Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
97/04.4IDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PRINCIPIO DA VINCULAÇÃO TEMÁTICA
LIQUIDAÇÃO DO IVA
PRESCRIÇÃO
IMPUGNAÇÃO (AMPLA) DA MATÉRIA DE FACTO
APROPRIAÇÃO
ADMINISTRADORES DE FACTO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 6.º, 7.º, 24.º, N.º1, 2 E 5, DO DECRETO-LEI N.º 20-A/90, NA REDACÇÃO QUE LHE FOI DADA PELO DECRETO-LEI N.º 394/93, DE 24 DE NOVEMBRO; ARTIGO 105.º, N.º1 E 5, DA LEI N.º 15/2001, DE 5 DE JUNHO, 26.º E 30.º, N.º2, DO CÓDIGO PENAL; 412.º, N.ºS 3 E 4 DO C.P.P.; 18.º, 27, N.º2 E 3 E 29.º DA C.R.P..
Sumário: I. – Com a dedução da acusação fica definido e fixado o objecto do processo, exigindo-se, a parir desse momento, uma necessária correlação entre a acusação e a decisão. Essa correlação traduz-se na exigência de que, definido o objecto do processo, o tribunal não possa, como regra, atender a factos que não foram objecto da acusação, estando, por conseguinte, limitada a sua actividade cognitiva e decisória, o que constitui a chamada vinculação temática do tribunal.
II. - Depois de fixado na acusação, o objecto do processo deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da sentença – é o chamado princípio da identidade.
III. - Ao juiz de julgamento, incumbe o papel de direcção da fase de julgamento balizado e limitado pelo conteúdo da acusação ou da pronúncia, pelo thema decidendum (objecto do processo) e pelo thema probandum (extensão da cognição).
IV. - No caso de abuso de confiança fiscal por não entrega do IVA, a verificação do crime não depende de qualquer liquidação pela administração tributária, pelo que o prazo de prescrição do procedimento criminal, é não o de 4 anos, previsto no n.º 3 do artigo 21.º do RGIT, mas antes o prazo previsto no n.º 1 da mesma norma, que sofre as interrupções e suspensões previstas na lei penal.
V. - O recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.Penal:
VI. - A «apropriação» é uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas, pelo que, assim entendida, como omissão de entrega dessas prestações a quem de direito, com sua utilização para outros fins. Não se trata apenas da não entrega das prestações tributárias, mas da sua utilização para outros fins, com consciência de que as mesmas eram pertença do Estado
VII. - O legislador, avisado como é e conhecedor de que nesta área as cifras negras são grandes [Cfr. Preambulo do Código Penal e Lopes Rocha, A responsabilidade das Pessoas Colectivas, CEJ 1085, pág. 110], no desenho do ilícito típico das condutas voluntárias dos titulares de órgãos de pessoas colectivas, desconsiderou a circunstância da sua regular ou irregular constituição, ou mera associação de facto, quer a circunstância de os agentes serem titulares de direito ou meramente de facto
VII. - Não é inconstitucional o artigo 105.º do RGIT, designadamente no sentido de que tal artigo acolhe, como elemento implícito, a exigência de apropriação.
Decisão Texto Integral: 61

I – RELATÓRIO
1. Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular registados sob o n.º97/04.4IDCBR, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Condeixa-a-Nova, os arguidos L..., A... e “X... – Comércio de Veículos, S.A.”, todos melhor identificados nos autos, foram acusados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. pelos artigos 6.º, 7.º, 24.º, n.º1, 2 e 5, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, actualmente enquadrado no artigo 105.º, n.º1 e 5, da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, 26.º e 30.º, n.º2, do Código Penal.
Realizada a audiência e julgamento, decidiu-se:
- condenar o arguido L..., pela prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º1 e 5, do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 30.º, n.º1 e 2 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
- condenar o arguido A..., pela prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º1 e 5, do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 30.º, n.º1 e 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
- condenar a arguida “X... – Comércio de Veículos, S.A.”, pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º1 e 5, do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 30.º, n.º1 e 2 do Código Penal, na pena de 500 (quinhentos) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a multa de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros);
- suspender pelo período de 1 ano e 6 meses a execução da pena de prisão imposta ao arguido L..., na condição de o mesmo pagar a prestação devida ao fisco e respectivos acréscimos legais no mesmo prazo;
- suspender pelo período de 2 anos a execução da pena de prisão imposta ao arguido A..., na condição de o mesmo no prazo de dois anos pagar a prestação devida ao fisco e respectivos acréscimos legais.
2. Inconformados, recorreram os arguidos L... e A..., formulando, nas respectivas motivações, as seguintes conclusões (transcrição):
2.1. Recurso de L...:
Face ao exposto, não pode o Recorrente ser condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, devendo ser absolvido. Ponderada toda a prova verifica-se que o Recorrente não pode considerar-se agente daquele crime, tendo existido erro na apreciação da matéria de facto e de direito. Assim:
A) Inexistem no presente processo elementos de facto que possibilitem a condenação do Recorrente. Além disso, a prova gravada em audiência de julgamento suporta uma conclusão diferente daquela atingida pelo tribunal a quo.
B) A decisão recorrida considera que a apropriação é um elemento implícito do crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105.° do RGIT. Interpretação reiterada pelo recente acórdão do STJ, de 9 de Abril de 2008, bem como pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Fevereiro de 2007 (relator - Trigo Mesquita) e pelo Tribunal Constitucional, no acórdão 54/2004. Em momento algum resulta que o Recorrente se apropriou de quantias relativas a IV A.
C) Quanto ao Recorrente nunca se demonstrou qualquer intenção de apropriação daquelas quantias. Tal não se verifica nem na acusação proferida pelo Ministério Público, nem na sentença recorrida. O que se provou foi precisamente a existência de um crédito do Recorrente sobre a pessoa colectiva sociedade arguida, de montante superior em dobro ao montante alegadamente apropriado.
D) Não se poderá, pois, afirmar a existência de dolo-do-tipo relativamente a este elemento. Não se alegando, imputando e comprovando estes elementos objectivos e subjectivos do ilícito-típico, a decisão recorrida, ao condenar o ora Recorrente, viola o princípio da legalidade, plasmado no artigo 1.° do Código Penal (CP) e no artigo 2.° do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) em conjugação com o disposto no artigo 105.° deste mesmo diploma.
E) Naquelas peças apenas se refere que, desde início de 2001, decidiram os arguidos pessoas singulares deixar de entregar nos cofres do Estado o IVA, que pretendiam assim integrar e passar a usar tal dinheiro no normal giro económico da sociedade arguida.
F) Num outro prisma, a acusação refere sempre a actuação do ora Recorrente enquanto administrador da sociedade arguida. Assim, apenas a pessoa colectiva poderia ser responsabilizada criminalmente.
G) Em situações como a do caso concreto, o abuso de confiança fiscal é um só: o da pessoa colectiva. O elemento da apropriação, dadas as suas características pessoalíssimas, não pode ser dividido e separado pelos vários intervenientes. Seguindo a tese da acusação e da sentença, então, na medida em que estes actuaram como administradores, de facto e de direito, eles estão actuar enquanto personificando verdadeiramente a própria pessoa colectiva. Caso contrário viola-se o princípio que proíbe a dupla valoração do mesmo facto. É um dos vícios de que padece a sentença recorrida.
H) Era o co-arguido quem contactava os clientes, celebrava os concretos negócios de venda dos veículos automóveis, contactava os fornecedores dos mesmos e procedia à sua compra, designadamente no estrangeiro, e recebia e efectuava pagamentos, respectivamente a clientes e fornecedores;
I) Não é verdadeiro que a pessoa colectiva em causa facturava muito bem, designadamente no que respeita ao recebimento de clientes. Assim como não corresponde à verdade que o Recorrente tenha decidido, acordado ou concordado em não pagar o IVA que ao Estado pertencia. O que resulta claro é que os negócios celebrados pelo co-arguido, à revelia do Recorrente, deixaram a sociedade em situação insustentável.
J) O que é amplamente comprovado atentas as declarações do Recorrente e da testemunha F...: - parte significativa das vendas não era cobrada aos clientes mas reflectida em facturas e os bens entregues; - os clientes eram conhecidos do co-arguido; -uns não pagavam, outros desapareciam, outros não apareciam mais ... o meu controle era nulo, ou quase nulo; - o Recorrente injectou avultado capital próprio no património da empresa nunca tendo sido ressarcido; o Recorrente sempre manifestou preocupação em regularizar a situação fiscal, tendo inclusive negociado pagamentos com o Serviço de Finanças; - a actuação do co-arguido no seio da pessoa colectiva criou uma situação insustentável, pelo que não havia dinheiro e, muitas vezes, nem sequer existia recebimento do IVA liquidado em facturas, o que não permite a afirmação de apropriação por parte do Recorrente.
K) No facto 38, em prejuízo da tese da apropriação, que no facto 38 o Tribunal a quo considera provado que o Recorrente emprestou à sociedade arguida cerca de € 625.329,31. A sociedade Auto Turbo A…, Lda., com sede em Angola, empresa a quem a sociedade arguida vendeu veículos automóveis, tinha um débito para com a mesma no valor de € 325.000,00. O co-arguido tinha interesses directos, comerciais e financeiros nesta sociedade.
L) Esta foi uma das situações que impediu o pagamento dos impostos devidos a título de IVA. Daqui se inferindo que, por parte do Recorrente, pura e simplesmente, não existia qualquer domínio sobre os factos, sobre a decisão de pagar ou não pagar os impostos.
M) Não poderá, pois, o Recorrente ser condenado pela prática do crime imputado. Não se verifica qualquer apropriação nem os elementos subjectivos do crime de abuso de confiança fiscal. Violou, pois, a sentença recorrida, o princípio da legalidade e o disposto no artigo 105.° do RGIT.
N) Comparando a factualidade subjacente à acusação proferida pelo Ministério Público e a da sentença recorrida, infere-se que esta viola o princípio da vinculação temática, enquadrado no princípio da acusação. A acusação do Ministério Público não foca muitos dos aspectos que foram posteriormente considerados pelo tribunal a quo, nomeadamente nos factos dados como provados, pelo que este extravasou claramente o domínio cognitivo até onde poderia - no âmbito do princípio da investigação - legitimamente ir. Assim, é a própria estrutura acusatória do processo penal português, integrada pelo princípio da investigação, que é posta em crise. Desta forma, a interpretação do tribunal a quo, que extravasa o objecto do processo fixado pela acusação, viola o disposto no n.º 5 do artigo 32.° da CRP,
O) Não resulta de qualquer peça processual a intenção que revele que o Recorrente quis integrar no seu património, ou no da sociedade os montantes relativos ao IVA.
P) A apropriação não pode nunca ser equiparada à não entrega. São dois elementos distintos. A decisão recorrida acolhe este entendimento: "Não o entregando nos cofres do Estado os arguidos apropriaram-se do mesmo, tal como, aliás, resulta dos factos provados" (tis. 45 da sentença). Esta é uma presunção proibida em Direito Penal pelo princípio da legalidade.
Q) O Recorrente deve ser responsabilizado tributariamente, Porém, não se apropriou, nem o fez em benefício da pessoa colectiva, de qualquer quantia relativa a impostos, Na grande maioria das situações, o IVA que aparece em facturas não foi sequer pago. Nem o preço dos bens.
R) A decisão recorrida deve ainda ser anulada na medida em que nada refere quanto à culpa do agente. Tal elemento do conceito material de crime apenas aparece referido quanto à figura do crime continuado, o que viola o disposto nos artigos 1.°, 14.° do CP e 105.° do RGIT. Não há crime sem culpa. Assim, não estando esta referida, não praticou o Recorrente qualquer crime de abuso de confiança fiscal.
S) O artigo 105.° do RGIT é inconstitucional se interpretado, como sucedeu no presente processo, no sentido de que acolhe um elemento implícito: a apropriação. Assim, não pode o Recorrente ser condenado com base em norma inconstitucional, pelo que deve ser absolvido. O Recorrente pretende que o Tribunal da Relação, o tribunal ad quem se pronuncie sobre a constitucionalidade do artigo 105.° do RGIT, se interpretado no sentido segundo o qual o tipo objectivo acolhe a apropriação como elemento implícito. Sendo que o tribunal a quo perfilhou uma interpretação segundo a qual a apropriação é um elemento implícito presente no tipo objectivo do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105.° do RGIT.
T) Segundo o Recorrente, esta interpretação viola a Constituição, nomeadamente o princípio da legalidade criminal. Um dos vários corolários do princípio da legalidade criminal impõe que a lei penal seja estrita e certa. O que não se verifica se se perfilhar tal interpretação, interpretação contrária à CRP, maxime ao disposto nos artigos 18.°, 27.°, n.º2 e 3 e 29.°.
U) O artigo 105.° do RGIT é inconstitucional se interpretado, como sucedeu no presente processo, no sentido de acolher como elemento implícito não só a apropriação em benefício do agente que imediatamente se apropria da coisa, mas também a apropriação traduzida em benefício de terceiro, no caso concreto, em benefício de pessoa colectiva. Assim, não pode o Recorrente ser condenado com base em norma inconstitucional, pelo que deve ser absolvido. Entende o Recorrente ser inconstitucional, porque violadora do princípio da legalidade e da determinabilidade do tipo, logo, dos artigos 18.°, 27.°, n.º 2 e 3 e 29,° da CRP, interpretação segundo a qual a apropriação pressuposta no artigo 105.° do RGIT é, não só a apropriação em benefício do próprio agente, mas também em favor de terceiro, in casu, de pessoa colectiva.
V) A prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente a que respeita ao ora Recorrente, é nula, na medida em que "meras" declarações de arguido foram configuradas em confissão integral e sem reservas. O tribunal a quo considerou ter existido no presente processo, por parte do ora Recorrente, uma confissão integral e sem reservas.
W) Nunca, em momento algum, foi cumprido o formalismo previsto no artigo 344.° do CPP, ou seja, nunca em momento algum, como resulta da transcrição da prova gravada, referiu o Recorrente querer confessar os factos de que vinha acusado, nunca lhe foi perguntado se o faria de livre vontade e sem qualquer coacção. Muito pelo contrário, o esforço do Recorrente foi precisamente o de transmitir a sua visão e o seu enquadramento correcto.
X) O que o Recorrente fez foi prestar declarações nos termos do disposto no artigo 343.° do CPP: "declarações do arguido". A interpretação levada a cabo pela sentença recorrida viola, pois, o determinado no artigo 344.°: o legislador processual penal reservou um apertado regime jurídico no que à confissão dos factos respeita, pelo que, consagrou a nulidade da prova como consequência para procedimentos que não seguiram os termos expressamente previstos para este meio de prova: "o presidente, sob pena de nulidade ... ". Esta proibição de prova pode ser invocada em qualquer momento, até ao trânsito em julgado da sentença, e implica que toda a prova produzida é nula, assim como é nula toda a prova que dela dependeu.
Y) Ou seja, todos os factos dados como provados em que foram consideradas as declarações do arguido, devem ter-se como factos não provados. Sendo esta prova nula, deve ser absolvido o Recorrente.
Z) Quanto ao período de suspensão da execução da pena de prisão, contrariamente ao que foi considerado na sentença recorrida, neste caso concreto, é mais favorável para o Recorrente, dado que se trata de uma obrigação de pagamento, que o mesmo se fixe em 5 anos em vez dos corrigidos 1 ano e 6 meses. O Recorrente não concorda, pois, com a interpretação efectuada por este tribunal que considerou que a redacção actual do CP é mais favorável ao arguido, pelo que é de excluir a aplicação do regime especial consagrado no RGIT, em especial no artigo 14.°, que acolhe a possibilidade de a pena de prisão ser suspensa por um período até 5 anos.
AA) É O próprio Recorrente que entende ser mais favorável, em concreto, o regime previsto no artigo 14.º do RGIT. Porque está em causa o pagamento de uma quantia em dinheiro é muito mais favorável para o Recorrente um prazo maior, para que possa evitar o cumprimento efectivo da pena suspensa, do que um prazo menor.
BB) Deveria ter sido aplicado o regime especial previsto no RGIT, que derroga o regime geral, mantendo-se a suspensão condicionada ao pagamento no prazo de 5 anos. Deve, pois, neste aspecto a sentença ser igualmente corrigida.
Termos em que, deve a sentença recorrida, por violação das normas referidas, ser revogada ou, subsidiariamente, se assim não se entender, corrigida no que ao prazo de suspensão da pena de prisão respeita, como descrito, fazendo-se, assim, JUSTIÇA.
2.2. Recurso de A...:
1 - O procedimento criminal nunca deveria ter tido início contra o recorrente uma vez que as quantias não entregues ao Estado pela X..., SA., respeitantes ao IVA de 2001 e 2002 (facto provado 15), já não lhe podiam ser exigidas pelo fisco uma vez, que nos termos do art. 45.°, 1 e 4 da Lei Geral Tributária, o direito a liquidar os impostos caducara em relação a ele por terem decorrido mais de 4 anos sem que tivesse sido notificado da mesma.
2 - A primeira e única vez que o arguido foi notificado para proceder ao pagamento do imposto foi em 04.05.2007 (facto provado 19), conforme documento de fls. 1.024, não fazendo qualquer sentido que o arguido responda criminalmente pela não entrega de valores que hoje constituem, na pior das hipóteses, uma mera obrigação natural.
3 - A notificação supra referida foi feita ao abrigo do art. 105.°, n.º 4 do RGIT mas a mesma deve ser considerada inválida uma vez que não especifica as quantias devidas, o que significa que não se verifica uma condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal o que desde já se invoca para todos os efeitos legais.
4 - Feito o julgamento, foram indevidamente considerados como provados os seguintes pontos da matéria de facto na parte em que dizem respeito ao recorrente:
11) 9) Desde a data referida em 7) que o arguido A... vem exercendo a administração de facto da supra referida sociedade juntamente com o arguido L…;
12) 10) Sendo o mesmo quem, em nome da sociedade, e designadamente, contactava os clientes, celebrava os concretos negócios de venda dos veículos automóveis, contactava os fornecedores dos mesmos e procedia à sua compra, designadamente na Bélgica, e recebia e efectuava pagamentos, respectivamente a clientes e fornecedores;
12) Ora, a partir do início de 2001 ambos os arguidos decidiram deixar de entregar nos cofres do Estado as quantias referentes ao IV A que em cada trimestre fosse apurado pela sociedade arguida enquanto diferença entre o IV A suportado ou liquidado nas compras de veículos e o IV A liquidado aos seus clientes aquando das vendas dos mesmos.
13) Mais deixaram os arguidos de entregar ao Estado as declarações periódicas referentes a tal imposto;
14) Pretendiam assim os arguidos integrar e passar a usar as quantias correspondentes a tal diferença no normal giro da sociedade arguida, o que conseguiram;
16) Dado que nenhuma consequência adveio da não declaração periódica das quantias referentes ao IVA nem da sua falta de entrega nos cofres do Estado os arguidos aproveitaram tal situação para prosseguir na sua conduta;
17) Os arguidos tinham a obrigação de remeter à administração fiscal as declarações periódicas de IVA, bem como as quantias referentes a tal imposto, até ao 10° dia do 2° mês seguinte ao termo de cada trimestre; (isto é mais uma questão de direito)
23) Ambos os arguidos sabiam que os supra referidos valores relativos ao IVA lhes não pertenciam, nem tão pouco à sociedade sua representada, e que os mesmos eram pertença do Estado, bem como que deviam entregar cada um dos supra referidos montantes nos prazos acima assinalados;
24) Os arguidos lograram apropriar-se da quantia global de 371.934,91 euros, da qual passaram a dispor em benefício da sociedade arguida, integrando tal quantia no giro comercial da mesma;
25) Os arguidos ao actuarem em nome, no interesse e em representação da sociedade arguida, agiram, em comunhão de esforços e intentos, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
67) Que o arguido A... não fosse administrador de facto da sociedade arguida (não provado).
5 - A sentença em grande medida fundamenta a suposta condição de administrador de facto do arguido A... com base nas declarações hiper-valorizadas do arguido L....
6 - O tribunal recorrido limitou-se a utilizar expressões vagas e juízos conclusivos relativamente à valoração dos depoimentos contraditórios dos arguidos: "de forma não credível. C ... ) de forma segura e sincera", sendo certo que não forneceu dados concretos nem argumentos que permitissem validar a pertinência desses juízos tautológicos.
7 - A sentença que se limita a utilizar essas fórmulas tabelares como "fundamentação jurídica" viola o disposto no n.º 1 do art. 77.° do C. Penal e no n.º 2 do art.º 374.° do CPP e padece da nulidade prevista no art. 379°, al. a), deste último Código.
8 - As declarações prestadas por um co-arguido (que tem o direito a mentir e não presta qualquer juramento) na medida em que incriminem o outro arguido e simultaneamente beneficiem aquele que as profere (como foi o caso), devem ser relativizadas e olhadas com cepticismo enquanto meio de prova.
9 - Não ficou provado em audiência que o recorrente alguma vez tenha praticado actos próprios de um administrador, nomeadamente: relatar a gestão e apresentar contas, prestar informações aos sócios/accionistas, tomar decisões estratégicas do interesse da sociedade, participar nas reuniões da direcção, celebrar contratos de trabalho, contratar a prestação de serviços de consultores e contabilistas, assinar cheques, contratos, procurações, escrituras, letras, livranças, transferências bancárias, relacionar-se com a banca, pagar os impostos da sociedade, ou negociar com o fisco.
10 - Basta para constatar isso conferir a já referida certidão do registo comercial (fls. 1.502 e ss.) de onde resulta que apenas o Dr. L..., enquanto administrador único, podia vincular a Xis tractor, SA (certidão que configura um documento autêntico não tendo sido invocada, e muito menos provada, a inexactidão ou a falsidade do seu conteúdo, pelo que faz prova plena dos factos nela relatados - arte 169.° do CPP).
11 - Se encontram juntas aos autos duas declarações bancárias (Doc. 2 junto com a contestação do recorrente e documento junto aos autos em audiência pelo recorrente na sessão do dia 20-02-2008 - conforme consta da respectiva acta de fls. 1.261), que atestam que o Arguido A... nunca movimentou, ou podia movimentar, as contas bancárias da X..., SA.
12 - Feito o julgamento apenas ficou provado que o recorrente era um competente vendedor de camiões, que os conduzia e que tratava da manutenção dos mesmos (cfr. ponto 48 da matéria de facto e várias passagens da motivação da sentença), tendo apenas assinado algumas facturas tal como as funcionárias administrativas da sociedade.
13 - O arguido L... prestou as seguintes declarações na sessão de 29-02-2008 (depoimento gravado em duas fitas magnéticas registadas no livro 1 com o n.º 674, desde o n. º 1.282 ao n. º 1. 723 do lado B, das 3. ª cassetes e desde o n. º 7 ao n. º 1.584 do lado A, das 4.ª cassetes).
"Assim que nos foi possível pagar, nós iniciámos pagamentos, houve, inclusivamente, acordos com o chefe de finanças, no sentido de pagamentos mensais periódicos, como disse aqui a Sra. funcionária. Esse acordo foi feito por mim e também o facto de a última acta efectuada em Outubro, revelar, exactamente, a minha preocupação com os pagamentos dos impostos. Quero salientar aqui, mais uma situação: a empresa não foi, propriamente uma situação de deixar andar, não foi uma situação de não querer pagar impostos, não foi nada disso. Não foi, nunca tive essa intenção da minha parte, pessoalmente. A única coisa que havia, digamos assim, que eu sempre tive o cuidado de que o activo da empresa superasse largamente, quer a dívida fiscal, quer os dinheiros que eu próprio ia metendo, na empresa".
14 - Destas declarações resulta que era ele quem tratava exclusivamente do pagamento (e não pagamento) dos impostos, tendo celebrado acordos com o fisco nos quais o recorrente não tinha qualquer intervenção ou voto na matéria.
15 - Tal era a consciência do Dr. L… de que os impostos eram da sua exclusiva responsabilidade que terá chegado ao ponto de pagar parte deles com dinheiro das suas contas pessoais.
16 - Aliás, é o próprio tribunal recorrido o primeiro a reconhecer que a responsabilidade pelos impostos da X... ficara a cargo do arguido L…: "L... referiu ainda que, por outro lado, era ele quem tratava da matéria mais burocrática da organização da sociedade, designadamente no que toca à gestão financeira, incluindo o pagamento de impostos, atenta, designadamente, a sua formação de base (ponto 52) dos factos provados), bem como a experiência de gestão adquirida na empresa referida no ponto 49) dos factos provados, sendo certo que tal repartição de funções foi confirmada pela testemunha F..., a qual, tal como foi referido nos factos provados, teve funções de auditor da contabilidade da empresa durante quase quatro anos (ponto 44 dos factos provados'').
17 - Na sentença recorrida é referido que a condição de administrador do arguido A... resulta das "declaracões de C..., o qual referiu que o arguido A... discutiu várias vezes consigo assuntos relacionados com a gestão da sociedade arguida. (…)"
18 - Esta afirmação não corresponde minimamente à realidade, conforme resulta da leitura da acta da audiência de discussão e julgamento do dia 24-01-2008, onde a fls. 1.153 é referido, relativamente à testemunha C..., que: "questionada a testemunha nos termos do arte 348.º, n.º 3 do C.P Penal, disse não conhecer o(s) arguido(s) A…, mas conhece o arguido L..., ( ... )".
Juiz: Deixe-me só perguntar-lhe uma coisa: alguma vez o Sr. A…, já disse que lhe ligou uma vez, que conversa é que ele queria ter consigo?
APC: Não faço ideia nenhuma.
J: Não sabe? Diga-me só uma coisa: alguma vez este Sr. o abordou no sentido de, quer na assembleias-gerais, quer noutro sítio qualquer, no sentido de lhe perguntar - olhe que a nossa empresa não anda bem, olhe que isto está mal.
APC: Não, não.
(…)
Dr. LA: Referiu que esclarecimentos, só na empresa, numa reunião e tal, o Sr. A... comparecia nessa reuniões?
APC: Nunca vi o Sr. A... em lado nenhum, nunca o conheci. Mas também o que é que acontece?
Dr. LA: Então só fazia reunião com o Sr. L…?
APC: Sim, o problema que se põe este, vamos fazer aqui uma ... , à portuguesa. As assembleias-gerais, muitas vezes, não se chegam a fazer.
(depoimento gravado em duas fitas magnéticas registadas no livro 1 com o n.º 650, desde o n.º 7 ao n.º 1.250 do lado A, das 3.ª cassetes, na sessão do dia 24-01-2008).
19 - Relativamente à testemunha F..., contabilista da X..., o depoimento da mesma se encontra fortemente condicionado pelo facto de ser amigo do arguido L... (cfr. acta da audiência do dia 08-02-2008 a fls. 1.159), tendo sido pela mão deste que começou a tratar da contabilidade da sociedade.
20 - A testemunha D..., funcionária administrativa da empresa sem qualquer afinidade especial com qualquer dos arguidos, foi ouvida na sessão de 29-02-2008 (depoimento gravado em duas fitas magnéticas registadas no livro 1 com o n.º 674, desde o n.º 735 ao n.º 1.718 do lado A, e desde o n.º 7 ao n.º 1.224 do lado B, das 1.ª cassetes).
Juiz: Olhe e o Dr. L..., o que é que ele era lá naquela empresa, daquilo que a Sra. se pôde aperceber?
DC: Era o dono da empresa, penso que era o gestor, penso não, tenho a certeza.
J: Como é que sabe disso?
DC: Se a gestão era feita pelo Dr. L... ...
J: O que é que entende por gestão?
DC: Era ele que passava os ...
J: Cheques.
DC: Exactamente.
J: E mais?
DC: Os negócios também eram assinados por ele?
J: Quais negócios?
DC: Como representante da X.... As vendas e as compras.
J: Mas ele assinava o quê? Que documentos é que ele assinava?
( ... )
DC: Sim, o contrato que ele fez, por exemplo, foi, como representante da X..., foi o Dr. L... ...
J: Ai, o seu contrato de trabalho?
DC: De trabalho, foi o Dr. L... que assinou comigo.
( ... )
Dr. LA: Presumo que a questão não se tenha colocado, pelo pouco tempo que lá esteve. Mas imagine que a Sra. queria um aumento de ordenado, pedia o aumento ao Sr. A... ou ao Sr. L...?
DC: Falaria com o Dr. L....
Dr. LA: Mais. Quando disse ... , não, vou reformular outra vez, porque senão ... incorro no vício. Numa situação em que estivesse, simultaneamente, no escritório o Sr, A... e o Sr. L..., quem é que lhe dava instruções a si?
DC: O Dr. L....
Dr. LA: Porque é assim, quando a Sra. refere que o Sr. A... lhe dava instruções de - olhe, faça essa factura ou quando vier cá fulano faça não sei quê ou faça aquele depósito - aquelas instruções seriam ... , tem a sensação que iriam contra ... , seriam instruções presumivelmente dadas pelo Dr. L...?
DC: Não, de todo.
Dr. LA: Portanto, a única diferença é a questão do Sr. A... fisicamente ser uma figura mais presente?
DC: Exactamente.
Dr. LA: Falou aqui muito sobre a questão do Dr. L... assinar. É assim, nós queremos saber se o Dr. L..., quando ia à X..., aquilo era uma sessão de autógrafos em que - dêem-me os papéis que há para assinar - ou se pelos telefonemas, pelo contacto ele estava, realmente, sabia o que estava assinado, estava a par dos assuntos ou, realmente, estava ali, tipo tenho cinco minutos e vou-me embora, tenho que ir jantar não sei quê e não percebia nada, era só um formalismo ali, quase que podia ser substituído por um carimbo com a assinatura dele.
DC: Não. O Dr. L... inteirava-se das situações, por isso, é que eu estava, por vezes, à espera dele mais tarde, para saber mais ou menos os negócios que tinham sido feitos durante o dia. O Sr. David inteirava-o da situação e ele ficaria ... , porque o Dr. L... decidiria onde ... os pagamentos aos fornecedores, em que datas e isso tudo, portanto, ele tinha conhecimento.
21 - A testemunha apenas admitiu que o recorrente era um funcionário superior a ela, pelo que na ausência do Dr. L... era natural que recebesse instruções daquele (sendo certo que as mesmas nunca contrariavam as ordens dadas pelo Dr. L... enquanto administrador). Disse ainda que o Dr. L... era a única pessoa que passava cheques, que estava informado de todos os negócios e que foi com ele que celebrou o seu contrato de trabalho.
22 - Vejamos agora o depoimento prestado pela testemunha S..., também funcionária administrativa da empresa e sem qualquer afinidade especial com qualquer dos arguidos, foi ouvida na sessão de 29-02-2008 (depoimento gravado em duas fitas magnéticas registadas no livro 1 com o n.º 674, desde o n.º 1.224 ao n.º 1.719 do lado B, das 1.ª cassetes e desde o n.º 7 ao n.º 1.020 do lado B, das 2as cassetes).
J: A Sra. quando foi contratada, quem é que a contratou?
SM: Quando eu fui para lá, foi o Dr. L....
J: Foi? A Sra. nunca falou com o Sr. A... sobre a sua entrada para a X...?
SM: Eu penso que não. Eu lembro-me, quando fui para lá, foi com o Dr. L... que eu falei. O Sr. A... nem estava presente na altura.
( ... )
J: Falou com o Sr. Dr. L... e foi ele que lhe disse - quanto é que a Sra. quer ganhar? Quanto é que a Sra. não quer ganhar?
SM: Sim, essas coisas foram faladas com o Dr. L....
( ... )
J: Alguma vez a Sra. viu os compradores passarem cheques para contas pessoais quer do Sr. L..., quer do Sr. A…?
SM: Eles, os clientes quando passavam cheques, passavam essencialmente à X..., havia situações esporádicas em que passavam cheques em nome de ninguém que depois eram ... , penso, alguns foram depositados numa conta em nome do Dr. L....
J: Sim? E do Sr. A…, não?
SM: Que eu tivesse visto, não.
( ... )
Dr. CA: Alguma vez passou algum cheque à ordem do Sr. A...?
SM: Passei-lhe logo uns cheques, no início. No início, quando eu fui para lá, ele recebia vencimento.
( ... )
Dr. LA: Há bocado, a Sra. S… referiu que o Sr. A... era normal ter uma certa autonomia ou dar uma série de ordens relativamente a situações de gestão dos camiões, mandar reparar, mandar lavar, mandar não sei quê, eu pergunto: quem é que percebia mais de camiões entre o Sr. L... e o Sr. A...?
SM: Penso que era o Sr. A....
Dr. LA: Portanto, é ou não é natural que as situações que dissessem respeito a questões técnicas fossem delegadas no Sr. A...?
SM: Eu penso que sim, que era normal.
Dr. LA: Agora, última que interessa, mais do que saber quem é que mandava aparafusar o quê, era, em termos do funcionamento em si da firma, do seu relacionamento com outras empresas, o seu relacionamento com a banca, o seu relacionamento com as finanças, nós queremos saber, eu sei que, para si, é uma pergunta complexa, eu vou começar da mesma foram: numa situação em que estivessem presentes, quer o Sr. A..., quer o Sr. L..., quem é que seria normal que lhe desse ordens a si para tomar uma determinada atitude, para depositar ou não os cheques, estando os dois presentes, eu já sei que é um que está, que tinha mais disponibilidade para estar consigo, agora, estando os dois presentes, certamente, isso aconteceu, estando os dois presentes quem é que lhe dava instruções a si?
SM: Em termos de depósitos de cheques era o Dr. L..., até porque ele é que controlava as contas e depois via qual era a conta que precisava ou não daquele depósito, daquele valor.
( ... )
Dr. LA: Chegou a acontecer alguma vez que ... , ser necessário tomar alguma decisão, pronto, estava no escritório, é preciso fazer-se qualquer coisa ou um telefonema de um fornecedor ou de um cliente ou do banco ou seja do que for, ligava-se ao Dr. L... para dizer - olhe, é preciso esse ... , mesmo que estivesse o Sr. A...?
SM: Sim, há certas coisas que eu ligava ao Dr. L..., mais do que mexiam com dinheiros ou com valores mais, mais .... em termos financeiros, eu ligava ao Dr. L.... Por vezes, às vezes eu falava com o Sr. David e ele dizia-me - Ah. ligue ao Dr. L... e resolve com ele ou ... - essas questões eram mais tratadas com o Dr. L....
23 - Esta testemunha referiu, em síntese, o seguinte: que quem mexia nos dinheiros da sociedade era o L..., que fora este quem a contratara, sendo certo que havia depósitos de clientes nas contas pessoais do Dr. L..., que o recorrente recebia um vencimento e as ordens que este dava à testemunha não estavam relacionadas com dinheiros (mas com a manutenção e venda dos camiões).
24 - Não pode deixar de ser considerado como particularmente relevante o depoimento de antigas trabalhadoras da sociedade que certamente não poderiam ignorar quem era o "patrão".
25 - O..., prestou depoimento na sessão de dia 29-02-2008 (depoimento gravado em duas fitas magnéticas registadas no livro 1 com o n.º 674, desde o n.º 1.020 ao n.º 1.718 do lado B, das 2.ª cassetes e desde o n.º 7 ao n.º 429 do lado A, das 3as cassetes).
Dr. La: Havia ... , eram aquelas feiras internacionais de leilões e de não sei quê, que reuniam vários do sector.
AF: Exactamente.
Dr. La: E você assistia, pronto, ao Sr. A..., já na X..., não me interessa o que está para trás, estamos aqui a discutir o papel do Sr. A... na X.... O Sr. assistiu ele, o Sr. A... licitar por camiões, negociar camiões no estrangeiro?
AF: Sim, ele comprava camiões lá.
Dr. La: E ele fazia isso com autonomia absoluta ou você se apercebia que ele precisava, para determinadas situações, ...
AF: Ele, quando estava a comprar camiões, ele dizia-me que ia telefonar para o Dr. L..., para ver se ele dava autorização para comprar ou não. Pedia mesmo.
( ... )
Dr. La: Olhe, alguma vez tentou contratar o Sr. A...?
AF: Teve uma altura que eu disse – D…, queres ir trabalhar para mim? - Porque eu considerava-o um bom vendedor e bom comprador e eu disse-lhe - queres ir trabalhar ...? - Não, pá, não vou porque eu tenho um bom vencimento - e, tenho impressão que ele me disse que tinha dez % de lucro nas vendas, nos lucros. Diz que não, não sei.
26 - Este depoimento revela que o recorrente não possuía total autonomia para celebrar negócios (compra de camiões) sendo certo que a última palavra cabia sempre ao Dr. L....
27 - Revelou ainda a testemunha que ofereceu emprego de vendedor ao arguido A... mas que este recusou por causa do bom ordenado que já auferia no exercício dessas mesmas funções.
28 - Tudo o que supra se referiu demonstra que o recorrente nunca exerceu funções de administração, sendo antes um excelente e dificilmente substituível vendedor de camiões (vital para a sociedade dado o objecto da mesma) que na ausência do Dr. L... (e com a autorização deste) assumia o papel de encarregado junto dos restantes funcionários (nomeadamente as administrativas).
29 - Termos em que o Tribunal a quo incorreu num erro de valoração da prova ao considerar o arguido A... administrador da sociedade, erro esse que prejudicou toda a matéria provada, e aqui impugnada, que parte desse falso pressuposto.
30 - Existe uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (cfr. art. 410.°, n.º 2 al. b do CPP) quando na motivação se refere que o arguido L... era "quem tratava da matéria mais burocrática da organização da sociedade, designadamente no que toca à gestão financeira, incluindo o pagamento de impostos", e simultaneamente é decidido que o recorrente é co-responsável pelo não pagamento do IV A, sendo por isso punido como co-autor de um crime de abuso de confiança fiscal.
31 - Sem prejuízo de tudo o que supra se referiu no sentido de demonstrar, ou no mínimo suscitar uma dúvida razoável, relativamente ao facto do arguido A... nunca ter exercido funções de administrador na X..., S.A. sempre se dirá que tal administração meramente factual da sociedade sempre seria absolutamente irrelevante do ponto de vista jurídico-penal.
32 - O art. 6.° do RGIT apenas abrange os titulares, membros ou representantes oficiais da pessoa colectiva, ficando excluídos terceiros que não tenham poderes para vincular efectivamente a mesma independentemente da influência "de facto" que possam ter no seio da pessoa colectiva.
33 - Em abono do que supra se defende, para além do já mencionado elemento literal ou gramatical, concorrem em termos interpretativos um duplo argumento sistemático e a teleologia da própria norma.
34 - Se confrontarmos o art. 6.° do RGIT com o art. 12.° do CP verificamos que ambos dispositivos legais são praticamente idênticos em termos de redacção, sendo certo que o alcance das duas normas é rigorosamente o mesmo.
35 - A expressão existente no n.º 5 do art. 227.° do Código Penal (insolvência dolosa) "Sem prejuízo do disposto no artigo 12°" apenas pode significar que para além dos casos puníveis à luz do art. n.º 12 do Código Penal, também são criminalmente responsáveis aqueles que a seguir são mencionados: quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva (frase que também é usada no n.º 1 do art. art. 186.° do CIRE - Insolvência culposa).
36 - Logo, o exercício apenas de facto da gestão é uma vertente que não se encontra prevista e contemplada pelo art. 12. ° do CP (e, por maioria de razão, pelo seu equivalente fiscal o art. 6.° do RGIT).
37 - Nesse sentido, Pedro Caeiro in "A responsabilidade dos gerentes e administradores por crimes falenciais na insolvência de uma sociedade comercial", separata de "Os quinze anos de vigência do código das Sociedades Comerciais", Fundação Bissaya Barreto, 2001, págs. 10 e 11 onde é referido expressamente que: "a punição dos gerentes de facto não cabe na regra do artigo 12.º pois essas pessoas não são titulares de um órgão social."
38 - Sendo o ordenamento jurídico um todo unitário, resulta óbvio que se o legislador desejasse a punição dos meros "administradores de facto" pelo crime de abuso de confiança fiscal, o art. 105.° incluiria uma norma em tudo semelhante a aquela que consta no art. 227.°, n.º 5 do CP.
39 - Quando o legislador quis no RGIT (e já agora na LGT, nomeadamente no seu art. 24.°, n.º 1) referir-se a administradores de facto o fez claramente, (utilizando a expressão administradores somente de facto no seu art. 8.°, n.º 1) não sendo defensável que tenha utilizado uma terminologia completamente diferente apenas dois artigos atrás para referir-se exactamente à mesma figura.
40 - Do ponto de vista hermenêutico quem queira insistir na tese de que o administrador de facto é punível pelo crime de abuso de confiança fiscal, apenas chega a esse resultado através de uma incoerência do RGIT com o Código Penal, do RGIT com a Lei Geral Tributária e do RGIT com………. o RGIT!
41 - Devemos, enquanto intérpretes da lei, presumir que o legislador se exprimiu adequadamente (art. 9.° do Código Civil) e que a nossa ordem jurídica é um sistema coerente e uniforme, o que entra em choque com o sentido da sentença condenatória.
42 - Do ponto de vista teleológico (para não falar da razoabilidade, da justiça e da segurança jurídica) não faz qualquer sentido que um crime de omissão, que se consuma com a não entrega do IVA ao Estado, fosse imputado a pessoas físicas que não podem efectuar o acto que lhes é exigido (movimentar as contas bancárias da pessoa colectiva para efectuar o pagamento devido).
43 - O recorrente, em síntese, foi condenado não por algo que fez, eventualmente usando ou abusando da sua suposta importância factual no seio da X... ou de um hipotético ascendente sobre o co-arguido, mas por algo que pura e simplesmente terá deixado de fazer conjuntamente com o Dr. L... (entregar os impostos), tendo por isso sido condenado como co-autor material.
44 - É um exercício dogmático manifestamente ilegítimo tentar descortinar a prática de um crime de omissão por alguém sobre quem não recai um dever especial de garante face ao bem jurídico protegido nem tem o domínio do facto omissivo.
45 - Em poucas palavras: ninguém pode ser punido por ter omitido um acto que não tinha possibilidade de praticar (no nosso caso: movimentação das contas bancárias para pagar o IV A ao Estado), e foi precisamente essa a solução que o legislador consagrou ao não contemplar, intencionalmente, a punição dos meros administradores de facto pela prática do crime de abuso de confiança fiscal.
46 - A imputação de um crime de abuso de confiança fiscal a um mero administrador de facto inflaciona extraordinária, e ilegitimamente, o universo dos destinatários do art. 6.° RGIT, o que configura um exercício de autêntica analogia incriminatória.
47 - Em função de tudo aquilo que já foi referido, deve ser considerada inconstitucional, por violar o princípio da tipicidade e da legalidade criminal (art. 29°, n° 1 da CRP), a interpretação do art. 6.° do RGIT no sentido de que esta norma incluiria os meros administradores de facto.
48 - Caso assim não se entenda, então a própria norma do art. 6.° RGIT deverá ser julgada inconstitucional (ao abrigo do mesmo artigo da nossa Lei Fundamental) por possuir um teor incriminatório extremamente vago, que não permite a delimitação exacta dos casos em que a actuação em nome outrem é relevante para efeitos da prática de crimes de natureza fiscal.
49 - Se por hipótese, que não se aceita e apenas aqui é referida por dever de patrocínio, o comportamento do arguido vier a ser considerado ilícito, o certo é que este nunca teve, nem era exigível que tivesse, consciência de estar a praticar um facto ilícito ao omitir o pagamento do IVA.
50 - O arguido não desconhecia que a não entrega do IVA ao Estado configurava um crime fiscal, o que o arguido ignorava era que no seu caso concreto (não era administrador de direito da sociedade) a proibição lhe era aplicável.
51 - Neste sentido vão claramente as declarações do arguido prestadas em audiência, conforme resulta da transcrição da sessão de 29-02-2008 (depoimento gravado em duas fitas magnéticas registadas no livro 1 com o n.º 674, desde o n.º 1.282 ao n.º 1.723 do lado B, das 3.as cassetes e desde o n.º 7 ao n.º 1.584 do lado A, das 4as cassetes).
AD: Não. Sr. Dr .• eu não podia pagar da minha conta pessoal, porque eu não tinha dinheiro para pagar os impostos da conta da X..., nem sabia quanto era a importância.
Dr. LA.: Mas você achava que, ao não fazer isto, ao não ter um ascendente…
AD: Sr. Dr.
Dr. LA: Eu falei, você achava que devia ter a obrigação, o ónus, de convencer o Dr. L... para que ele pagasse os impostos e, caso você não conseguisse convencê-lo, estaria a incorrer num crime?
AD: Ó Sr. Dr.
Dr. LA: Ele é que podia movimentar a conta?
AD: Sr. Dr., isso vira-se o aluno para o professor. Um economista, um administrador, um homem que andou na escola ...
Dr. LA: Você achava que você estava a cometer um crime com os papéis que você estava a desempenhar?
AD: Não, nos papéis que eu desempenhei na X... não cometi crime nenhum.
52 - Deve considerar-se que existe, pelo menos, uma dúvida razoável que aponta no sentido que o recorrente julgava não estar a cometer qualquer crime e que esse seu julgamento erróneo, mas não censurável, não se deveu ao facto de ser detentor de uma personalidade deformada, insensível ou contrária ao direito (entendimento contrário violaria o princípio do in dubio pro reo).
53 - Não conhecendo o agente a proibição ou, como no caso sub iudice, julgando a sua concreta conduta omissiva não abrangida por ela, o crime apenas lhe pode ser imputado a título de negligência (arts. 16.º e 17.º do Código Penal).
54 - Termos em que, e uma vez que o crime de abuso de confiança fiscal não é punível a título de negligência, deverá o arguido ser absolvido.
55 - Em função das considerações supra expostas o tribunal a quo ignorou, ou interpretou incorrectamente, as normas jurídicas mencionadas ao longo das presentes conclusões.
56 - Assim como ignorou ou interpretou incorrectamente os princípios de direito subjacentes a essas e outras normas jurídicas: culpa, tipicidade, legalidade e presunção de inocência.
57 - Termos em que deve dar-se integral provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida sendo a mesma substituída por acórdão deste Tribunal que absolva o arguido do crime de abuso de confiança fiscal em que foi condenado em primeira instância.
3. O Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu aos recursos, concluindo (transcrição):
3.1. Recurso do arguido L...:
1. Em sede de audiência de julgamento, resultou provado que o arguido L... se apropriou de quantias relativas a IVA e que não foram pagas à Administração Fiscal.
2. Não existe qualquer contradição insanável derivada do facto do arguido L... se ter apropriado de tais quantias e ter emprestado uma determinada quantia à empresa arguida.
3. O conceito de " apropriação" e de " não entrega" são distintos, tendo o julgador tomado em consideração tal facto.
4.O Tribunal "a quo" pronunciou-se quanto à culpa do agente.
5. A responsabilidade criminal das pessoas colectivas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes, pelo que não existe qualquer violação do princípio da dupla valoração do mesmo facto.
6. Do texto da decisão recorrida não resulta que tenha sido violado o princípio da vinculação temática.
7. Não se verificou qualquer interpretação inconstitucional do artigo 105.º, do RGIT ao considerar a “a apropriação" como elemento implícito do crime de abuso de confiança fiscal.
8.O tribunal considerou e bem que existiu uma confissão integral e sem reservas do arguido L..., a qual foi tida em conta em sede de determinação da medida da pena.
9. O artigo 14.º do RGIT prescreve que o prazo de pagamento dos impostos em falta pode ser efectuado até ao prazo de 5 anos, mas não que a suspensão da pena pode ir até 5 anos, devendo o julgador observar o disposto no artigo 50.º do Código Penal quanto à suspensão da pena.
10.A sentença sub judice não violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantida na íntegra.
3.2. Recurso do arguido A...:
1) O arguido interpretou mal, a nosso ver, o disposto no artigo 45.º, da Lei Geral Tributária, no tocante à questão do procedimento criminal.
2) As notificações efectuadas ao abrigo do artigo 105.º, n.º 4, do RGIT são válidas.
3) O tribunal a quo julgou correctamente os factos, não existindo erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410°, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal.
4) Não houve qualquer violação do disposto no artigo 77°, n.º 1, do Código Penal e n.º 2, do artigo 374°, do Código de Processo Penal, não sendo a sentença nula de acordo com o disposto no artigo 379°, al. a), deste último código.
5) O Tribunal “a quo” observou o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127°, do Código de Processo Penal.
6) O tribunal deu como provado que o arguido A... era administrador de facto com base nas declarações de diversas testemunhas, nomeadamente de C....
7) O depoimento da testemunha F... é isento, bem como os depoimentos das testemunhas S... e D..., dos quais resultou que o arguido A... era administrador de facto da empresa arguida.
8) Não existe qualquer contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do artigo 410°, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal.
9) Os administradores de facto estão contemplados na previsão do artigo 6°, do RGIT, não sendo inconstitucional tal interpretação.
10) O arguido entrou em manifesta contradição quanto à sua responsabilidade criminal nos factos em análise.
11) A sentença sub judice não violou qualquer disposição legal, pelo que, mantendo, na íntegra, a decisão recorrida, V. Exas. farão a acostumada Justiça.
4. Admitidos os recursos e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de que os recursos não merecem provimento.
5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, após o que, efectuado exame preliminar e corridos os vistos legais, realizou-se a audiência.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Como dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma doravante designado de C.P.P.), os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito. Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva transcrição, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º3 e 431.º do C.P.P., ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Efectivamente, segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2 (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Atento o teor das conclusões, identificam-se como questões a apreciar e decidir, em síntese:
A) Recurso do arguido L...:
- o erro no julgamento da matéria de facto, não se verificando, além do mais, qualquer intenção de apropriação pelo recorrente das quantias em causa;
- apenas a pessoa colectiva poderia ser responsabilizada criminalmente;
- a violação pela sentença recorrida do princípio da vinculação temática,
- a inconstitucionalidade do artigo 105.º do RGIT quando interpretado no sentido de que acolhe um elemento implícito: a apropriação;
- a nulidade da prova, em relação às declarações do recorrente, por falta de cumprimento do formalismo previsto no artigo 344.º do C.P.P.;
- a questão do regime concretamente mais favorável, no tocante ao período de suspensão da execução da pena.
B) Recurso do arguido A...:
- a questão da caducidade do direito a liquidar os impostos;
- invalidade da notificação efectuada ao abrigo do disposto no artigo 105.º, n.º4, do RGIT;
- a nulidade da sentença, nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º2 e 379.º, n.º1, al. a), do C.P.P.;
- o erro no julgamento da matéria de facto;
- a existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;
- a questão da responsabilização criminal dos gerentes ou administradores de facto;
- a inconstitucionalidade do artigo 6.º do RGIT na interpretação de que inclui os meros administradores de facto ou por possuir um teor incriminatório e extremamente vago;
- o princípio in dubio pro reo.
2. A sentença recorrida
2.1. Na sentença proferida na 1.ª instância foram dados como provados o seguintes factos (transcrição):
1) A X... - Comércio de veículos, S.A. encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de Condeixa-a-Nova, desde 22.03.2000, pela apresentação n° 02/20000322, correspondente à inscrição n° 1, sob a matrícula n.º 00000000000, correspondente à anterior matrícula n.º 358/20000322, como sendo uma sociedade anónima;
2) A supra referida sociedade tem sede na Estrada Nacional n.º 1, concelho de Condeixa-a-Nova;
3) Tendo por objecto social a "importação e comércio de veículos automóveis";
4) O capital social da supra referida sociedade corresponde a 100.000,00 euros, estando, até à data, realizado, 50% de tal capital social;
5) O capital social da sociedade encontra-se titulado por 10.000 acções, as quais são ao portador;
6) Foram sócios constituintes da supra referida sociedade L..., N..., B..., E...e H...;
7) Desde Março de 2000 que a sociedade arguida vinha exercendo a actividade de comércio de automóveis, no local referido em 28), designadamente camiões, estando enquadrada no regime normal de tributação em Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IV A), com periodicidade trimestral;
8) L... é o administrador único da sociedade arguida desde 22.03.2000;
9) Desde a data referida em 7) que o arguido A... vem exercendo a administração de facto da supra referida sociedade juntamente com o arguido L...;
10) Sendo o mesmo quem, em nome da sociedade, e designadamente, contactava os clientes, celebrava os concretos negócios de venda dos veículos automóveis, contactava os fornecedores dos mesmos e procedia à sua compra, designadamente na Bélgica, e recebia e efectuava pagamentos, respectivamente a clientes e fornecedores;
11) No âmbito da sua actividade, e desde a data referida em 7), a sociedade arguida vem procedendo à venda de veículos, a diversos clientes, pelos quais se faz pagar, mais emitindo as correspondentes facturas e liquidando o respectivo IVA;
12) Ora, a partir do início de 2001 ambos os arguidos decidiram deixar de entregar nos cofres do Estado as quantias referentes ao IVA que em cada trimestre fosse apurado pela sociedade arguida enquanto diferença entre o IVA suportado ou liquidado nas compras de veículos e o IVA liquidado aos seus clientes aquando das vendas dos mesmos;
13) Mais deixaram os arguidos de entregar ao Estado as declarações periódicas referentes a tal imposto;
14) Pretendiam assim os arguidos integrar e passar a usar as quantias correspondentes a tal diferença no normal giro da sociedade arguida, o que conseguiram;
15) Assim, a sociedade arguida apurou a favor do Estado os seguintes montantes a título de IVA, o qual não foi entregue:
a) 1° Trimestre de 2001 -14.051,08 euros;
b) 2° Trimestre de 2001 - 23.577,38 euros;
c) 3° Trimestre de 2001 - 71.322,41 euros;
d) 4° Trimestre de 2001 - 52.226,69 euros;
e) 1° Trimestre de 2002 - 73.815,61 euros;
f) 2° Trimestre de 2002 - 49.682,48 euros;
g) 3° Trimestre de 2002 - 56.096,56 euros;
h) 4° Trimestre de 2002 - 31.162,70 euros;
16) Dado que nenhuma consequência adveio da não declaração periódica das quantias referentes ao IVA nem da sua falta de entrega nos cofres do Estado os arguidos aproveitaram tal situação para prosseguir na sua conduta;
17) Os arguidos tinham a obrigação de remeter à administração fiscal as declarações periódicas de IVA, bem como as quantias referentes a tal imposto, até ao 10° dia do 2° mês seguinte ao termo de cada trimestre;
18) Por carta registada, com prova de depósito, datada de 04.05.2007, o arguido L..., na qualidade de legal representante da sociedade arguida, e em seu nome pessoal, foi notificado para proceder ao pagamento, em 30 dias, do valor em dívida ao Estado a título de IVA, juros de mora, coima e acréscimos legais;
19) Por carta registada, com prova de depósito, datada de 04.05.2007, o arguido A... foi notificado para proceder ao pagamento, em 30 dias, do valor em dívida ao Estado a título de IVA, juros de mora, coima e acréscimos legais;
20) Decorrido o prazo referido em 17) os arguidos não entregaram à administração fiscal as supra referidas declarações e quantias referentes ao IVA, estas últimas para além daquelas, referentes a tal imposto, referidas no ponto 40) infra;
21) Nem o fizeram nos 90 dias seguintes ao termo do mesmo;
22) Nem tão pouco no prazo referido em 18) e 19);
23) Ambos os arguidos sabiam que os supra referidos valores relativos ao IVA lhes não pertenciam, nem tão pouco à sociedade sua representada, e que os mesmos eram pertença do Estado, bem como que deviam entregar cada um dos supra referidos montantes nos prazos acima assinalados;
24) Os arguidos lograram apropriar-se da quantia global de 371.934,91 euros, da qual passaram a dispor em benefício da sociedade arguida, integrando tal quantia no giro comercial da mesma;
25) Os arguidos ao actuarem em nome, no interesse e em representação da sociedade arguida, agiram, em comunhão de esforços e intentos, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
26) Aquando da data referida em 1) o arguido L... tinha crédito junto das instituições bancárias;
27) Sendo certo que era pessoa reputada como sendo honesta e trabalhadora;
28) O prédio rústico, composto de terreno de pastagem, pinhal e mato, com a área de 12.000 m2, descrito na Conservatória do Registo Civil/Predial/Comercial de Condeixa-a-Nova, sob o n.º 01943/220192, encontra-se actualmente inscrito a favor de CA…, por compra em processo de execução, pela inscrição G-3, correspondente à apresentação n.º 18/290103;
29) CA... é filha do arguido A...;
30) Anteriormente à inscrição referida em 28) o supra referido prédio encontrava-se inscrito a favor de A..., casado com …, pela inscrição G-2, correspondente à apresentação n.º 08/090796;
31) Actualmente, em tal prédio encontra-se a funcionar uma empresa de compra e venda de automóveis, da qual é dono E..., identificado no ponto 6) dos factos provados;
32) A fIs. 1199 dos autos consta um documento denominado de "Depósito de produto de venda de bens em processo de execução fiscal", datado de 22.08.2002, referente ao serviço de finanças de Condeixa-a-Nova, nos termos do qual se refere que "vai A..., na qualidade de representante legal da sua filha menor, CA..., NIF 229216471, adquirente, por remissão, na venda judicial por meio de proposta em carta fechada, do bem constante do anúncio de venda de 20.06.2002, penhorado no processo de execução fiscal n.º 0736-97/100234.0 e apenso, aos executados A... e G... (oo.) entregar na Tesouraria de Finanças deste concelho a quantia de 60.000,00 euros (sessenta mil euros), correspondente à totalidade do preço";
33) A fls. 1200 dos autos consta um cheque, titulado pela sociedade arguida, referente a uma conta aberta no "BCP", n.º 00222671649, emitido pelo arguido L..., na qualidade de administrador da mesma, em Coimbra, em 22.08.2002, no valor de 60.000,00 euros;
34) A fls. 1201 dos autos consta um documento, denominado de "Termo de declaração", relativo ao Imposto Municipal de SISA, referente ao Serviço Finanças de Condeixa-a-Nova, datado de 23.09.2002, nos termos do qual consta o pagamento da quantia de 4.800,00 euros a título de tal imposto, por A..., na qualidade de legal representante da sua filha menor;
35) De fls. 1202 dos autos consta um cheque, titulado pela sociedade arguida, referente a uma conta aberta no "BPI", n.º 239355800001, emitido pelo arguido L..., na qualidade de administrador da mesma, em Condeixa-a-Nova, em 23.09.2002, no valor de 5.280,00 euros;
36) Do teor de fls. 1297 e segs. dos autos consta um escrito, denominado de “contrato-promessa de compra e venda”, outorgado em 28.10.2003, nos termos do qual o arguido A... e sua mulher, G…, na qualidade de primeiros outorgantes, prometeram vender à segunda outorgante, a sociedade ora arguida, representada no acta pelo arguido L..., e esta promete comprar, o prédio referido em 28), pelo preço global de 65.000,00 euros, que os primeiros outorgantes declararam ter recebido;
37) Do teor de fls. 1300 e segs. dos autos consta um escrito, denominado de “contrato-promessa de compra e venda”, outorgado em 13.06.2001, nos termos do qual T..., na qualidade de primeira outorgante, promete vender à segunda outorgante, a sociedade ora arguida, representada no acto pelo arguido L..., e esta promete comprar, o prédio urbano sito no Lote 104, da urbanização denominada de São Cristóvão, composto por moradia de cave, rés-do-chão e primeiro andar, com a superfície coberta de 160,8 metros quadrados e logradouro com 324,2 metros quadrados, descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o n° 07184, da freguesia de Pombal, pelo valor de 226.953,043 euros;
38) Entre 15.11.2000 e 26.10.2004, o arguido L... emprestou à sociedade arguida cerca de 625.329,31 euros;
39) Em 31.12.2004 a Auto Turbo Angola, Lda., com sede em Angola, empresa a quem a sociedade arguida vendeu veículos automóveis, tinha um débito para com a mesma no valor de 325.000,00 euros;
40) Em 30.12.2002 a sociedade arguida procedeu ao pagamento das seguintes dívidas fiscais:
a) 21.245,12 euros, a título de IVA referente ao ano de 2002;
b) 16.138,80 euros, a título de IVA, referente ao ano de 2002;
c) 1.521,34 euros, a título de IVA referente ao ano de 2002;
d) 3.435,28 euros, a título de IRC referente ao ano de 2000;
e) 2.669,51 euros, a título de IRC referente ao ano de 2001;
41) Em 25.02.2003 a sociedade arguida entregou ao fisco a declaração periódica do IVA referente aos 1°, 2°, 3° e 4° trimestres de 2002;
42) Em 26.04.2002, a sociedade arguida entregou ao fisco a declaração periódica do IVA referente aos 1° e 3° trimestres de 2001;
43) Em 03.05.2002, a sociedade arguida entregou ao fisco a declaração periódica do IVA referente ao 4° trimestre de 2001;
44) No 1° trimestre de 2001 o arguido L... contratou F..., economista e técnico de contas, no sentido de o mesmo proceder a uma auditoria à contabilidade da sociedade arguida, a qual terminou em 16.11.2004, dando-lhe instruções para proceder às declarações fiscais em falta;
45) Até ao primeiro trimestre de 2001 a contabilidade da sociedade arguida encontrava-se desorganizada;
46) O arguido L... deslocava-se à sede da sociedade arguida todos os dias, após o horário de expediente, e aos sábados;
47) Anteriormente à data referida em 1) o arguido A... foi empresário do ramo automóvel cerca de três anos, dedicando-se, designadamente, à compra e venda de camiões no estrangeiro;
48) O arguido A... sempre foi um vendedor com capacidade de vender uma grande quantidade de veículos automóveis;
49) O arguido L... exerce a actividade de administrador da sociedade anónima denominada por "LRP -BC, S. A.", desde 27.12.1995;
50) Aufere, nessa actividade, a quantia mensal de 2.600,00 euros, a que acrescem 25.000,00 euros, anuais, a título de prémios;
51) É divorciado;
52) É licenciado em Economia;
53) Tem uma filha, com 17 anos de idade;
54) Vive com a mãe, em casa própria, pagando 550,00 euros de prestação bancária relativa ao crédito obtido para a compra da mesma;
55) Dá 6.000,00 euros, anuais, à sua ex-mulher para auxiliar no sustento da filha;
56) O arguido A... exerce a actividade de vendedor de camiões e máquinas, auferindo a quantia de 1.500,00 euros, mensais;
57) Trabalha nessa actividade há cerca de 29 anos;
58) A mulher é doméstica;
59) Tem dois filhos (de 18 e 12 anos de idade);
60) Paga 100,00 euros, mensais, de água, luz e gás;
61) Vive em casa própria, no prédio referido em 37), pagando 1.000,00 euros, mensais, de prestação bancária relativa ao empréstimo que contraiu para a compra da casa;
62) Está habilitado com a 4.ª classe;
63) Actualmente a sociedade arguida está sem actividade;
64) Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido L...;
65) Do teor do Boletim de Registo Criminal do arguido A... (n.º 635082-C), consta:
a) Por sentença, proferida em 23.04.2001, no processo comum singular nO 57/00.4 TBCDN, do Tribunal Judicial da Comarca de Condeixa-a-Nova, o arguido foi condenado pela prática, em 13.12.1997, de um crime de fraude às garantias fiscais aduaneiras, p. e p. no artigo 29°, do Decreto-Lei n.º 255/90, de 07.08, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 20 meses, e de 60 dias de multa, à taxa diária de 3,49 euros, o que perfaz o montante global de 209,50 euros;
b) Por despacho proferido no supra referido processo, em 26.09.2000, foi declarada extinta a pena de multa aplicada ao arguido;
c) Por despacho proferido no supra referido processo, em 26.09.2003, foi declarada extinta a pena de prisão aplicada ao arguido;
66) O arguido L... confessou, de forma integral, e sem reservas, os factos de que vinha acusado.
2.2. O tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos (transcrição):
67) Que o arguido A... não fosse administrador de facto da sociedade arguida.
68) Que o arguido L... apenas se deslocasse à sede da sociedade arguida somente aos sábados;
69) Que o arguido A... fosse sócio da empresa" Auto Turbo A…, Lda.";
70) Que o A... tenha efectuado, em nome da sociedade arguida, negócios de venda de camiões à empresa referida em 69), tendo recebido as quantias relativas a tais vendas;
71) Que o facto referido no ponto 69) tenha determinado que a sociedade arguida não tenha podido liquidar, na íntegra, as dívidas fiscais em causa nos autos, designadamente após a notificação referida no ponto 18) dos factos provados.
2.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
O tribunal, quanto à matéria de facto provada nos autos, tomou em consideração:
a) A confissão, integral e sem reservas, dos factos descritos na acusação, por parte do arguido L...;
b) O depoimento da testemunha C..., cunhado do arguido L..., antigo revisor oficial de contas da sociedade arguida, o qual depôs de forma sincera, demonstrando conhecer a dinâmica de funcionamento da mesma;
c) O depoimento da testemunha JV…, empregado bancário no banco BPI, banco onde a sociedade arguida tinha conta aberta, o qual depôs de forma segura, demonstrando conhecer a situação financeira da sociedade arguida, designadamente no toca à sua relação com o supra referido banco, bem como o crédito de que o arguido L... dispunha junto da banca;
d) O depoimento da testemunha JF…, inspector tributário, o qual, de forma honesta, se limitou a confirmar o teor do relatório de inspecção tributária de fls. 61 e segs., elaborado pelo fisco nos autos, designadamente o valor do IVA em causa nos autos, bem como a circunstância de o mesmo ter sido liquidado pela sociedade arguida e por ela não entregue nos cofres da Fazenda Nacional;
e) O depoimento da testemunha AG..., inspector tributário, o qual, tal como o seu colega, de forma honesta, se limitou a confirmar o teor do relatório de inspecção tributária de fls. 61 e segs., elaborado pelo fisco nos autos, designadamente o valor do IVA em causa nos autos, bem como a circunstância de o mesmo ter sido liquidado pela sociedade arguida e por ela não entregue nos cofres da Fazenda Nacional;
f) O depoimento da testemunha F..., economista, que desempenhou as funções de técnico de contas da sociedade arguida, sendo amigo do arguido L..., o qual, de forma bastante segura, honesta e pormenorizada, revelou conhecer a dinâmica da actividade comercial por ela desenvolvida, o tipo de funções nela exercidas por ambos os arguidos, a sua situação económico-financeira, bem como o estado das sua contabilidade, sendo certo que o mesmo foi contratado pelo arguido L... para proceder a uma auditoria à mesma;
g) O depoimento da testemunha MF…, ex-mulher do arguido L..., a qual, de forma sincera, demonstrou conhecer as rotinas de vida do arguido, designadamente no que toca à sua vertente profissional;
h) O depoimento da testemunha JF..., amigo de ambos os arguidos, gerente de uma empresa de pneus, o qual, de forma sincera, esclareceu ter tido relações comerciais com a sociedade arguida;
i) O depoimento da testemunha LM…, empresário de transportes, o qual, de forma sincera, referiu ter tido relações comerciais com a sociedade arguida;
j) O depoimento da testemunha FM…, funcionário da empresa "LRP – BC…, S. A.", e amigo do arguido L..., o qual, de forma honesta, revelou ter conhecimento das relações comerciais tidas entre tal empresa e a sociedade arguida, bem como conhecer a personalidade do arguido;
k) O depoimento da testemunha RS…, empresário de aviação, e amigo do arguido A..., o qual, de forma segura e honesta, referiu ter financiado a sociedade arguida;
l) O depoimento da testemunha VS…, empresário do ramo automóvel, e amigo do arguido A..., o qual, de forma honesta, demonstrou ter comprado veículos automóveis à sociedade arguida;
m) O depoimento da testemunha D..., administrativa, ex-empregada de escritório da sociedade arguida, a qual, de forma sincera, demonstrou conhecer a dinâmica de funcionamento da sociedade, designadamente ao nível comercial, bem como o relacionamento entre os arguidos no seio da sociedade;
n) O depoimento da testemunha S..., administrativa, ex-empregada de escritório da sociedade arguida, a qual, de forma sincera, igualmente demonstrou conhecer a dinâmica de funcionamento da sociedade, designadamente ao nível comercial, bem como o relacionamento entre os arguidos no seio da sociedade;
o) O depoimento da testemunha O..., comerciante de automóveis, amigo de ambos os arguidos, o qual, de forma sincera, prestou declarações quanto à participação do arguido A... na actividade da sociedade arguida;
p) Tomou-se em consideração o teor dos documentos juntos aos autos, designadamente daqueles constantes de fls. 1 a 370, 371 a 700, 701 a 921, 947 a 952, 978 a 991, 996 a 1010, 1013, 1014, 1021 a 1023, 1052 a 1054, 1107 a 1109, 1111 a 1114, 1167 a 1169, 1178 e 1179, 1185 a 1286, 1265 a 1287 e 1297 a 1303.
Assim, tendo por referência os elementos probatórios supra, o tribunal, ponderada toda a prova produzida nos autos, e cruzando todos os resultados probatórios extraídos de cada um, de per se, considerou, enquanto fundamento dos factos provados, especificadamente:
Pontos 1 a 5): Considerou-se o teor da certidão do registo comercial de fls. 1052 e segs.
Ponto 6): Tomou-se em consideração o teor do documento de fls. 978 e segs.
Ponto 7): Tomou-se em consideração o teor das declarações, sinceras, do arguido L..., o teor dos autos de notícia de fls. 3 e segs., bem como o teor do relatório de inspecção tributária de fls. 61 e segs., sendo certo que o arguido A... confirmou o tipo de actividade desenvolvida pela sociedade arguida, a qual, aliás, se mostra em consonância com o seu objecto social, descrito no ponto 3) dos factos provados. No que toca ao facto de a sociedade arguida desenvolver a sua actividade no local descrito no presente ponto dos factos provados tomou-se em consideração as declarações de ambos os arguidos, as quais se mostraram sinceras.
Ponto 8): Tomou-se em consideração o teor da certidão referida na fundamentação dada ao ponto 1) dos factos provados;
Ponto 9): Tomou-se em consideração que pese embora tal facto tenha sido desmentido pelo arguido A..., o qual, de forma não credível, referiu que apenas era empregado da sociedade arguida, nela exercendo funções de vendedor o que, também de forma não credível, igualmente foi dito por E..., o arguido L..., de forma segura e sincera, contrariando o referido pelo primeiro, declarou que ambos dirigiam os destinos da sociedade arguida, quer no que toca à sua normal actividade comercial do dia-a-dia, quer no que respeita às opções de estratégia empresarial de longo prazo.
Mais referiu o arguido L... que era o arguido A... quem tinha a seu cargo a compra e venda de veículos automóveis, designadamente camiões, os quais, na sua grande maioria eram adquiridos no estrangeiro, atenta a sua longa experiência na matéria (pontos 47), 48) e 57) dos factos provados).
L... referiu ainda que, por outro lado, era ele quem tratava da matéria mais burocrática da organização da sociedade, designadamente no que toca à gestão financeira, incluindo o pagamento de impostos, atenta, designadamente, a sua formação de base (ponto 52) dos factos provados), bem como a experiência de gestão adquirida na empresa referida no ponto 49) dos factos provados, sendo certo que tal repartição de funções foi confirmada pela testemunha F..., a qual, tal como referido nos factos provados, teve funções de auditor da contabilidade da empresa durante quase quatro anos (ponto 44 dos factos provados)).
O arguido L... referiu ainda, de forma sincera, que a sociedade arguida nasceu por iniciativa do arguido A..., atenta a sua longa experiência no ramo automóvel, sendo certo que ele próprio somente aceitou tornar-se sócio e administrador da mesma atenta a insistência do arguido, o qual era seu conhecido, o que se mostra compatível com as declarações de MF..., ex-mulher do arguido, que confirmou tal facto, sendo certo que em tal data a mesma ainda estava casada com o arguido.
O facto ora em apreço mostra-se, aliás, comprovado atentas as declarações de C..., o qual referiu que o arguido A... discutiu várias vezes consigo assuntos relacionados com a gestão da sociedade arguida, bem como de F..., o qual referiu que tal arguido lhe disse ser dono da sociedade arguida, o que, na sua opinião, era compatível com o que pela testemunha era percepcionado quanto à gestão da mesma, porquanto o arguido A... tinha a gestão total das compras e vendas e confrontava o arguido L... com negócios consumados, muitos deles sem a concordância posterior deste último, e que o primeiro dos arguidos tinha por prioridade a expansão do negócio, nada se importando com o pagamento de impostos e canalizando as receitas da sociedade para esse fim.
Acresce que Y... referiu ter vendido pneus à sociedade arguida, tendo tratado o negócio com o arguido A....
Acresce ainda que RS… declarou ter emprestado, sem juros, 150.000,00 euros à sociedade arguida, sendo certo que foi a pedido do arguido A... que tal aconteceu, o qual é seu amigo e foi seu empregado durante cerca de 4/5 anos, no ramo automóvel, e que foi o mesmo quem se responsabilizou, pessoalmente, pelo pagamento da dívida.
Mais releva o facto de D... ter referido que recebia ordens do arguido A..., sendo certo que este detinha o controlo sobre todos os aspectos da actividade operacional da sociedade arguida, mais tendo declarado S... que se tivesse que sair mais cedo do trabalho pediria autorização ao arguido A... e que o seu salário correspondente a dois dos meses que trabalhou na sociedade arguida foram pagos por tal arguido.
Ora, tudo quanto referido supra, analisado à luz das regras da lógica e da experiência comum, mostra-se compatível com o teor dos factos dados como provados nos pontos 10), 28) a 37) dos factos provados.
Na verdade, se o arguido A... sempre foi um vendedor de automóveis de mão cheia, o qual inclusivamente foi dono de uma empresa de comercialização de veículos automóveis, não se percebe a razão pela qual o mesmo, detendo o know-how do negócio, aceitasse unicamente ser empregado do arguido L....
Por outro lado, nada justificaria o supra referido empréstimo concedido por RS… à sociedade arguida, nas condições em que o mesmo foi concedido, senão o facto de o arguido A... ter efectivamente responsabilidades de gestão da mesma, porquanto resulta da lógica normal das coisas que um mero empregado não se imiscui nos assuntos relativos ao financiamento da empresa sua entidade patronal, muito menos na posição de ter de assumir a responsabilidade pelo pagamento de um empréstimo da magnitude do ora em causa, o qual somente se mostra ter sido possível atenta a especial relação de confiança que intercede entre o arguido e RS....
Acresce que não se vê nenhuma razão para que um mero empregado viva, como vive o arguido D…, numa casa que havia sido objecto de um contrato-promessa de compra e venda no qual a sociedade arguida apareceu como promitente-compradora (pontos 37) e 61) dos factos provados), nem tão pouco se percebe que tenha sido esta última a despender a quantia que permitiu à filha do arguido exercer o direito de remissão sobre um terreno, no qual funcionavam as instalações da sociedade (ponto 28) dos factos provados), o qual havia anteriormente sido objecto de contrato-promessa de compra e venda entre o arguido A... e a sociedade arguida, sendo certo que inclusivamente os impostos relativos ao exercício de tal direito de remissão foram suportados por esta última.
Ponto 10): Tomou-se em consideração as declarações de ambos os arguidos, as quais foram unânimes quanto à presente matéria, bem como as declarações de D... e S..., as quais confirmaram as primeiras.
Tomou-se ainda em consideração as declarações de FM..., Y..., LM…, VS…, e O..., sendo certo que o segundo era fornecedor de pneus da sociedade arguida e os terceiro, quarto e quintos foram clientes da mesma, os quais confirmaram as declarações das demais testemunhas.
Ponto 11): Tomou-se em consideração as declarações do arguido A..., o qual confirmou tal facto e referiu até que a sociedade arguida facturava muito bem (cerca de 10.000 contos, por mês), sendo certo que tais declarações se mostram apoiadas nas declarações, unânimes, do arguido L..., no grande conjunto de facturas juntas aos autos, de onde consta a liquidação do IVA (ex.: facturas de fls. 83 a 86 dos autos), no extracto de clientes de fls. 73 a 76, do qual resulta que a sociedade arguida tinha 200 clientes, bem como no extracto de contas-correntes de fls. 116 e segs., e ainda no mapa de relação de clientes de fls. 65 e segs., de todos constando a realidade adiantada por ambos os arguidos, ou seja, que no período de tributação em causa nos autos existia na sociedade arguida uma elevada facturação mensal, com liquidação de IVA sobre os preços dos veículos vendidos, como também um elevado fluxo de caixa (cash-flow, na expressão anglo-saxónica), designadamente ao nível dos recebimentos de clientes, sendo certo que o supra referido mapa e contas-correntes encontram correspondência designadamente nas supra referidas facturas.
Tais recebimentos, os quais encontram correspondência nos muitos e variados documentos contabilísticos juntos aos autos (facturas, recibos, cheques, comprovativos de transferências bancárias, dos clientes e de empresas de leasing com os quais os mesmos contratavam a aquisição à sociedade arguida dos veículos por ela vendidos), apuram-se em:
a) 362.508,17 euros, relativos ao 2° trimestre de 2001;
b) 636.301,27 euros, relativos ao 3° trimestre de 2001;
c) 685.385,67 euros, relativos ao 4° trimestre de 2001;
d) 471.007,44 euros, relativos ao 3° trimestre de 2002;
e) 309.756,11 euros, relativos ao 4° trimestre de 2002.
Pontos 12), 13) e 14): Mostram-se por provados atentas as declarações, honestas, do arguido L..., as quais foram contrariadas pelas declarações, não credíveis, do arguido A..., o qual assentando toda a sua defesa sobre o facto de não ser gestor de facto da sociedade arguida, com o significado que tal expressão encerra, como vimos supra, negou todos os restantes factos constantes da acusação.
O arguido L... referiu que o dinheiro que deveria servir para pagar os impostos era canalizado para a aquisição de mais viaturas no estrangeiro, bem como para suportar algumas dificuldades de tesouraria momentâneas que a sociedade arguida atravessava pelo facto de os clientes não pagarem logo, sendo certo que mais foi por ele dito que ambos, ele próprio e o arguido A..., chegaram a falar sobre a situação relativa ao não pagamento de impostos e que, após, durante o período em causa nos autos, ambos os arguidos decidiram, em conjunto, continuar a proceder da forma supra referida, adiando para mais tarde o pagamento dos mesmos.
O que acaba de referir-se mostra-se compatível com as declarações prestadas por F..., o qual disse que a sociedade arguida funcionava com base numa contabilidade totalmente desorganizada e que até à sua entrada na mesma nenhum dos arguidos se preocupava em pagar impostos, sendo certo que havia dinheiro para tanto e que, no entanto, a prioridade era aumentar o negócio com a aquisição de camiões.
F... aludiu até a alguma sofisticação na actuação dos arguidos, a qual, segundo os documentos constantes dos autos, é evidente, tendo em consideração que o fluxo de caixa na sociedade arguida era elevado, no período ora em equação, designadamente os pagamentos de clientes, e, nesta medida, nada justificava o não pagamento de impostos. Por outro lado, resulta de tais elementos que somente uma gestão completamente descontrolada e com o intuito de gerar dinheiro de forma fácil e rápida, à custa do não pagamento de impostos, justifica, face aos proventos obtidos com a normal actividade da sociedade, a situação a que a que a sociedade arguida e os arguidos chegaram.
Quanto à não entrega das declarações periódicas do IVA tal foi confirmado por F..., por C... e pelo arguido L..., mostrando-se confirmada pelo teor dos autos de notícia (fls. 1 e segs.) e relatório de inspecção tributária (fls. 61 e segs.) juntos aos autos.
Ponto 15): Os valores aí referidos resultam do teor do auto de notícia e do relatório de inspecção tributária juntos aos autos, os quais se mostram compatíveis com os restantes documentos deles constantes, sendo certo que o arguido L... não os desmentiu na totalidade, apenas tendo afirmado parecerem-lhe um pouco exagerados, mas sem que tenha apresentado prova de tal exagero, sendo certo que resulta da certidão de dívida junta aos autos (fls. 1322 e segs.) que a sociedade arguida é ainda actualmente devedora ao fisco da quantia de 1.038,624,02 euros;
Ponto 16): O mesmo resulta evidente do teor dos restantes factos da matéria de facto provada e respectiva fundamentação, sendo certo que a conduta dos arguidos se arrastou no tempo, e foi-se renovando a partir do sucesso da sua primeira actuação, pese embora a intervenção de F... no sentido de organizar a contabilidade da sociedade arguida;
Ponto 17): A obrigação legal aqui referida resulta do disposto nos artigos 26°, n.º 1 e 40°, n.º 1, al. b), e n.º 3, do Código do IVA, entrado em vigor por força da publicação do Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26.12, sendo certo que do teor do relatório de inspecção de fls. 61 e segs. resulta que o regime de IVA a que estava sujeita a sociedade arguida correspondia ao regime trimestral de tal imposto.
Pontos 18) e 19): Tomou-se em consideração o teor dos documentos juntos aos autos a fls. 1021 a 1024.
Pontos 20), 21) e 22): Tal ponto da matéria de facto provada resulta por provado atento os factos descritos nos restantes pontos da matéria de facto provada e a respectiva fundamentação, mais tendo sido reconhecido pelo arguido L... que a entrega das declarações e das quantias referentes ao IVA não foi feita em tal prazo.
Pontos 23), 24) e 25): Os presentes factos mostram-se por provados atentas as ilações retiradas da restante matéria fáctica dada como provada, analisada à luz das regras da lógica e da experiência comum, e da respectiva fundamentação, sendo certo que o comum dos cidadãos, de mediana inteligência, sabe que constitui um ilícito criminal a não entrega do IV A ao Estado, sendo comuns as notícias veiculadas na comunicação social quanto à prática deste crime, e que o arguido A... havia já sido condenado por crime fiscal (ponto 65) dos factos provados).
Ponto 26): Deu-se como provado atentas as declarações nesse sentido do próprio arguido L..., da sua ex-mulher, bem como da testemunha JV...o
Ponto 27): Tomou-se em consideração as declarações da ex-mulher do arguido, de JV..., de FM..., bem como de C....
Pontos 28 e 30): Deu-se como provado atento o teor do documento de fls. 1167 e segs.
Ponto 29): Tomou-se em consideração as declarações, sinceras, do arguido A...;
Ponto 31): Tomou-se em consideração as declarações do arguido A..., as quais foram sinceras;
Ponto 32): Tomou-se em consideração o teor do documento de fls. 1199 dos autos.
Ponto 33): Tomou-se em consideração o teor do cheque de fls. 1200. Ponto 34): Tomou-se em consideração o teor do documento de fls. 1201.
Ponto 35): Tomou-se em consideração o teor do cheque de fls. 1202. Ponto 36): Tomou-se em consideração o teor do documento de fls. 1297;
Ponto 37): Tomou-se em consideração o teor do documento de fls. 1300;
Ponto 38): Tomou-se em consideração o teor do documento de fls. 1232, o qual se mostra compatível com o teor dos documentos constantes de fls. 1226 e segs. e 1232 e segs.
Ponto 39): Tomou-se em consideração o ter do extracto de contas-correntes de fls. 116 e segs. dos autos.
Ponto 40): Tomou-se em consideração o teor da certidão de dívida junta aos autos a fls. 1322 e segs.;
Pontos 41) a 43): Considerou-se o teor dos autos de notícia de fls. 1 e segs.;
Pontos 44 e 45): Tomou-se em consideração as declarações de F....
Ponto 46): Tomou-se em consideração as declarações da ex-mulher do arguido, bem como de D... e S..., sendo certo que se a primeira se limitou a relatar o que sabia quanto às rotinas do arguido durante o fim-de-semana, as últimas demonstraram conhecer as mesmas dentro da sociedade arguida, não se mostrando credível, nesta parte, o depoimento do arguido, o qual referiu apenas ir à sede da sociedade, aos sábados, no sentido de se inteirar da sua actividade.
Ponto 47): Tomou-se em consideração as declarações do arguido A..., as quais, nesta parte, se mostraram sinceras.
Ponto 48): Tomou-se em consideração as declarações do arguido L..., bem como da testemunha RS....
Ponto 49): Tomou-se em consideração o teor da certidão de registo comercial junta aos autos a fls. 1317 e segs.;
Pontos 50) a 55): Tomou-se em consideração as declarações do arguido L..., as quais se mostraram sinceras.
Ponto 56) a 62): Tomou-se em consideração as declarações do arguido A..., as quais se mostraram sinceras.
Ponto 63): Relevaram as declarações de ambos os arguidos, as quais se mostraram sinceras;
Pontos 64 e 65): Relevou o teor dos CRC's juntos aos autos a fls. 1130 e 1316;
O tribunal, no que toca aos factos dados como não provados, considerou:
Pontos 67 e 68): Mostram-se por não provados atenta a sua contradição com a matéria de facto dada como não provada e a respectiva fundamentação;
Pontos 69 e 70): Resultam por não provado atenta a falta de produção de elementos probatórios quanto a tal facto;
Ponto 71): Resulta por não provado atento o facto de quanto a ele não ter sido feita prova, sendo certo que não se encontram juntas aos autos quaisquer peças contabilísticas (designadamente uma demonstração de resultados) de forma a apurar o impacto financeiro do débito da empresa ora referida na capacidade financeira da sociedade arguida para, até à data, e desde o final do período a que os impostos em falta se referem, solver as suas dívidas fiscais, sendo certo, por outro lado, que até ao momento não foi a sociedade arguida declarada insolvente.
3. Apreciando
Passamos a conhecer as questões suscitadas, não necessariamente pela ordem por que foram indicadas, mas segundo a precedência lógica do seu conhecimento que se impõe.
Por razões de ordenação lógica e de facilidade expositiva, iremos intercalar o conhecimento de algumas questões suscitadas nos recursos.
Antes de entrarmos na discussão da matéria de facto, serão analisadas algumas questões de direito – nulidades e outras – que os recorrentes suscitam nas respectivas motivações, sendo certo que ambos os recursos misturam, amiúde, as impugnações da matéria de facto com questões de direito, dificultando a ordenação lógica do conhecimento das matérias dos recursos.
3.1. Invocadas nulidades
A) Recurso do arguido L...
1. Da nulidade da prova
Alega o recorrente que a prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente a que a si respeita, é nula, já que as suas meras declarações como arguido foram configuradas como confissão integral e sem reservas, sem que tenha sido cumprido o formalismo previsto no artigo 344.º do C.P.P., o que determina uma proibição de prova susceptível de ser invocada em qualquer momento, até trânsito em julgado da sentença.
Vejamos:
É certo que na motivação da decisão de facto consta que o tribunal tomou em consideração: «a) A confissão, integral e sem reservas, dos factos descritos na acusação, por parte do arguido L...;»
Porém, quando percorremos a motivação com detalhe, logo percebemos que a referência à confissão «integral e sem reservas» não foi feita em sentido rigoroso e para os efeitos do disposto no artigo 344.º do C.P.Penal. Basta verificar que, quanto aos valores do IVA em falta, constantes do ponto 15 dos factos provados, a fundamentação da decisão de facto assinala que os «valores aí referidos resultam do teor do auto de notícia e do relatório de inspecção tributária juntos aos autos, os quais se mostram compatíveis com os restantes documentos deles constantes, sendo certo que o arguido L... não os desmentiu na totalidade, apenas tendo afirmado parecerem-lhe um pouco exagerados (…)». Ou seja, a motivação logo permite perceber que as declarações do arguido não foram confessórias no sentido de uma «confissão integral e sem reservas».
E ouvindo a gravação das suas declarações, facilmente se alcança que o arguido não produziu uma confissão integral e sem reservas, muito embora o tribunal a quo tenha reconhecido em termos gerais credibilidade a tais declarações e delas se tenha socorrido, para, em conjugação com a restante prova, pessoal e documental, e atento o princípio da livre apreciação da prova, firmar a sua convicção.
E, por isso mesmo, porque o arguido não produziu uma confissão integral e sem reservas – e só por lapso se compreende tal referência na motivação –, não havia que seguir os procedimentos previstos no artigo 344.º, n.º1, do C.P.P. – que, efectivamente, não foram seguidos –, sendo certo que, ainda que tal confissão tivesse ocorrido, a falta das perguntas indicadas naquele preceito constituiria uma nulidade sanável, que deveria ter sido ser arguida durante a audiência, e não qualquer proibição de prova – que manifestamente inexiste.
Esquece o recorrente, porém, que as consequências legais da confissão integral e sem reservas, nomeadamente a consideração como provados dos factos imputados, com renúncia à produção de prova relativa aos mesmos e a passagem de imediato às alegações orais, contam, desde logo, com a excepção de haver mais de um arguido e não ocorrer confissão integral, sem reservas e coerente de todos.
No caso concreto, como é óbvio, as declarações do arguido L... não determinaram a consideração como provados dos factos da acusação e a renúncia à produção de prova relativamente a tais factos, ou seja, não produziram, nem podiam efectivamente produzir, as consequências processuais da confissão integral e sem reservas, mesmo que tal confissão tivesse ocorrido.
E o tribunal, na motivação da decisão de facto, escalpeliza, ponto por ponto, a factualidade provada e não provada, de onde se infere que as declarações do arguido constituíram apenas um entre outros elementos que o tribunal recorrido valorou para a fixação dos factos provados.
Não se vislumbra, por conseguinte, qualquer nulidade, e muito menos «proibição de prova» (cuja invocação temos como totalmente desprovida de fundamento) que impedisse o tribunal de valorar as declarações do arguido, em muitos aspectos confessórias, como se extrai do registo da prova, conjuntamente com os restantes meios de prova, para basear a sua convicção.
Improcede, pois, a invocada nulidade.
2. Invocada violação do princípio da vinculação temática
O recorrente L..., invoca uma pretensa violação do princípio da vinculação temática.
Temos alguma dificuldade em perceber o que o recorrente pretende dizer, já que o mesmo não concretiza em que se traduziu, no seu entender, a invocada violação.
De acordo com o princípio acusatório, a entidade que investiga e acusa não pode ser a mesma que julga. A acusação deduzida define e fixa o objecto do processo, exigindo-se uma necessária correlação entre a acusação e a decisão. Essa correlação traduz-se na exigência de que, definido o objecto do processo, o tribunal não possa, como regra, atender a factos que não foram objecto da acusação, estando, por conseguinte, limitada a sua actividade cognitiva e decisória, o que constitui a chamada vinculação temática do tribunal. Depois de fixado na acusação, o objecto do processo deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da sentença – é o chamado princípio da identidade.
A observância destes princípios constitui uma exigência da salvaguarda de um efectivo direito de defesa do arguido. Compreende-se que, se ao tribunal fosse permitido modificar o objecto do processo e conhecer para além dele, o arguido poderia ser confrontado com novos factos e novas incriminações que não tomara em conta aquando da preparação da sua defesa, não sendo de exigir ao arguido – que se presume inocente – que antecipe e preveja todas as imputações possíveis, independentemente da concreta acusação que contra si foi deduzida.
É assim que o Código de Processo Penal estabelece, de forma clara, o papel do Ministério Público, enquanto dominus do inquérito e quanto à promoção do processo e à dedução da acusação, nos termos dos artigos 48.º e 53.º do C.P.P. (com as limitações constantes dos artigos 49º a 52º do mesmo diploma).
Ao juiz de julgamento, assim impedido de se pronunciar quanto a essa fase processual – a acusação – incumbe o papel de direcção da fase de julgamento (no que ao caso concreto interessa, já que a instrução se não encontra em discussão), balizado e limitado pelo conteúdo da acusação ou da pronúncia, pelo thema decidendum (objecto do processo) e pelo thema probandum (extensão da cognição).
No entanto, como refere Germano Marques da Silva, “por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objecto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo” (Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo, III, 2.ª edição, p. 273).
Assim, o princípio do acusatório, tendo como corolários a vinculação temática e o princípio da identidade do objecto do processo, determina a limitação dos poderes de cognição do tribunal.
Porém, o processo penal não é um processo acusatório puro e o legislador não deixou o juiz na completa dependência dos sujeitos processuais relativamente ao esclarecimento dos factos. Ao processo penal estão subjacentes preocupações de justiça que impõem uma mais completa indagação da verdade permitindo que a versão dos factos construída no processo e a realidade se aproximem.
O que aponta para a necessidade de ser encontrado um ponto de equilíbrio que resolva a tensão entre princípios aparentemente em litígio, remetendo-nos para a magna questão da definição do objecto do processo e das condições em que a conformação dos factos constantes da acusação pode ser alterada.
A este propósito, colocam-se as questões atinentes à alteração dos factos, substancial e não substancial, em que relevam os artigos 1.º, alínea f), 358.º e 359.º do C.P. Penal.
Posto isto, da comparação entre a factualidade constante da acusação deduzida pelo Ministério Público e a factualidade dada como provada na sentença recorrida, não logramos identificar que se tenha verificado a violação do princípio da vinculação temática.
Aliás, em bom rigor, como já se disse, tal violação é alegada pelo recorrente sem que este identifique, concretizando com o mínimo de precisão, como e onde é que essa violação ocorreu.
Os factos provados constantes da sentença recorrida, dos n.º 1 a 25 são os factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público, alguns com ligeiras diferenças de redacção ou mais concretizados, mas ainda assim os mesmos factos da acusação e não outros.
E se o tribunal se limitou a dar uma diferente redacção ou a pormenorizar os mesmos factos que já constam da acusação, não se está quer perante uma alteração substancial dos factos, quer perante uma alteração não substancial.
Quanto aos factos provados sob os n.º 26 e seguintes, basearam-se, essencialmente, em prova documental que havia sido junta aos autos, como se infere da motivação, reportando-se, além do mais, a pagamentos de dívidas fiscais que foram efectuados, ao empréstimo do recorrente L... à sociedade arguida, ao modo de vida, condição social, económica e familiar dos arguidos e seus antecedentes e factos circunstanciais – matéria referida pelos próprios arguidos, nas respectivas declarações, em sua defesa –, sem que se possa dizer que, por via da sua consideração, os arguidos tenham sido condenados por factos diversos dos descritos na acusação e fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358.º e 359.º do C.P.P., porquanto tal factualidade não configura qualquer alteração, substancial ou não.
Razão pela qual não se vislumbra qualquer violação do princípio da vinculação temática.
B) Recurso do arguido A...
1. Nulidade da sentença, nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º2 e 379.º, n.º1, alínea a), do C.P.P.
Invoca-se a nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação.
Vejamos:
Dispõe o artigo 205.º, n.º1, da Constituição da República, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O artigo 97.º, n.º5, do C.P.P., prescreve que os actos decisórios «são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
A exigência de fundamentação das sentenças constitui um elemento essencial do Estado de Direito Democrático. Como refere Germano Marques da Silva, a fundamentação é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. «Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decisora a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina» (Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, p. 294).
A fundamentação constitui, por conseguinte, um factor de transparência da justiça, explicitando, de forma que se pretende clara, os processos intelectuais que conduziram à decisão e permitindo, consequentemente, uma maior fiscalização das decisões judiciais por parte da comunidade.
De harmonia com o disposto no artigo 374.º, n.º2, do C.P.P., a fundamentação consta da «enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Os factos provados e não provados são todos os constantes da acusação e da contestação, quer sejam substanciais quer instrumentais, e ainda os que resultarem da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão. A imposição da enumeração dos factos provados e não provados só se satisfaz com a relacionação ou narração minuciosa, isto é, um a um, dos factos provados e não provados.
No caso vertente, da sentença recorrida consta a indicação pormenorizada dos factos provados e não provados.
As razões de direito que servem para fundamentar a decisão devem também ser especificadas na fundamentação, o que, no caso, acontece.
No que toca à fundamentação da decisão de facto, exige-se a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Não basta, por conseguinte, indicar os meios de prova utilizados, tornando-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido. Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjectivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio.
O Acórdão n.º 680/98, do Tribunal Constitucional, de 2 de Dezembro de 1998, D.R., 2ª Série, de 5 de Março de 1999, julgou inconstitucional a norma do n.º2 do artigo 374.º do C.P.P. de 1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1.ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º1 do artigo 205.º da Constituição, bem como, quando conjugado com a norma das alíneas b) e c) do n.º2 do artigo 410.º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no n.º1 do artigo 32.º, também da Constituição.
Escreveu Marques Ferreira a respeito da motivação de facto: «Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência». E acrescenta, mais adiante: «A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe inequivocamente o art. 410.º, n.º2 (...).» Por sua vez, «extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade» (“Meios de Prova”, in Jornadas de Direito Processual Penal/ O Novo Código de Processo Penal, p. 229 e 230).
Mais detidamente sobre o “exame crítico” das provas, disse o Supremo Tribunal de Justiça: «O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção» (acórdão de 16 de Março de 2005, Processo:05P662, www.dgsi.pt).
Quer isto dizer que a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada em que a sentença reproduza os depoimentos das testemunhas inquiridas, pois o que importa é explicitar o porquê da decisão tomada relativamente aos factos, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma avaliação segura do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de base ao respectivo conteúdo (cfr. acórdão do STJ, de 26 de Março de 2008, Processo: 07P4833, www.dsgi.pt; sobre o tema da fundamentação das sentenças, o texto do Desembargador Sérgio Poças, Da sentença penal – Fundamentação de facto, Revista “Julgar”, n.º3, p. 21 e segs.).
No caso em análise, basta ler a motivação da decisão de facto para concluir que o recorrente carece de razão.
Realmente, esforçou-se o tribunal a quo no sentido de explicitar, de forma tão completa quanto possível, as razões da sua convicção.
Para além de indicar concretamente as provas consideradas, referenciando os depoimentos e a prova documental, a sentença detém-se no seu exame, expondo as razões pelas quais, com base nas provas, o tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada e não provada.
A sentença recorrida indicou a razão de ciência e os motivos de credibilidade ou não dos diversos depoimentos prestados, tanto quanto é possível objectivar tal juízo, fazendo-o ponto por ponto, ou seja, percorrendo toda a factualidade, não procedendo a invocação de que a fundamentação se limitaria a utilizar expressões vagas e juízos conclusivos.
Tendo em vista que a prova deve ser apreciada segundo as regras da experiência, em que se incluem as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184), a sentença recorrida não deixou de apresentar, com meridiana clareza, as razões da decisão.
Conclui-se, pois, que poderão os arguidos discordar do julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal a quo – daí as impugnações da decisão sobre a matéria de facto – e bem assim da decisão de direito, mas que carece de razão dizer-se que a sentença recorrida não se mostra fundamentada, designadamente no que concerne à decisão sobre a matéria de facto.
Assim, quanto a esta questão, o recurso não colhe provimento.
2.A questão da caducidade do direito a liquidar os impostos.
Suscita o recorrente a questão da caducidade do direito à liquidação do IVA, com base no preceituado no artigo 45.º da Lei Geral Tributária.
E isto com fundamento na circunstância de a notificação que lhe foi efectuada, para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º4, alínea b), do RGIT (na redacção introduzida pelo artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro) ter sido feita, conforme consta do facto provado n.º 19, nos seguintes termos: «Por carta registada, com prova de depósito, datada de 04.05.2007, o arguido A... foi notificado para proceder ao pagamento, em 30 dias, do valor em dívida ao Estado a título de IVA, juros de mora, coima a acréscimos legai».
A nosso ver, o recorrente carece manifestamente de razão.
Em primeiro lugar, importa salientar que a notificação efectuada nos termos do artigo 105.º, n.º4, do RGIT, não tem o significado de liquidação de imposto, para os efeitos do artigo 45.º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, sendo certo que, nos presentes autos, o que está em causa não é, apenas, uma dívida de imposto, mas antes uma conduta que constitui ilícito criminal – e o procedimento criminal não se iniciou, como é óbvio, com essa notificação.
Discutiu-se, largamente, a natureza da exigência de tal notificação, sendo dominante o entendimento na jurisprudência de que se trata de uma condição objectiva de punibilidade.
O que ninguém alguma vez entendeu é que se trate de uma liquidação de imposto para os efeitos da Lei Geral Tributária.
Tendo em vista a extinção do procedimento criminal, a menção que o recorrente faz ao prazo de caducidade do direito à liquidação de imposto poderia ter cabimento se, conjugado tal prazo com o disposto no artigo 21.º, n.º3, do RGIT, houvesse que concluir no sentido da prescrição do procedimento criminal.
Realmente, acerca do prazo de prescrição do procedimento criminal instaurado pela prática de crime tributário, estabelece o artigo 21.º, n.º1, do RGIT que «O procedimento criminal por crime tributário extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a sua prática sejam decorridos 5 anos».
O seu n.º 3, porém, estabelece que o prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária, «quando a infracção depender daquela liquidação».
A caducidade do direito à liquidação de impostos encontra-se regulada na Lei Geral Tributária (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro).
Ora, salvo melhor opinião, no caso de abuso de confiança fiscal por falta de entrega do IVA, a verificação do crime não depende de qualquer liquidação, pelo que o prazo de prescrição do procedimento criminal é o do n.º 1 do artigo 21.º do RGIT, e não o do n.º 3.
É sabido que o IVA visa tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo, na sua incidência, todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, tendo como base tributável o valor acrescentado em cada fase.
A dívida tributária de cada operador económico é calculada pelo método do crédito de imposto, pois aplicada a taxa ao valor global das transacções da empresa, em determinado período, deduz-se o imposto por ela suportado nas compras desse mesmo período, revelado nas respectivas facturas de aquisição.
O apuramento do imposto devido é feito pela dedução ao imposto liquidado, do imposto suportado nas aquisições, isto é, os sujeitos passivos de IVA suportam impostos nas aquisições de bens e serviços efectuados a outro sujeito passivo e por sua vez liquidam IVA nas transmissões por si efectuadas. Do encontro desses dois valores apura-se o valor do IVA, imposto a pagar pelo sujeito passivo, o crédito de imposto ou IVA liquidado igual ao IVA deduzido, não havendo imposto a pagar ou a receber.
Lê-se no Acórdão da Relação do Porto, de 22 de Novembro de 2006 (Processo: 0644904):
«A infracção consistente em não entregar o IVA, não depende de qualquer direito, da administração fiscal, à liquidação tributária.
No que ao IVA diz respeito, é ao sujeito passivo que cabe liquidar o montante de imposto apurado nas transacções por si efectuadas, remeter as declarações periódicas e, posteriormente, entregar nos cofres do Estado o montante liquidado nas facturas e pela sociedade arguida recebido.»
E, mais adiante:
«Salvo nos casos previstos nos artigos 82º, 83º e 83º-A do CIVA, o apuramento do IVA não depende de qualquer actividade, designadamente de qualquer liquidação, por parte da administração fiscal, sendo aquela primeira situação, a de rectificação por parte do chefe dos serviços de Finanças, das declarações apresentadas, liquidando-se a diferença, quando fundadamente aquele considere que nelas figura um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, sendo a segunda situação, referente à liquidação oficiosa do imposto, por parte da Direcção dos Serviços de Cobrança do IVA, sempre que o sujeito passivo não tiver apresentado a declaração periódica e a última, refere-se à mesma prerrogativa, por parte do chefe do serviço de Finanças.
No caso concreto do IVA, não entregue à administração fiscal, tal supõe, necessariamente, a inexistência de liquidação na data da consumação do crime, sendo, de resto, os factos ocultados à administração fiscal, precisamente aqueles que seriam usados para a liquidação, futura, por parte da administração fiscal. Ou seja, no caso em apreço, a verificação do crime não só não depende da liquidação como necessária e logicamente, a precede.
Aliás, a admitir-se que a verificação do crime dependeria, no caso, da liquidação do imposto, levar-nos-ia à conclusão de que, na medida em que ainda não houve liquidação, o crime ainda se não teria consumado. pois que “a infracção depende da liquidação”, como refere o nº. 3 do referido artigo 21º do RGIT (…)
Concordamos inteiramente com este entendimento.
Donde a conclusão de que no caso de abuso de confiança fiscal por não entrega do IVA, a verificação do crime não depende de qualquer liquidação pela administração tributária, pelo que o prazo de prescrição do procedimento criminal, é não o de 4 anos, previsto no n.º 3 do artigo 21.º do RGIT, mas antes o prazo previsto no n.º 1 da mesma norma, que sofre as interrupções e suspensões previstas na lei penal.
Além de que, como já se realçou, a notificação a que o recorrente se refere não traduz um acto de liquidação de impostos por parte da administração tributária, a considerar para efeitos do disposto no artigo 45.º, n.º1, da Lei Geral Tributária.
Face ao exposto, temos como manifesto o equívoco em que o recorrente incorre e a sua falta de razão.
3. Alega ainda o recorrente que a notificação efectuada para os efeitos do artigo 105.º, n.4, alínea b), do RGIT, não cumpriu os requisitos mínimos de conteúdo informativo legalmente previstos, o que «não pode deixar de configurar o preterimento de uma autêntica condição objectiva de punibilidade».
A nosso ver, também nesta parte a argumentação apresentada pelo recorrente não merece acolhimento.
Em primeiro lugar, a notificação em causa menciona, expressamente, as dívidas de imposto em causa. É certo que não especifica o valor da coima e dos acréscimos legais de juros.
Tal omissão constituirá, quanto muito, uma simples irregularidade, que só foi arguida em sede de recurso, muito tempo depois da sua alegada verificação.
Advertido o recorrente para, no prazo fixado, fazer prova no processo de que procedeu ao pagamento das prestações em dívida (que foram concretamente indicadas), da coima e dos juros, se o recorrente pretendesse cumprir, efectivamente, com a notificação, teria requerido à administração tributária a passagem de guias para pagamento das prestações em dívida (que sabia quais eram), da coima e dos juros, efectuado os respectivos pagamentos, solicitando uma declaração do cumprimento e apresentando-a, depois, no tribunal.
O recorrente nada fez.
Entendemos, pois, carecer de razão.
3.2. Impugnações da matéria de facto
1. Como dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma doravante designado de C.P.P.), os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito. Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º3 e 431.º do C.P.P., ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Resulta da análise das motivações que os recorrentes discordam da matéria de facto dada como provada, embora, por vezes, confundam questões verdadeiramente de facto com divergências ao nível da interpretação do direito.
2. É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P.Penal.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base em transcrições ou na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.Penal:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).
3. Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
4. Importa, pois, apreciar as impugnações da matéria de facto sem esquecer que, ao contrário do que ocorreu com a 1.ª instância, este tribunal não beneficia da imediação, estando limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal, no quadro da livre apreciação da prova (artigo 127.º do C.P.P.) de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
5. Entrando, agora, na reapreciação da matéria de facto, face à prova produzida e dentro dos limites e condicionalismos acima referidos, a partir do registo da prova.
5.1. A) Recurso do arguido L...
1. Diz o recorrente que no presente processo inexistem elementos de facto que possibilitem a sua condenação e que a prova gravada em audiência de julgamento suporta uma conclusão diferente daquela atingida pelo tribunal a quo.
Como já se disse, a impugnação que apresenta sistematicamente entrelaça questões relativas à decisão da matéria de facto e considerações que têm a ver com a interpretação do direito.
Analisada a motivação e as respectivas conclusões, constata-se que a impugnação ampla da matéria de facto fundamenta-se nas declarações prestadas pelo próprio arguido e no depoimento da testemunha F....
Analisado o registo da prova, pela audição das gravações, verificamos:
As declarações do arguido L..., não constituindo uma confissão integral e sem reservas – e já nos pronunciámos antes sobre a questão –, certo é que, ao contrário do que se pretende sustentar no recurso, são amplamente confessórias.
Realmente, este arguido, ora recorrente, claramente admitiu ser administrador da sociedade arguida, dizendo que tal aconteceu a convite do co-arguido A....
Disse o arguido L..., conforme se infere do registo da prova, que a sociedade exercia a actividade de comércio de automóveis. Que quem se encarregava dos negócios de compra e venda dos veículos era o co-arguido A..., que tinha experiência no negócio, entanto ele tinha a seu cargo a parte financeira.
Admitiu, inequivocamente, a falta de entrega de IVA à administração fiscal. E para explicar essa situação, disse: que o IVA liquidado era «o que foi possível liquidar»; que o IVA só não foi entregue «por dificuldades financeiras agravadas»; que «tínhamos, tinha consciência que existia essa dívida…»; que «o IVA era uma coisa que não havendo disponibilidade, ia ficando para trás», etc.
Das suas declarações resulta, pois, o reconhecimento de que era administrador da sociedade, muito embora esclareça que não tinha experiência naquele ramo de negócio; a admissão de que sabia caber-lhe, e ao co-arguido, proceder ao pagamento do IVA; o reconhecimento de que sabia haver IVA que não era pago porque «ia ficando para trás».
Saliente-se que o arguido, a dada altura, chegou a dar a seguinte explicação:
A maior parte das aquisições que a sociedade fazia eram realizadas no estrangeiro. Os fornecedores estrangeiros não davam crédito à empresa, pelo que havia a necessidade de aproveitar os fundos disponíveis para efectuar os respectivos pagamentos.
O M.mo Juiz, perante tal explicação, perguntou se o que o arguido queria dizer é que o dinheiro que deveria ser entregue ao Estado acabava por «tapar esses buracos», e a resposta que obteve foi no sentido de corroborar tal afirmação. Basicamente, o que se infere, é que o arguido admitiu que, perante a necessidade de efectuar pagamentos a esses fornecedores no estrangeiro e a existência de alguns clientes em falta, acabava por não se proceder à entrega do IVA ou de todo o IVA devido ao Estado. Isto independentemente de referir a existência de esforços da sua parte no sentido de ir efectuando alguns pagamentos – inclusivamente do seu bolso.
E o arguido também admitiu que tinha a seu cargo a parte financeira da empresa, pese embora os negócios de compra e venda dos veículos fossem efectuados pelo co-arguido A..., por vezes sem pré-aviso, e bem assim confessou ter conhecimento de que a não entrega ao Estado do IVA em causa integrava um crime.
A dada altura, o M.mo Juiz perguntou: «Os Srs. no fundo sabiam que este dinheiro não vos pertencia, pertencia ao Estado, não é? E acabaram por efectivamente não entregar este dinheiro nos cofres do Estado» ao que o arguido, significativamente, respondeu «Essa é que é a verdade».
Ainda mais concretamente quanto ao IVA, o arguido disse que ia à empresa ao sábado à tarde, normalmente com o contabilista, embora pudesse passar por lá durante a semana, no caso de haver necessidade de algumas assinaturas. Que a contabilidade apurava o IVA e dava informação sobre o respectivo valor. E que, normalmente, não havia verba para poder emitir o cheque, o que era do seu conhecimento e do seu co-arguido.
Perguntado sobre se decidiram em comum não entregar esses montantes de IVA ao Estado, respondeu: «Sim, protelar, não entregar naquela data» e mais adiante «no pressuposto de mais tarde se pagar tudo direitinho…»
O que resulta das declarações do arguido L..., analisadas no seu conjunto, é que o mesmo sabia da existência de IVA que devia ser entregue ao Estado e que, perante os compromissos financeiros da empresa, acabavam por ser realizados outros pagamentos em detrimento da entrega do IVA.
A alegação de que existiam fornecedores estrangeiros que não concediam crédito e clientes que não pagavam, podendo ser aceite como explicação para a falta de entrega do IVA, não serve, porém, de justificação, pois o que se infere é que os arguidos – e certamente o arguido L..., como responsável pela área financeira – decidiam dar prioridade a outros compromissos da empresa, em detrimento da satisfação das obrigações fiscais, o que significa, afinal, dar diferente destinação aos valores de IVA que deviam ser entregues ao Estado. Entre pagar a fornecedores estrangeiros que não concediam crédito e entregar ao Estado o IVA liquidado, pagava-se aos fornecedores.
Verificamos, pois, que as declarações prestadas pelo arguido são, em muitos aspectos, confessórias.
Atente-se, ainda, nos depoimento das testemunhas Jorge Ferreira e AG..., inspectores tributários, que confirmaram o teor do relatório de inspecção tributária de fls. 61 e segs., elaborado pelo fisco, designadamente o valor do IVA em causa nos autos, bem como a circunstância de o mesmo ter sido liquidado pela sociedade arguida e por ela não entregue nos cofres da Fazenda Nacional. AG..., em relação aos concretos montantes de IVA que estão em causa nos presentes autos, da análise a que procedeu dos elementos contabilísticos da sociedade-arguida, não colheu informação que corrobore a ideia de que se trate de IVA liquidado mas não cobrado.
Se nos detivermos no depoimento da testemunha F..., que foi técnico de contas da sociedade-arguida – depoimento prestado no dia 8 de Fevereiro de 2008 –, constata-se que o mesmo referiu que, no ano de 2001, as coisas funcionavam bem na empresa, do ponto de vista económico. Até à sua entrada na empresa, não havia entregas de IVA pois nem sequer estavam identificados os valores em dívida. A contabilidade só foi feita a posteriori, pelo que só tardiamente foram cumpridas as obrigações declarativas. Depois de explicar o que entende por vertente económica, vertente financeira e vertente monetária da empresa, esclareceu que os negócios de compra e venda eram efectuados pelo arguido A..., com grande autonomia – e, por vezes, de modo quase informal e improvisado –, e que o arguido L... dava-lhes seguimento, do ponto de vista financeiro, procurando encontrar os recursos financeiros e fazer o planeamento adequado para cumprir os compromissos assumidos. Quanto ao IVA, foi através do trabalho desenvolvido pela testemunha que se apurou a dimensão dos valores em causa, tendo sido cumpridas, só então, as obrigações declarativas em falta. A testemunha alertou ambos os arguidos para a situação e para a relativa informalidade de alguns dos negócios realizados.
É certo que a testemunha referiu que era o arguido A... o mentor e executor da condução dos negócios, mas não deixou de dizer que «o Dr. L... muitas vezes deu cobertura e isto é evidenciado e pode ser verificado pela contabilidade» e que «o Dr. L... muitas vezes não tinha dinheiro nas contas e encontrava expedientes de natureza financeira para dar o seguimento e bom cumprimentos desses cheques de compromissos assumidos …»
E mais assegurou ter confrontado, por diversas vezes, ambos os arguidos com a situação, dando conta ao tribunal do seu esforço «para que a contabilidade pudesse reflectir a verdade das transacções efectuadas».
A dada altura, perguntado pelo M.mo Juiz sobre se havia dinheiro suficiente na empresa para, em 2001 e em 2002, serem pagas prioritariamente as dívidas ao fisco e se elas só não foram pagas por má administração, por má gestão, desvios de dinheiro, etc., respondeu que «haveria dinheiro, se não para tudo, para uma grande parte, se a prioridade fosse essa».
Depreende-se do depoimento da testemunha F..., considerado na sua globalidade, que pese embora a circunstância de os negócios de compra e venda serem conduzidos pelo arguido A..., o co-arguido L... não deixou de lhes dar cobertura.
Ainda que tais negócios se revestissem, por vezes, de grande informalidade e existissem situações, por exemplo, de permutas de veículos, com emissão de factura e liquidação de IVA, sem entrada directa de meios monetários, seria possível entregar ao Estado o IVA devido «se a prioridade fosse essa».
O que tem de ser compreendido, a nosso ver, como decisão de satisfazer determinados compromissos em detrimento das obrigações fiscais, ou seja, utilizavam-se os valores que haviam de ser entregues ao Estado a título de IVA para satisfazer outros compromissos financeiros da empresa.
E o arguido L... estava consciente desta realidade.
A dada altura, este arguido relatou ao tribunal a existência de negócios com a «Auto T…, Lda», com sede em Angola, que alegadamente seria do co-arguido, a quem teriam sido vendidos diversos veículos, sem que os respectivos montantes tenham entrado nas contas da sociedade-arguida.
Sobre essa matéria também depôs a testemunha F....
A esta «Auto T…, Lda» referem-se o facto provado n.º 39 e o facto não provado n.º 69.
Ora, não se vislumbra que tal matéria contenda, de algum modo, com a factualidade aqui relevante e que concerne às dívidas de IVA que concretamente estão em causa.
Repete-se: o que resulta das declarações do arguido L... – pese o esforço desenvolvido no sentido de remeter a responsabilidade para o seu co-arguido – e do depoimento da testemunha F..., é que o não pagamento do IVA decorreu da circunstância de se ter dado prioridade à satisfação de outros compromissos, designadamente, o pagamento de fornecedores.
A testemunha, aliás, depois de referir a desorganização da empresa, foi perguntada sobre se esta se preocupava mais em vender e pouco em organizar-se e em pagar na forma devida as suas obrigações, designadamente fiscais, tendo respondido, significativamente: «Sem tirar nem pôr, Sr. Dr.»
E também assegurou que o arguido L... sabia da existência de impostos por pagar – facto que, como já se viu, esse arguido claramente admitiu nas declarações que prestou em julgamento.
Repare-se que os factos provados assumem que o arguido A... era quem contactava clientes e celebrava os concretos negócios de compra e de venda dos veículos automóveis (ver facto n.º 10), mas isso não exonera o co-arguido L... das suas responsabilidades como administrador.
Quanto aos negócios de venda a diversos clientes e à emissão das correspondentes facturas e liquidação do respectivo IVA (facto n.º 11), o tribunal recorrido firmou a sua convicção:
«Tomou-se em consideração as declarações do arguido A..., o qual confirmou tal facto e referiu até que a sociedade arguida facturava muito bem (cerca de 10.000 contos, por mês), sendo certo que tais declarações se mostram apoiadas nas declarações, unânimes, do arguido L..., no grande conjunto de facturas juntas aos autos, de onde consta a liquidação do IVA (ex.: facturas de fls. 83 a 86 dos autos), no extracto de clientes de fls. 73 a 76, do qual resulta que a sociedade arguida tinha 200 clientes, bem como no extracto de contas-correntes de fls. 116 e segs., e ainda no mapa de relação de clientes de fls. 65 e segs., de todos constando a realidade adiantada por ambos os arguidos, ou seja, que no período de tributação em causa nos autos existia na sociedade arguida uma elevada facturação mensal, com liquidação de IVA sobre os preços dos veículos vendidos, como também um elevado fluxo de caixa (cash-flow, na expressão anglo-saxónica), designadamente ao nível dos recebimentos de clientes, sendo certo que o supra referido mapa e contas-correntes encontram correspondência designadamente nas supra referidas facturas.
Tais recebimentos, os quais encontram correspondência nos muitos e variados documentos contabilísticos juntos aos autos (facturas, recibos, cheques, comprovativos de transferências bancárias, dos clientes e de empresas de leasing com os quais os mesmos contratavam a aquisição à sociedade arguida dos veículos por ela vendidos), apuram-se em: a) 362.508,17 euros, relativos ao 2° trimestre de 2001; b) 636.301,27 euros, relativos ao 3° trimestre de 2001; c) 685.385,67 euros, relativos ao 4° trimestre de 2001; d) 471.007,44 euros, relativos ao 3° trimestre de 2002; e) 309.756,11 euros, relativos ao 4° trimestre de 2002.»
Nem as declarações do arguido L..., nem o depoimento da testemunha F..., infirmam esta factualidade – antes a corroboram.
Quanto aos factos 12, 13 e 14, diz a sentença recorrida, em sede de motivação da decisão de facto:
«Mostram-se por provados atentas as declarações, honestas, do arguido L..., as quais foram contrariadas pelas declarações, não credíveis, do arguido A..., o qual assentando toda a sua defesa sobre o facto de não ser gestor de facto da sociedade arguida, com o significado que tal expressão encerra, como vimos supra, negou todos os restantes factos constantes da acusação.
O arguido L... referiu que o dinheiro que deveria servir para pagar os impostos era canalizado para a aquisição de mais viaturas no estrangeiro, bem como para suportar algumas dificuldades de tesouraria momentâneas que a sociedade arguida atravessava pelo facto de os clientes não pagarem logo, sendo certo que mais foi por ele dito que ambos, ele próprio e o arguido A..., chegaram a falar sobre a situação relativa ao não pagamento de impostos e que, após, durante o período em causa nos autos, ambos os arguidos decidiram, em conjunto, continuar a proceder da forma supra referida, adiando para mais tarde o pagamento dos mesmos.
O que acaba de referir-se mostra-se compatível com as declarações prestadas por F..., o qual disse que a sociedade arguida funcionava com base numa contabilidade totalmente desorganizada e que até à sua entrada na mesma nenhum dos arguidos se preocupava em pagar impostos, sendo certo que havia dinheiro para tanto e que, no entanto, a prioridade era aumentar o negócio com a aquisição de camiões.
F... aludiu até a alguma sofisticação na actuação dos arguidos, a qual, segundo os documentos constantes dos autos, é evidente, tendo em consideração que o fluxo de caixa na sociedade arguida era elevado, no período ora em equação, designadamente os pagamentos de clientes, e, nesta medida, nada justificava o não pagamento de impostos. Por outro lado, resulta de tais elementos que somente uma gestão completamente descontrolada e com o intuito de gerar dinheiro de forma fácil e rápida, à custa do não pagamento de impostos, justifica, face aos proventos obtidos com a normal actividade da sociedade, a situação a que a que a sociedade arguida e os arguidos chegaram.
Quanto à não entrega das declarações periódicas do IVA tal foi confirmado por F..., por C... e pelo arguido L..., mostrando-se confirmada pelo teor dos autos de notícia (fls. 1 e segs.) e relatório de inspecção tributária (fls. 61 e segs.) juntos aos autos.»
Como é fácil constatar, o que se lê na sentença recorrida, quanto aos referidos factos, tem correspondência com a prova produzida, designadamente com as declarações do arguido e o depoimento da testemunha F....

2. Aqui chegados, o recorrente entrelaça a impugnação da matéria de facto com questões de natureza jurídica, para referir que falta a prova dos elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de confiança fiscal.
A questão é, essencialmente, colocada a propósito da noção de «apropriação».
Para o recorrente, faltaria a demonstração da intenção de apropriação das quantias em causa.
Vejamos:
Deu-se como provado:
11) No âmbito da sua actividade, e desde a data referida em 7), a sociedade arguida vem procedendo à venda de veículos, a diversos clientes, pelos quais se faz pagar, mais emitindo as correspondentes facturas e liquidando o respectivo IVA;
12) Ora, a partir do início de 2001 ambos os arguidos decidiram deixar de entregar nos cofres do Estado as quantias referentes ao IVA que em cada trimestre fosse apurado pela sociedade arguida enquanto diferença entre o IVA suportado ou liquidado nas compras de veículos e o IVA liquidado aos seus clientes aquando das vendas dos mesmos;
13) Mais deixaram os arguidos de entregar ao Estado as declarações periódicas referentes a tal imposto;
14) Pretendiam assim os arguidos integrar e passar a usar as quantias correspondentes a tal diferença no normal giro da sociedade arguida, o que conseguiram;
15) Assim, a sociedade arguida apurou a favor do Estado os seguintes montantes a título de IVA, o qual não foi entregue:
a) 1° Trimestre de 2001 -14.051,08 euros;
b) 2° Trimestre de 2001 - 23.577,38 euros;
c) 3° Trimestre de 2001 - 71.322,41 euros;
d) 4° Trimestre de 2001 - 52.226,69 euros;
e) 1° Trimestre de 2002 - 73.815,61 euros;
f) 2° Trimestre de 2002 - 49.682,48 euros;
g) 3° Trimestre de 2002 - 56.096,56 euros;
h) 4° Trimestre de 2002 - 31.162,70 euros;
16) Dado que nenhuma consequência adveio da não declaração periódica das quantias referentes ao IVA nem da sua falta de entrega nos cofres do Estado os arguidos aproveitaram tal situação para prosseguir na sua conduta;
17) Os arguidos tinham a obrigação de remeter à administração fiscal as declarações periódicas de IVA, bem como as quantias referentes a tal imposto, até ao 10° dia do 2° mês seguinte ao termo de cada trimestre.
E também se provou:
23) Ambos os arguidos sabiam que os supra referidos valores relativos ao IVA lhes não pertenciam, nem tão pouco à sociedade sua representada, e que os mesmos eram pertença do Estado, bem como que deviam entregar cada um dos supra referidos montantes nos prazos acima assinalados;
24) Os arguidos lograram apropriar-se da quantia global de 371.934,91 euros, da qual passaram a dispor em benefício da sociedade arguida, integrando tal quantia no giro comercial da mesma;
25) Os arguidos ao actuarem em nome, no interesse e em representação da sociedade arguida, agiram, em comunhão de esforços e intentos, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Para o recorrente, não resulta nem da acusação, nem da sentença recorrida que se tenha apropriado de quaisquer quantias, pois o que ficou provado foi a existência de um empréstimo do recorrente à sociedade arguida (e, efectivamente, tal empréstimo consta do ponto n.º 38 da factualidade provada).
Por outro lado, segundo o recorrente, faltaria o dolo do tipo em relação à apropriação.
Como se disse, o recorrente mistura a impugnação da decisão sobre a matéria de facto com a sua interpretação jurídica do tipo legal de crime. O que, de algum modo, se compreende, pois no centro da impugnação da factualidade provada está a alegação de que não de provou – nem os factos da acusação o permitiriam, segundo alega – a «apropriação».
A este propósito, importa recordar que o artigo 105.º do RGIT não faz referência expressa à apropriação, total ou parcial, das quantias deduzidas, diversamente do disposto no artigo 24.º, n.º1 do RJIFNA, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro.
No caso concreto, estamos perante condutas, unificadas como continuação criminosa, que ocorrem no âmbito de vigência temporal do RJIFNA e do RGIT.
Quer da acusação que o Ministério Público deduziu, quer dos factos que o tribunal recorrido considerou provados, resulta que os arguidos procederam à liquidação de IVA a clientes, pelas vendas realizadas, e não procederam à entrega dessas quantias ‘descontadas’ à entidade a quem se destinavam e eram devidas, a Administração Fiscal.
Ora, a «apropriação» a que se reportava o referido artigo 24.º traduzia-se pela não entrega total ou parcial das quantias retidas, sendo, assim, indiferente o destino dado a essas quantias e não sendo necessária a prova de que as mesmas foram gastas em proveito exclusivo da sociedade ou dos seus sócios.
Como se lê no Acórdão do S.T.J., de 24 de Março de 2003 (C.J., Acs. do STJ, Ano XXVIII, Tomo I, pp. 234 e segs.), muito embora o RGIT não fale em «apropriação», certo é que «se o agente não entrega à administração tributária as prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, dando-lhes assim um destino diferente daquele que lhe era imposto por lei».
O entendimento jurisprudencial dominante tem sido, pois, o de que quem não entrega no prazo a prestação tributária deduzida ou cobrada, usando-a para um fim diferente do legalmente previsto, dela se apropria.
No caso vertente, ao contrário do que o recorrente sustenta, é clara a menção na acusação, como clara é a menção entre a factualidade assente na sentença, quanto ao facto de os recorrente terem deixado de entregar as declarações periódicas referentes ao IVA e de não entregarem à administração tributária os montantes em causa, para passarem a usar as quantias correspondentes «no giro da sociedade arguida, o que conseguiram», sabendo «que os supra referidos valores relativos ao IVA lhes não pertenciam, nem tão pouco à sociedade sua representada, e que os mesmos eram pertença do Estado, bem como que deviam entregar cada um dos supra referidos montantes nos prazos acima assinalados» e que «ao actuarem em nome, no interesse e em representação da sociedade arguida, agiram em comunhão de esforços e intentos, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.»
Como já referimos, antes desta breve digressão pelo direito, a prova seleccionada pelo recorrente não infirma, de modo algum, a factualidade provada: das declarações do arguido, bem como do depoimento da testemunha F..., resulta claro que o recorrente L... sabia da obrigação de entregar o IVA em questão ao Estado, conhecia a natureza criminal da conduta, sem que tais entregas tenham sido efectuadas.
Também não nos oferece quaisquer dúvidas que a não entrega do IVA deveu-se a escolhas que foram feitas, no sentido de se proceder à satisfação de outros compromissos financeiros da empresa, em detrimento do cumprimentos das obrigações fiscais.
O que significa afectar os montantes do IVA devidos ao Estado a outras finalidades do interesse da sociedade-arguida, tal como se deu como provado.
A posição que o recorrente sustenta na motivação parece partir do pressuposto, totalmente equivocado, de que a comissão do crime imputado exigiria que ele “metesse ao bolso” os montantes de IVA em questão – o que não decorre minimamente da lei.
A sua impugnação parece ignorar os próprios elementos de prova pessoal de que se socorre.
Como é possível dizer que o recorrente nunca decidiu não pagar o IVA que ao Estado pertencia, quando o que se infere, com clareza, das suas declarações, é que o recorrente admitiu que, perante a necessidade de satisfazer outros compromissos financeiros – designadamente, efectuar pagamentos a fornecedores no estrangeiro – acabava por não se proceder à entrega do IVA ou de todo o IVA devido ao Estado?
Isto independentemente de também se ter provado a existência de empréstimos do recorrente à sociedade-arguida e o seu empenho em tentar regularizar a situação tributária desta.
Todo o discurso sobre a apropriação que o recorrente desenvolve ao longo da motivação, com base nos pagamentos que efectuou, nas actividades que desenvolvia na empresa, na circunstância de o co-arguido ser quem tratava dos negócios de compra e venda de veículos, etc., tem como ponto de partida, a nosso ver, uma errada noção do tipo de crime em questão e uma selecção de segmentos da prova pessoal que ilude a necessidade de tal prova ser valorizada na sua apreciação global.
Atente-se, por exemplo, que o recorrente ignora que, a dada altura, perguntado pelo M.mo Juiz sobre se havia dinheiro suficiente na empresa para, em 2001 e em 2002, serem pagas prioritariamente as dívidas ao fisco e se elas só não foram pagas por má administração, por má gestão, desvios de dinheiro, etc., a testemunha F... respondeu que «haveria dinheiro, se não para tudo, para uma grande parte, se a prioridade fosse essa».
É o próprio recorrente a admitir em julgamento que sabia haver IVA por pagar – afinal, era ele o responsável pela área financeira da sociedade –, e ainda assim vem na impugnação alegar que tal facto não se provou.
Veja-se, ainda, a referência aos negócios com Angola, de que se provou que «em 31.12.2004, a Auto T… Angola, Lda., com sede em Angola, empresa a quem a sociedade arguida vendeu automóveis, tinha um débito para com a mesma no valor de 325.000,00 euros» (facto 39), mas sem que daí decorra, a nosso ver, qualquer consequência relevante no plano da factualidade concretamente imputada ao recorrente, do mesmo modo que não se vislumbra minimamente que com base nas declarações deste e da testemunha F... tivesse o tribunal recorrido de dar como provada a matéria que deu como não assente sob o n.º 69 e 70, pois não há uma afirmação segura da natureza da relação do co-arguido com a mencionada sociedade angolana e nada temos a censurar quanto à afirmação de que a prova realizada não foi suficiente para que essa matéria fosse dada como assente.
Repare-se que o que está em causa nos presentes autos é IVA de 2001 e 2002.
A existência posterior de negócios que tenham corrido mal e causado dificuldades financeiras à sociedade-arguida – como as maiores dificuldades que o recorrente assinala terem-se verificado a partir de Outubro de 2003, em que teria ocorrido «completamente o descalabro», não pode iludir o facto de que, já então, os montantes do IVA aqui em causa deveriam ter sido entregues à administração tributária. Trata-se, pois, de problemas posteriores que terão dificultado a regularização da situação tributária existente, mas que não podem fazer esquecer que já então o IVA em dívida havia sido utilizado ilegalmente para outras finalidades que não as legalmente estabelecidas.
Aliás, este é um dos reparos que importa fazer quanto à argumentação desenvolvida pelo recorrente: confunde sistematicamente as dificuldades que se colocaram quanto à regularização posterior da situação tributária anteriormente criada, dada a situação financeira a que a sociedade chegou, com a circunstância inequívoca de, já antes, a situação tributária existir, num tempo em que, nas palavras de F..., teria sido possível satisfazer a obrigação de entregar o IVA se essa tivesse sido, na altura, a prioridade – e não foi, como o recorrente admitiu.
Daí que não tenha sustentação nos elementos de prova seleccionados a alegação de que o recorrente não tinha qualquer domínio sobre a decisão de pagar ou não os impostos.
Quanto à matéria sob os n.º 23, 24 e 25 dos factos provados, o tribunal deu-os como assentes «atentas as ilações retiradas da restante matéria fáctica dada como provada, analisada à luz das regras da lógica e da experiência comum, e da respectiva fundamentação, sendo certo que o comum dos cidadãos, de mediana inteligência, sabe que constitui um ilícito criminal a não entrega do IVA ao Estado, sendo comuns as notícias veiculadas na comunicação social quanto à prática deste crime, e que o arguido A... havia já sido condenado por crime fiscal (ponto 65) dos factos provados)
Pelas razões supra expostas, tendo sempre em vista que, quanto à matéria que se situa no plano da subjectividade, a prova faz-se, essencialmente, por meio de inferências que se retiram dos factos objectivos, à luz da lógica e das regras da experiência comum, nada temos a censurar à sentença recorrida.
No mais, afigura-se-nos que o recorrente insiste em confundir conceitos, designadamente a propósito da noção de «apropriação», matéria a que voltaremos, com outro detalhe, a propósito da subsunção jurídica.
Em suma: analisada a prova indicada, não encontramos qualquer razão para alterar a matéria de facto no sentido propugnado pelo recorrente.
5.1. B) Recurso do arguido A...
1. Este recorrente alega que foram indevidamente considerados como provados os pontos de facto 9, 10, 12, 13, 14, 16, 17, 23, 24, 25, assim como foi dado indevidamente como não provado o ponto 67.
Vejamos:
A questão central está em saber se o tribunal recorrido bem andou ao dar como provado, no ponto 9, que o recorrente exercia a administração de facto da sociedade-arguida, juntamente com o co-arguido L....
Lê-se na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a propósito do ponto 9:
«Tomou-se em consideração que pese embora tal facto tenha sido desmentido pelo arguido A..., o qual, de forma não credível, referiu que apenas era empregado da sociedade arguida, nela exercendo funções de vendedor o que, também de forma não credível, igualmente foi dito por E..., o arguido L..., de forma segura e sincera, contrariando o referido pelo primeiro, declarou que ambos dirigiam os destinos da sociedade arguida, quer no que toca à sua normal actividade comercial do dia-a-dia, quer no que respeita às opções de estratégia empresarial de longo prazo.
Mais referiu o arguido L... que era o arguido A... quem tinha a seu cargo a compra e venda de veículos automóveis, designadamente camiões, os quais, na sua grande maioria eram adquiridos no estrangeiro, atenta a sua longa experiência na matéria (pontos 47), 48) e 57) dos factos provados).
L... referiu ainda que, por outro lado, era ele quem tratava da matéria mais burocrática da organização da sociedade, designadamente no que toca à gestão financeira, incluindo o pagamento de impostos, atenta, designadamente, a sua formação de base (ponto 52) dos factos provados), bem como a experiência de gestão adquirida na empresa referida no ponto 49) dos factos provados, sendo certo que tal repartição de funções foi confirmada pela testemunha F..., a qual, tal como referido nos factos provados, teve funções de auditor da contabilidade da empresa durante quase quatro anos (ponto 44 dos factos provados)).
O arguido L... referiu ainda, de forma sincera, que a sociedade arguida nasceu por iniciativa do arguido A..., atenta a sua longa experiência no ramo automóvel, sendo certo que ele próprio somente aceitou tornar-se sócio e administrador da mesma atenta a insistência do arguido, o qual era seu conhecido, o que se mostra compatível com as declarações de MF..., ex-mulher do arguido, que confirmou tal facto, sendo certo que em tal data a mesma ainda estava casada com o arguido.
O facto ora em apreço mostra-se, aliás, comprovado atentas as declarações de C..., o qual referiu que o arguido A... discutiu várias vezes consigo assuntos relacionados com a gestão da sociedade arguida, bem como de F..., o qual referiu que tal arguido lhe disse ser dono da sociedade arguida, o que, na sua opinião, era compatível com o que pela testemunha era percepcionado quanto à gestão da mesma, porquanto o arguido A... tinha a gestão total das compras e vendas e confrontava o arguido L... com negócios consumados, muitos deles sem a concordância posterior deste último, e que o primeiro dos arguidos tinha por prioridade a expansão do negócio, nada se importando com o pagamento de impostos e canalizando as receitas da sociedade para esse fim.
Acresce que Y... referiu ter vendido pneus à sociedade arguida, tendo tratado o negócio com o arguido A....
Acresce ainda que RS... declarou ter emprestado, sem juros, 150.000,00 euros à sociedade arguida, sendo certo que foi a pedido do arguido A... que tal aconteceu, o qual é seu amigo e foi seu empregado durante cerca de 4/5 anos, no ramo automóvel, e que foi o mesmo quem se responsabilizou, pessoalmente, pelo pagamento da dívida.
Mais releva o facto de D... ter referido que recebia ordens do arguido A..., sendo certo que este detinha o controlo sobre todos os aspectos da actividade operacional da sociedade arguida, mais tendo declarado S... que se tivesse que sair mais cedo do trabalho pediria autorização ao arguido A... e que o seu salário correspondente a dois dos meses que trabalhou na sociedade arguida foram pagos por tal arguido.
Ora, tudo quanto referido supra, analisado à luz das regras da lógica e da experiência comum, mostra-se compatível com o teor dos factos dados como provados nos pontos 10), 28) a 37) dos factos provados.
Na verdade, se o arguido A... sempre foi um vendedor de automóveis de mão cheia, o qual inclusivamente foi dono de uma empresa de comercialização de veículos automóveis, não se percebe a razão pela qual o mesmo, detendo o know-how do negócio, aceitasse unicamente ser empregado do arguido L....
Por outro lado, nada justificaria o supra referido empréstimo concedido por RS... à sociedade arguida, nas condições em que o mesmo foi concedido, senão o facto de o arguido A... ter efectivamente responsabilidades de gestão da mesma, porquanto resulta da lógica normal das coisas que um mero empregado não se imiscui nos assuntos relativos ao financiamento da empresa sua entidade patronal, muito menos na posição de ter de assumir a responsabilidade pelo pagamento de um empréstimo da magnitude do ora em causa, o qual somente se mostra ter sido possível atenta a especial relação de confiança que intercede entre o arguido e RS....
Acresce que não se vê nenhuma razão para que um mero empregado viva, como vive o arguido David, numa casa que havia sido objecto de um contrato-promessa de compra e venda no qual a sociedade arguida apareceu como promitente-compradora (pontos 37) e 61) dos factos provados), nem tão pouco se percebe que tenha sido esta última a despender a quantia que permitiu à filha do arguido exercer o direito de remissão sobre um terreno, no qual funcionavam as instalações da sociedade (ponto 28) dos factos provados), o qual havia anteriormente sido objecto de contrato-promessa de compra e venda entre o arguido A... e a sociedade arguida, sendo certo que inclusivamente os impostos relativos ao exercício de tal direito de remissão foram suportados por esta última
Como se vê, a afirmação de que a sentença teria apelado, quanto a este ponto da matéria de facto, a meros juízos conclusivos, é desmentida pela simples leitura da motivação, pois o juízo sobre a credibilidade formulado pelo tribunal recorrido deve ser considerado na base das diversas razões que são apresentadas e não apenas na selecção avulsa da afirmação de que a declarações do recorrente foram efectuadas «de forma não credível».
Para além das declarações prestadas pelo co-arguido L... – que nada obstava a que fossem valoradas pelo tribunal a quo, no quadro da livre apreciação da prova, como é jurisprudência dos tribunais superiores e hoje até decorre do disposto no artigo 345.º, n.º4, do C.P.P. –, que admitiu ser administrador da sociedade-arguida, a convite do co-arguido, mas que era este que, com autonomia, fazia todos os negócios e efectivamente os dirigia, importa reter que existem outros elementos de prova que foram igualmente considerados.
O recorrente desvaloriza o depoimento de F..., que exerceu as funções de técnico de contas na sociedade-arguida.
Na fundamentação da decisão de facto salienta-se que esta testemunha «de forma bastante segura, honesta e pormenorizada, revelou conhecer a dinâmica da actividade comercial por ela desenvolvida, o tipo de funções nela exercidas por ambos os arguidos, a sua situação económico-financeira, bem como o estado das sua contabilidade, sendo certo que o mesmo foi contratado pelo arguido L... para proceder a uma auditoria à mesma».
Já se realçou que a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
Tal não significa que o tribunal superior não deva analisar os depoimentos prestados e ajuizar sobre a sua verosimilhança e plausibilidade.
Como assinalou o S.T.J., em Acórdão de 19 de Dezembro de 2007 (Processo 07P4203, www.dgsi.pt), o facto de o tribunal recorrido ter submetido a sua actuação à regra da livre convicção e nos limites propostos por aqueles princípios não contende com a possibilidade de o Tribunal da Relação se pronunciar sobre a verosimilhança do relato de uma testemunha ou perito e demais meios e para apreciar a emergência da prova directa ou indiciária e de aí controlar o raciocínio indutivo pois que estaremos perante uma questão de verosimilhança ou plausibilidade das conclusões contidas na sentença.
Por outro lado, conforme se disse, a credibilidade em concreto de cada meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum que informam a opção do julgador. E estas podem, e devem, ser escrutinadas.
Conclui o S.T.J., no referido Acórdão de 19 de Dezembro de 2007:
«Pode-se, assim, concluir que o recurso em matéria de facto não pressupõe, uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na perspectiva do recorrente, imponham “decisão diversa» da recorrida (…)
Porém tal sindicância deverá ter sempre uma visão global da fundamentação sobre a prova produzida de forma a poder acompanhar todo o processo dedutivo seguido pela decisão recorrida em elação aos factos concretamente impugnados. Não se pode, nem deve substituir, a compreensão e análise do conjunto da prova produzida sobre um determinado ponto de facto pela visão parcial e segmentada eventualmente oferecida por um dos sujeitos processuais.»
Regressando ao depoimento de F..., não identificamos qualquer razão para pôr minimamente em crime o juízo que o tribunal recorrido efectuou sobre a credibilidade do seu testemunho
E que disse esta testemunha?
Relatou que chegou à sociedade-arguida no primeiro trimestre de 2001 para desenvolver um trabalho de recuperação da contabilidade. A última factura que emitiu por serviços prestados foi em 31 de Outubro de 2003 porque não lhe pagavam, muito embora tenha mantido a sua colaboração para além dessa data.
Disse que quem tomava as decisões na sociedade, na parte económica e comercial, era o arguido A..., que tomava decisões sobre compras e sobre vendas, formas de pagamento, de recebimento, «dos negócios efectuados pela empresa» e que o co-arguido L..., do ponto de vista financeiro, tentava «ir cumprindo os compromissos relacionados com a empresa, em função dos negócios que eram celebrados pelo Sr. A...». Mais esclareceu que «a decisão da compra, da venda, das condições de compra e das condições de venda, isso era o Sr. A... que o fazia, com grande autonomia e, normalmente, isso chegaria ao Dr. L... já como facto consumado (…).» Por sua vez, ao arguido L... cabia encontrar os recursos financeiros e o planeamento para cumprir as obrigações, no quadro dos negócios que eram contratualizados pelo arguido A.... Mais adiantou que este arguido era o mentor e executor da condução dos negócios; que o arguido A... se intitulava como dono do negócio; que teve reuniões com ambos os arguidos por causa da forma como os negócios eram conduzidos; que, por vezes, só em reuniões a três é que se percebia como é que os negócios tinham sido estruturados; que confrontou muitas vezes ambos os arguidos sobre a situação financeira da empresa.
Deste testemunho resulta, pois, que o recorrente não era um simples vendedor da empresa, mas alguém que, efectivamente, co-dirigia os seus destinos, tendo a seu cargo a parte comercial, enquanto o seu co-arguido se encarregava da parte financeira.
Aliás, era o recorrente A... quem detinha experiência anterior naquele ramo de negócio, resultando dos elementos de prova expressamente invocados na sentença recorrida, em que avulta o depoimento de F..., que o recorrente em causa não era um simples empregado, mas antes alguém que, no plano dos factos, co-dirigia a sociedade arguida, decidindo sobre os seus negócios com grande autonomia e co-determinando o seu rumo.
Refere-se o recorrente ao depoimento da testemunha C..., prestado no dia 24 de Janeiro de 2008, mencionado na motivação da decisão de facto quanto aos pontos acima assinalados.
A este propósito, reconhece-se que a motivação não traduz da melhor forma o depoimento dessa testemunha ao afirmar que «atentas as declarações de C..., o qual referiu que o arguido A... discutiu várias vezes consigo assuntos relacionados com a gestão da sociedade arguida».
Porém, ouvidas as gravações, verifica-se que esta testemunha, que foi revisor oficial de contas da sociedade-arguida, função que aceitou desempenhar por conhecer a testemunha F..., que tratava da contabilidade e merecia a sua confiança, disse que não conhecia pessoalmente o arguido A.... Relatou que a sociedade-arguida não lhe pagou os seus serviços e que, a partir de dada altura, apresentava dificuldades financeiras cuja origem não logrou precisar. Disse ter falado com o arguido A... uma – mais tarde referiu-se a «uma vez ou duas» - vez pelo telefone, ou melhor, que foi o arguido a telefonar-lhe, para falar de assuntos da empresa. A testemunha disse-lhe que falaria com ele no âmbito da empresa e não pelo telefone – falaria com ele em assembleia geral. Perguntado sobre se tinha a ideia de que o arguido A... fosse um mero funcionário que lhe quisesse falar, respondeu: «Não, não, eu sabia que o Sr. é que fazia as compras, que era o outro sócio do Sr. Dr. L..., que era o que fazia, vá lá, era a mola real da empresa, portanto, ou seja, o Dr. L..., do que eu percebi dele, era a pessoa mais da parte administrativa, mais nada».
A testemunha claramente referiu que tinha consciência disso e que uma das razões que o levou a sair da empresa foi precisamente essa – a de se aperceber do papel do arguido e não ter uma relação com ele para melhor esclarecer os assuntos da empresa.
Quanto à testemunha D..., desempenhou funções no escritório da sociedade-arguida durante cerca de apenas 6 ou 7 meses, entre Maio/Junho e Dezembro de 2001. É certo que esta testemunha, que trabalhou durante pouco tempo na empresa e era inexperiente nas funções que desempenhava, disse que pensava que o recorrente seria um empregado da empresa, não fazendo ideia de que fosse sócio. Mas também disse ter recebido ordens do recorrente, que nunca as questionou, que não assistia aos negócios que o recorrente realizava, que entre os arguidos havia uma confiança mútua, que durante o dia o arguido L... nunca estava na empresa, mas apenas ao fim da tarde.
A testemunha S..., por sua vez, disse – e o recorrente omite essa parte do depoimento prestado – que o arguido A..., na empresa, «comportava-se como se fosse um bocado dele, também, exactamente». Perguntada sobre as razões porque dizia isso, respondeu que era ele quem mandava, era ele quem decidia, quem dava ordens, e que o fazia sem ter que perguntar nada antes ao arguido L....
A testemunha O..., invocada pelo recorrente, pouco adiantou. Disse conhecer o recorrente há mais de 15 anos, dele sendo amigo. É empresário na área da compra e venda de camiões. Terá feito um negócio com a sosciedade-arguida, de compra de uma báscula, tendo tratado dessa compra com o recorrente. Disse que, pelo que tem conhecimento, o recorrente seria vendedor da empresa, «pelo menos era isso que ele me dizia», referindo-lhe que tinha um bom vencimento. Referiu que não frequentava as instalações da sociedade-arguida e que algumas vezes encontrou o recorrente no estrangeiro e que este lhe dizia, quando estava a comprar camiões, que ia telefonar ao co-arguido L....
Não se vislumbra, deste depoimento, nada de verdadeiramente decisivo e que ponha em crise o depoimento da testemunha F... que, pelas funções desempenhadas na sociedade-arguida, teve a oportunidade para, de modo efectivo, circunstanciado e com conhecimento de causa, se aperceber do papel exercido por ambos os arguidos no seu seio. E esta testemunha relatou como muitas vezes teve de confrontar o recorrente A... sobre os negócios que este realizava, precisamente porque os celebrava com autonomia e, muitas vezes, sem deles dar conhecimento prévio a ninguém.
Quanto à testemunha FM..., funcionário desde 1990 da empresa "LRP – BC…, S. A.", de que o arguido L..., seu amigo, é administrador, nada disse que, quanto à questão ora em apreço, possa ser considerado relevante: entre a “LRP” e a sociedade-arguida foram realizados alguns negócios; os compromissos foram sempre honrados; o arguido L... é um homem responsável e de responsabilidade forte.
A nosso ver, estes depoimentos não põem em crise a valoração da prova efectuada pelo tribunal recorrido quanto aos pontos de facto assinalados e a argumentação desenvolvida na sentença da 1.ª instância para sustentar a sua convicção.
E não se diga, como afirma o recorrente, que existe uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando se refere que o arguido L... era quem tratava da matéria mais burocrática da organização da sociedade «designadamente no que toca à gestão financeira, incluindo o pagamento de impostos», ao mesmo tempo que se co-responsabiliza o recorrente A... pelos mesmos factos. A circunstância de o arguido L... ter a seu cargo a área financeira, enquanto o co-arguido se encarregava da área comercial e dos negócios, não ilude o facto de o não pagamento do IVA ser uma decisão da responsabilidade de ambos, como se infere das declarações de L... e do depoimento da testemunha F.... Não se vislumbra, aqui, a mínima contradição.
Não vemos, pois, qualquer razão para que a matéria de facto seja alterada.
5.2. Vícios do artigo 410.º, n.º2
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
Existe o vício previsto na alínea a), do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal quando a factualidade dada como provada na sentença não permite, por insuficiência, uma decisão de direito ou seja, quando dos factos provados não possam logicamente ser extraídas as ilações do tribunal recorrido. A insuficiência da matéria de facto determina a incorrecta formação de um juízo, porque a conclusão ultrapassa as respectivas premissas (cfr. Ac. do STJ de 13/05/1998, Proc. nº 98P212, www.dgsi.pt). Dito de outro modo: quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 69).
Existe o vício previsto na alínea b), do n.º 2 do art. 410.º quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada, entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, entre a fundamentação probatória da matéria de facto, e ainda entre a fundamentação e a decisão (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2.ª ed., 340 e ss.).
Finalmente, ocorre o vício previsto na alínea c), do nº 2 do art. 410º quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Germano Marques da Silva, ob. cit., 341 e ss. e Acs. do STJ de 02/10/1996, Proc. nº 045267, www.dgsi.pt). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
Analisada a sentença recorrida, não se vislumbra que a mesma enferme de qualquer dos apontados vícios, designadamente, do vício de contradição insanável invocado pelo recorrente A..., já acima referido.
5.3. Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. E não será a circunstância, normal nas lides judiciais, de se contraporem, pela prova pessoal (declarações e testemunhos), versões distintas, a impor que o julgador seja conduzido, irremediavelmente, a uma situação de dúvida insuperável. A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados, não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão, certamente difícil, de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos.
Não resulta da sentença que o tribunal a quo tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objectiva e motivável – e que, a partir desse estado dubitativo, tenha procedido à fixação dos factos provados desfavoráveis à arguida.
Não se encontrando o tribunal a quo nesse estado de dúvida, razão pela qual não havia que apelar ao princípio in dubio, também nada nos permite concluir que o devesse estar, mostrando-se a sua convicção estribada na prova produzida em termos que, nos termos supra expostos, não merecem censura.
5.4. Face ao exposto, dão-se como assentes os factos provados e não provados constantes da sentença recorrida.
6. Subsunção jurídica
1. O tribunal recorrido condenou os arguidos pela co-autoria material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º1 e 5, do RGIT.
É sabido que o IVA visa tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo, na sua incidência, todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, tendo como base tributável o valor acrescentado em cada fase.
A dívida tributária de cada operador económico é calculada pelo método do crédito de imposto, pois aplicada a taxa ao valor global das transacções da empresa, em determinado período, deduz-se o imposto por ela suportado nas compras desse mesmo período, revelado nas respectivas facturas de aquisição.
Conforme se pode ler no Acórdão da Relação de Guimarães, de 20 de Novembro de 2006 (Proc. n.º 1796/06-2, www.dgsi.pt), o IVA contabilizado é devido independentemente de o preço dos bens vendidos ou dos serviços prestados ser ou não recebido ou de se pedir qualquer compensação. No caso do IVA, o método é o consignado na lei e a sua liquidação cabe a determinados contribuintes, que deverão entregar os montantes respectivos nas condições já expostas, independentemente de fazerem vendas a dinheiro ou a crédito, e não cabendo ao Estado controlar ou impor qualquer modalidade de venda.
No caso concreto, a sociedade-arguida procedia à venda de viaturas a diversos clientes, pelos quais se fazia pagar, emitindo as correspondentes facturas e liquidando o respectivo IVA, mas omitindo o dever de, atempadamente, entregar as declarações periódicas e de entregar ao Estado o IVA em questão.
E os arguidos-recorrentes sabiam que os montantes de IVA em causa não lhes pertenciam, nem à sociedade, passaram a dispor desses montantes em benefício da sociedade, integrando-os no giro comercial da mesma, o que fizeram com vontade livre e consciente, sabendo que se tratava de conduta punida por lei.
Face à factualidade provada, dúvidas não se oferecem de que foi preenchido o tipo penal de crime de abuso de confiança fiscal punido pelo artigo 24.º, 1 e 2, do RJIFNA (Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro e pelo Decreto-Lei n.º 394/95, de 14 de Junho, e hoje punido pelos artigos 6.º e 105.º, n.º1 e 5, do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, cujos elementos, objectivos e subjectivos, se mostram preenchidos.
Prescrevia o artigo 24.º, n.º1 e 2, do RJIFNA:
«1. Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até 3 anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
2. Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
(…)»
Por sua vez o artigo 105.º, n.ºs 1, 2 e 3, do RGIT estatui o seguinte:
«1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com (…)
2. Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
(...)».
Ora, face aos factos provados, estão preenchidos os elementos típicos do crime em questão, sendo de realçar que a inteira conformidade constitucional dos referidos preceitos legais tem sido reiteradamente afirmada pelo Tribunal Constitucional, secundado pelos tribunais superiores (entre muitos, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/2000, de 20 de Junho de 2000, proferido no recurso n.º 442/99, publicado no B.M.J. n.º 498, p. 16 e segs.; o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 54/04, de 20 de Janeiro de 2004, proferido no Processo n.º 640/03; o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31 de Maio de 2006, Proc. 06P1294, www.dgsi.pt).
Mostra-se preenchida, outrossim, a condição objectiva de punibilidade introduzida na aliena b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.
O recorrente L... alicerça boa parte da sua argumentação na questão da «apropriação».
Como já se disse, hoje a lei não fala em «apropriação», colocando-se o acento tónico na recusa ilegal de entrega à administração tributária da prestação em causa.
Verteu-se na letra da lei o entendimento jurisprudencial segundo o qual quem não entrega no prazo a prestação tributária deduzida ou cobrada, usando-a para um fim diferente do legalmente previsto, dela se apropria.
A partir do momento em que os arguidos, tendo cobrado e liquidado IVA a clientes, deram um destino a tais quantias diferente da sua entrega ao respectivo proprietário, o Estado, aplicando-as em fins que eram do interesse da sociedade, podemos afirmar a existência de «apropriação». Deste ponto de vista, é irrelevante que os arguidos tenham ou não integrado as quantias em causa directamente nos seus patrimónios pessoais – e este parece ser o equívoco do recorrente L..., na argumentação que desenvolve. A «apropriação» não pressupõe o uso da coisa apropriada no interesse directo e imediato do agente (ver, entre outros, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 25 de Maio de 2005, Processo: 1039/04-1 (www.dgsi.pt).
A «apropriação» é, por assim dizer, uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas, pelo que, assim entendida, como omissão de entrega dessas prestações a quem de direito, com sua utilização para outros fins, dúvidas não podem restar de que, no caso vertente, houve apropriação por parte dos arguidos. Não se trata apenas da não entrega das prestações tributárias, mas da sua utilização para outros fins, com consciência de que as mesmas eram pertença do Estado.
Não vemos que tal interpretação esteja ferida de qualquer inconstitucionalidade.
Como vimos, os preceitos dos artigos 24.º do RJIFNA e 105.º do RGIT passaram já, por diversas vezes, pelo crivo do Tribunal Constitucional.
Hoje, a conduta incriminadora consubstancia-se na não entrega à Administração Fiscal das quantias pecuniárias envolvidas. Significa o exposto que a mesma conduta se traduz, face ao RGIT, numa omissão pura.
O STJ, no seu Acórdão de 18 de Dezembro de 2008 (Processo: 07P020), teve a oportunidade de se pronunciar sobre a inexistência de uma descontinuidade normativa entre o RJIFNA e o RGIT pela circunstância deste não referir a apropriação, mas a falta de entrega das prestações tributárias.
Diz-se nesse Acórdão:
«Sem embargo de se dever reconhecer que, com a publicação do RGIT, o legislador introduziu profundas alterações no crime de abuso de confiança fiscal, não é menos certo que em ambas as versões se tutela o património tributário do Estado, sancionando-se criminalmente o incumprimento do dever de entrega de prestação tributária que o agente detém por força dos deveres de colaboração impostos pelas leis fiscais, com base numa relação de confiança. Conforme se afirmou no mencionado acórdão deste Supremo Tribunal, de 31-05-2006, “o legislador não criou, no RGIT, um tipo legal novo, vocacionado para protecção de distintos interesses, mantendo, no plano dos elementos típicos, uma persistente identidade. Relevou-se, agora, a exigência da retenção da prestação ficar a dever-se, não a apropriação, para se cair na sua não entrega nos cofres do Estado, num caso e noutro, sempre dolosa e em detrimento da Fazenda Nacional”».
Em todo o caso, está provado que os arguidos quiseram agir da forma descrita: bem sabendo que deveriam ter entregue as declarações de IVA relativas à actividade da sociedade arguida; que estavam obrigados a proceder à entrega do correspectivo imposto que havia sido liquidado aos seus clientes, colocando tais montantes, nos termos e prazos legais, à disposição dos serviços de administração fiscal, o que não sucedeu nesse prazo, nem nos noventa dias posteriores. Essas quantias foram integradas no giro comercial da sociedade-arguida, o que significa financiamento à custa do Estado.
Estes factos acabados de pôr em evidência preenchem indubitavelmente conceito de apropriação.
Tal entendimento não pressupõe qualquer interpretação inconstitucional do artigo 105.º do RGIT, designadamente no sentido de que tal artigo acolhe, como elemento implícito, a exigência de apropriação.
A nosso ver, independentemente de se entender que o artigo 105.º acolhe tal elemento (implícito) do tipo, certo é que, no caso, houve efectivamente apropriação: não se trata, pois, de qualquer presunção, mas da afirmação de que os arguidos não só não entregaram à administração fiscal o imposto que lhe era devido e haviam liquidado aos clientes, mas também lhe deram diverso destino, integrando-o no giro comercial da sociedade, o que significa, inequivocamente, a apropriação indevida desses montantes.
Não se vislumbra que, assim entendendo, se faça apelo a qualquer interpretação inconstitucional do artigo 105.º do RGIT, designadamente, por violação do princípio da legalidade e dos artigos 18.º, 27, n.º2 e 3 e 29.º da C.R.P., como alega o recorrente L....
E como é óbvio, não carecendo de especial explicação, a responsabilidade dos arguidos, como administradores da sociedade-arguida, não depende hoje, como não dependia face ao RJIFNA que expressamente referia a «apropriação», da circunstância das quantias de imposto que deveriam ter sido entregues à administração tributária serem utilizadas no interesse directo dos arguidos.
No caso, a não entrega no prazo das prestações tributárias e o seu uso no giro comercial da sociedade-arguida, em benefício desta, responsabiliza quer a sociedade, quer os arguidos.
É flagrantemente destituído de fundamento o argumento do recorrente L... no sentido de que só a sociedade seria susceptível de responsabilidade criminal.
Desconhecerá o recorrente o preceituado no artigo 7.º, n.º3, do RGIT, nos termos do qual a responsabilidade criminal da sociedade não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes? E que estes são quem esteja obrigado pela lei fiscal ao cumprimento dos deveres pressupostos pela norma incriminadora ou quem, nos termos do artigo 6.º do RGIT, actue em nome daqueles que estão obrigados ao cumprimento de tais deveres?
É evidente que a circunstância de o recorrente L... não ter utilizado directamente, para si, as quantias de IVA indevidamente não entregues ao Estado, mas sim em benefício da sociedade, não o exonera da sua responsabilidade criminal, nem por isso deixa de haver «apropriação», no sentido supra referido.
Mais uma vez, o entendimento de que o preenchimento do artigo 105.º do RGIT pela pessoa singular, representante da pessoa colectiva ou sociedade, ocorre mesmo que as quantias de IVA cobradas e liquidada a clientes e não entregues ao Estado hajam sido utilizadas em benefício da sociedade, não comporta qualquer dimensão de inconstitucionalidade, não se verificando qualquer invocada violação do disposto nos artigos 18.º, 27.º, n.º2 e 3 e 29.º da C.R.P.
Termos em que improcedem as invocadas inconstitucionalidades.
Como também improcede toda a argumentação a propósito da alegada inexistência de dolo e quanto à culpa, face à factualidade provada e mantida.
2. O recorrente A... argumenta que o artigo 6.º do RGIT não abrange a responsabilidade dos administradores de facto.
Prescreve tal preceito:
«Actuação em nome de outrem.
1 – Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija:
a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado;
b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.
2 – O disposto no número anterior vale ainda que seja ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes.»
A disciplina normativa pré-vigente, do RJIFNA, era idêntica.
Segundo o recorrente, só os gerentes e administradores que o sejam pela forma legal ou contratualmente estabelecida, a que por comodidade chamaremos de direito, e não já os que o sejam apenas de facto, podem ser sujeitos activos do crime de abuso de confiança fiscal.
Disse, a este respeito, a Relação do Porto, no seu Acórdão de 24 de Março de 2004 (Processo: 0342179):
«Este entendimento da recorrente esbarra com a literalidade do art.º 6.º de ambos os diplomas. Este normativo, art.º 6º - na senda do art.º 12º do Código Penal - alarga a responsabilidade penal e consequentemente a punibilidade pela actuação em nome de outrem, quando o agente actuou voluntariamente como titular dos órgãos de uma pessoa colectiva, mesmo quando o respectivo tipo de crime exija certos elementos que a lei descreve. A formulação legal inculca o contrário do alegado pela recorrente: a lei diz muito claramente, naquele português claro, para militar entender, na impressiva formulação de Antunes Varela, que os crimes de que tratam o RJIFNA e o RGIT, e concretamente os crimes de abuso de confiança contra a segurança social, podem ter como sujeitos activos gerentes de facto, como é o caso da recorrente. Para tanto basta, além do mais que agora irreleva referir, que essas pessoas actuem voluntariamente como se tivessem essas qualificações e como se fossem titulares de órgãos ou representantes da pessoa colectiva ou sociedade.
O legislador, avisado como é e conhecedor de que nesta área as cifras negras são grandes [Cfr. Preambulo do Código Penal e Lopes Rocha, A responsabilidade das Pessoas Colectivas, CEJ 1085, pág. 110], no desenho do ilícito típico das condutas voluntárias dos titulares de órgãos de pessoas colectivas, desconsiderou a circunstância da sua regular ou irregular constituição, ou mera associação de facto, quer a circunstância de os agentes serem titulares de direito ou meramente de facto. A vingar a tese da recorrente, como justamente acentua o assistente, certamente se generalizariam as situações de facto destinadas a eximir os agentes de factos delituosos às sanções penais. A informalidade, referida no conhecido relatório Mckinsey, dominaria então a economia.
A eficaz solução legislativa, ditada por conhecidas e acima referidas razões de política criminal, não viola pois os princípios da legalidade e do estado de direito.»
Concordamos inteiramente com tal entendimento, que julgamos ser majoritário na jurisprudência, tendo o assentimento do Tribunal Constitucional, que no seu Acórdão n.º 395/2003 considerou não ser inconstitucional a interpretação do artigo 7.º do RJIFNA segundo a qual a expressão «órgãos ou representantes» incluía os órgãos ou representantes de facto.
Ora, o recorrente A..., não sendo administrador «de direito» da sociedade-arguida, exercia, «de facto» essa administração, conjuntamente com o seu co-arguido, conforme resulta da matéria de facto provada.
Ainda que lhe competisse, essencialmente, a área comercial da empresa, a decisão de não entregar o IVA é de ambos os arguidos e ambos co-dirigiam os destinos da sociedade, sendo ambos responsáveis, nos termos dos factos assentes.
Improcede, pois, a pretendia exclusão da responsabilidade do recorrente A..., com fundamento em ser administrador de facto.

3. No caso vertente, não se verificam, relativamente aos arguidos, quaisquer circunstâncias dirimentes da ilicitude ou de exclusão da culpa.
7. Medidas das penas
O tribunal recorrido, feito o enquadramento jurídico-penal, passou à determinação das medidas concretas das penas, tendo decidido:
- condenar o arguido L..., pela prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º1 e 5, do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 30.º, n.º1 e 2 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
- condenar o arguido A..., pela prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º1 e 5, do RGIT, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 30.º, n.º1 e 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
Cada um dos arguidos-recorrentes viu a respectiva pena suspensa na sua execução pelo tempo da pena de prisão, na condição de pagamento, no mesmo prazo, da prestação devida ao fisco e respectivos acréscimos legais.
Nada temos a objectar quanto ao procedimento seguido na determinação das penas, aos factores de determinação que foram considerados, nem quanto às penas principais impostas.
Quanto à opção pela pena de substituição de suspensão da execução da prisão, o tribunal recorrido entendeu ser de aplicar o regime do artigo 50.º, n.º5, do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, fixando o período de suspensão em duração igual à das penas de prisão substituídas.
No tocante à obrigação condicionante da suspensão, a sentença recorrida ponderou que «os deveres a que se refere o artigo 14.º, n,º1, do RGIT, devem ter por limite não só a duração da pena de prisão, como também a duração do prazo de suspensão da execução da mesma, o que tem por consequência que em relação às penas de prisão de duração mais pequena fique bastante limitada a possibilidade de cumprimento, pelos arguidos, do dever de pagamento, ao fisco, das quantias referentes aos impostos em dívida, bem como dos respectivos acréscimos legais, maxime os juros dos impostos em falta». E acrescenta:
«Não obstante, interpretação diferente no sentido de facilitar o pagamento de tais quantias por parte dos arguidos faria obter um resultado inadmissível, o qual seria o de se aplicar ao agente do crime um dever de pagamento de tais quantias por prazo superior ao prazo de suspensão da execução da pena de prisão, ou seja, estabelecer por via da fixação de tal dever um prazo de suspensão de execução da pena de prisão superior ao prazo da pena de prisão substituída, tudo ao arrepio do disposto nos artigos 50.º e 57.º do CP».
Insurge-se o recorrente L..., pretendendo que o período de suspensão seja alargado para além do tempo da pena principal de prisão que foi substituída.
Vejamos:
Ao suspender a execução da pena de prisão imposta ao recorrente de forma condicionada, a sentença recorrida limitou-se a cumprir o disposto no artigo 14.º do R.G.I.T.
Em 15 de Setembro de 2007, entraram em vigor as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
No que concerne à suspensão da execução da pena de prisão, foi alterado o n.º 5 do artigo 50.º, que passou a preceituar: «O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão».
Como é óbvio, não se vislumbra que seja possível fixar um período de duração da suspensão inferior ao prazo fixado para cumprimento da condição. Das duas uma: ou a condição era ignorada por a extinção da pena acontecer antes do termo do prazo do seu cumprimento, ou então teríamos que seguir o entendimento de que o decurso do período de suspensão da pena só se iniciaria depois de cumprida a condição, com protelamento e indefinição, entretanto, quanto à situação do condenado.
Temos, pois, como inequívoco que o prazo para o cumprimento de obrigação condicionante da suspensão da execução da pena de prisão não pode ser superior ao da própria suspensão.
Porém, do artigo 14.º do RGIT resulta que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada por crime tributário é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos.
Diz-se no Acórdão do STJ, de 18 de Dezembro de 2008 (Processo: 07P020):
«A alteração de paradigma quanto ao tempo de suspensão da execução da pena operada pela reforma do Código Penal levada a efeito pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ao impor que o tempo de suspensão seja igual ao da medida concreta da pena de prisão, desde que superior a um ano, coloca a questão da sua aplicabilidade às infracções fiscais, sabido que, nos termos do art. 3º do RGIT, as normas do Código Penal são subsidiariamente aplicáveis.
À suspensão da execução da pena, ligada à ideia de que, no domínio da pequena criminalidade, a simples ameaça de prisão seria suficiente para alcançar as finalidades da punição, foram reconhecidas virtualidades no domínio da prevenção especial de socialização, sobretudo se puderem ser impostas ao delinquente deveres e regras de conduta. Aplicável às penas de prisão até 3 anos, exigia a lei que o tribunal que, quando decretasse pena de prisão até 3 anos, formulasse um juízo de prognose relativamente ao comportamento futuro do delinquente, para tanto devendo atender à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, decidindo suspender a execução da pena, no caso de tal juízo ser favorável. O juiz, tendo em consideração todos estes elementos, deveria decidir o tempo de duração da medida, que era independente do quantum de pena de prisão aplicada, permitindo a lei que fosse superior, sem ultrapassar 5 anos, porque um prazo superior “mal se coadunaria com as intenções político-criminais básicas do instituto, ligadas à prevenção especial de socialização” (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 347).
Já no domínio das infracções fiscais, uma vez que a suspensão da execução da pena está sempre sujeita ao pagamento, no mínimo, das prestações tributárias e legais acréscimos, o tempo de duração da medida deveria ser fixada tendo em consideração o valor das importâncias a pagar ao Estado (suspensão…condicionada ao pagamento, em prazo a fixar … - determina o art. 14º do RGIT).
Em anotação ao art. 14º do RGIT, observam os Conselheiros Jorge de Sousa e Simas Santos (Regime Geral das Infracções Tributárias – Anotado) que, através deste normativo foram estabelecidas algumas especialidades em relação ao regime geral previsto no Código Penal.
Somos levados a afirmar, encontrarmo-nos perante uma nova especialidade.
Procurando com os ilícitos fiscais proteger as receitas tributárias enquanto componente activa do património tributário do Estado” (Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, pág. 71), compreende-se que o regime da suspensão da execução da pena nestes casos se afaste do novo regime geral do Código Penal, continuando o juiz, independentemente da duração da pena, a ter a faculdade de fixar, para a suspensão, um prazo que na realidade permita ao condenado proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta.»
Igual entendimento é perfilhado no Acórdão do STJ de 10 de Julho de 2008 (Processo: 06P103) e tem a nossa concordância.
Quer isto dizer que o regime do artigo 14.º do RGIT deve ser interpretado como especial em relação ao regime geral do Código Penal, continuando a consentir, no âmbito dos crimes tributários, a fixação de um prazo de suspensão da execução da pena superior ao da duração da pena de prisão substituída.
Mesmo que assim não se entenda, ou seja, mesmo não considerando que existe, nesta matéria, uma nova especialidade do RGIT em relação ao regime geral, importa ter em vista o seguinte:
Em abstracto, a nova norma do artigo 50.º do Código Penal é, em princípio, mais favorável ao agente, por ter retirado ao julgador a possibilidade de alargar o período de suspensão para limites superiores ao da pena aplicada. Tal regime, porém, mostra-se, em concreto, desfavorável relativamente ao recorrente, porque, ao restringir o período de duração da suspensão, vai obrigá-lo a um esforço financeiro bem maior para conseguir pagar, num período mais curto, o elevado montante da prestação tributária em dívida e legais acréscimos para poder, assim, beneficiar da suspensão da execução da pena de prisão que foi fixada.
Pelas razões apontadas, afigura-se-nos ter razão o recorrente L... ao pretender que a suspensão seja fixada por tempo superior ao da pena de prisão substituída, seja pela especialidade consagrada pelo mencionado artigo 14.º, quer por ser esse o regime concretamente mais favorável, entendendo-se, tudo ponderado, ser de fixar tal período de suspensão, e também o prazo de cumprimento da condição, em 4 anos.
No que concerne ao co-arguido A..., limitados que estamos pelos termos do recurso deduzido, nada há que alterar.
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam em audiência os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em:
A) Conceder parcial provimento ao recurso apresentado pelo recorrente L..., suspendendo a execução da pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão que lhe foi aplicada, pelo período de 4 (quatro) anos, na condição de o mesmo pagar, nesse prazo da suspensão, a prestação devida ao fisco e respectivos acréscimos legais, confirmando-se no restante a sentença recorrida;
B) Negar provimento ao recurso apresentado pelo recorrente A..., confirmando-se a sentença recorrida.