Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
150-D/1996.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
PROMITENTE-COMPRADOR
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
Data do Acordão: 11/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA – 3ª JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 351º E SEGS. DO CPC.
Sumário: I – Ao contrário do regime anterior, hoje os embargos de terceiro não se destinam apenas à defesa da posse lesada pela diligência judicial mas, também, à defesa de “qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência”.

II – Dispõe o artº 351º, nº 1, do CPC, que “se a penhora ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte da causa, pode o lesado fazê-lo valer deduzindo embargos de terceiro”.

III – O embargante terá não só de alegar e provar os factos constitutivos do seu direito (que pode ir da simples posse até ao próprio direito de propriedade) como também a desconformidade (incompatibilidade) da diligência com esse seu direito.

IV – Como regra, o promitente-comprador que obteve a traditio da coisa apenas frui um direito de gozo, que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – sendo, nesta perspectiva, um possuidor ou detentor precário.

V – Todavia, pode em circunstâncias excepcionais a tradição da coisa, em contrato-promessa, envolver a transmissão da posse a favor do promitente-comprador (transformando este num verdadeiro possuidor), tudo dependendo do animus que acompanha o corpus, e a forma como ambos são exercidos ou se revelam na concreta realidade.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. Por apenso aos autos de inventário, nº 150/1996, do 3º juízo cível do tribunal de Leiria, que tiveram lugar para partilha da herança deixada por óbito de A..., no qual são interessadas as suas filhas - B... e C.... -, e onde corre actualmente execução para venda de imóvel ali inicialmente adjudicado à interessada B..., D... deduziu (em 13/2/2009) embargos de terceiro.

Para o efeito, alegou, em síntese, o seguinte:

1.1 Ser residente em .... e ter outorgado, em 17/12/2005, um contrato-promessa de compra e venda do prédio urbano sito na...., inscrito na matriz predial urbana sob o nº .... da freguesia de ...., composto por r/c, 1º, 2º e 3º andar, no qual a referida B..., afirmando-se dona e possuidora do referido imóvel, declarou prometer vender ao embargante, livre de ónus ou encargos, o referido prédio, pelo preço de € 60.000,00, a ser pago no acto da escritura pública, que aquela se comprometeu a marcar.

Logo nessa data aquela promitente-vendedora lhe entregou as chaves do imóvel, entrando o embargante na posse do mesmo.

1.2 Todavia, a referida promitente-vendedora nunca mais marcou a escritura pública com vista formalizar o negócio prometido, sendo certo que o ora embargante continua a manter interesse na sua realização.

1.3 Porém, quando o ora embargante fez, em inícios de 2009, um ultimato à referida B...no sentido de marcar a tal escritura, esta informou-o então que o imóvel (objecto do aludido contrato-promessa) iria ser vendido em tribunal no dia 13/2/2009, o que o deixou chocado por o ora embargante ter a sua posse, e ter direito de retenção sobre o mesmo.

1.4 Pelo que terminou pedindo a procedência dos embargos, com o cancelamento da venda do referido imóvel e bem assim dos registos e aquisições que venham a fazer-se sobre o mesmo.

1.5 Para prova do alegado juntou prova documental (referente ao invocado contrato-promessa) e arrolou prova testemunhal (duas testemunhas, por sinal com residência coincidente com a do referido imóvel, sendo precisamente uma delas a alegada promitente-vendedora).

2. Conclusos que lhe foram os autos, a srª juiz do processo proferiu despacho em que rejeitou liminarmente os aludidos embargos (o que fundamentou por ausência de alegação e demonstração dos invocados direitos de posse e de retenção sobre o aludido imóvel, ou seja, quanto ao último por inexistência de qualquer direito de crédito, e quanto ao primeiro devido à ausência de alegação de factos ou actos materiais que possam conduzir à conclusão da existência de posse sobre o referido imóvel pelo embargante).

3. Não se tendo conformado com tal decisão, dela apelou o embargante.

4. Nas correspondentes alegações que apresentou a tal recurso, o embargante concluiu as mesmas nos seguintes termos:

a) A sentença recorrida indeferiu liminarmente os embargos, sem que o embargante tivesse oportunidade de produzir prova;

b) O embargante tem a posse do imóvel e goza do direito de retenção;

c) Deveria ter-se permitido que, no mínimo, o embargante produzisse prova relativamente à matéria dos embargos;

d) Foram violadas as seguintes normas: artigo 351º do CPC e artigos 342º, 755º e 1285º do Código Civil.”

5. Contra-alegou a interessada, C..., defendendo a inadmissibilidade do recurso (com o fundamento das respectivas alegações não terem sido juntas com o requerimento de interposição do recurso) e, caso assim não se entenda, pugnando pela improcedência do recurso, com a manutenção do despacho recorrido.

6. Em despachos preliminares do relator (e apreciando a questão prévia suscitada nas contra-alegações pela interessada B...), decidiu-se, por um lado, admitir o recurso e, por outro, alterar a espécie do recurso de apelação (como havia sido recebido na 1ª instância) para agravo.

7. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação


A) De facto.

Com interesse para a decisão e melhor compreensão do objecto do presente recurso, devem ter-se como assentes os factos supra descritos sob o ponto I e ainda os seguintes (todos resultantes das diversas peças processuais e documentais que integram e acompanharam estes autos):

1. O imóvel referido em 1.1 do ponto I foi adjudicado (entre outros), na conferência de interessados que ocorreu no processo de inventário aludido em 1. desse ponto, à interessada B....

2. Como a referida interessada não tivesse pago, em tempo oportuno, as respectivas tornas à outra interessada, B..., esta requereu, ao abrigo do disposto no artigo 1378, nº 3, do CPC, que, após o transito da sentença homologatória da partilha, se procedesse no processo à venda dos bens adjudicados àquela devedora das tornas e até ao montante necessário ao pagamento das mesmas.

3. Nesse processo a sentença que homologou a partilha transitou já em julgado.

4. Pelo que após, e com data de 18/9/2007, foi proferido despacho judicial a ordenar que, enxertada no próprio processo de inventário, se desse início à execução destinada à venda dos bens adjudicados à referida devedora de tornas e para pagamento destas, chegando ali, com vista a atingir tal desiderato, e depois de ter sido ordenado o cumprimento do disposto no artº 864 do CPC, a ser designado dia para a abertura de propostas.


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B) De direito.

1. É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recursos que fixa e delimita o seu objecto.

Ora, compulsando as conclusões das alegações do presente recurso – tal como, aliás, decorre do que supra se deixou exarado -, o que se visa aqui apreciar é saber se a petição de embargos de terceiro a que se reportam os presentes autos reúne ou não os pressupostos legais para que possa prosseguir os seus ulteriores trâmites, ou seja, e por outras palavras, se os presentes embargos deduzidos devem, ou não, ser, desde logo, indeferidos liminarmente, por manifesta improcedência dos mesmos (tal como se considerou no despacho recorrido, e ao contrário do que defende o recorrente)?

2. Apreciemos, pois.

2.1 Teçamos, antes de mais, umas breves considerações (de cariz teórico-técnico) sobre os embargos de terceiro.

Como é sabido, o regime dos embargos de terceiro, que antes da reforma do CPC/95 se encontrava regulado nos artºs 1037 e ss, encontra-se actualmente, após tal reforma, regulamentado nos artºs 351 e ss (inserido no capítulo dos incidentes da instância - secção da intervenção de terceiros).

Como escreve o prof. Miguel Teixeira de Sousa (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., pág. 187”) “os embargos de terceiro constituem uma modalidade especial de oposição espontânea. Esses embargos destinam-se a permitir a reacção de um terceiro contra um acto judicial que ordena a apreensão ou entrega de bens e que ofende a sua posse ou qualquer direito incompatível com a realização do âmbito da diligência (artº 351, nº 1)”.
Do confronto dos dois regimes, importa, desde logo, ressaltar as seguintes alterações introduzidas pelo actual regime no que concerne à legitimidade para embargar.

Por um lado, os embargos deixaram (como sucedia até então) de se poder basear exclusivamente na posse para se poderem também fundar na titularidade do direito de fundo e, por outro, estabeleceu-se que só a posse ou o direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial ordenada é que legítimam os embargos (vidé, neste sentido, entre outros, o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil, Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, pág. 614e o Ac. do STJ de 19/9/2002, in “Rec. Agravo, nº 20011/02, 7ª sec., Sumários, 9/2002”).

Resulta, assim, que os embargos de terceiro antes da citada reforma de 95 consubstanciavam uma pura acção possessória, limitada à defesa da posse, ofendida por qualquer diligência ordenada judicialmente, com especial destaque para a penhora, o arresto, o arrolamento, a posse judicial avulsa e o despejo.

O que estava em causa era apenas e tão só a posse, embora se divergisse se era suficiente a posse jurídica ou formal, o certo é que quando a diligência afectava o direito de propriedade impunha-se a necessidade da sua reivindicação. (Vidé, entre outros, Maria do Rosário Ramalho, in “Sobre o fundamento possessório dos embargos de terceiro, ROA ano 51 (1991), pág. 649” e Ac do STJ de 26/6/1991, in “BMJ 408 - 495”).

Porém, e ao contrário do regime anterior, hoje os embargos de terceiro não se destinam apenas à defesa da posse lesada pela diligência judicial mas, também, à defesa de “qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência”.

Como se justifica no preâmbulo do Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12/12, «permite-se, deste modo, que os direitos “substanciais” atingidos ilegalmente pela penhora ou outro acto de apreensão judicial de bens possam ser invocados, desde logo, pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva teve lugar, em vez de o orientar necessariamente para a propositura de acção de reivindicação – por esta via se obstando, no caso de a oposição do embargante se revelar fundada, à própria venda dos bens e prevenindo a possível necessidade de ulterior anulação desta, no caso de procedência de reivindicação».

Vem-se, assim, hoje entendendo que, muito embora a sua nova inserção sistemática nos incidentes da instância, os embargos apresentam a estrutura de uma acção declarativa autónoma, antecedida por uma fase introdutória de carácter preventivo ou cautelar (cfr. Isabel Parreira, in “Embargos de Terceiro Preventivos, ROA, Ano 61 (2001), Vol. II, pág. 837 e segs.”).

2.2 Tendo sempre presentes tais considerações, avancemos, agora, mais de perto para a resolução da questão acima elencada.

Dispõe o artº 351, nº 1 do CPC que “se a penhora ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte da causa, pode o lesado fazê-lo valer deduzindo embargos de terceiro”

Resulta, desde logo, de tal normativo que a causa de pedir nos embargos de terceiro se revela normalmente complexa.

Na verdade, o terceiro embargante terá não só de alegar e provar os factos constitutivos do seu direito (que pode ir da simples posse até ao próprio direito de propriedade) como também a desconformidade (incompatibilidade) da diligência com esse seu direito.

Por outras palavras, substantivamente os embargos ter-se-ão que basear (isolada ou cumulativamente) ou na titularidade de posse (ofendida) ou na titularidade de outro qualquer direito que se mostre incompatível com a realização ou âmbito da diligência judicial ordenada, pressupostos que terão que ser alegados e provados pelo terceiro embargante.

No caso em apreço, o embargante fundamentou os presentes embargos na existência de ambos aqueles pressupostos: ser possuidor e ser titular de um direito de direito de retenção sobre o imóvel sobre o qual foi ordenada a venda no processo de inventário (na sua fase executiva especial), para pagamento de tornas a uma das interessadas.

Para justificar tais direitos (de posse e de retenção) invocou o embargante um contrato-promessa que terá celebrado com uma das interessadas no tal inventário, B..., através do qual esta lhe terá prometido vender, e ele comprar-lhe, o referido imóvel (entregando-lhe logo na altura as chaves do mesmo, o que lhe permitiu entrar na “sua posse”), sendo certo que, até ao momento, e ao contrário do que se comprometera, a mesma não providenciou ainda pela marcação da respectiva escritura de compra e venda, muito embora o embargante mantenha interesse na sua celebração.

Analisemos cada um daqueles pressupostos.

2.2.1 Quanto à invocada posse (sobre o imóvel).
Para além de fazer parte integrante da previsão do citado normativo, é sabido que o conceito de posse, encontra-se definido nos artºs 1251 e ss do C. Civil - nomeadamente quanto aos seus caracteres e modo de aquisição, onde se acolheu a concepção subjectivista da mesma -, comportando em si uma dupla componente: o chamado “corpus”, como elemento externo, traduzido na prática de actos materiais sobre a coisa, e o chamado “animus”, como elemento interno ou psicológico, traduzido na vontade ou intenção de o possuidor exercer o direito correspondente como se fosse o seu verdadeiro titular, isto é, no caso como se fosse o seu proprietário (elemento esse determinante para diferenciar o possuidor do detentor precário – cfr. artº 1253 do CC).
Posse essa que inclusive, como também é sabido, pode levar à aquisição (originária) do direito de propriedade, que por via directa (vg. usucapião – artº 1287), quer mesmo por via indirecta (através de presunções – vg. artº 1268, nº 1, do CC).
Vem desde há muito sendo tema de objecto de discussão (quer na doutrina, quer na jurisprudência) o saber se nos contratos-promessa, em que houve traditio da coisa, é ou não possível ao promitente-comprador exercer a posse em seu nome (ou se nunca passará de um mero detentor precário)?
Pode-se dizer que, a esse propósito, existem actualmente duas grandes correntes de opinião:
Uma que afasta ab initio tal possibilidade, conferindo ao promitente-comprador a mera qualidade de detentor precário. (Nesse sentido vidé, entre outros, Acs. do STJ de 23/1/97 – in “CJ, Acs. STJ, Ano IV, T1 – 70” -; de 6/3/97 e de 11/3/99, respectivamente, in “BMJ 465 – 570” e BMJ 485 – 480”).
E uma outra, mais mitigada, que admite, excepcionalmente, tal possibilidade em determinadas situações. (Nesse sentido vidé, entre outros, Acs. do STJ de 11/3/99, in “BMJ 485 – 404 e CJ, Acs. STJ, Ano VII, T1 – 137”; de 7/2/2002, in “Rev. nº 1888/01, 2º, Sumários, 2/2002"; de 11/3/2003, proc. nº 04B1445, in www.dgsi.pt/jstj e de 12/10/04, in “CJ, Acs. STJ, Ano XII, T3 – 50”).
Foquemos a origem do problema (e sua abordagem à luz de alguma da nossa doutrina).
Encontrando-se a sua definição legal plasmada no artº 410 do CC, pode dizer-se (utilizando as palavras do prof. Galvão Teles, in “Direito das Obrigações, 6ª ed. pág. 83”) que o contrato-promessa “é um acordo preliminar que tem por objecto uma convenção futura, o contrato prometido. Mas em si é uma convenção completa, que se distingue do contrato subsequente. Reveste, em princípio, a natureza de puro contrato obrigacional, ainda que diversa seja a índole do contrato definitivo. Gera uma obrigação de prestação de facto, que tem apenas de particular consistir na emissão de uma declaração negocial. Trata-se de um “pactum de contrahendo (Galvão Telles, “Direito das Obrigações, 6ª ed., pág. 83”).
Ou então (nas palavras do prof. A. Varela, in “Das Obrigações em Geral, 6ª ed., vol. I, pág. 301”) que “é a convenção pela qual, ambas as partes ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo, ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato”.
A tal propósito, os profs. Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., pág. 6”, e Antunes Varela, in “na RLJ, Ano 124, pág. 348”) discorrem nos seguintes moldes:
“O contrato-promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador.
Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.
São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse.
Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo, (a fim de v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real.
O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse”.
Retomando ainda esse tema, o escreve ainda o prof. Antunes Varela (in “RLJ, 128, pág. 146”):“... O promitente-comprador investido prematuramente no gozo da coisa, que lhe é concedido na pura expectativa da futura celebração do contrato prometido, não é possuidor dela, precisamente porque, sabendo ele, como ninguém, que a coisa pertence ainda ao promitente-vendedor e só lhe pertencerá a ele depois de realizado o contrato translativo prometido, não pode agir seriamente com a intenção de um titular da propriedade ou de qualquer outro direito real sobre a coisa”.
Por sua vez, ainda a esse propósito, o prof. Vaz Serra (“in R.L.J., Ano 109, págs. 347 e 348”) disserta nos seguintes termos:
“O promitente-comprador, que toma conta do prédio e nele pratica actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sem que o faça por mera tolerância do promitente-vendedor, não procede com intenção de agir em nome promitente-vendedor, mas com a de agir em seu próprio nome, (…) passando a conduzir-se como se a coisa fosse sua, (…) julga-se já proprietário da coisa, embora não a tenha comprado, pois considera segura a futura conclusão do contrato de compra e venda prometido, donde resulta que, ao praticar na coisa, actos possessórios, o faz com animus de exercer em seu nome o direito de propriedade”.
Por fim, não resistimos ainda em citar, a esse mesmo propósito, o prof. Calvão e Silva (in “Sinal e Contrato-Promessa, 11ª edição, pág. 231, nota 55”) ao afirmar: “Não nos parece possível a priori qualificar-se de posse ou de mera detenção o poder de facto exercido pelo promitente-comprador sobre o objecto do contrato prometido entregue antecipadamente. Tudo dependerá do animus que acompanhe o corpus”.
Do exposto, afigura-se ser de concluir (em abono da segunda corrente de opinião acima referida) que, como regra, o promitente-comprador que obteve a traditio da coisa apenas frui um direito de gozo, que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – sendo, nesta perspectiva, um possuidor ou detentor precário (artº 1253 do CC –, já que não age com animus possidendi, mas apenas com corpus possessório (relação material) – artº 1251 do CC.
Todavia, pode em circunstâncias excepcionais a tradição da coisa, em contrato-promessa, envolver a transmissão da posse a favor do promitente-comprador (transformando este num verdadeiro possuidor), tudo dependendo do animus que acompanha o corpus, e a forma como ambos são exercidos ou se revelam na concreta realidade.
E isso (a qualificação da posse do promitente-comprador como precária ou como posse em nome próprio) só poderá ser avaliado casuisticamente, ou seja, perante cada realidade concreta. (Neste sentido, vidé ainda, entre muitos outros – a par daqueles que supra já deixámos citados, a favor da 2ª corrente de opinião perfilhada –, o recente Ac. do STJ de 12/3/2009, proc. nº 09A0265, disponível in www.dgsi.pt/jstj, e que, nesta parte, seguimos de perto, e ainda o Ac. da RC de 17/1/2006, proc. 2774/06, disponível in www.dgsi.pt/jtrc).
Ora, aqui chegados e aplicando as considerações que supra expandimos ao caso em apreço, diremos:
Calcorreando a petição inicial dos embargos (cujo essencial da matéria factual alegatória acima deixámos transcrito) verifica-se que o embargante se limitou a invocar, a esse propósito, a celebração de um simples (já que desprovido de qualquer eficácia real, nos termos previstos no artº 413 do CC) contrato-promessa celebrado com a interessada B...., na sequência do qual, a mesma, afirmando-se sua dona e possuidora, lhe prometeu vender o prédio urbano aqui em causa (e acima id. no nº 1.1 do ponto I), enquanto ele lhe prometeu comprar-lho, tudo nas demais condições assinaladas em tal nº..
Para além disso, limitou-se o embargante a alegar que na altura da celebração do contrato aquela promitente-vendedora lhe entregou as chaves do aludido imóvel (o que como se sabe é uma forma de tradição simbólica da posse – cfr. artº 1263 al. b) do CC) entrando, assim, e então, na posse do mesmo.
Ora, para além disso, o embargante nada mais alegou (em termos factualidade), quer no concerne ao corpus, quer no que concerne ao animus, elementos esses que, como vimos, integram o conceito de posse e nos termos conceituais que acima deixámos enunciados. Ou seja, o corpus traduz-se numa relação material com a coisa, e que se revela através da prática de actos materiais sobre ela, e o chamado animus, como elemento interno ou psicológico, traduzido na vontade ou intenção de o possuidor exercer o direito (real) correspondente como se fosse o seu verdadeiro titular, isto é, no caso comportando-se como se fosse o seu proprietário (elemento esse que, como vimos, se revela determinante para diferenciar o possuidor em nome próprio do possuidor ou detentor precário).
Saliente-se ainda que no caso o embargante nem sequer pagou ainda qualquer importância, quer como sinal, quer como antecipação do pagamento do respectivo preço, nada tendo sido alegado que revele, por mínimo que seja, a intenção do mesmo se comportar como dono do referido imóvel (sendo certo que nenhuma inversão do título de posse foi também invocada, que demonstre um animus rei sibi habendi).
Ora, tal ausência de alegação compromete, desde logo, qualquer possibilidade de o embargante vir a demonstrar a sua posse sobre o imóvel em causa, tal como lhe competia (nos atermos do artº 342, nº 1, do CC), já que essa posse era, como vimos, um dos pressupostos substantivos que aduziu para legitimar a dedução dos presente embargos.
E nessa medida, hipotecada ficou qualquer possibilidade dos embargos serem decretados com o fundamento na ofensa da posse do embargante sobre o aludido imóvel.
2.2.2 Quanto ao invocado direito de retenção.
O direito retenção é um direito (real) de garantia que consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele (cfr. os profs. de Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado, vol. I, pág. 722”)
Como resulta do disposto no artº 755, nº 1 al f), do CC, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido goza do direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento, imputável à outra parte, nos termos do artº 442.
Daí se extrai que o direito de retenção conferido ao promitente-comprador não visa mantê-lo na fruição de qualquer direito de gozo, mas antes garantir o pagamento do seu crédito no pressuposto de que existe incumprimento definitivo imputável ao promitente-vendedor que recebeu o sinal (entrega de sinal que, como vimos, neste caso nem sequer ocorreu).
Todavia, para salvaguarda do eventual crédito que o embargante tenha sobre a referida promitente-vendedora encontram-se previstos os legais mecanismos para que, com base no aludido direito real de retenção, o embargante possa ir reclamá-lo no sobredita execução que foi instaurada para venda, além do mais, do dito imóvel (sobre o qual incide tal direito) e com vista a vir obter, através dele, o seu pagamento pelo seu produto de venda.
E desse modo, ter-se-á também de concluir que tal venda do imóvel prevista na aludida execução não contende com o direito do embargante, ou melhor, não se mostra de todo incompatível com esse alegado direito. (Vidé, nesse sentido, entre muitos outros, o prof. A. Varela, in “RLJ 124, pág. 351”, o acima citado Ac. do STJ de 12/3/2009, proc. nº 09A0265, disponível in www.dgsi.pt/jstj”; Acs. do STJ de 11/3/99, in “BMJ 485 – 404 e CJ, Acs. STJ, Ano VII, T1 – 137”; Ac. do STJ de 23/1/96, in “CJ, Acs. do STJ, Ano IV, T1- 70” e Ac. da RE de 14/5/1998, in “BMJ 477 – 586”).
Ora, por tudo o exposto, é claro que os presentes embargos estariam manifestamente condenados a fracassar, e daí que não nos mereça censura a decisão da 1ª instância ao tê-los, desde logo, indeferido liminarmente, a qual, assim, se confirma (se bem que por fundamentos não inteiramente coincidentes).
Termos, pois, em que se nega provimento ao recurso.

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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão da 1ª instância.
Custas pelo embargante/recorrente.