Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1247/08.7TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INSTRUÇÃO DO RECURSO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ARROLAMENTO
CONVOLAÇÃO
ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
ALUGUER DE AUTOMÓVEL SEM CONDUTOR
RESOLUÇÃO
APREENSÃO DE VEÍCULO
Data do Acordão: 09/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 392º, Nº 3, 693º-B, 691º E 712º DO CPC (DL Nº 303/2007, DE 24/08); D.L. Nº 354/86, DE 23/10, E D.L. Nº 54/75, DE 24/02.
Sumário: I – O artº 693º-B do CPC (introduzido pelo DL nº 303/2007, de 24/08), remetendo para as alíneas a) a g) e i) a n) do nº 2 do artº 691º do CPC, alargou o leque das possibilidades de instrução documental de um recurso, particularmente nas situações (al. l) deste nº 2) em que a decisão recorrida se pronuncie quanto à concessão ou rejeição de uma providência cautelar.

II – Em tais casos e independentemente da superveniência do seu conhecimento, podem ser juntos documentos que contrariem os fundamentos de facto nos quais assentou a decisão recorrida.

III – Destinando-se o procedimento cautelar de arrolamento à individualização de conjuntos de bens, é ele inadequado quando apenas um bem (e não uma universalidade) for objecto do direito controvertido.

IV – A tais situações (bem único) mostra-se adequado o procedimento cautelar comum.

V – O aluguer de uma viatura sem condutor por um período de 54 meses, sem o estabelecimento de qualquer tipo de opção de compra, configura um contrato de “aluguer de longa duração”- ALD.

VI – Traduz-se este num contrato inominado, sendo-lhe aplicável o regime da locação previsto no C. Civ. e as disposições do DL nº 354/86, de 23/10.

VII – A resolução de um contrato de ALD pelo locador opera, nos termos do artº 436º, nº 1,do CC, mediante declaração à outra parte.

VIII – O incumprimento da obrigação de devolução da viatura, findo o contrato (designadamente por resolução deste), configura uma situação substancialmente igual às que se encontram na base dos procedimentos cautelares previstos no artº 21º do DL nº 149/95, de 24/08 (locação financeira), e artºs 15º e 16º do DL nº 54/75, de 24/02 (reserva de propriedade e crédito hipotecário referidos a viaturas automóveis).

IX – Tais procedimentos cautelares prescindem da verificação concreta do periculum in mora decorrente do protelamento da entrega da viatura.

X – Configurando o ALD, na incidência da não restituição da viatura findo o contrato, uma situação substancialmente igual às previstas nas mencionadas normas dos DL nºs 149/95 e 54/75, deve ela receber, em termos de tutela cautelar, um tratamento idêntico a estas.

XI – Não tendo o legislador instituído para a ALD uma forma de tutela cautelar com as mesmas características das previstas nesses dois diplomas, ocorre uma violação do princípio constitucional da igualdade, na medida em que a intervenção legal em causa não é estendida a todas as situações substancialmente iguais.

XII – Nestas situações, sendo possível alcançar interpretativamente o resultado nivelador, deve o intérprete, actuando no quadro de uma interpretação conforme à Constituição, optar por tal alternativa potenciadora da situação de igualdade.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. A.... (Requerente e neste recurso Apelante) requereu o presente procedimento cautelar de arrolamento, em 06/05/2008[1], contra B... , C... e D... (Requeridos[2]), invocando ter celebrado com a primeira Requerida o “Contrato de Aluguer de Viatura nº 5355” (junto a fls. 14/16), respeitando este ao “aluguer” (por 54 meses) da viatura Nissan Navara ostentando a matrícula X...., mediante a contrapartida mensal de €511,35, a pagar pela referida Requerida até ao dia 4 de cada mês posterior à celebração do contrato, valor do qual, nesse mesmo contrato, se instituíram garantes os restantes dois Requeridos.

            Tendo a primeira Requerida falhado logo o pagamento da segunda prestação (a de Agosto de 2007), persistindo nos subsequentes meses nesse não cumprimento – e não tendo os dois outros Requeridos, accionada que foi a garantia por eles prestada, satisfeito os valores em dívida –, pretende a Requerente – que entretanto resolveu o contrato – o arrolamento do veículo, imputando à primeira Requerida a persistência no uso da viatura, “[…] provocando-lhe desgaste e desvalorizando-a […]” (artigo 31º do requerimento inicial), invocando adicionalmente a Requerente – e estamos a reproduzir os exactos termos por ela empregues no requerimento inicial – “[…] t[er] fundado receio que [a] primeir[a] Requerida jamais entregue a viatura automóvel […]” (transcrição de fls. 10).

            1.1. Inquiridas as testemunhas oferecidas pela Requerente (acta de fls. 32/33), foi proferida, contendo preambularmente a fixação fundamentada dos factos provados e não provados, a Sentença de fls. 34/50 (paginação corrigida), julgando improcedente o procedimento cautelar e que constitui a decisão objecto deste recurso[3].

            Para alcançar tal resultado, entendeu-se inadequado à situação o arrolamento e, aceitando-se a possibilidade abstracta de convolação deste para um procedimento cautelar comum (porventura o adequado), consideraram-se não alegados “[…] quaisquer factos que redundem num efectivo perigo conducente a que a espera pela acção principal redunde num fracasso pelo decurso do tempo” (transcrição de fls. 48).

            1.2. Inconformada apelou a Requerente (fls. 74), motivando o recurso a fls. 75/87, formulando, a rematar essa motivação, as seguintes conclusões:


“[…]
A. Foi considerado na douta Sentença [de] que aqui se recorre, que não seria o arrolamento o procedimento cautelar adequado a satisfazer as pretensões da Requerente, aqui Apelante, mas sim «um procedimento cautelar comum onde seja requerida a entrega a um fiel depositário».
B. Fundamentando tal opção afirma-se na Sentença […]: «com efeito, apenas reflexamente a Requerente pretende evitar o extravio e desvalorização do veículo, dado que o que efectivamente pretende é a sua restituição para voltar a dá-lo de aluguer».
C. Salvo o devido respeito, não é correcto o entendimento plasmado na douta sentença, quanto a este assunto.
D. Em primeiro lugar porque, é irrelevante o destino que a Recorrente vai dar à viatura automóvel em causa nos autos.
E. Isto porque, tendo sido, como foi e abaixo melhor se verá, operada a rescisão do contrato de aluguer, motivos não subsistem para que a Recorrida mantenha em sua posse a viatura do Recorrente.
F. Logo, sendo a viatura da Recorrente e não estando obrigada a ceder o seu gozo ou utilização à Recorrida, é direito da primeira dispor da referida viatura, seja para que fim for.
G. Sobretudo se atendermos a que, mesmo que a viatura esteja parada e ainda que a Requerida proceda às necessárias revisões e manutenções, o que de todo parece aceitável, a referida viatura continua a sofrer desvalorizações pelo simples decorrer do tempo.
H. Desvalorizações essas que conformam avultados prejuízos para a Recorrente
I. Visto que quantos mais anos a viatura estiver sem ser vendida, ou de novo alugada, maior vai ser a desvalorização que esta vai sofrer, independentemente do uso dado pela Recorrida.
J. Mais, é um facto notório que a viatura continua a ser utilizada pela Recorrente, e que se esta não está disponível para pagar a renda do aluguer, ainda menos estará para gastar um cêntimo que seja na manutenção da mesma.
K. Independentemente desta polémica, há algo que é certo: quanto mais tempo a viatura estiver na posse da [Requerida], mais aquela será desvalorizada, já que pelo simples decorrer do tempo as viaturas automóveis vêem o seu valor substancialmente reduzido, sendo tal facto independente das condições em que a mesma se encontra.
L. Pelo que, se a acção principal demorar, como habitualmente acontece, dois ou três anos a ser julgada, irá fazer com que a viatura automóvel, quando for entregue à Recorrente, já não terá qualquer valor comercial relevante.
[…]
M. Não foi dado por provado que tenha sido rescindido o contrato de aluguer, em virtude de não ter ficado provada a recepção da carta, junta aos autos no requerimento do procedimento cautelar como doc. 2 pela [Requerida].
N. No referido doc. 2, constituído pela carta de interpelação para cumprimento e de rescisão de contrato, enviada pela Apelante à [Requerida], deveria ter sido junto o respectivo comprovativo do aviso de recepção, o que não se fez por se considerar manifestamente desnecessário.
O. Contudo, após a leitura da douta sentença, pode-se constatar que o Tribunal considerou tal documento fundamental, pelo que só agora se tornou necessária a sua junção.
P. Assim, nos termos do artigo 693º-B a Apelante vem juntar aos autos, como doc. 1, o respectivo aviso de recepção da carta por si enviada à [Requerida], documento esse que se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais.
Q. Com a junção do referido doc. 1, deve ser dado por provado que a [Requerida] recebeu a carta, junta como doc. nº 2 no requerimento do procedimento cautelar, pelo que o contrato de aluguer foi devidamente resolvido, tendo por base o incumprimento contratual da [Requerida].
R. Encontrando-se o contrato devidamente resolvido, não subsistem razões para não acautelar o direito da Apelante a dispor livremente dos seus bens, sobretudo se, não sendo atendido o presente requerimento de procedimento cautelar, se vier a lesar gravemente e irremediavelmente a Apelante, em virtude de mais delongas processuais.
[…]
S. Existe, por tudo o que já foi dito, tanto na presente peça processual, como no requerimento do procedimento cautelar, justo receio da Recorrente que a viatura automóvel se «dissipe» ou até mesmo que desapareça de todo.
T. Contrariamente ao afirmado na douta Sentença [de] que aqui se recorre, tal dissipação ou eventual ocultação não é um risco próprio da actividade da Apelante.
U. Até porque, ao longo de mais de 10 anos de existência a Recorrente nunca perdeu uma […] viatura.
V. A Recorrente contrata sempre de boa fé, pelo que não lhe é possível prever que irá perder as viaturas que dá ao aluguer.
W. Até porque, reiterando o que se disse, tal nunca aconteceu.
X. É séria e irremediável a ameaça que paira sobre a viatura automóvel da Apelante.
Y. E, indiciariamente, é evidente que a [Requerida] continua a fazer a utilização da viatura, nos termos que sempre fez, ou, diz a experiência da Recorrente, de forma mais negligente e sem nunca proceder às revisões e manutenções, o que ainda acentua mais a desvalorização da viatura.
Z. Pelo que, ainda que se entenda não ser o procedimento cautelar de arrolamento o […] indicado a acautelar os legítimos interesses da Recorrente, deve ser decretada a apreensão da viatura, visto estarem preenchidos todos os requisitos legais para que tal aconteça.
AA. Com efeito, não pretende a Recorrente mais que assegurar a devida eficácia da decisão a proferir no âmbito da acção principal à qual os presentes autos estão apensos.
BB. Isto porque, atendendo à habitual demora na obtenção de sentença judicial, no âmbito da acção principal, é posto de forma séria em causa o direito da A. a dispor da sua viatura, nomeadamente para os fins que a adquiriu, para alugar.
CC. Afirma-se na douta Sentença […] que não se pode retirar dos autos a existência d[e] periculum in mora.
DD. Não se podendo com tal afirmação conformar a Recorrente.
EE. Até porque, no presente caso o periculum in mora resulta de factos notórios e concretos e da própria experiência comum.
FF. Mais, independentemente da utilização ou não da viatura, ou da realização das manutenções por parte da [Requerida], é evidente que, ainda que parada e resguardada da acção dos «elementos», por força das práticas comerciais do ramo, esta se encontra a desvalorizar a cada dia que passa.
GG. Já para não se indagar aqui novamente, relativamente ao facto de uma viatura automóvel, mesmo que parada, se deteriora e desvaloriza.
Assim,
HH. Deve ser decretado o arrolamento da viatura já descrita nos autos, em virtude de existir sério risco de, aguardando pela decisão da acção principal, esta venha a perder a sua eficácia, lesando-se a aqui Recorrente com tal demora, tendo em consideração a permanente dissipação e o sério risco de extravio, ou mesmo ocultação, da referida viatura.
[…]”
            [transcrição de fls. 82/87]


II – Fundamentação

2. Apreciando a apelação, cujo âmbito objectivo foi delimitado pelo Apelante através das conclusões acima transcritas (artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC), constata-se estar em causaconstituindo o primeiro fundamento do recurso(1) a pretensão de alteração de um segmento dos factos provados, em função da junção de um documento com as alegações (alínea Q das conclusões). Adicionalmente – e este constitui o segundo fundamento do recurso –, (2) visa a Apelante o reequacionar do julgamento do procedimento cautelar, refira-se este ao arrolamento ou a um procedimento comum (a tal respeito, centra a Apelante a discussão na verificação do requisito geral do periculum in mora).

2.1. Começando pelo primeiro fundamento (1) acabado de enunciar, sublinha-se a repercussão deste na definição dos factos provados e, consequentemente, a prioridade que ele apresenta relativamente à indicação do elenco fáctico a considerar.

2.1.1. Trata-se, a este respeito, essencialmente, de ponderar a incidência nos factos – rectius nos factos não provados – de um documento junto pela Apelante com as alegações de recurso (o documento de fls. 89 da paginação corrigida), mediante a invocação do artigo 693º-B do CPC. Esta disposição – que foi introduzida pela reforma do regime dos recursos decorrente do DL 303/2007, de 24 de Agosto[4] –, procedeu a um alargamento, relativamente ao regime pregresso, do leque das possibilidades de instrução documental de um recurso[5]. Com efeito, e centramo-nos na situação que ora apresenta relevância, remetendo irrestritamente o citado artigo 693º-B, a respeito da possibilidade de junção de documentos com as alegações, para “[os] casos previstos nas alíneas a) a g) e i) a n) do nº 2 do artigo 691º”, tenha-se presente que a alínea l) deste último se refere a decisões que se pronunciem (foi o que aqui sucedeu) quanto à concessão de uma providência cautelar[6]. E isto vale, dado o carácter amplo e não condicionado da apontada remissão, independentemente da superveniência do conhecimento do documento junto em sede de recurso.

Sendo, pois, lícita a junção do documento apresentado pela Apelante a fls. 89 com as alegações, referindo-se ele aos fundamentos do procedimento cautelar que a Sentença considerou não preenchidos, deverá esse documento ser feito repercutir no acervo fáctico a considerar neste recurso, nos termos resultantes da conjugação das alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 712º do CPC[7]. Trata-se, com efeito, de ponderar um elemento inquestionavelmente pertinente, adicionalmente comprovado em termos documentais, num quadro de circunstâncias que o torna imune, no seu significado aqui relevante, a outras provas, designadamente à prova testemunhal que esta Relação não apreciou (a prova testemunhal não destrói a circunstância de a carta ter sido efectivamente entregue aos Requeridos).

Está em causa, como se disse, o documento de fls. 89, tratando-se este de cópia do aviso de recepção, assinado pelos Requeridos, respeitante à carta de fls. 25, consubstanciando esta a comunicação de resolução pela Requerente do contrato de aluguer da viatura. Fica demonstrado, assim, contrariando a posteriori a asserção contida na alínea A) de fls. 38 da Sentença[8], terem os Requeridos recebido essa carta de fls. 25 (a indicada no item 6 dos factos). Importa, pois, e independentemente da relevância que isso possa apresentar em termos de decisão final do presente recurso[9], repercutir este (novo e relevante) aspecto dos factos[10], integrando nestes esse elemento adicionalmente comprovado pelo Apelante[11].

2.1.2. Assim, procedendo à enunciação da matéria de facto a considerar subsequentemente (a que foi indicada no trecho de fls. 36/38 da Sentença, com o acrescento introduzido nesta instância), temos o seguinte elenco:


“[…]
1. A Requerente dedica-se ao aluguer de viaturas automóveis e à prestação de serviços conexos, nomeadamente, manutenção das mesmas.
2. No dia 4/07/2007, a Requerente, no exercício da sua actividade, e Requeridos outorgaram um documento denominado «Contrato Quadro de Aluguer de Automóveis e de Prestação de Serviços», com o nº de serviço 5355, no âmbito do qual aquela declarou disponibilizar [à] primeira Requerida, pelo período de 48 meses, o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Nissan, modelo Navarra Diesel, versão DC LE+BDT, Hi-Tech MY07, com a matrícula X..., mediante o pagamento da quantia mensal de €511,35.
3. Mais acordaram que o segundo e terceiro Requeridos seriam responsáveis, de imediato e sem necessidade da Requerente frustrar previamente todas as vias para ser ressarcida pelo primeiro Requerido, pelo pagamento das quantias mensais referidas em 2., no caso de o primeiro Requerido não as pagar.
4. Requerente e Requeridos acordaram que a quantia referida em 2. incluía os serviços de manutenção e renda e seria paga, por transferência bancária, até ao dia 4 de cada mês subsequente ao vencimento da primeira renda.
5. [A] primeira Requerid[a], desde a data referida em 2., apenas pagou a factura correspondente ao mês de Julho de 2007.
6. A Requerente enviou à primeira Requerida, uma carta registada com aviso de recepção, datada de 22/10/2007, com o seguinte teor:
«(…) Encontram-se por liquidar à data de 22 de Outubro de 2007, três rendas relativas ao contrato de aluguer de viatura nº 5355, celebrado a 4 de Julho de 2007, referentes aos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2007, sendo o montante em débito de €1534,02 (…).
Não obstante os esforços da nossa parte no sentido de obter a satisfação do nosso crédito, não foi possível até hoje conseguir a regularização das dívidas vencidas.
Assim, nos termos do contrato de aluguer celebrado entre V. Exas. e a nossa sociedade, somos a conferir um prazo de 3 dias úteis para pagamento das rendas atrasadas e acima referidas, findo o qual consideraremos o contrato imediatamente e automaticamente resolvido, com as inerentes consequências legais, sendo que a resolução não exime quer do pagamento quer da indemnização estipulada no contrato, tudo sem prejuízo de no mesmo prazo deverá ser entregue àA...a viatura alugada, sem o que recorreremos a todos os meios ao nosso dispor para recuperar a mesma (…)».
7. Não obstante o teor da carta referida em 6., o primeiro Requerido não liquidou as quantias em dívida no prazo que lhe foi dado para o efeito, nem entregou a viatura.
8. Até à data da propositura da presente acção, o primeiro Requerido não entregou a viatura à Requerente,
9. Até à entrega efectiva da viatura, a Requerente fica impossibilitada de celebrar com outrem novos acordos de disponibilização temporária daquela, mediante o pagamento de uma contrapartida em dinheiro.
[…]”
            [transcrição de fls. 36/38]

10. Os Requeridos receberam a carta referida em 6. em 24/10/2007[12].

            2.2. Assentes quais os factos a considerar, trata-se agora (2) – e assim apreciamos o segundo fundamento do recurso nos termos indicados no item 2 – de considerar a decisão de não decretamento do arrolamento, bem como o procedimento cautelar comum equacionado pela Sentença como passível de ser o adequado, ao qual, aliás, se refere expressamente o pronunciamento decisório que transcrevemos na nota 4.

            2.2.1. Começando pelo arrolamento, constata-se, seguindo-se neste particular o entendimento expresso na decisão apelada, a inadequação do procedimento previsto nos artigos 421º a 427º do CPC ao efeito, assumidamente visado, de recuperação imediata do bem retido, visando propiciar à Requerente uma utilização equivalente à do contrato resolvido, sendo que esse bem se mostra, na sua essência existencial, perfeitamente individualizado.

Como referem José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, anotando o artigo 421º do CPC, “[a]rrolar significa «inscrever em rol» […]. A ideia de arrolamento está por isso ligada à de existência duma pluralidade de bens que se pretende acautelar. Para isso eles são descritos, avaliados e depositados (artigo 421º-1 [do CPC]), ficando sujeitos a regime semelhante ao dos bens penhorados (artigo 424º-5 [do CPC]). Identificados os bens e entregues a um depositário, fica, além do mais, afastada a dúvida (que, de outro modo, na acção, declarativa ou executiva, poderia surgir) quanto a saber se faltam bens no acervo a especificar”. Daí que – e continuamos a seguir a exposição destes Autores –, o arrolamento se mostre inadequado, por ausência do pressuposto de especificação e individualização dos bens num conjunto, “[…] quando apenas um bem (diverso duma universalidade) for objecto do direito controvertido: ainda que seja também litigiosa a sua exacta conformação […], a apreensão far-se-á [neste caso], nos termos que o tribunal determinar, no âmbito dum procedimento cautelar comum”[13].

            Foi, pois, inteiramente correcta a desconsideração do arrolamento como procedimento cautelar adequado à presente situação.

            2.2.2. Esta circunstância não impedia, todavia, conforme acertadamente ponderou a Exma. Juíza a quo, a convolação do procedimento requerido para o procedimento que, em concreto, se entendesse ser o adequado, nos termos do artigo 392º, nº 3 do CPC, sendo que este (o procedimento abstractamente adequado) só poderá ser, dada a falta de correspondência a qualquer providência especificada – e também aqui concordamos com a Sentença –, o procedimento comum previsto no artigo 381º do CPC, traduzido este – seguindo um pouco a linha das situações, substancialmente idênticas a esta, previstas nos artigos 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho[14] e 15º, nº 1 e 16º, nº 1 do Decreto-Lei nº 54/75, de 24 de Fevereiro[15] –, traduzido este procedimento comum, dizíamos, na apreensão da viatura, com a subsequente entrega desta à pessoa indicada pela Requerente no requerimento inicial.

            A ponderação do decretamento, ou não, de uma providência deste tipo, pressupõe o aprofundamento da caracterização (quer numa perspectiva estática quer numa perspectiva dinâmica) da situação expressa na relação contratual aqui invocada pela Requerente, ao abrigo da qual a viatura transitou para a detenção da primeira Requerida.

Consubstancia tal relação – e trata-se aqui de a caracterizar na aludida perspectiva estática – um contrato de aluguer de automóvel sem condutor, nos termos abrangidos pelo Decreto-Lei nº 354/86, de 23 de Outubro[16], concretamente no quadro do respectivo artigo 17º. Aliás, tendo-se convencionado uma “duração longa” para o aluguer (54 meses/4 anos e meio), corresponde o contrato ao chamado “aluguer de longa duração” (vulgo ALD), tratando-se este de uma figura contratual atípica, distinta de qualquer tipo especialmente previsto, ao qual são aplicáveis as disposições do Código Civil respeitantes à locação (já que se trata de uma forma de locação), associadas ao regime – rectius, compaginadas com o regime – decorrente do mencionado DL nº 354/86, de 23 de Outubro.

Ao que não corresponde este contrato, e disso não restam dúvidas, é à espécie contratual da locação financeira, dada a ausência (e remetemos aqui para os termos do respectivo clausulado constante de fls. 15 e 16), além do mais, do estabelecimento de uma ulterior opção de compra pelo locatário, sendo tal opção um elemento característico e essencial da locação financeira, presente na própria noção legal desta[17].

Encarando agora a relação contratual que nos ocupa numa perspectiva dinâmica, referindo-se esta ao comportamento contratual de ambas as partes, expresso nas vicissitudes experimentadas pelo contrato, ressalta, desde logo, o incumprimento (continuado) por parte da primeira Requerida da obrigação de pagamento da retribuição mensal devida pela cedência da viatura, o mesmo sucedendo com os restantes Requeridos, quando interpelados para o efeito, constituindo-se todos eles em mora. Motivou esta situação – sobre a qual não subsistem dúvidas (v. ponto 5 dos factos) – o envio pela Apelante/Locadora da carta de fls. 25, correspondendo esta a uma inequívoca interpelação admonitória para cumprir (“[…] somos a conferir um prazo de 3 (três) dias úteis para pagamento das rendas atrasadas […]”), com a cominação, findo o prazo conferido, da resolução do contrato. Ou seja, vale aqui, além dos termos suficientemente expressivos do próprio contrato quanto às consequências do incumprimento, a efectiva conversão da mora dos Requeridos, através da desconsideração por eles do prazo admonitório fixado pelo credor (v. ponto 7 dos factos), em incumprimento definitivo, nos termos do 2º trecho do nº 1 do artigo 808º do Código Civil (CC), situação que gera – como aqui gerou – o direito à resolução do contrato (artigo 801º, nº 2 do CC).

Coloca-se, então, a questão de saber se tal resolução, inquestionavelmente visada pela carta de fls. 25, operou relevantemente, no confronto dos Requeridos, interessando à dilucidação do problema, nos termos antes referidos, a caracterização da natureza do contrato, enquanto espécie inominada na qual convergem, em termos de enquadramento legal, o regime geral da locação, com assento no Código Civil, e o regime decorrente do DL nº 354/86, de 23 de Outubro.

Ora, é ponderando esta associação de fontes de enquadramento que se coloca a questão do modo de efectivação, neste tipo de contratos, da resolução pelo locador. Questionou-se até há pouco tempo se essa resolução operaria nos termos gerais, mediante declaração à outra parte (artigo 436º, nº 1 do CC), ou se careceria, por força do artigo 1047º do CC (na redacção anterior à Lei nº 62/2006, de 27 de Dezembro), de declaração judicial[18]. Note-se, porém, que o actual texto deste artigo 1047º – “[a] resolução do contrato de locação pode ser feita judicial ou extrajudicialmente” – ultrapassou o problema, aceitando, no quadro geral da locação, correspondendo este ao quadro particular do arrendamento e do aluguer (v. artigo 1023º do CC), a resolução extrajudicial, através da declaração à outra parte, como aqui sucedeu[19]. Aliás, mesmo face ao pretérito texto do artigo 1047º do CC, a desnecessidade da resolução judicial do contrato de aluguer era sublinhada por alguma doutrina[20] e constituía entendimento jurisprudencial maioritário[21].

Assente que a resolução operou aqui relevantemente, com a consequente destruição da relação contratual em causa, torna-se evidente, importando aqui sublinhá-lo, a inequívoca obrigação de restituição da viatura impendente sobre o locatário (v. artigo 1038º, alínea i) do CC) e a insubsistência, por banda deste, de qualquer fundamento ou tutela respeitante à detenção dessa mesma viatura (por parte de quem sabe perfeitamente que, ao prolongar essa detenção, está a actuar contra a vontade do legítimo dono).  

2.2.3. Aqui chegados, e pressupostos os elementos expostos no antecedente percurso argumentativo, alcançamos a questão fulcral do recurso, respeitando ela ao não decretamento da providência cautelar não especificada, por se entender não verificado o “[…] fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito […]”, como estabelece o artigo 381º, nº 1 do CPC.

Trata-se esta de uma questão que, nas concretas incidências que aqui apresenta (não restituição contumaz de uma viatura alugada, finda a relação contratual respectiva), tem atravessado a jurisprudência da segunda instância, recebendo respostas díspares. Com efeito, para a corrente à qual aderiu a Sentença recorrida, que nela fundou o não acolhimento da pretensão da Apelante, “[o] risco de perda ou deterioração da viatura, no contrato de ALD, é um risco do próprio negócio, inerente ao próprio gozo da viatura”, sendo que, “[p]ara que tal risco possa justificar [um] «fundado receio», tem de exceder o risco normal, impondo-se, ainda, a alegação de que a conduta do locatário torna impossível  ou muito difícil o ressarcimento dos prejuízos [da] locadora, em consequência da demora na entrega da viatura”[22]. Diversamente, outros precedentes jurisprudenciais, sublinham, face a situações em tudo idênticas à presente (nas quais se decidiu, em função da própria situação de privação da viatura, a verificação do periculum in mora, no quadro de providências cautelares comuns), que, “[e]xtinta a relação contratual, e inexistindo motivo para o locatário continuar na detenção do veículo, tem o locador direito à sua restituição como coisa integra, útil e utilizável, e não como coisa imprestável, inutilizável ou como mera sucata (risco que corre se apenas em virtude da decisão definitiva vier a ser apreendida e entregue à locadora, sem que esta tenha tido qualquer proveito com a utilização indevida)”[23].

Em apoio deste último entendimento – que adoptaremos no presente Acórdão –, impressiona-nos muito particularmente, constituindo um argumento decisivo, a existência, no nosso direito adjectivo cautelar, de dois tipos de procedimentos com essa específica natureza (cautelar), que prescindem da averiguação concreta do periculum in mora face a situações em tudo idênticas à presente. Referimo-nos aos já mencionados artigos 21º do DL nº 149/95, de 24 de Junho[24] e 15º, nº 1 e 16º, nº 1 do DL nº 54/75, de 24 de Fevereiro[25], visando estes situações (não entrega – cessado o contrato – do bem objecto de locação financeira; não entrega – incumprido o contrato – de viatura objecto de hipoteca ou de reserva de propriedade) cuja identidade substancial à presente situação (um contrato de ALD) é, como se disse, por demais evidente. Esta mesma circunstância foi, aliás, muito justamente sublinhada no voto de vencido constante do Acórdão da Relação de Lisboa de 30/03/2004 ao qual aludimos na nota 23[26].

Trata-se aqui, em função de uma relevante comparação de situações que consideramos ostensivamente semelhantes, de fazer actuar, enquanto critério interpretativo, o princípio constitucional da igualdade (artigo 13º da Constituição), na modalidade de proibição de um tratamento desigual arbitrário de realidades substancialmente iguais. Com efeito, não estando o legislador obrigado a garantir uma forma de tutela cautelar específica, que prescinda, afrouxe ou presuma inilidivelmente a existência de periculum in mora em todas as situações de detenção indevida de uma viatura cedida ao abrigo de um contrato findo, nas quais exista um direito de garantia referido à viatura ou se coloque a questão da restituição da mesma ao cedente, não estando o legislador obrigado a garantir isto, dizíamos, o que não pode é distribuir arbitrariamente este tipo particularmente intenso de tutela por umas situações, negando-a a outras situações absolutamente semelhantes. Como certeiramente observa Robert Alexy, “[…] frequentemente a violação do direito de igualdade definitivo abstracto é evitável de várias formas”, sendo disso exemplo “[…] a alternativa: não realização da intervenção que viola a máxima de igualdade, ou a sua extensão a todos os sujeitos jurídicos essencialmente iguais […]”, já que, “[o] direito prima facie à igualdade de iure implica o direito prima facie à omissão de tratamentos desiguais […]”[27].

Ora, do que aqui se trata, e essa traduz a consequência do entendimento adoptado pela Sentença recorrida que reputamos não conforme à máxima de igualdade, é de não evitar, neste caso através do acto interpretativo inerente à aplicação, desconsiderando nele a dimensão interpretativa reportada à conformidade constitucional[28], que uma situação relativamente à qual é relevante uma comparação positiva de igualdade (relativamente a situações substancialmente iguais), receba um incompreensível, rectius arbitrário, tratamento diferenciado.

Remete-se aqui para a caracterização feita pela jurisprudência constitucional alemã, relativamente à actuação do princípio ou máxima de igualdade. Esta, nas sugestivas palavras do Tribunal Constitucional Federal, é violada, “[…] quando para a diferenciação legal ou para o tratamento legal igual não é possível encontrar um fundamento razoável, que decorra da natureza das coisas ou que, de alguma forma, seja compreensível, isto é, quando a disposição tem de ser qualificada como arbitrária”[29], já que, “[…] não está vedado todo o tratamento desigual de casos essencialmente iguais, mas, tão-só, o tratamento desigual arbitrário dos casos essencialmente iguais”[30].

É nesta dimensão respeitante a um tratamento comparativamente desigual que qualificamos de arbitrário, porque desprovido de um motivo relevante, que deve ser enquadrada a questão da inexistência no ALD (no aluguer de viatura automóvel sem condutor) de uma tutela cautelar (formulada em termos legais expressos) com as especiais, e aqui particularmente relevantes, características da que é conferida ao bem objecto de locação financeira, de reserva de propriedade ou de crédito hipotecário, quando este bem é uma viatura automóvel relativamente à qual existe o que poderíamos definir, na sua essência significativa, como um direito ao alcance do bem pelo cedente, direito em tudo idêntico ao do locador financeiro ou do credor hipotecário, como sucede, desde logo, com o proprietário. Importa ter presente a este respeito – sendo esta a essência do inaceitável tratamento diferenciado –, que na locação financeira, no quadro da providência cautelar prevista no artigo 21º do DL nº 149/95, de 24 de Junho, como constitui interpretação indiscutível, “[…] a entidade locadora não necessita de provar a existência do periculum in mora[31], o mesmo sucedendo, no caso da apreensão ao abrigo do artigo 15º do DL nº 54/75, de 24 de Fevereiro[32].

Ora, podendo o intérprete obviar a esta arbitrária diferenciação, não vemos fundamento para não aceitar, enquanto expressão de motivos óbvios, muito razoáveis e ponderosos, ligados ao tratamento igual de sujeitos em situação jurídica igual, que no âmbito da não entrega da viatura no fim de um contrato de ALD, o locador possa gozar de uma tutela cautelar idêntica à (tão intensa quanto a) do locador financeiro ou do credor hipotecário, nas mesmas circunstâncias, ou seja, assente numa presunção actuante de que a contínua desvalorização do veículo equivale, enquanto preenchimento dos requisitos de um procedimento cautelar comum, ao fundado receio estabelecido no nº 1 do artigo 381º do CPC. Tal presunção, alcandorada à categoria de inilidível, constitui, com efeito, a razão de ser do regime cautelar especial estabelecido nas apontadas disposições dos DL/s nºs 149/95 e 54/75. 

E isto – também aqui o sublinhamos –, independentemente do valor intrínseco, que consideramos ser real, da afirmação, que colhemos nos espécimes jurisprudenciais indicados na nota 24 (e que aqui acompanhamos), de traduzir o senso comum a inferência de ser evidente que a protecção do locador contra o periculum quod est in mora não se compadece com a espera por uma decisão definitiva, no caso de um bem sujeito a uma contínua desvalorização, como sucede com um automóvel.

2.3. É, enfim, com base neste conjunto de razões que entendemos, diversamente do Tribunal a quo e sempre ressalvando o devido respeito por um outro entendimento, estarem integrados através dos factos provados[33] os requisitos de decretamento de uma providência cautelar comum dirigida à apreensão da viatura, com entrega imediata desta à Requerente.

É, pois, o que nos resta determinar, com a consequente procedência da apelação, não sem que antes sumariemos (artigo 713º, nº 7 do CPC) os elementos fundamentais do antecedente percurso argumentativo:


I – O artigo 693º-B do CPC (introduzido pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto), remetendo para as alíneas a) a g) e i) a n) do nº 2 do artigo 691º do CPC, alargou o leque das possibilidades de instrução documental de um recurso, particularmente nas situações (alínea l) deste nº 2) em que a decisão recorrida se pronuncie quanto à concessão ou rejeição de uma providência cautelar.
II – Em tais casos, e independentemente da superveniência do seu conhecimento, podem ser juntos documentos que contrariem os fundamentos de facto nos quais assentou a decisão recorrida.
III – Destinando-se o procedimento cautelar de arrolamento à individualização de conjuntos de bens, é ele inadequado quando apenas um bem (e não uma universalidade) for objecto do direito controvertido.
IV – A tais situações (bem único) mostra-se adequado o procedimento cautelar comum.
V – O aluguer de uma viatura sem condutor por um período de 54 meses, sem o estabelecimento de qualquer tipo de opção de compra, configura um contrato de “aluguer de longa duração” (ALD).
VI – Traduz este um contrato inominado, sendo-lhe aplicável o regime da locação previsto no Código Civil e as disposições do DL nº 354/86, de 23 de Outubro.
VII – A resolução de um contrato de ALD pelo locador opera, nos termos do artigo 436º, nº 1 do CC, mediante declaração à outra parte.
VIII – O incumprimento da obrigação de devolução da viatura, findo o contrato (designadamente por resolução deste), configura uma situação substancialmente igual às que se encontram na base dos procedimentos cautelares previstos no artigo 21º do DL nº 149/95, de 24 de Agosto (locação financeira) e artigos 15º e 16º do DL nº 54/75, de 24 de Fevereiro (reserva de propriedade e crédito hipotecário referidos a viaturas automóveis).
IX – Tais procedimentos cautelares prescindem da verificação concreta do periculum in mora, decorrente do protelamento da entrega da viatura.
X – Configurando o ALD, na incidência da não restituição da viatura findo o contrato, uma situação substancialmente igual às previstas nas mencionadas normas dos DL/s nºs 149/95 e 54/75, deve ela receber, em termos de tutela cautelar, um tratamento idêntico a estas.
XI – Não tendo o legislador instituído para o ALD uma forma de tutela cautelar com as mesmas características das previstas nesses dois Diplomas, ocorre uma violação do princípio constitucional da igualdade, na medida em que a intervenção legal em causa não é estendida a todas as situações substancialmente iguais.
XII – Nestas situações, sendo possível alcançar interpretativamente o resultado nivelador, deve o intérprete, actuando no quadro de uma interpretação conforme à Constituição, optar por tal alternativa potenciadora da situação de igualdade.  


III – Decisão


3. Assim, julgando procedente a apelação, revoga-se a Sentença recorrida e decreta-se, na base da convolação do procedimento de arrolamento requerido para um procedimento cautelar comum, a apreensão (a efectuar a qualquer dos Requeridos ou a terceiro) da viatura Nissan Navara ostentando a matrícula X..., com a subsequente entrega da mesma ao representante legal da Requerente A....

Custas em ambas as instâncias pela Apelante (artigo 453º, nº 1 do CPC), com a redução da taxa de justiça a metade.


[1] Tratando-se de processo iniciado posteriormente à entrada em vigor (01/01/2008) do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, são-lhe aplicáveis as alterações ao regime dos recursos introduzidas por este último Diploma (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil referida neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.
[2] Nos termos do artigo 385º, nº 1 do Código de Processo Civil, foi dispensada, a pedido da Requerente, a audição dos Requeridos (v. o despacho de fls. 29).
[3] Expressou a Sentença tal resultado, através da seguinte formulação decisória:
“[…]
Em face do exposto julgo improcedente o presente procedimento cautelar e, em consequência, decido não decretar o arrolamento requerido, nem a providência cautelar comum de entrega de veículo à requerente.
[…]” [transcrição de fls. 50, com sublinhado acrescentado].
[4] Aplicável neste caso, nos termos já indicados na nota 2.
[5] V. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil. Novo Regime, Coimbra, 2008, p. 215/217.
[6] “É agora possível, por exemplo, instruir o recurso ou as contra-alegações com documentos destinados a apreciar a questão da competência absoluta ou relativa, a justificar por que razão determinado meio de prova deve ser admitido ou a contrariar os fundamentos de facto que levaram o juiz a quo a conceder ou a rejeitar a providência cautelar” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., p. 216).
[7]

Artigo 712º
(Modificabilidade da decisão de facto)
1. A decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
[8] E sublinha-se que tal asserção foi, então, correctamente fixada pela Exma. Juíza a quo, com base nos elementos disponíveis no momento da prolação da decisão respeitante à matéria de facto.
[9] E dizemos isto, porque a Sentença recorrida, no trecho inicial de fls. 49, parece descartar a relevância, para a decisão que viria a adoptar, da questão da recepção da carta de resolução do contrato – “[e] se a eventual não recepção pode ser suficiente em termos jurídicos e em face do disposto no artigo 224º, nº 2 do Código Civil, para que se possa considerar resolvido o contrato, a verdade é que não se pode concluir pela existência de uma efectiva negação da Requerida em devolver o veículo”.
[10] É que o acesso desta Relação aos factos, relevantemente desencadeada que foi a alteração deles, nos termos do artigo 712º, nºs 1 e 2 do CPC, conduz sempre à alteração dos segmentos fácticos questionados, quando para isso existam razões. E isto, independentemente da repercussão que os novos factos venham a ter na decisão final. Vale aqui a autonomia adjectiva da questão de facto e da questão de direito dentro da lógica do recurso. 
[11] E nem será necessário apelar à prova com base na aparência das coisas, própria dos procedimentos cautelares, já que o documento adicionalmente junto (o aviso de recepção assinado pelos Requeridos) é suficientemente expressivo do recebimento por estes (por todos os Requeridos) da carta de fls. 25.
[12] Facto supervenientemente demonstrado pela Apelante e adicionalmente introduzido por esta Relação.
[13] Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, Coimbra, 2001, pp. 156 e 157.
[14] Respeitante aos contratos de locação financeira, cujos termos são os seguintes:
Artigo 21º
(Providência cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo)
1. Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente e no cancelamento do respectivo registo de locação financeira, caso se trate de bem sujeito a registo.
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
[15] Respeita este, no quadro de situações de reserva de propriedade ou equivalentes, relativas a veículos automóveis, a um procedimento cautelar de apreensão de veículos garante, caracterizado pelas normas citadas nos seguintes termos:
Artigo 15º
1. Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos.
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Artigo 16º
1. Provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo.
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
[16] Este sofreu as alterações decorrentes dos Decretos-Lei nºs 373/90, de 27 de Novembro e 44/92, de 31 de Março.
[17] Diz-nos o artigo 1º do DL 149/95, de 24 de Junho que a “[l]ocação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”. Veja-se a este respeito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/11/2003 (Salvador da Costa), proferido no processo nº 03B3725, disponível em www.dgsi.pt/jstj.nsf: “[o]s contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração assumem estrutura essencialmente diversa, porque no primeiro o locador se vincula a adquirir ou a mandar construir o bem a locar que o locatário pode ou não adquirir findo o contrato, e no segundo o locador apenas se obriga a proporcionar ao locatário o gozo da coisa, sem que este último possa assumir, findo o contrato, o direito potestativo da sua aquisição” (a citação refere-se ao sumário constante da base indicada).
Existiria uma outra possibilidade de enquadramento do contrato aqui em causa, no chamado “aluguer operacional de veículos” (AOV), também designado como “renting”, que se caracteriza pelo aluguer, por um prazo médio ou longo, abrangendo “[…] a prestação de um conjunto de serviços inerentes ao bom desempenho do veículo alugado e ainda outros serviços complementares” (Sebastião Nóbrega Pizarro, O Contrato de Locação Financeira, Coimbra, 2004, p. 46). Todavia, este hipotético enquadramento (e sublinha-se que aqui, a possibilidade abstracta de contratação desses serviços incluída na minuta, não se concretizou nas condições particulares concretamente fixadas), não altera minimamente aquilo que aqui nos interessa: a aplicação concorrente do regime da locação e do DL 354/86, de 23 de Outubro.
 
[18] Anteriormente às alterações decorrentes do NRAU (Lei 62/2006), dispunha o artigo 1047º que “[a] resolução do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do locatário tem de ser decretada pelo tribunal”. Daí que se discutisse a necessidade de resolução judicial, aplicando o regime desta disposição.
[19]  Note-se que a diferenciação entre o arrendamento (a locação de imóveis) e o aluguer (a locação de móveis), acaba por não ter um reflexo directo no Código Civil, para além da enunciação das duas situações no artigo 1023º, já que não existem no Código regras especiais respeitantes ao aluguer. O exemplo de regime especial deste encontramo-lo, precisamente, no aluguer de veículos automóveis sem condutor, previsto no mencionado DL 354/86 (neste sentido, cfr. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, Coimbra, 2000, p. 168 e nota 2).
[20] Como era o caso de Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações…, cit., p. 198, nota 2.
[21] V. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/04/2002 (Garcia Marques), proferido no processo nº 02A532, disponível em www.dgsi.pt/jstj.nsf e o Acórdão da Relação do Porto de 06/05/2004 (João Bernardo), proferido no processo nº 0432352, disponível em www.dgsi.pt/jtrp.nsf.  
[22] Referem-se as citações ao sumário do Acórdão da Relação do Porto de 19/04/2007 (Fernando Baptista), proferido no processo nº 0731622, disponível em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [no mesmo sentido, cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 30/03/2004 (Vaz das Neves), proferido no processo nº 10813/2003-7, disponível em www.dgsi.pt/jtrl.nsf].
[23] Refere-se a citação, desta feita, ao Acórdão da Relação do Porto de 18/06/2008 (José Ferraz), proferido no processo nº 0833386, disponível em www.dgsi.pt/jtrp.nsf (no mesmo sentido cfr. o Acórdão da mesma Relação citado na nota 22).
[24] Cujo nº 1 estabelece: “[s]e, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente e no cancelamento do respectivo registo de locação financeira, caso se trate de bem sujeito a registo”.
[25] Que estabelecem, respectivamente: “[v]encido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos”; “[p]rovados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”.
[26] Neste, com efeito, o Magistrado subscritor da posição que não fez vencimento (Manuel Tomé Soares Gomes), sublinha que a base da presunção, nestes casos, da existência de periculum in mora, “[…] radica[-se] nos dados da experiência, segundo os quais a não devolução do veículo […] é suficientemente indiciadora da forte probabilidade do desaparecimento ou da significativa depreciação do bem locado. De resto, são razões similares às que justificam o regime de apreensão imediata do veículo nos casos previstos no artigo 15º do DL nº 54/75 […], e do bem dado em locação financeira, nos termos do artigo 21º do DL nº 149/95 […]”.
[27] Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 1986, p. 392.
[28] Esta interpretação, nos termos em que a define J. J. Gomes Canotilho, opera: “[…] no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas deve[ndo] dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a Constituição”, ou seja, “[…] a interpretação conforme a Constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a Constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela […]”; “[…] o princípio da interpretação conforme a Constituição é um instrumento hermenêutico de conhecimento das normas constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o conteúdo intrínseco da lei” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª ed., s. d., mas publicada em 2002, pp. 1212/1213 e 1294).
[29] Citado por Robert Alexy, in Theorie der Grundrechte, cit., p. 366.
[30] Ob. cit. p. 365.
[31] Sebastião Nóbrega Pizarro, O Contrato…, cit. p. 57. Aliás, a desnecessidade de demonstração do periculum in mora resulta evidente da redacção do nº 4 do artigo 21º do DL nº 149/95.
[32] Presumindo-se aqui a urgência, enquanto necessidade de o credor garantir patrimonialmente o seu crédito antes que o devedor deteriore ou de qualquer modo desvalorize o veículo (v. L. P. Moutinho de Almeida, O Processo Cautelar de Apreensão de Veículos Automóveis, 2ª ed., Coimbra, 1983, pp. 9/10).
[33] E o facto acrescentado por esta Relação só intensifica o entendimento expresso na decisão aqui adoptada.