesmo se dizendo quanto à velocidade a que seguiria, da ordem dos 90 Km/h. Mais refere que se lembra de existirem peregrinos do lado esquerdo da via e que, na zona, se recorda de um homem a correr, a atravessar de repente o que, pela proximidade, inviabilizou que evitasse o embate, evento para o qual disse não ter memória, lembrando-se apenas de acordar, já no IC 3 (vários Km à frente e implicando a mudança de estrada num cruzamento), junto a uma barreira e com o carro destruindo, assumindo que aí se despistara porquanto, e em razão da doença invocada, já por diversas vezes tivera acidentes no exercício da condução sem se recordar das causas.
Retomando o depoimento do arguido acrescentou o mesmo que, perante esse hipotético despiste e a ausência de memória para qualquer atropelamento, não relacionou os danos no veículo com um evento tão grave como o versado nos autos, razão pela qual foi trabalhar, cerca das 7h e 30m, como normalmente faria, vindo depois a ser contactado pela GN R no seu local de trabalho, fazendo o teste de álcool mencionado nos factos assentes e cujo resultado consta de fls. 11. Não obstante afirma que desde a saída do local dos festejos até ao teste do ar expirado, não ingeriu qualquer outra bebida alcoólica pelo que o resultado detectado não deriva de álcool ingerido após o acidente.
O arguido referiu as suas condições pessoais, estando a ausência de antecedentes criminais e estradais documentada, respectivamente, através das consultas ao registo criminal e registo individual de condutor.
Não entrando, para já, na valoração do depoimento do arguido passemos à fundamentação dos factos assentes no que tange à dinâmica do acidente. Neste particular depuseram as testemunhas C..., B... e B..., testemunhas que mantiveram depoimentos credíveis, sem ligações próximas à vítima e transparecendo estarem a reviver um acontecimento, traumático, realmente presenciado. Concretizando as testemunhas confirmam as circunstâncias de tempo e lugar mencionadas na acusação (o que o arguido também não afastara), acrescentando, contudo e ao contrário da acusação, que caíra uma chuva "miudinha" pelo que o pavimento se encontraria húmido (o que não é contraditório com o depoimento dos militares da GNR que acorreram ao local após o acidente e que já não constaram tal facto porquanto se trataria de uma chuva muito ligeira e que não deixara o pavimento realmente molhado).
As duas primeiras testemunhas referidas eram, como a vítima, peregrinos em direcção a Fátima, tendo conhecido a vítima, casualmente, durante a peregrinação seguindo na ocasião com esta em caminhada. Ao chegarem próximo das bombas da "Galp" resolveram atravessar para ali se dirigirem a fim de tomarem o pequeno-almoço. Antes de iniciarem a travessia olharam para ambos os lados sendo que apenas no início da recta, muito extensa, era visível a existência de um veículo. Tendo em conta a distância e a visibilidade, assumiram que não havia perigo e iniciaram a travessia, a passo, sendo a vítima o último da fila. No entanto, referiu a testemunha C... que quando voltou a olhar para a direita o carro já se aproximara muito em relação ao esperado, atento a velocidade a que seguia, dizendo então à vítima para se apressar e, logo após, ouviu o estrondo. A vítima estaria a cerca de 1 m de si e, quando o avisou, já a testemunha estaria em cima do risco delimitador da berma direita, atendo o sentido de marcha do arguido. Após o embate o veículo terá prosseguido a marcha exactamente como até ali e tão rápido que nem conseguiu aperceber-se da matrícula ou da marca, já havia luminosidade natural e que a vítima, pouco tempo antes, colocara uma capa de chuva de cor amarela;
Com interesse referiu ainda a testemunha C... que uma capa amarela de chuva por cima do colecte reflector, o que se assumiu face à sua verosimilhança, considerando as marcas deixadas no veículo do arguido e notadas a fls. 21 e 150, não obstante, com a violência do embate, tais apetrechos se tenham deslocado, se tivermos em conta os registos fotográficos do cadáver constantes de fls. 141. A mesma percepção da testemunha é valorizada pela descrição do vestuário que se faz aquando da autópsia, sendo que o depoimento de B..., o outro peregrino que seguia com a vítima, vai no mesmo sentido ao afirmar que aquela seguia com o colecte e cerca de meia hora antes colocara uma capa amarela. Seguindo este depoimento, coincidente com o anterior, terá sido esta a primeira testemunha a concluir a travessia. Afirma que, de repente, ouviu um estrondo e viu o cadáver a cair, sem qualquer ruído de travagem que tenha antecedido esse estrondo. Quando olhou para a frente - e continuando a estrada em traçado recto - já não conseguiu "distinguir" o veículo. Esta testemunha aponta, também, para a existência de luz natural.
Por fim, e quanto às testemunhas presenciais, tivemos o depoimento de B..., que dava apoio aos peregrinos e que se encontrava, na ocasião, encostado à sua carrinha nas bombas de abastecimento. Terá visto a vítima a atravessar, com dois senhores à frente, aguardando que a mesma completasse a travessia para o cumprimentar (sendo que conversara com o mesmo em Oliveira de Azeméis, numa anterior paragem). Do local onde se encontrava, e por causa de um muro, a testemunha não teria visibilidade para a zona da faixa de rodagem mais próxima da berma pelo que chegou a afirmar que a vítima já teria completado a travessia atendendo ao ultimo local onde a vê quando, de repente, a vê voar projectada, caindo praticamente já no acesso ás bombas, ficando em choque não tendo, sequer, conseguido perceber que carro a embatera.
Por fim referiu a testemunha que o dia estava a nascer, que caíra uma chuva miudinha e que a vítima trazia uma capa de chuva.
Aqui chegados temos as circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreu o acidente, as condições atmosféricas e de luminosidade, assim como a forma como a travessia terá sido efectuada. Sem poderem concretizar, como normalmente sucede, os depoimentos são contudo impressivos quanto à velocidade desadequada, por excessiva, que o arguido imprimiria ao veículo considerando a velocidade de aproximação para uma recta que, até ao ponto de embate, teria mais de 500 m, a violência do embate com projecção da vítima e o facto de, logo após, nenhuma das testemunhas conseguir percepcionar claramente o veículo que seguiu sem travar, quer antes, quer depois do embate, sendo que essa velocidade nunca seria inferior aos 90 Km/h que o arguido assume (a máxima permitida no local, embora, como veremos, para os ligeiros de mercadorias a velocidade máxima específica fosse de 80 Km/h) mas sempre desadequada, numa formulação algo conclusiva, por superior àquela que, quer o Código da Estrada, quer as regras de prudência, lhe impunham. É certo que não há qualquer prova quanto à velocidade instantânea do veículo do arguido (sendo que a conclusão da GN R dos 110 Km/h não encontra alicerce em premissas seguras). O acidente é, contudo, um acontecimento dinâmico, de sons, imagens e conclusões lógicas extraídas de pedaços da realidade apreendida pelos sentidos, enformada pelos critérios de experiência comum. Para formular a conclusão de que a velocidade era "excessiva" não constitui factor essencial a sua determinação exacta, a sua quantificação numérica. O juízo valorativo acerca desse excesso tem a ver com as circunstâncias concretas de lugar, de tempo, do tráfego e também com os efeitos provocados pelo embate do veículo, distância percorrida por este, etc., tudo factos que as testemunhas percepcionaram
Em qualquer dos casos e por qualquer um dos depoimentos presenciais, o arguido não seria identificado.
Quanto a este aspecto temos o depoimento de D..., do Núcleo de Investigação de Acidentes de Viação e Crimes Rodoviários da GNR e que foi chamado ao local. Aí a área encontrava-se preservada por acção dos seus colegas da BT que previamente chegaram ao local e onde terá sido detectada a vinheta do seguro obrigatório e o selo do imposto de circulação (apreendidos a fls. 10) que ficaram junto ao local provável do embate face à existência de destroços do veículo (ter-se-ão desprendido do pára-brisas que estilhaçou naquela área de colocação). Esse local provável de embate é sempre muito próximo do traço delimitador da berma direita (atento o sentido de marcha do arguido), facto que encontra apoio no depoimento das testemunhas presenciais, nos vestígios documentados a fls. 139 e 143 a 146 e até no esboço apresentado pelo próprio arguido na declaração de fls. 44 e 45, indicado como prova da acusação (esta indiciadora de que alguma memória para o acidente o arguido terá como a seguir retomaremos), permitindo avançar uma distância de projecção superior a 50m, como referiram as testemunhas e se concretiza a fls. 134.
Retomando o depoimento da testemunha a mesma afirmou que, através da matrícula constante da vinheta conseguiram apurar a residência do proprietário e para aí se dirigiram onde, em frente à casa, se encontrava o veículo onde eram "perfeitamente" (sic.) visíveis os vestígios de sangue e até cabelos, vestígios esses que foram recolhidos e que, submetidos a exame, se apurou pertencerem à vítima, sendo evidente que o veículo estivera envolvido em acidente (cfr. auto de avaliação dos danos de fls. 59 e registos fotográficos de fls. 21 a 23 e 147 a 154). Aí terão apurado que o arguido se dirigira para o emprego (na altura numa obra na Figueira da Foz), local para onde partiram e aí encontraram o arguido, que acedeu em fazer o teste de álcool, não mencionando qualquer doença (como a constante da contestação) e justificando os danos no veículo com um despiste no IC 3. A testemunha ter-se­-á, então deslocado ao local do IC 3 onde o arguido anotara o despiste originador dos danos onde se apurou inexistirem quaisquer vestígios de acidente, sendo, pelo inverso, que os vestígios no veículo eram antes compatíveis com o atropelamento. Em termos que retomaremos a indicação do acidente no IC 3 é indiciadora de má consciência relativamente ao que se passara.
As testemunhas RM… e MH…, militares da GNR-BT, confirmaram as características da via, condições atmosféricas e a ausência da passagem de peões acessível à vítima nos termos que eram mencionados na contestação.
A testemunha J..., viúva do falecido A…, confirma que o marido levara uma capa amarela, que tem dois filhos, que foi indemnizada pela seguradora nos termos referidos pela demandada na sua contestação e que recebeu as prestações sociais cujo reembolso é pretendido. Mais referiu nunca ter sido contactada pelo arguido.
O pagamento efectuado pela “G..." aos familiares da vítima, confirmado pela viúva desta e com tradução documental no recibo de quitação mencionado nos factos assentes, foi ainda assim corroborado pela testemunha Fernando Manuel Saraiva Dinis.
Conforme já mencionado nos factos assentes, o Tribunal teve ainda em conta o teor do relatório da autópsia e o dos exames efectuados aos vestígios biológicos recolhidos no veículo acidentado.
O Tribunal considerou, também, o teor das certidões de fls. 203 e 299 quanto ao montante das prestações pagas pelo impetrante ISS.
Aqui chegados se justificam os factos assentes relativamente às circunstâncias em que se verificou o acidente, a autoria e actuação do arguido e as consequências do evento para a vítima, sendo que o óbito terá sido verificado ainda no local como se alcança de fls. 5, acrescentando-se os factos objectivos cuja adição foi previamente dada a conhecer à defesa para que, sobre os mesmos, tomasse posição.
Quanto aos factos não provados da acusação os mesmos derivam do facto de, conforme análise dos depoimentos prestados, os mesmos serem infirmados por via desses depoimentos sendo que o arguido afirmou não ter visto o peão iniciar a travessia (ao contrário do que refere a narrativa acusatória) embora esse facto acabe por ser inócuo pois, atendendo à configuração da via, o arguido tinha condições para atentar na sua presença pelo que, não o tendo feito, é o seu comportamento, em ambos os casos (vendo, ou não) indiciador de comportamento negligente (sem que no entanto existam elementos que permitam asseverar que o arguido viu, de facto, o início da travessia quando o próprio nega essa circunstância).
Arrolados pela defesa depuseram PM…, SM… e LF…. Quanto ao último, foi um depoimento abonatório do carácter sendo, nesta parte, integrado pelos elementos recolhidos através do relatório pré-sentencial elaborado pela DGRS.
No que tange aos dois primeiros depoimentos referidos, provenientes de amigos do arguido, foi referido que o este, numa ocasião, não se recordou, no dia seguinte, do que havia feito na véspera embora, quando praticados os factos dos quais posteriormente não se lembrou, o arguido agisse normalmente. Também a testemunha SS… referiu que o arguido, no dia do acidente, foi trabalhar normalmente e não lhe referiu qualquer acidente ou danos no veículo.
Foi ainda arrolado como testemunha o Dr. AJ…, médico psiquiatra. O mesmo referiu que o arguido nunca foi seu paciente mas que um seu colega, o Dr. MC…, em determinada ocasião que não situa lhe terá falado de um doente com uma epilepsia extra-temporal. Caracterizando a doença refere a perda de memória mas associada, sempre, à perda de consciência. Inquirido, ao abrigo do disposto no art.o 340º do Cód. Proc. Penal, o mencionado Dr. MC…, médico especialista em medicina interna, o mesmo referiu ter consultado o arguido após o acidente, referindo o mesmo que não se recordava deste evento.
Tendo em conta a doença que lhe diagnosticou, a mesma é caracterizada pela perda de memória durante a crise epiléptica. No entanto, e em crise, os pacientes não assumem consciência do que fazem, sendo que o que conseguem fazer se faz de forma reflexiva e inconsciente, ou seja, se o arguido tivesse tido uma crise antes do embate seguiria em frente, inconsciente, despistando-se na curva seguinte.
Ainda que se admita que ao arguido tenha sido diagnosticado a enfermidade referida (o que se deu por assente), tendo em conta o depoimento do referido médico que, embora não sendo especialista na matéria manteve um depoimento coerente (sendo que os elementos de fls. 320 e 321 nada referem de conclusivo e insofismável para os fins que presidiram à sua junção), não acompanhamos, contudo, o que daí se pretende extrair em conformidade à contestação, que na parte atinente se tem por não provada.
Ora, no caso vertente, para além da extrema coincidência que seria a ocorrência de uma crise no exacto momento em que o acidente ocorreu (já que até ao embate, mas excluindo este, o arguido se recorda) esta, a ter sucedido, não permitiria que o arguido continuasse a conduzir normalmente até ao alegado recobro da consciência já numa via completamente distinta, quilómetros à frente, e a caminho de casa. Esse exercício de condução, com mudança de estrada num cruzamento, pressupõe uma actividade consciente incompatível com as características da enfermidade. Além disso, se o arguido de nada se recordasse e não tivesse, quanto ao facto e pelo menos na altura, consciência do sucedido, é elucidativo do contrário e da sua "má consciência" para o evento o facto de ter justificado os danos com um pretenso despiste que não se verificou, sem quaisquer sinais objectivos, indo trabalhar de forma rotineira quando o carro tinha sinais evidentes de mais do que um despiste. Tinha, de forma visível, vestígios biológicos da vítima.
Para mais, se o arguido de nada se recordasse seria próprio e natural que, em conversa com o seu colega de trabalho, a testemunha SS…, comentasse que tinha destruído o carro, que tinha uma despesa inesperada, nada tendo no entanto dito quanto ao sucedido.
Também é incompatível com a dita actuação inconsciente o facto de o arguido ter datado e assinado, com a data do próprio dia do acidente, uma declaração amigável onde posiciona o local onde a vítima se encontraria aquando do embate o facto de o arguido ter deixado o carro acidentado à porta de casa, visível para todos, tem uma importância relativa e não acompanhamos, nesta parte, as alegações da defesa quanto ao facto de tal circunstância constituir um sinal de que o arguido nada teria a esconder e não se sentiria culpabilizado. É que se trata de uma pequena localidade em que, face aos danos, seria fácil oferecer a justificação do simples despiste justificação que, aliás, terá sido dada aos militares da GNR que o procuraram no local. Não fora o facto de terem ficado vinhetas no local identificativas do veículo e descobertas ocasionalmente pela GNR e, provavelmente, o arguido nunca seria identificado.
Ainda seria admissível uma amnésia para o facto com reacção pós-traumática. Só que esta não implicaria que, aquando do acidente, o arguido de nada se recordasse ou que agisse de forma inconsciente. Implicaria, antes, uma reacção inconsciente de defesa perante o evento traumático, adensada no tempo e, mais uma vez, incompatível com a reacção imediata do arguido (indo trabalhar com aparente normalidade e construindo uma tese alternativa justificativa para os danos) e com a memória que apresenta, necessariamente selectiva ao recordar as partes do acidente que, de alguma forma, responsabilizariam a própria vítima.
A contestação aponta para o facto de o arguido ser um condutor prudente, o que não se objectiva face aos factos trazidos aos autos e a postura como condutor e cidadão que a actuação demonstra.
Refere-se, no relatório social, que o arguido se mostra bastante pesaroso e afectado com o sucedido. Não se considera o arguido, inserido social e profissionalmente, um "monstro" insensível. Decerto que estes factos e a ocorrência de uma morte o perturbam. No entanto, e para que tal fosse valorizado de forma processualmente atendível necessário se tornaria que essa perturbação, que essa contrição, se traduzisse, objectivamente, numa conduta contrária à adoptada, na qual mitigou a sua culpa, a transferiu, na medida do possível, para a própria vítima e se refugiou numa enfermidade cujos sintomas não dão arrimo a invocado actuação inconsciente não tomando, no processo e mesmo em julgamento, uma postura coincidente com o estado detectado e verbalizado às técnicas da DGRS que no caso lhe impunha, em audiência, a admissão dos factos.
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Recurso do arguido.
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De acordo com as conclusões formuladas, o recorrente, aceitando a matéria de facto provada, põe em causa as seguintes questões de direito: ­
I - Crime de omissão de auxílio - não sendo o bem jurídico protegido pelo preceito incriminador a “solidariedade social ou humana, mas sim fundamento legitimador do dever geral de auxílio, protegendo sim a vida, a integridade física e a liberdade”, deveria o recorrente ter sido absolvido da prática do aludido crime, uma vez que a vítima do acidente já se encontrava sem vida, o que torna impossível a prática do crime de omissão de auxílio, não tendo assim sido violado qualquer bem jurídico protegido por aquele preceito incriminador.
- Inexistência de concurso efectivo de crimes entre o crime de homicídio negligente e o crime de omissão de auxílio, devendo o arguido responder apenas por um crime, o de homicídio negligente; e
-Medida da pena - tendo sido aplicada uma pena de prisão inferior a 5 anos, deveria o tribunal ter optado pela suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
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Omissão de auxilio e concurso com o crime de homicídio negligente:
Quanto ao bem jurídico protegido com a incriminação do tipo legal de crime de omissão de auxílio, diremos o seguinte:
"Abandono de sinistrado" era a epígrafe do artº. 60° do Código da Estrada de 1954, em cujo nº 1 se previa e punia os condutores que abandonassem voluntariamente as pessoas vítimas dos acidentes de viação que tivessem causado, total ou parcialmente.
Protegia-se o direito natural ao socorro que assiste a qualquer pessoa vítima de acidente, não sendo alheio, também, o dever de solidariedade que, recaindo sobre todos em geral, pesa especialmente sobre quem deu causa à necessidade do socorro.
A noção de abandono de sinistrado não é dada directamente pela lei, mas, é facilmente apreensível, pois tem um sentido primacialmente naturalístico.
Com a revogação do Código da Estrada de 1954 e entrada em vigor do Código da Estrada de 1984, o crime de abandono de sinistrado foi descriminalizado e os factos integradores do citado art° 60°, passaram a ser punidos no âmbito do crime de omissão de auxílio, previsto no art° 219° Código Penal de 1982.
O dever de auxílio previsto no art° 200° do Cód. Penal tem como fundamento a solidariedade social devida àqueles que se encontram em perigo no que toca a bens jurídicos eminentemente pessoais, tais como a vida, a integridade física ou a liberdades.
Em face do critério tradicional esta norma incriminadora - correspondente ao art° 219º da versão originária do Código Penal de 1982 - é considerada como um crime de omissão própria ou pura, sendo que a grave necessidade a que o artigo se refere pressupõe a impossibilidade de a pessoa a socorrer, por si só, poder afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, isto é, a incapacidade de desenvolver a actividade de defesa adequada às circunstâncias, "carecendo em absoluto da intervenção alheia" Maria Leonor Assunção, Contributo para a Interpretação do Artigo 219" do Código Penal, Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iuridica 6, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1994, p. 67..
Igualmente, em comentário ao artigo 200°, diz Maia Gonçalves: corresponde, sem salientes alterações de fundo, ao artº 219º da versão originária do Código engloba o dever de solidariedade social e passou a ser protegido penalmente a partir do CP de 1982, o que constitui novidade no nosso ordenamento jurídico Código Penal Português, Anotado e Comentado, 8ª Edição, 1995, pág. 685, no mesmo sentido 16º edição, 2004, pág. 651 e 652.
Cavaleiro de Ferreira salientando como essencial o "evento jurídico" quer nos crimes por acção quer por omissão, elucida que só nos crimes materiais há lugar a um evento ou resultado material. E acrescenta ''haverá então crimes omissivos puros (só com evento jurídico) e crimes comissivos por omissão que se contrapõem aos crimes comissivos por acção Lições de Direito Penal, Parte Geral, voI. I, Verbo, Reimpressão 1997, pág. 96.
".
A classificação de crimes de omissão própria ou imprópria faz equivaler aos primeiros os crimes de omissão pura, ao invés dos crimes de omissão imprópria em que o agente não se limita a uma simples desobediência ao preceito, mas com a sua inactividade causa um resultado normalmente produzido através de uma conduta activa.
Em face e tal critério, o crime de omissão de auxílio é considerado como um crime de omissão própria ou pura, também designado de mera omissão ou omissão simples.
Assim que, perante o acervo factual - pontos 16, 18, 30, 34 - tinha necessariamente o arguido de ser condenado pela prática do crime de omissão de auxílio, p.p. pelo artº 200°, n° 2 do CP.
Na verdade, tratando-se de um crime de omissão própria ou pura, não existe um dever jurídico que obriga a evitar um qualquer resultado. Implica o dever de prestar auxílio necessário a afastar o perigo resultante duma concreta situação, o que não é a mesma coisa que necessário a afastar um certo resultado. Daí que o resultado lhe seja alheio.
Nada obsta, portanto, à existência de concurso efectivo entre os crimes de homicídio negligente e de omissão de auxílio.
São crimes que ocorrem em concurso real, dado tratar-se de normas jurídicas que tutelam bens jurídicos distintos, não havendo entre eles relação de especialidade ou consumpção, sendo o primeiro imputado a título negligente (art° 15° do CP) e o segundo apenas pode ser imputado a título doloso, por não estar expressamente prevista uma actuação negligente (art.os 13° e 14° do CP).
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Pena e suspensão da sua execução:
O recorrente não impugna a matéria de facto, aceitando a condenação como autor de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo art. ° 137º nºs 1 e 2 do Cód. Penal, conforme se extrai do teor das suas conclusões, enquanto definidoras do objecto do recurso, sendo porém entendido no Parecer do Ministério Público neste tribunal a qualificação do crime como homicídio com negligência simples.
Ora, o "tribunal de recurso não está impedido de oficiosamente conhecer de todos os erros que não impliquem “reformatio in pejus” mesmo os não especificados, visto que no processo penal rege o principio da verdade material e quando está em jogo a liberdade do cidadão cuja inocência é protegida constitucionalmente até ao trânsito em julgado da condenação, não há que impor entraves formais para evitar o erro judiciário.
Estabelece o artigo 137°, nº1 do Código Penal que "quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa"; acrescentando o nº 2 que "em caso de negligência grosseira/ o agente é punido com pena de prisão até 5 anos".
"A negligência grosseira implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também ao nível do tipo de ilícito, verificando-se naqueles casos em que o agente revela uma atitude particularmente censurável de leviandade e de descuido perante o comando jurídico­-penal.
A negligência grosseira referida no nº 2 do art. 137º do CP pretende abranger aqueles casos em que, de forma mais flagrante e notória, se omitem os cuidados mais elementares (básicos) que devem ser observados, ou aquelas situações em que o agente se comporta com elevado grau de imprudência, revelando grande irreflexão e insensatez.
Tais situações acontecem quando, no exercício da condução de veículos, o condutor pratica contra-­ordenações classificadas como graves ou muito graves pelo Código da Estrada.
Embora se desconheça a velocidade concreta a que o arguido circulava e não a possamos quantificar, temos que esta seria desadequada, por excessiva, uma vez que a aproximação aos peões e em travessia da faixa de rodagem aconselhavam que imprimisse um andamento mais moderado. Não o tendo feito, em violação das normas supra referidas, o arguido acabou por originar o acidente e/ desta forma/ a morte de um dos peões.
Do que se retira, na decisão, ora recorrida, a propósito da negligência grosseira “segundo a acusação, porém, a conduta do arguido integrará o conceito de negligência grosseira. Tendo em atenção o acima referido quanto aos contornos concretos deste conceito, mesmo sem que se demonstre que o arguido tenha perspectivado a possibilidade de acidente, a evidente demonstração de que o arguido seguia desatento e alheio às mais elementares regras de cuidado (com um amplo campo de visão mas sem abrandar, sem travar ou sem esboçar qualquer manobra ou reacção que permitisse evitar o embate ou minorar as suas consequências), entendemos por verificada a qualificação em causa”.
Dito o que, embora não se tendo apurado o quantum da velocidade a que seguia, ainda que o arguido circulasse a uma velocidade superior à permitida para o local, afigura-se-nos que existem elementos objectivos seguros que permitam concluir que o arguido agiu de forma particularmente censurável, portanto com negligência grosseira, integrando a sua conduta, assim e para além do mais, o crime de homicídio por negligência simples.
Como nota a senhora Procuradora-Adjunta, a propósito da pena aplicada aos crimes por que foi condenado, "a prisão efectiva terá efeitos muito gravosos, marcando irremediavelmente a vida futura do arguido, que é jovem, está familiar, social e profissionalmente inserido e não tem antecedentes criminais". Entende que deve afastar-se a suspensão da execução da pena não só por apelo ao entendimento que vem sendo sufragado pelos Tribunais superiores (nos casos de homicídio com negligência grosseira), como ainda devido "à extrema gravidade da conduta do arguido e o facto de não ter assumido a sua culpa", nos termos constantes da sentença.
Só que à data da prática dos factos, o arguido tinha 24 anos de idade (completou 25 anos em Agosto desse ano).
Não tem antecedentes criminais ou contra-ordenacionais registados, tem trabalho regular, com a categoria profissional de estucador de 2ª classe. Vive com os pais e os irmãos, sendo bem considerado na comunidade em que se insere.
Nos termos do art. 50° nº 1 do Código Penal, na redacção actualmente em vigor, "o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superiora cinco anos, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".
Para além de a pena aplicada não poder ser superior a cinco anos, torna-se ainda necessário que se possa concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, isto face à personalidade do arguido, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
Dito o que e, embora com (muito) ténues dúvidas, nos decidimos pela suspensão da pena cominada, com a esperada/desejada “chance” de aproveitamento pelo arguido, embora como propõe o Exa Procuradora Geral, devam ser impostas condições ao arguido.
Com efeito, entende-se que face às graves consequências do crime, se deve fazer sentir bem ao arguido o desvalor do acto que praticou impondo-lhe uma obrigação que se traduza num sacrifício que do mesmo passo que o faça melhorar a sua consciência cívica a jurídica, e manter a confiança da comunidade nas normas jurídicas e nas instituições que as aplicam.
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Recurso da Seguradora.
Argumenta a Seguradora que o pagamento a que foi condenada nestes autos equivale a uma duplicação, pois que, já os demandantes haviam sido pagos por todos os danos causados pelo acidente, em acordo que com eles celebrou em 28.12.2005, chamando em seu favor o instituto do enriquecimento sem causa, para se ver absolvida nesta instância.
Vejamos:
As prestações concedidas pela segurança social a título de pensões de sobrevivência visam compensar os familiares do beneficiário, neste caso a mulher e o filho menor da vítima, da perda de rendimentos determinada pela morte deste (arts 4º, 29º e 33ª da Lei nº32/2002, de 20/12.
As prestações realizadas pela segurança social têm a natureza de medidas de carácter social, constituindo um adiantamento, provisório, que serão reembolsadas no caso de existir um terceiro responsável pelo facto gerador do evento e da indemnização.
A sub-rogação legal do ISS-IP/CNP resulta, como se disse, do preceituado na lei nº 32/2002, de 20/12, e DL 58/89 de 22/02.
Decorre daqui que, havendo um culpado no acidente em causa, que transferiu a sua responsabilidade civil extracontratual para a recorrente seguradora é sobre estes que impende o obrigação de reembolso, o primeiro por via da culpa na eclosão do acidente e esta, por via do contrato de seguro através do qual transferiu a sua responsabilidade Conf. a propósito Ac. STJ in BMJ 496º/pág. 206 e desta Relação in Col, 2002, Tomo V, pág.9.
Porém esta obrigação dos responsáveis pelo pagamento apenas abrange o montante daquelas pensões que efectivamente tenham sido pagas até ao momento em que foi deduzido o respectivo pedido em tribunal, isto é em 19 de Maio de 2008, como se vê de fls 299, altura em que o CNP havia pago a título de Pensões de Sobrevivência, relativas ao período de 06 de 2005 a 05 de 2008, no montante total de 11.923,91 (onze mil novecentos e vinte e três euros e noventa e um cêntimos), sendo € 8.948,07 à viúva, e € 2.975,84 ao filho menor Fábio.
Será este o montante que a seguradora terá que reembolsar o CNP- ISSS.
Não negando directamente esta obrigação, contrapõe a seguradora que a condenação em causa implica a duplicação de pagamentos pelo mesmo dano, ou seja, a seguradora vê-se condenada a reembolsar ao ISS o montante pago a J... e ao filho, F..., a título de pensões de sobrevivência, embora já os tenha indemnizado pela perda de rendimento do trabalho do falecido em Dezembro de 2005, altura em que indemnizou os lesados deste acidente.
Na verdade, não são cumuláveis os valores da pensão de sobrevivência e o indemnizatório devido pela seguradora no quadro da responsabilidade civil por facto ilícito, por ela assumida por via do contrato de seguro, em razão da perda do rendimento do trabalho Ac. Rel do Porto, de 11.05.2004, cfr. www.dgsi.pt
.
Ora, a questão aportada pela Seguradora, é a de que J... e o filho, F..., herdeiros da infeliz vítima, beneficiaram de uma cumulação indevida que, por força da condenação em apreço, constitui um enriquecimento injusto em prejuízo da demandada.
À primeira vista, assim parece, mas se assim for sibi imputed, ou seja, a seguradora, não podia ignorar, que sendo o seu segurado acusado de homicídio e omissão de auxílio, os autos tinham necessariamente de correr em tribunal, sendo aqui o local próprio para a dedução de indemnização onde se fariam os acertos, como não podia ignorar que nestes casos, normalmente morosos, as vítimas recorrem á segurança social para obviarem à falta de rendimentos causados pela morte da vítima, e por isso devia ter-se informado junto da Segurança Social acerca a existência desta situação que em casos como o dos autos é quase uma certeza, e prever esta situação no acordo que fez com os segurados, não o fez vê-se agora obrigada ao reembolso das quantias pagas pelo ISSS que mais não é do que um “adiantamento” em lugar do devedor, podendo eventualmente discutir e reaver o que alegadamente pagou a mais com os beneficiários no âmbito do acordo de pagamento que com eles fez.
Nenhuma censura merece pois nesta parte a sentença impugnada.
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Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em:
- Conceder parcial provimento ao recurso do arguido, suspendendo-se-lhe a pena cominada pelo período de 2 anos e 6 meses, sob condição de, no prazo de um ano, entregar à Associação de Apoio às Vítimas de Crimes Violentos - APAV, fazendo prova no processo, a quantia de € 1.500 (mil e quinhentos euros - Negar provimento ao recurso da seguradora pedido.
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Custas (crime) pelo arguido (parcial provimento) com taxa de justiça de 3 Ucs.
Custas cíveis nesta instância pela ré seguradora.
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Coimbra, 26 de Maio de 2009

(Cacilda Sena)



(Alberto Mira)