Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
199/10.8GDCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 10/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 308º, N.º 2, DO C. PROC. PENAL
Sumário: A falta de fundamentação do despacho de não pronúncia consubstancia uma nulidade que é sanável e, assim, dependente de arguição.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

1. No âmbito do inquérito registado sob o n.º 199/10.8GDCNT que correu termos nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Cantanhede, o Ministério Público proferiu, em 7 de Janeiro de 2001, a fls. 64/66, ao abrigo do disposto no artigo 283.º do Código de Processo Penal (doravante designado apenas por CPP), acusação contra a arguida A..., devidamente identificados nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.

Por sua vez, a assistente B... deduziu, ao abrigo do disposto no art. 285.º do CPP acusação contra a mesma arguida, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal (cfr. fls. 75 dos autos).

O Ministério Público acusou pelos factos constantes da acusação particular e a assistente aderiu à acusação pública (cfr. fls. 77 e 92).


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2. Inconformado com os despachos de acusação, a arguida requereu a abertura de instrução, nos precisos termos de fls. 98/102.

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Admitida a abertura da instrução, teve lugar o respectivo debate, tendo a final sido proferido despacho de não pronúncia.

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3. A assistente interpôs recurso desta decisão, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

A) Nos presentes autos foi deduzida acusação contra a arguida A... sendo-lhe imputada a autoria do crime de ofensa à integridade física bem como do crime de injúria.

B)  Requereu a arguida a instrução sendo proferido despacho de não pronúncia com base na inexistência de indícios suficientes da prática dos citados crimes pela mesma.

C) O despacho de não pronúncia é totalmente omisso quanto à indicação dos factos indiciários.

D) Nos termos do disposto no n.º 2 do art. 308.º do CPP ao despacho de pronúncia ou não pronúncia é aplicável o estipulado no art. 283.º n.ºs 2 e 3 do mesmo diploma legal isto é, o mesmo deve conter “a narração ainda que sintética dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” sob pena de nulidade.

E) O despacho proferido deverá assim ser substituído por outro onde constem os factos indiciados e não indiciados que permitam concluir pela pronúncia (cfr. neste sentido Ac. Tribunal da Relação do Porto, Rec. Penal n.º 58/07.1TAVNH.P1 - 1.ª Secção, que a recorrente ousou seguir atenta a similitude com os presentes autos).

F) Sem em nada prescindir do acima referido, dir-se-á que da análise conjunta e conjugada da prova testemunhal e documental constante dos autos resulta existirem elementos que permitem concluir pela autoria dos mesmos por parte da arguida.

G) Concretamente as declarações da assistente bem como os depoimentos das testemunhas por si oferecidas e ainda o relatório de perícia médica elaborado pelo I.M.L. da Figueira da Foz.

H) Que ao contrário do constante do despacho recorrido não podem ser colocados em crise, mormente com os fundamentos aí referidos como sejam as relações familiares próximas (filha e genro da assistente), interesses por apurar em questão cível subjacente aos factos relatados nos autos e, até, num indiciado acordo prévio quanto ao teor das declarações.

I) Principalmente quando em confronto com a demais prova constante dos autos, designadamente com os depoimentos das testemunhas indicadas pela arguida, inclusive a única testemunha ouvida em sede de instrução entendida como “a única testemunha que poderia apresentar alguma isenção” (não obstante ser mandatário judicial da arguida), dadas as evasivas e contradições patentes nos respectivos depoimentos.

J) Assim, e nos termos do disposto nos arts. 308.º e 283.º do Código de Processo Penal, deveria ter sido proferido despacho de pronúncia.

K) Ao ser proferido despacho de não pronúncia, foi violado o disposto no artigo 308.º, n.º 1 e 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

L) Deve assim revogar-se a decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por despacho de pronúncia, como é legal e de justiça!


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4. O Ministério Público e a arguida remataram as respostas que apresentaram ao recurso nos termos infra transcritos:

A) Ministério Público:

1. A douta decisão instrutória não descreve nem especifica quais os factos que considera e que não considera suficientemente indiciados.

2. O n.º 2 do artigo 308.º do Código de Processo Penal não distingue entre despacho de pronúncia e de não pronúncia e, não fazendo a lei essa distinção, deve-se entender que quer o despacho seja de pronúncia ou não pronúncia deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos, nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma legal, sob pena de nulidade.

3. Quanto ao mais, entendemos que não assiste razão à recorrente, uma vez que a douta decisão recorrida fez uma análise exaustiva dos indícios recolhidos em sede de inquérito e em sede de instrução, não merecendo, quanto a nós, qualquer reparo e tendo andado bem ao decidir não pronunciar a arguida A... pelos crimes de ofensa à integridade física simples e injúria por que vinha acusada.

Termos em que deve ser revogado o douto despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que contenha a descrição factual indiciada e, caso assim se não entenda, deve ser mantida a douta decisão de não pronúncia.

B) Arguida:

l. Nos presentes autos, foi proferido despacho de não pronúncia pelos crimes de ofensa à integridade física e injúria.

2. Não concordando com o douto despacho, vem a assistente ora recorrente interpor o presente recurso, requerendo a nulidade da decisão instrutória por falta de fundamentação quanto à matéria de facto, entendendo ainda existirem indícios suficientes para a pronúncia da arguida pelos crimes de que foi acusada.

3. Entende a ora recorrida que nenhuma censura há a fazer ao despacho recorrido, uma vez que a decisão instrutória contém todos os requisitos ou pressupostos que faz depender a sua validade.

4. Assim o tribunal a quo, após a análise de todos os indícios recolhidos em sede de Inquérito e em sede de Instrução, fez a narração pormenorizada dos mesmos, contendo estes os depoimentos das testemunhas e relatórios médicos constantes dos autos, sem omitir qualquer elemento de prova importante para a tomada da decisão.

5. Quanto à existência de indícios suficientes para submeter a arguida a julgamento, os mesmos não foram recolhidos, atenta toda a prova testemunhal e documental constante dos autos, tendo o tribunal a quo aplicado ao caso concreto todos os princípios teóricos referentes à Instrução e decisão instrutória.

6. Assim, da análise dos indícios recolhidos em sede de Inquérito, relativamente à prova testemunhal, além das declarações da assistente que se revelaram totalmente parciais, sendo as duas testemunhas arroladas por aquela suas familiares próximas, e por tal facto corroboraram a sua versão.

7. Atentos tais factos, bem decidiu o tribunal ao entender não serem tais depoimentos isentos, até porque foram contadas histórias com palavras muito semelhantes, o que parecia indicar um acordo prévio sobre o modo como as declarações seriam prestadas, daí serem descredibilizados, logo não relevantes para a boa decisão da causa.

8. Apenas restou o relatório da perícia médico legal efectuado pelo I.M.L da Figueira da Foz, quanto ao crime de ofensa à integridade física; ainda que a arguida tivesse ferido a assistente seria ao tentar soltar-se, uma vez que estava a ser agarrada nos peitos pela recorrente.

9. Da análise dos indícios recolhidos em sede de Instrução, o depoimento da única testemunha arrolada, C..., revelou-se determinante para a prolação do despacho de não pronúncia da arguida, uma vez o mesmo “referiu que a arguida não dirigiu qualquer expressão injuriosa”, fls. 144 do despacho recorrido, quanto ao crime de injúria de que foi acusada.

10. O tribunal a quo apenas valorou aquele depoimento por se mostrar “espontâneo, sério, peremptório, e por isso credível”, pois era a única testemunha que poderia apresentar alguma isenção, uma vez não se tratar de nenhum familiar das partes, tendo “deposto no sentido de não ter a arguida praticado os factos por que vem acusada, tendo as suas declarações permitido afastar os fracos indícios recolhidos em Inquérito (uma vez que o tribunal não conclui pela credibilidade das testemunhas que depuseram contra a arguida)”.

11. Ainda quanto à ofensa à integridade física, aquela testemunha, C..., “... referiu, de forma séria e que permitiu convencer o tribunal que, aquando do momento em que a assistente se agarrou aos peitos da arguida, a mesma se tentou libertar, os familiares da assistente se agarraram e, nesse confronto, acabaram por lhe fazer um pequeno golpe no nariz, que é compatível, com o decurso do tempo, com a lesão na face apresentada pela queixosa”.

12. Porquanto, se eventualmente a arguida tivesse ferido a assistente ao tentar soltar-se, seria ainda de convocar, segundo a versão da única testemunha que se afigurou credível ao tribunal no âmbito da Instrução requerida, uma causa de exclusão da ilicitude, designadamente, legítima defesa, pois foi a forma da arguida se libertar da ofensa a que estava a ser alvo.

13. Pelo atrás exposto, continua a não merecer qualquer censura ou reclamação o despacho recorrido, uma vez que ponderaria a dúvida, que é bastante razoável, no sentido de favorecer a arguida, dando-se num eventual julgamento a que fosse submetida como não provados os factos que poderiam responsabilizá-la penalmente.

14. Da mesma forma, dúvidas não restam da operância do princípio in dubio pro reo, caso a arguida ora recorrida fosse submetida a julgamento, pois este princípio é o corolário da garantia constitucional da presunção da inocência, cfr. art. 32.º da Constituição da República Portuguesa.

15. Por tudo o exposto, entende-se que o tribunal a quo decidiu em total conformidade com os normativos constitucionais e legais, fundamentando correctamente toda a matéria produzida em sede de Instrução, devendo, por tal facto ser mantida integralmente a decisão recorrida.

Termos em que deve manter-se na íntegra a decisão recorrida, por legal e justa, devendo o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, fazendo-se assim inteira e sã justiça!


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5. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta elaborou o parecer que, na parte relevante, de imediato se reproduz:

«(…)

E - Pela nossa parte e modesta opinião, além das circunstâncias que nos levam a concordar inteiramente com o entendimento sufragado pelo M.ºP.º, no que respeita à falta de fundamentação da decisão em matéria de facto, uma vez que, se não especificam quais os factos que não estão suficientemente indiciados para que se possa proferir uma decisão de não pronúncia, pelo que, nessa parte, subscrevemos a argumentação do M.ºP.º na 1.ª instância, designadamente, damos por reproduzida a jurisprudência citada nesse sentido mas ao invés deste Magistrado do M.ºP.º, consideramos que os autos indiciam suficientemente a prática dos factos que à arguida são imputados.

1. Objecto do Recurso

(…)

Dos elementos probatórios recolhidos, sustentados, quer em prova pericial, quer em prova testemunhal, designadamente do depoimento da ofendida e das testemunhas D..., F... e mesmo do Dr. C..., que expressamente referiu, ter visto a arguida a tentar libertar-se da ofendida e em confronto com esta, tendo a arguida acabado por fazer um golpe no nariz o que é compatível com a lesão apresentada no exame pericial junto aos autos.

Ora todos estes elementos conjugados e relacionados nos parece que permitem formar um juízo de indiciação levado com seriedade e rigor à imputação delitiva à arguida dos crimes porque foi acusada.

Termos em que emitimos parecer no sentido de que, deve o presente recurso ser julgado procedente, devendo a arguida ser pronunciada pelos crimes que lhe são imputados nas acusações deduzidas nos autos e remetidos os autos para julgamento».


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6. Cumprido o art. 417.º, n.º 2 do CPP, a arguida e a assistente não exerceram o seu direito de resposta.

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7. Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Do objecto do recurso:  

Como flui do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.

As conclusões acima transcritas circunscrevem o recurso às seguintes questões:

- Se a decisão instrutória de não pronúncia é nula, nos termos do disposto nos artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, do CPP, por não conter a narração “dos factos apurados”;

- Se existem indícios suficientes da prática, em concurso efectivo, pela arguida, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.

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2. Do mérito do recurso:
2.1. Para além do excurso dogmático que contém em redor da ratio da instrução, do conceito jurídico relativo à suficiência de indícios e da estrutura típica dos crimes de ofensa à integridade física e injúria, é do seguinte teor a decisão de não pronúncia:
«Cumpre agora apreciar os indícios recolhidos tanto em sede de inquérito como em sede de instrução.
A ora assistente, B..., deslocou-se, no dia 29 de Agosto de 2010, ao posto da G.N.R. de XXX..., Cantanhede, queixando-se de que, no dia 28/08/2010, cerca das 12h15, se encontrava num terreno seu, sito em XXX..., acompanhada pela sua filha e pelo seu genro, tendo chegado a arguida, acompanhada pelo seu pai, tio e uma terceira pessoa que não conhece, tendo de imediato começado a fotografar o terreno, dizendo para a tal terceira pessoa que a estrema do terreno não era por onde estava mas sim mais para trás. Declarou, ainda, que, ao ouvir estes factos, disse que a estrema não era por onde a arguida estava a dizer, ao que esta respondeu que “não falava com putas”, tendo de imediato agredido a assistente, agarrando-a pela cabeça, provocando-lhe ferimentos na cana do nariz e testa, partindo-lhe ainda os óculos de correcção.
Referiu, ainda, ter tido necessidade de receber tratamento hospitalar nos H.U.C.
A fls. 6 e ss., consta relatório de perícia de avaliação de dano corporal elaborado pelo gabinete médico-legal da Figueira da Foz à assistente, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
A assistente confirmou o teor da queixa que apresentou, esclarecendo que foi vítima de um murro na face, do lado esquerdo, tendo também sofrido ferimentos no olho esquerdo.
A arguida, aquando do seu interrogatório, não quis responder sobre os factos.
A testemunha …, filha da assistente, declarou encontrar-se no terreno com a sua mãe e cunhado, tendo entretanto chegado a arguida, o seu pai e tio e uma outra pessoa cuja identificação desconhece, tendo aquela começado a indicar a este o local por onde era a estrema dos terrenos, contudo, não estando a dizer a verdade, a queixosa baixou-se, indicando o local correcto por onde era a estrema dos terrenos, altura em que a arguida se dirigiu à sua mãe, dizendo que não falava com putas e agredindo-a com um murro na face, originando-lhe ferimentos e a quebra dos óculos. Na sequência de tais factos, a mãe terá ido receber tratamento hospitalar em Coimbra.
A testemunha F…, genro da assistente, declarou encontrar-se no terreno com a sua sogra e cunhada, tendo entretanto chegado a arguida, o seu pai e tio e uma outra pessoa cuja identificação desconhece, tendo aquela começado a indicar a este o local por onde era a estrema dos terrenos, contudo, não estando a dizer a verdade, a queixosa baixou-se, indicando o local correcto por onde era a estrema dos terrenos, altura em que a arguida se dirigiu à sua sogra, dizendo-lhe que não falava com putas e agredindo-a com um murro na face, originando-lhe ferimentos na zona do nariz e testa e a quebra dos óculos. Na sequência de tais factos, transportou a sogra para receber tratamento hospitalar em Coimbra.
A testemunha …, pai da arguida, declarou ter-se deslocado ao terreno na companhia da sua filha, do seu irmão e do advogado, Dr. C..., e que, chegados ao terreno, o genro da assistente começou a filmar, tendo sido advertido pelo advogado que não autorizava a filmagem, tendo, ainda assim, continuado. Referiu, ainda, que é falso que a sua filha tenha agredido a assistente, uma vez que foi a assistente a injuriar a arguida, sendo que a sua filha não reagiu. Perante tal, a assistente continuou a provocar a arguida, tendo empurrado a mesma e apertando-lhe os peitos, ao que a sua filha reagiu mas apenas tirando as mãos da queixosa dos seus peitos. Declarou que a filha não agrediu a queixosa com qualquer murro nem lhe partiu os óculos.
A testemunha …, tio da arguida, declarou ter-se deslocado ao terreno na companhia da sua sobrinha, do seu irmão e do advogado, Dr. C..., e que, chegados ao terreno, o genro da assistente começou a filmar, tendo sido advertido pelo advogado que não autorizava a filmagem mas, ainda assim, continuou. Referiu que é falso que a sua sobrinha tenha agredido a assistente, uma vez que apenas afastou o braço da mesma por ela lhe tocar, tendo sido a assistente a injuriar a arguida, não tendo a sua sobrinha reagido. Declarou que a sobrinha não agrediu a queixosa com qualquer murro nem lhe partiu os óculos e que, quando a queixosa saiu do local, não tinha os óculos partidos.
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Por sua vez, em sede de instrução, a testemunha C..., advogado que se deslocou com a arguida ao terreno para tratar de assuntos relacionados com o mesmo, uma vez que é o seu mandatário, declarou que, quando chegaram ao terreno, já lá se encontrava a assistente com mais duas pessoas, tendo estes começado a dizer que a arguida e os seus familiares eram uns ladrões, estando a filmá-los. A testemunha advertiu para o facto de não quererem ser filmados, enquanto avaliavam o local. Referiu que a arguida não dirigiu qualquer expressão injuriosa, enquanto a assistente e a sua filha dirigiam insultos à arguida e seu pai, atrapalhando a conversa que estava a ter, uma vez que se intrometiam na mesma. A determinada altura, a queixosa lançou-se sobre a arguida, apertando-lhe os peitos, e a arguida apenas se tentou libertar, não agredindo aquela; foi segura pela filha e genro da assistente que, naquela confusão, acabaram por partir os óculos e fazer um pequeno golpe no nariz a esta. A arguida foi, ainda, injuriada de “puta” pela assistente.
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São estes os indícios relevantes recolhidos nos autos.
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Da conjugação de todos os indícios, o Tribunal conclui que não existem indícios suficientes da prática dos crimes, na perspectiva supra referida de uma possibilidade razoável de condenação, uma vez concluir não existir um conjunto de elementos convincentes de que a arguida praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados, isto é, vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e é a arguida responsável por ele.
Ou seja, e analisados os indícios recolhidos em sede de inquérito a nível de prova testemunhal, além das declarações da própria assistente que se mostram, por si, parciais, existem duas testemunhas familiares próximas desta, que corroboram a sua versão e duas testemunhas familiares próximas da arguida, que corroboram a sua versão.
Assim, e porque o Tribunal entende não serem as declarações destas testemunhas isentas, até porque são contadas histórias com palavras muito semelhantes, o que parece indiciar um acordo prévio sobre o modo como as declarações seriam prestadas (repare-se, designadamente, que as declarações da filha e genro da assistente contam a história praticamente usando o mesmo número de palavras e expressões) e por serem testemunhas que pretendem dar razão aos seus familiares mais próximos, estando envolvidas no conflito cível em relação ao terreno onde alegadamente ocorreram os factos, conclui-se que as suas declarações não são suficientes para indiciar os factos constantes da acusação.
Assim sendo, e em sede de inquérito, resta apenas o relatório de perícia médica efectuado no I.M.L. da Figueira da Foz, que conclui serem as lesões apresentadas pela assistente compatíveis com o que a mesma disse, ou seja, ter sofrido agressão com murro na cara.
Por outro lado, em sede de instrução, foi ouvida a testemunha C..., advogado da arguida em processos cíveis, cujo depoimento se afigurou espontâneo, sério, peremptório, coerente e, por isso, credível, sendo a única testemunha que poderia apresentar alguma isenção, uma vez não se tratar de nenhum familiar seu, tendo deposto no sentido de não ter a arguida praticado os factos por que vem acusada, tendo as suas declarações permitido afastar os fracos indícios recolhidos em inquérito (uma vez que o Tribunal não conclui pela credibilidade das testemunhas que depuseram contra a arguida).
Diga-se, por outro lado, e no que concerne às lesões apresentadas pela assistente, que a testemunha C... referiu, de forma séria e que permitiu convencer o Tribunal, que, aquando do momento em que a assistente se agarrou aos peitos da arguida e a mesma se tentou libertar, os familiares da assistente também se agarraram e, nesse confronto, acabaram por lhe fazer um pequeno golpe no nariz, o que é compatível, com o decurso do tempo, com a lesão na face apresentada pela queixosa, mais concretamente, escoriação.
Ainda que assim não tivesse sido, sempre seria de fazer operar o princípio “in dubio pro reo” em audiência de discussão e julgamento.
Este é um princípio segundo o qual a dúvida razoável sobre os factos que interessam à definição da responsabilidade do arguido resolve-se, sempre, a favor do arguido, sejam eles factos integradores e agravantes da incriminação, sejam integrantes de causas de exclusão da ilicitude, da culpa ou da própria pena, sejam, por último, factos integrantes de circunstâncias atenuantes, modificativas ou gerais.
O referido princípio trata-se de uma emanação ou corolário da garantia constitucional da presunção de inocência (cfr. art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).
A materialização de tal princípio, enquanto dirigido à apreciação dos factos objecto de um processo penal, desdobra-se em dois vectores essenciais: o primeiro é o de que o ónus probatório da imputação de factos ou condutas que integram um ilícito criminal cabe a quem acusa; o segundo, consiste que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação, o Tribunal deve decidir a favor do arguido. Neste sentido, o Ac. do STJ, de 04.11.98, in BMJ 481/265, dispõe que “Se por força da presunção de inocência, só podem dar-se por provados quaisquer factos ou circunstâncias desfavoráveis ao arguido quando eles se tenham, efectivamente, provado, para além de qualquer dúvida, então é inquestionável que, em caso de dúvida na apreciação da prova, a decisão nunca pode deixar de lhe ser favorável, por isso no caso de dúvida insanável sobre se se verificaram ou não determinados factos que implicam, por exemplo, a invalidade das provas obtidas contra o arguido e a consequente impossibilidade de contra ele serem utilizadas, a dúvida deve ser resolvida a favor deste, dando como provada a verificação de tais factos, ainda e sempre por obediência ao princípio in dubio pro reo”. Veja-se ainda neste sentido, o Ac. da Relação do Porto de 11.01.2006, Relator Joaquim Gomes, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere que” (…).
Salienta-se assim que, em virtude de tal princípio vigente no processo penal, atenta a ligação familiar das testemunhas que corroboram a versão da assistente, confrontada com a versão da testemunha C..., única testemunha que não possui qualquer relação familiar com ambas as intervenientes, sempre se ponderaria a dúvida, que é bastante razoável, no sentido de favorecer a arguida, dando-se em julgamento como não provados os factos que poderiam afectá-la ou responsabilizá-la penalmente.
Por outro lado, e no que ao crime de ofensas à integridade física diz respeito, ainda que a arguida tivesse ferido a assistente ao tentar soltar-se, seria, ainda, de convocar, segundo a versão da única testemunha que se afigura credível ao Tribunal, C..., uma causa de exclusão da ilicitude, designadamente, legítima defesa, uma vez que seria a forma de libertar-se da ofensa de que estava a ser alvo (sendo agarrada nos peitos), entendendo-se ser o meio utilizado necessário e adequado (isto é, o gesticular inerente à tentativa de libertação teria levado a que, fosse dada, diga-se até, involuntariamente, uma palmada com os braços na face da assistente).
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Consequentemente, fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, não se considera que os elementos de prova recolhidos em sede de inquérito façam pressentir a culpabilidade da agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior.
E, pelo que fica dito, entende-se que não existem indícios nos autos dos factos vertidos em ambas as acusações.
Assim, não existe a probabilidade de futura condenação da arguida, requerente da instrução.
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Nestes termos, decide-se proferir despacho de não pronúncia da arguida A...Santos ., pelos crimes de ofensa à integridade física e injúria pelos quais vinha acusada».
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2.2. Há que apreciar pimeiramente se a decisão instrutória padece de nulidade, nos termos do disposto nos artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, do CPP, por não conter a narração dos factos provados e não provados em termos indiciários.

Este fundamento do recurso reside na omissão de fundamentação de facto do despacho de não pronúncia, em virtude de não conter a indicação dos factos que o Sr. Juiz de Instrução tem, em termos indiciários, como provados e não provados, face aos elementos de prova recolhidos nos autos.

Na exegese do recorrente, tal falta afecta esse despacho de nulidade, em face do disposto no artigo 308.º, n.º 2, por referência ao artigo 283.º, n.º 3, ambos os preceitos do CPP.

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 286.º do CPP, «a instrução visa a comprovação da decisão judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».

Segundo o disposto no artigo 283.º, n.º 3, al. b) e 285.º, n.º 3, ambos do CPP, a acusação, pública e/ou particular, contém sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
A instrução pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente, conforme a natureza do acto que os afecte e que lhes confira o interesse em fazer comprovar judicialmente o acto de encerramento do inquérito: o arguido pode requerer a instrução no caso de ter sido deduzia acusação, e o assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o M.º P.º não tiver deduzido acusação.[1]
A estrutura acusatória do processo penal exige, porém, que a intervenção do juiz não seja oficiosa e, além disso, que tenha de ser delimitada pelos termos da comprovação que se lhe requer sobre a decisão de acusar ou, se não tiver sido deduzida acusação, sobre a justificação e a justeza da decisão de arquivamento.
Por isso, e não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução: “tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura de instrução”, como refere o n.º 4 do artigo 288.º.
O requerimento de abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz de instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.
No caso de requerimento de instrução do assistente, «o pressuposto da vinculação temática do processo só pode ser constituído pelos termos desse requerimento, que há-de definir as bases de facto e de direito da questão a submeter ao juiz. Na definição do objecto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há, assim, uma similitude funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura da instrução no caso de não ter sido deduzida acusação».[2]
Neste requerimento, muito embora não sujeito a formalidades especiais, o assistente deve indicar as razões de facto e de direito (art. 287.º, n.º 2) da sua divergência relativamente à posição de não acusação do M.º P.º.
Seguindo as palavras do Prof. Germano Marques da Silva[3], formalmente o assistente indica como o M.º P.º deveria ter actuado, ou seja que «não deveria arquivar, mas acusar e em que termos o deveria ter feito», invocando razões daquela dupla vertente, sendo imprescindível que do requerimento de abertura de instrução conste a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes imputados a cada um dos arguidos e das disposições legais.
Assim, o requerimento do assistente, no plano material, consubstancia uma acusação que, nos mesmos termos da acusação formal, condiciona e limita a actividade de investigação do juiz e a decisão acusatória.
Intimamente conexionados com a função de acusação, em sentido material, que o requerimento de abertura de instrução deve desempenhar  e, por consequência, de delimitação do objecto do processo, com a inerente vinculação temática, estão os arts. 303.º e 309.º, do CPP.

Um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e do despacho de pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência de indícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes [cfr. artigos 277.º, n.º 2 e 308.º, n.º 1, ambos do CPP)].
A decisão de pronúncia, tal com a de não pronúncia, assume, sem dúvida, a natureza de acto decisório, porquanto assim são definidos os despachos dos juízes, quando, não se tratando de sentenças, puserem termo ao processo [cfr. al. b) do n.º 1 do artigo 97.º do CPP].
O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constante dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade sustentada um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento.
Por esse motivo, o despacho de não pronúncia tem de conter os elementos referidos no artigo 283.º, n.ºs 2 e 3, sem prejuízo da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 307.º, em que se consagra que o juiz pode fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.
Como bem se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 10-07-2007 e da Relação do Porto de 17-02-2010[4], só da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de um futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas. E é sobre esse juízo que o Tribunal da Relação pode decidir do acerto ou não da decisão recorrida.
Para que o Tribunal da Relação possa fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos indícios por forma a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma optar pela decisão de pronúncia ou não pronúncia, torna-se imperioso saber qual a base indiciária tida por assente pela 1.ª instância, para, em operação posterior, confrontando a prova carreada à instrução, se pronunciar num ou noutro sentido.
Por isso, o despacho de pronúncia ou de não pronúncia há-de conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de prova indiciária[5].
No caso dos autos, a Sra. Juíza começou por fazer o saneamento do processo, considerando não existirem nulidades, ilegitimidades, excepções ou outras questões prévias a conhecer e, em seguida, depois de fazer uma resenha dos elementos probatórios produzidos em sede de instrução e uma análise crítica da prova, concluiu pela não pronúncia do arguido.
Porém, não descreve quais os factos das acusações, pública e particular, que considera suficientemente indiciados e os que não vislumbra indiciados com suficiência.
Torna-se, deste modo, evidente que a decisão sob recurso não deu cumprimento ao determinado no artigo 308.º, n.º 2, do CPP.
E qual o vício que daí decorre?
Neste domínio têm existido profundas divergências na jurisprudência dos Tribunais da Relação.
Versando concretamente o despacho de não pronúncia, há quem entenda que se trata de uma irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto no artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal[6].
Diversamente, referem outros tratar-se de uma nulidade oficiosamente cognoscível em sede de recurso[7].
Quanto a nós, seguimos, ao “pé da letra”, a posição assumida no Ac. da Relação do Porto de 07-07-2010[8], importando distinguir os casos de despacho de pronúncia com falta de narração dos factos indiciados dos casos de despacho de não pronúncia deficientemente fundamentado por não conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de indícios.
A nulidade que se vislumbra decorre do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, reportada ao n.º 2 do artigo 308.º, do CPP.
É de admitir que, quando referida a uma acusação ou ao despacho de pronúncia, tal nulidade, por omissão de narração dos factos imputados ao arguido, pelos quais deverá responder em julgamento, seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema e o princípio da acusação.
Efectivamente, nesta situação, se a falta de descrição dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, determinando a rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311.º, n.º 3, al. b) do CPP], seria destituído de todo o sentido que a falta de factos do despacho de pronúncia não consubstanciasse nulidade de conhecimento oficioso.
Dito de outro modo: os casos elencados no n.º 3 do artigo 311.º que se contêm na previsão das diversas alíneas do n.º 3 do artigo 283.º constituem uma forma de nulidade “sui generis”, insanável e de conhecimento oficioso.
Os demais casos do n.º 3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.
Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação se traduza numa nulidade que é sanável e, assim, dependente de arguição.
Consequentemente, deveria ter sido suscitada, pela assistente, perante o tribunal a quo (e não em recurso), no prazo de 10 dias (artigo 105.º, n.º 1, do CPP), contados a partir da notificação ao arguido do despacho de não pronúncia. Porque assim não sucedeu, está sanada.

*
 2.3. Por fim, cabe averiguar se os autos fornecem indícios suficientes da prática, pela arguida, dos crimes acima concretizados.
A dedução de acusação findo o inquérito, como o despacho de pronúncia no caso de ter havido lugar a instrução, supõem a existência no processo de indícios suficientes de que se tenha verificado crime e de quem foi o seu agente - artigos 283.º, n.º 1 e 308.º, n.º 1, do CPP.

O artigo 283.º, n.º 2, do citado diploma, formata normativamente o conceito de “indícios suficientes”: «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».

Esta fórmula legal acolhe a noção, sucessivamente densificada pela doutrina e pela jurisprudência, de “indícios suficientes”.

Em formulação doutrinalmente bem definida, «os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição».[9]

«Afirmar a suficiência dos indícios deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção, o Ministério Público deve arquivar o inquérito e o juiz de instrução deve lavrar despacho de não pronúncia»[10].

Traçando o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante, acrescenta o referido autor[11]: «o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta. O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com na base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade de da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim da fase preparatória».

Quer isto dizer que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação (ou para a pronúncia).

A jurisprudência, por seu lado, afinou a compreensão do conceito através da definição e enunciação de elementos de integração que se podem hoje rever na noção legal.

Indícios suficientes são os elementos  que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.

O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade.

O despacho de pronúncia, como também a acusação, dependem, pois, da existência de prova indiciária, de prima facie, de primeira mas razoável aparência, quanto à verificação dos factos que constituam crime e de que alguém é responsável por esses factos.

Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.


*
Disto isto, vejamos se a reconstituição processual dos elementos do inquérito e de instrução permitem ou não alcançar o nível de probabilidade necessário para a pronúncia da arguida pela prática dos crimes de ofensa à integridade física simples e de injúria.
B... apresentou queixa contra A... nos seguintes termos:
«No dia 28 de Agosto de 2010, cerca das 12h15, a denunciante encontrava-se no seu terreno de cultivo, sito no lugar …, acompanhada pela sua filha D... (...) e seu genro F... (…), tendo chegado a denunciada, acompanhada pelo pai, um tio e ainda um Senhor que não conhece, tendo de imediato começado a fotografar o terreno, dizendo para o Senhor que a estrema não era por onde estava mas sim mais para trás.
Ao ouvir estes factos, a denunciante disse que a estrema não era por onde a denunciada estava dizendo, pelo que a denunciada lhe respondeu que não falava com putas, tendo de imediato se dirigido para a denunciante, agredindo-a com as mãos, agarrando-a pela cabeça, provocando-lhe ferimentos na cana do nariz e testa, partindo-lhe ainda os óculos de correcção».

Na fase de inquérito, para além da assistente (fls. 17), foram ouvidas as testemunhas D... (fls. 18), F... (fls. 19),  …(fls. 52) e  …(fls. 53).

A arguida recusou prestar declarações (fls. 22).

A assistente confirmou os factos descritos na queixa, com os seguintes esclarecimentos:

Nas circunstâncias de tempo e local ali referidos e pelos motivos já narrados, «a denunciada aproximou-se da ofendida, dizendo que não falava com putas, ao mesmo tempo que lhe desferiu um murro na face do lado esquerdo, provocando-lhe ferimentos no olho esquerdo e nariz, originando-lhe ainda a queda dos óculos, os quais acabaram por se partir. (…) teve necessidade de receber tratamento no hospital de Coimbra (…)».

Referiu D..., nos aspectos mais relevantes:

«(…) no dia, hora e local mencionado nos autos, encontrava-se no referido terreno, acompanhada da sua mãe e do seu cunhado (…).

Entretanto, avistou um veículo a chegar, no qual vinha a denunciada, o pai e tio desta e um outro senhor cuja identificação desconhece.

De seguida, a denunciada começou a indicar ao tal senhor que a acompanhava por onde era a estrema dos terrenos (…).

A ofendida baixou-se, indicando o local correcto por onde era a estrema dos terrenos, altura em que a denunciada se aproximou dizendo que não falava com putas e agrediu a ofendida com um murro na face, originando-lhe ferimentos e a quebra dos óculos.

Perante tal facto, a ofendida foi receber tratamento hospitalar em Coimbra (…)».

A testemunha F...:

«(…) no dia, hora e local mencionados nos autos, encontrava-se acompanhado da sua sogra e da sua cunhada (…).

Entretanto, surgiu a denunciada, acompanhada do pai e de um tio e ainda de um outro senhor que o depoente não conhece.

A denunciada começou a dizer ao tal senhor (…) por onde era a estrema dos terrenos (…).

Perante tal facto, a ofendida baixou-se para indicar o local correcto por onde era a estrema, tendo a denunciada de imediato a agredido, com um murro na face, ao mesmo tempo que lhe disse que não falava com putas.

Da agressão (…) a ofendida sofreu ferimentos na zona do nariz e testa, tendo o depoente» procedido ao seu transporte «ao Hospital de Coimbra para receber tratamento, ficando com os óculos partidos».

A testemunha …:

«(…) No mês de Agosto, acompanhado da sua filha, denunciada nos autos, do seu irmão  …e do Advogado Dr. C..., dirigiram-se à propriedade do depoente para resolver uma questão de marcos.

No local estava também a queixosa, o genro desta, F..., e sua filha.

(…).

Relativamente à agressão da sua filha à queixosa, é falso visto que a sua filha não interveio na demarcação; apenas assistia.

(…).

A queixosa continuou a provocar a filha do depoente e empurrou a mesma; nesse acto sua filha virou-se para trás, tendo a queixosa apertado os peitos à mesma. Nesse acto sua filha apenas tirou as mãos da queixosa dos seus peitos.

A sua filha não agrediu a queixosa com qualquer murro nem partiu os óculos da denunciante».

Por fim, a testemunha …:

«No mês de Agosto acompanhou a sua sobrinha, denunciada nos autos, o seu irmão,  …, e o Advogado Dr. C..., à propriedade do seu irmão.

No local também estava a queixosa, o genro desta, F..., e sua filha ….

(…).

Relativamente à agressão da sua sobrinha à queixosa, é falso visto que esta apenas afastou o braço da queixosa por ela lhe tocar.

(…).

A sua sobrinha não agrediu a queixosa com qualquer murro, nem partiu os óculos da denunciante.

O depoente esclarece que, quando a queixosa saiu do local, não tinha os óculos partidos (…).  Ouviu o genro desta a dizer-lhe “para não fazer isso”, pelo que pensa que a queixosa terá partido os óculos de propósito para acusar a sobrinha».

No decurso da instrução apenas prestou declarações o Advogado Sr. Dr. C…, que foram por nós auscultadas e que ora reproduzimos, nas passagens significativas:

«Certo dia, previamente combinado com a Sra. A...e o Sr. …, encontrámo-nos junto ao semáforo de XXX..., para nos deslocarmos ao local, a fim de (…) ver a situação dos prédios e verificar se havia viabilidade para a propositura de uma acção de demarcação.

(…).

Assim que saímos do carro, descemos a serventia em direcção aos prédios (…). As outras pessoas, que depois vim a saber serem a Sra. B..., D...e F…, já estavam à nossa espera. Passámos por eles; os mesmos começaram logo a injuriar os “meus clientes”» com as seguintes expressões: «vocês só estão aqui para roubar; vocês são uns ladrões (…). Eu deixei os meus clientes passar a estrema e avisei-os que se houvesse ali alguma confusão para não responderem (…), senão eu próprio ausentar-me-ia do local (…).

(…).

Nós estávamos mesmo na serventia (…) e o Sr.  …estava-me a explicar» a situação. «Havia ali um marco e esse marco tinha desaparecido, na perspectiva do Sr. …. Tinha sido tirado pelo Sr. ….

Os outros Srs. continuaram a chamar “ladrões”.

De facto, os outros intervenientes não nos deixavam conversar (…).

Nós estávamos num espaço de 1m2.  

Em determinado momento, a Sr. B..., que se encontrava exaltada, lançou-se sobre a Sra. A...e pegou-lhe nos peitos». Esta tentou libertar-se. A primeira foi segura pela Sra. D… e pelo Sr. F… e puxada para trás pelos mesmos. «Sei que um deles partiu-lhe os óculos ao puxá-la para trás, provocando-lhe também um ligeiro corte “aqui algures”. «Quando puxaram a Sra. B... para trás ela esbracejava (…); foram eles que, ao puxarem-na para trás, partiram os óculos. Penso, inclusive, que terá sido o braço da Sra. Constança. A Sra. A...tentava libertar-se mas não provocou, de forma alguma» lesões na queixosa.

Para além das declarações que se acabam de transcrever, há que ter em devida conta a prova documental que o processo comporta, com particular destaque para a perícia de avaliação do dano corporal em direito penal relativa à assistente, realizada pelo Gabinete Médico-Legal de Figueira da Foz do Instituto do INML, cujo relatório, elaborado dois dias depois do imputado acto de agressão física, ora se reproduz, nos segmentos pertinentes:

«Estado actual

B. Exame objectivo

2. Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento

A examinanda apresenta as seguintes lesões:

- Face: escoriação na metade direita da região frontal com 1cm.

Conclusões

- As lesões atrás referidas terão resultado de traumatismo de natureza contundente o que é compatível com a informação;

- Tais lesões determinarão, em condições normais, 3 dias de doença para a cura, com afectação da capacidade de trabalho geral (3 dias).

(…)».

A par, não se podem descurar, todavia, os documentos de fls. 96/113, dos quais se recolhe que a assistente foi assistida, nos serviços de urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra, no dia 28 de Agosto de 2010, tendo realizado, entre outros exames, um TAC cranio encefálico.

Como é dado ver, deparamo-nos com dois blocos de declarações completamente contraditórios no que se relaciona com a prática dos factos imputados à arguida.

De um lado, a assistente, sua filha D...e seu genro F…, evidenciaram posição coincidente quanto à ocorrência da agressão física e às expressões injuriosas narradas na acusação pública e particular, perpetrada/dirigidas pela arguida A…, tendo por vítima a primeira das referidas pessoas, e circunstâncias em que tais actos se verificaram.

De outro, situam-se as declarações das testemunhas …,  …, respectivamente pai e tio da arguida, e C…, ilustre mandatário daquele e/ou da arguida, constituído para a eventual propositura de uma acção de demarcação, envolvendo prédios pertencentes aos dois referidos ramos familiares, as quais, em síntese conclusiva, deram conta da inexistência quer de qualquer acto de agressão física praticado pela arguida na pessoa da assistente quer da expressão que a acusação particular acentua.

Confrontando os diversos meios de prova, através de uma análise global e complexiva, necessariamente racional, lógica e objectiva, afigura-se-nos serem verosímeis as declarações da assistente e das testemunhas D...e F…, as quais são coerentes entre si e têm a corroboração periférica dos documentos acima indicados.

Efectivamente, de acordo com as regras da experiência comum, e embora num plano puramente indiciário, só tais declarações são consentâneas com a assistência hospitalar a que a assistente recorreu no próprio dia da imputada agressão física e com o conteúdo do relatório de pericial acima, em parte, transcrito.

A versão dos factos prestada pelas testemunhas  … e  … não concretizam a possibilidade da lesão da assistente ter ocorrido de modo diverso.

Por seu turno, tais testemunhas não descreveram os factos com a mesma amplitude com que o fez a testemunha C…, não deixando de causar estranheza a posição manifestamente redutora, no contexto em causa, das suas declarações.

Aliás, as referidas declarações em causa contêm, entre si, uma contradição evidente e inexplicável.

Enquanto  … referiu que a queixosa, quando saiu do local, não tinha os óculos partidos, alvitrando mesmo que aquela os terá partido, de propósito, em momento posterior, ex adverso, a testemunha C... disse expressamente que o dito objecto se partiu na sequência da intervenção da filha e genro da assistente.

Em suma, a análise dos meios de prova considerados é fortemente persuasiva da verificação do acto de agressão física descrita na acusação pública. Dito de outro modo, existem indícios suficientes de a arguida ter praticado os factos narrados nesse libelo acusatório.

E se neste contexto fáctico damos manifesta prevalência, pelos motivos expostos, à versão da assistente e das testemunhas D...e F…, por imperativo de racionalidade e verosimilhança, também teremos de conferir credibilidade ao mesmo leque probatório no que diz respeito à factualidade objectiva contida na acusação particular, rectius, à expressão que se imputa dirigida pela arguida à assistente.

Também neste quadrante, subsistem indícios suficientes que permitem, nesta fase processual, imputar à arguida, para além da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, o cometimento de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, daquele corpo normativo.

Procede, assim, o recurso.


*
III. Dispositivo:

Posto o que precede, os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação concedem provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam que, na 1.ª Instância, a arguida A...  seja pronunciada, tendo por base os factos descritos na acusação pública e particular, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
Sem tributação (artigo 513.º, n.º 1, do CPP).

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Alberto Mira (Relator)
Elisa Sales


[1] Estando em causa crimes particulares, a instrução não pode ter lugar a requerimento do assistente, uma vez que em crimes desta natureza a acusação do M.º P.º, se tiver lugar, segue a do assistente, sendo por esta substancialmente limitada (art. 285.º, n.º 3), podendo, deste modo, o assistente promover sempre o julgamento, formulando a sua acusação, a qual tem inteira autonomia da decisão que o M.º P.º tenha por bem adoptar.
[2] Ac. do STJ de 24-09-2003, proc. 2299/03, http://www.dgsi,pt/.
[3] Curso de Processo Penal, III, pág. 139.
[4] Procs. n.º 1075/07-5 e 58/07.1TAVNH.P1, ambos publicados em www.dgsi.pt.
[5] Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 22-11-2005, proferido no proc. n.º 1324/05-1. Veja-se ainda, no mesmo sentido, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Portuguesa, anotação ao artigo 308.º do CPP, pág. 768.
[6] Neste sentido, v. g., Acs. da Relação de Guimarães de 05-01-2004 (proc. n.º 293/04-1) e de 12-02-2007 (proc. n.º 2335/06-1); e Ac. da Relação do Porto de 16-12-2009 (proc. n.º 568/0GFVNG.P1), todos publicados in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Acs. da Relação de Évora de 22-11-2005 (proc. n.º 1324/05-1); da Relação de Lisboa de 10-07-2007 (proc. n.º 1075/07-5); e da Relação do Porto de 17-02-2010 (proc. n.º 58/07.1TAVNH.P1), os dois últimos publicados no sítio www.dgsi.pt.
[8] Proc. n.º 102/08.5PUPRT.P1, relatado por Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt.
[9] Cfr., Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. 1, 1974, pág. 132-133.
[10] Cfr. Jorge Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, p. 171.
[11] Idem, pág. 172.