Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1061/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 06/08/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART.º 483.º N.º 1 DO C. C.
Sumário:

Em princípio, o julgador não deve concluir o que o Sr. Perito não pôde concluir. Incidindo a prova pericial sobre factos que exijam conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, o Perito deve tirar conclusões dos factos que observou, se o puder fazer.
O mesmo deve ser dito relativamente a relatórios e testemunhas, com conhecimentos qualificados, sem prejuízo da diferença que há entre aquele e estes meios de prova.
Decisão Texto Integral:
1


Acórdão:
...
3. Pedido: condenação, solidária, das rés, a pagarem à autora a quantia equivalente a 10.350.000$00, acrescida de juros de mora desde a citação, até efectivo pagamento.
4. Causa de pedir: compra de adubo à primeira ré, produzido pela segunda, produto esse que não estava devidamente fermentado, sendo portador de milhões de ovas de larvas, que, lançadadas à terra, eclodiram infestando o terreno e devorando todas as sementes germinadas, o que provocou prejuízos à autora.
...
9. Factos provados.
...
10. O Direito.
O que está em causa no presente recurso é saber se a resposta que foi dada ao nº 19 da Base instrutória (B. i.) está correcta ou não, na medida em que a respectiva matéria era necessária para estabelecer uma relação de causalidade adequada entre os danos sofridos pelo recorrente e a falta de qualidade do adubo fabricado pela segunda ré e fornecido pela primeira.
10.1.1. Tratando-se de uma acção declarativa de condenação pela existência de prejuízos derivados de prestação defeituosa por parte das rés, perguntou-se: «a utilização do adubo (fornecido pelas rés ao autor) era portador de milhões de ovas de larvas que, após terem sido vertidas no solo, eclodiram provocando consequentemente a infestação de larvas?». Respondeu-se “não provado”, com a seguinte justificação: «quanto aos factos não provados nenhuma prova sobre eles se produziu, de forma convincente».
Daqui se concluiu que, para a procedência do pedido, faltava o nexo de causalidade entre a prestação e o dano ocorrido: «...». Ou seja, para a sentença recorrida o autor não conseguiu provar a relação entre a prestação das rés e os danos ocorridos: « ... os danos resultantes da violação» [1].
10.1.2. O recorrente entende em sentido contrário, com base nos seguintes elementos:
1º) do conteúdo do Relatório de fls. 13;
...
10.2. Relativamente ao Relatório de fls. 13, não se pode concluir como pretende o recorrente.
10.2.1. O que está em causa é o estabelecimento de uma relação de causalidade adequada entre a qualidade e características do adubo entregue ao recorrente e os danos que se verificaram na cultura onde esse produto foi aplicado. Na verdade, como se diz na sentença e com o apoio da jurisprudência por ela citada [2], «cabe ao adquirente provar o defeito invocado e os danos daí resultantes». A Directiva comunitária nº 85/374/CEE, do Conselho, de 25 de Julho de 1985 [3], transposta para o nosso direito através do Decreto-lei nº 383/89, de 6 de Novembro, com as alterações resultantes do Decreto-lei nº 131/01, de 24 de Abril, teve em vista uma “justa repartição dos riscos entre o prejudicado e o consumidor [4]. Assim, não basta ao consumidor provar a existência de um dano, sendo necessário que alegue e prove, ainda, a relação de causalidade entre este e o defeito do produto [5].
Ora, o Relatório de fls. 13, limita-se a afirmar que «da inspecção ao viveiro, verificámos que a parcela onde foi efectuada a aplicação do fertilizante orgânico, não se efectuou qualquer emergência, contrastante com a restante área, que apresentava uma densidade de emergência normal de plantas». Ou seja, na parte do terreno em que o autor aplicou o adubo, não nasceu nenhuma planta; na parte do terreno onde o autor não aplicou o referido adubo, nasceram, normalmente, plantas. Acrescenta-se, ainda, que «analisada a parcela onde foi feita a aplicação do fertilizante orgânico, verificamos que o mesmo se encontrava infestado de larvas, que se alimentavam de pequenas plantas recém emergidas, responsáveis pela destruição desta parte do viveiro».
Do que diz o Relatório, não se pode concluir pela existência de uma relação de causalidade adequada.
10.2.2. Pode pensar-se que, provavelmente, o dano ocorrido proviesse do produto, com base no seguinte raciocínio: se na parte onde se aplicou o adubo, surgiram larvas e as plantas não nasceram e na parte em que não se aplicou o adubo tal aconteceu, tendo havido uma emergência normal, então é porque o defeito provém do produto aplicado. Mas, este raciocínio é meramente empírico, traduzindo um nexo de simples coincidência ou sucessão cronológica [6], post hoc ergo propter hoc, não aceite pela doutrina nem pela lei, que exigem uma relação de causalidade com determinados requisitos, sempre mais exigentes do que o acabado de referir [7].
Repare-se que o Autor do Relatório não faz a afirmação com o conteúdo que o recorrente pretende, não afirma a relação entre o produto e o defeito. Dir-se-á que deixa os elementos necessários para que o julgador retire essa consequência ou retire consequências dos factos por ele verificados. Mas, o julgador não tem conhecimentos suficientes para tal conclusão, podendo incorrer em raciocínios como o atrás referido, sendo certo que, em certas circunstâncias, nomeadamente esta, quem for especializado, caso possa, deve ir mais além do que o enunciar de factos que verificou; o que caracteriza a prova pericial é ela provir de pessoas com conhecimentos que o julgador não possui. Ora, por que será que o Relatório não estabelece a relação entre o produto e o dano e, nem sequer, a possibilidade ou probabilidade dessa relação? Como iria o julgador fazê-lo se não tem conhecimentos de agricultura, mais concretamente de plantação de cerejeiras, podendo haver ou não a referida relação de causalidade adequada, podendo - com maior ou menor probabilidade - ou não podendo a má qualidade do adubo levar ao aparecimento de larvas? Por que haveria o julgador de concluir dessa maneira e não seguir, antes, a opinião da testemunha A, engenheiro técnico de produção agrícola, na parte em que fala de matéria ligada à sua formação profissional: relativamente à falta ou deficiência de fermentação, disse que não era possível, visto o adubo ser submetido a temperaturas entre 65 a 75 graus centígrados, o que destrói tudo o que é genes patogénicos e admitiu que as larvas pudessem surgir por aplicação directa das radículas (caroços) em cima do adubo; ou quando admitiu a alternativa do Sr. Juiz: as larvas só podiam vir ou do estrume ou dos caroços. E opiniões idênticas a esta, mas contrárias à tese do recorrente, foram afirmadas por outras testemunhas da segunda ré.
10.2.3. Portanto, não podemos estar de acordo com o requerente quando afirma «do relatório - fls. 13 - pode-se concluir que o produto ..., foi causa bastante e directa nos prejuízos suportados pelo Autor ora recorrente, uma vez que era portador de milhões de ovos de larvas que vieram a provocar a infestação verificada no local - viveiros - pelo técnico do DRABI»; parece claro que uma vez que era portador de milhões de ovos de larvas não é afirmação que conste do Relatório.
10.2.4. Por outro lado, no seu depoimento em audiência, à pergunta de olhe, qual teria sido a causa que levou a essa situação, disse: «ai, Sr. Dr., isso não sei (?), não sei, Sr. Dr.».
...
III – Decisão.
Pelo exposto, confirmam a sentença.
Custas pelo recorrente.

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[1] - artigo 483º, nº 1, do C.C., parte final; grifámos.
[2] - Acórdãos da Relação de Coimbra, de 8 de Abril de 1997, in CJ XII, 2, 38 e do STJ de 5 de Março de 1996, in CJ STJ IV, 1, 119.
[3] - relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados membros em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos.
[4] - 8º Considerando da Directiva.
[5] - solução esta que fugiu à que estava em preparação no segundo Anteprojecto da Directiva de 1975, que considerava que o consumidor só tinha de provar o dano e a existência de uma provável causalidade entre o produto e o dano, o que seria uma adequada protecção do consumidor (European Consumer Law Group: Rapports et Avis, septembre 1977 - mars 1984, Centre de Droit de la Cosommation, Bruxelles, 1984, pág. 58).
[6] - Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, 2ª edição, 1973, I vol. pág. 735.
[7] - muito embora se possa pensar que o legislador, em certas situações, possa alterar, para mais ou para menos, os requisitos exigíveis; cf. nota nº 5.