Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3104/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO COM HERDEIROS TESTAMENTÁRIOS
OPOSIÇÃO AO IVENTÁRIO
Data do Acordão: 10/28/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: REC. AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Área Temática: CÓDIGO CIVIL
Legislação Nacional: ARTS. S 1335°, N.1; 1336°, N° 2 E 1344°, N° 2, DO CPC; ART. 2187°, Nº 1 E 3 DO C.C.
Sumário:
I- A complexidade da matéria de facto a que se reportam os art. s 1335°, n° 1 e 1336°, n° 2, do CPC, só obriga à remessa dos interessados para os meios comuns processuais quando haja necessidade de ter lugar a produção de provas que o processo de inventário não comporte.
II - Devem resolver-se no processo de inventário todas as questões de facto que dependam de prova documental e aquelas cuja indagação se possa fazer com provas que, embora de outra espécie, se coadunem com a índole sumária da prova a produzir no processo de inventário, não sendo lícito remeter os interessados para os meios comuns senão nas questões cuja complexidade é evidente e que só através desses meios possam ser decididas.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra :
I
No Tribunal Judicial da Comarca de Ansião, Adelino ... e mulher Maria A..., residentes na Rua Cav..., em Tomar, requereram a instauração de processo de inventário entre maiores , para partilha dos bens deixados por óbito de sua tia Ermelinda ..., que foi residente na Vila de Avelar, freguesia de Avelar, concelho de Ansião, falecida em 5/06/1997 .
Para o cargo de cabeça de casal foi nomeado o Requerente, o qual prestou declarações nessa qualidade, conforme fls. 74 a 77 dos autos .
Pelo cabeça de casal foi apresentada relação de bens, relação essa que por despacho de fls. 466 foi mandada alterar, por forma a que na relação de bens definitiva os bens fossem separados entre a inventariada e o seu também falecido marido, de nome José da Silva Dias, o qual veio a falecer em 21 de Abril de 1999 .
Tal despacho foi cumprido, conforme fls. 472 a 495 .
No entretanto e na sequência das citações efectuadas aos demais interessados identificados pelo cabeça de casal, António Passos e mulher Maria vieram impugnar a legitimidade do Requerente para desempenhar o cargo de cabeça de casal no presente inventário ( fls. 217 ), e os interessados Octávio e mulher Guiomar , residentes na Rua B... Brasil; e Nautília ..., residente na Rua Rui ..., Brasil, vieram deduzir oposição ao inventário requerido, com o fundamento de que os Requerentes não se podem considerar herdeiros da inventariada, da qual apenas deve ser tido como único e universal herdeiro o respectivo cônjuge, José d..., relativamente ao qual os Requerentes nenhuns laços de família têm, nem foram abrangidos por disposição testamentária do dito, pelo que nenhum interesse podem ter na partilha dos bens deixados pelos referidos cônjuges falecidos , que deles não podem ser considerados como herdeiros, donde a sua falta de legitimidade para requerer o presente inventário e bem assim para desempenhar funções de cabeça de casal – fls. 249 a 251.
Foi junta escritura de habilitação de herdeiros por óbito de José da Silva Dias ( fls. 253 ) .
A fls. 519 foi proferido despacho judicial relativo às oposições supra referidas, no qual se considerou que a decisão de tais incidentes está dependente da interpretação a dar ao testamento deixado pela inventariada Ermelinda, questão essa de natureza complexa, em face do que foram os interessados remetidos para os meios comuns, com suspensão da instância até à respectiva decisão definitiva , nos termos do artº 1335º, do C.P.C. .
II
Desse despacho interpuseram recurso os Requerentes do inventário, recurso esse admitido como agravo , com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo do processo .
Nas alegações que oportunamente foram apresentadas pelos Agravantes, formularam as seguintes conclusões :
1ª - A suspensão judicialmente ordenada nos presentes autos é desnecessária e não tem fundamento inteiro .
2ª - A questão da e a interpretação das cláusulas testamentárias pode e deve, atenta a sua simplicidade e a base e meio documental pela qual e na qual se encontra, ser de imediata decisão, sem necessidade de recurso a produção de provas adicionais .
3ª - A Lei Civil, atentas as normas legais conjugadas nos nº 1, al. b), do artº 2295º, “ ex vi “ do artº 2286º, 2132º, 2230º, 2133º, do nº 1 do artº 2162º, artº 2158º, a al. a) do artº 2317º, todos do C. Civ., tem resposta clara e sem necessidade de recurso de remessa dos interessados para os meios comuns, para decidir neste momento e do presente processo, a questão em causa .
4ª - Esta solução passa pela muito clara resposta pela vontade que os testadores quiseram dar pela instituição fideicomissária, que se regula e prevê na al. b) do nº 1 do artº 2295º e “ ex vi “ 2286º, ambos do C. Civ. .
5ª - Estes herdeiros instituídos, dela ou dele, ambos testadores, que são os seus herdeiros legítimos e que são todos identificados nos autos .
6ª - O M.mº Juiz havia que despachar sem necessidade de qualquer outra decisão judicial ou recurso a qualquer outro processo judicial, por facilidade de decisão a que se encontra habilitado documental e legalmente satisfeito .
7ª - E sempre decidindo pela resposta que a lei lhe fornece, pelas disposições combinadas supracitadas .
8ª - E decidindo pelo reconhecimento de que existe um direito adquirido pelos Recorrentes, herdeiros da inventariada Ermelinda Augusta Passos, de acordo com a instituição fideicomissária desses descendentes ...
9ª - Ou seja, e de acordo com essa instituição fideicomissária , ... , por razão da sua morte eles adquiriram direitos na quota parte de ¼ sobre todo o acervo hereditário que viesse a ser achado à data da morte do último inventariado, o José da Silva Dias .
10ª - Mais, do que resulta legalmente e relativamente à propriedade dos bens existentes à morte do último, o inventariado José da Silva Dias, em parte já eram pertença e todos os co-herdeiros da falecida Ermelinda, e que ele marido se encontra inibido de deles dispor graciosamente e por acto de liberalidade, devendo e estando condicionado a conservá-los a partir do momento do falecimento da mulher, em ordem a preservar a meação da dita para os co-herdeiros da mesma e que não podia prejudicar o direito dos ditos herdeiros .
11ª - Portanto, por meio da instituição fideicomissária daqueles, os sobrinhos da testadora Ermelinda, ... ( não se entende o sentido do que mais se escreve nesta conclusão ) .
12ª - E, por fim, aqueles sobrinhos dela, que só numa parte de ¼ são inteirados, os direitos dos interessados inventariantes primos germanos do José Silva Dias são calculados e inteirados sobre a quota-parte sucessória de ¾ daquele e que lhes cabe por direito sucessório por morte daquele último .
13ª - Mas sempre as oposições dos restantes interessados sequer foram hábeis e contêm matéria influente contrária e que prejudique a pretensão dos demais aqui representados , herdeiros da testadora Ermelinda...
14ª - ...
15ª - Atenta a alegação dos artigos 28º a 30º da oposição deduzida pelos interessados Octávio Varanda Dias e Nautília da Piedade Dias, eles não articularam factos e meios que obstem à pretensão dos interessados requerentes .
16ª - Ora, ..., não se verifica que nessa oposição houvesse sido deduzida qualquer ( oposição ) especificada e fundamentada, ... .
17ª - Esses interessados não cumpriram nunca o ónus de alegação especificada e fundamentada às alegações de direito, em ordem a impugnar, nem mencionam a pretensão dos demais interessados ...
18ª - À oposição são aplicáveis as regras que presidem ao nº 1 do artº 490º do CPC ...
19ª - Octávio Varanda Dias e Nautília da Piedade Dias, opositores, tão somente alegam em seu favor que a sua qualidade advém da escritura de habilitação de herdeiros.
20ª - Tais oposições não foram hábeis e contêm matéria influente contrária e que prejudique a pretensão dos demais herdeiros.
21ª - Ora, atenta a alegação dos artigos 28º a 30º da oposição deduzida pelos interessados Octávio e Nautilia, ela em nada obsta à pretensão dos demais interessados .
22ª - Em tais oposições não se assiste nem se verifica um qualquer fundamento nominal e legalmente expresso e objectivo .. que prejudique a qualidade e as pretensões de direito e de facto que os outros demais interessados alegaram em ordem à invocação e na qualidade de interessado a título e conforme a sua instituição fideicomissária .
23ª - O M.mo Juiz exorbitou os seus poderes e indo para além do que as próprias partes alegaram e se encontrava delimitada e definida pela matéria alegada constante dos articulados .
24º - Nestes termos , deve a decisão do Tribunal recorrido e que originou a suspensão da instância, ser substituído por outro, por meio de acórdão, a ordenar o prosseguimento dos autos ... .
III
Não foram apresentadas contra-alegações e em despacho de sustentação foi dito manterem-se inalterados os pressupostos que serviram de fundamento à decisão recorrida, a qual foi assim mantida .
Já neste Tribunal foi aceite o recurso tal qual fora admitido em 1ª Instância, tendo-se procedido à recolha dos “ vistos “ inerentes ao processamento do agravo, pelo que nada obsta ao conhecimento do seu objecto, que se pode resumir à apreciação do teor do despacho de fls. 519 / 520, no qual foi decidido que “o incidente da oposição ao inventário, por alegada ilegitimidade dos Requerentes do mesmo, está dependente da interpretação de uma cláusula testamentária ( constante do testamento da autoria de Ermelinda Augusta Passos Dias, a fls. 59 / 61 , ), o que se revela uma questão complexa, para a qual se torna necessária a produção de meios de prova complementares, com a consequente consideração e decisão de se determinar a suspensão da instância até que as partes obtenham essa interpretação pelos meios judiciais ditos comuns – em acção declarativa própria “, pese embora as 24 conclusões elaboradas pelos Recorrentes com a apresentação das respectivas alegações de recurso, as quais, no entanto, se resumem à dita apreciação ,afigurando-se até incompreensíveis a maior parte delas, para não dizer mesmo ininteligíveis .
Apreciando, são de considerar ou a ter em conta como instrumentos factuais nessa apreciação, as certidões de fls. 39, relativa à data do óbito de Ermelinda Augusta Passos ( Dias ), o qual ocorreu em 05/06/1997 ; de fls. 59 a 61, onde se contém um testamento público lavrado em 03/03/1969, sendo testadora a dita Ermelinda, cujo teor aqui se dá como reproduzido; a certidão de fls. 24 e 25, que contém um testamento público, elaborado em 03/03/1969, nele figurando como testador José da Silva Dias, cujo teor aqui se dá como reproduzido ; a certidão de fls. 30, relativa à data de óbito de José da Silva Dias, ocorrido em 21/04/1999 ; a certidão de fls. 133, comprovativa de que Ermelinda Augusta Passos e José da Silva Dias casaram entre si em 03/11/1934, segundo o regime de comunhão geral de bens ; e a certidão de fls. 252 a 254, relativa a uma escritura de habilitação de herdeiros por óbito de José da Silva Dias .
Também há que considerar que qualquer dos referidos cônjuges faleceu sem ascendentes vivos e sem descendentes, conforme declarações de cabeça de casal prestadas nos autos e que nenhum dos opositores desmente, o que também consta da certidão de fls. 253, junta pelos Recorridos
Desse conjunto de elementos resulta que em 03/03/1969, os referidos cônjuges, Ermelinda e José da Silva, casados segundo o regime de comunhão geral de bens, dispuseram, para depois das suas respectivas mortes, de todos os seus bens, através de testamentos públicos ( lavrados notarialmente ), nos quais cada qual “ deixou todos os bens que tiver ao seu cônjuge( a mulher deixou ao marido e o marido deixou à mulher), com a condição do que sobrar à morte dele ( o outro cônjuge beneficiário ) ficar para os herdeiros do testador respectivo” .
Como a testadora Ermelinda veio a falecer antes do seu cônjuge – o que sucedeu em 05/06/1997 - , sem que lhe seja conhecido qualquer outro testamento posterior, coloca-se a questão da validade e da interpretação devida a esse testamento, o que definirá a legitimidade ou ilegitimidade dos Requerentes do inventário, sabendo-se que a dita Ermelinda tinha irmãos germanos e sobrinhos ( pelo menos estes vivos ), identificados nas declarações de cabeça de casal, entre os quais se conta o Requerente do inventário, Adelino Passos Rosa , sobrinho mais velho , segundo parece poder depreender-se dessas declarações .
Ou será que essa apreciação não pode ter lugar nestes autos, como decidiu a 1ª Instância, ao abrigo do disposto nos artºs 1335º, nº 1, por se dever entender ser complexa a matéria de facto que está subjacente a essa apreciação ?
Ora, dispõe o artº 1336º, nº 2, do CPC, que “ só é admissível ... a remessa dos interessados para os meios comuns ( nos termos do artº 1335º ) ,quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes “.
Essa dita complexidade ou natureza da matéria de facto que está subjacente à referida interpretação apenas obrigaria a que se recorresse aos meios comuns se houvesse necessidade de ter lugar a produção de provas que o presente processo não comportasse, como sucederia, por exemplo, com uma situação de questionação sobre a consistência ou não de um alegado direito de propriedade do “ de cuius “ sobre determinado bem relacionado , ou se houvesse que discutir sobre a aquisição do direito de propriedade por usucapião sobre um imóvel, com vista a saber-se se faz ou não parte do acervo patrimonial da herança – veja-se , neste sentido, França Pitão, in “ Processo de Inventário ( nova tramitação ) “, pg. 65/66 ; e Ac. Rel. Po. de 19/01/73, in BMJ 223, pg. 281 .
Ao contrário, devem-se resolver-se no processo de inventário as questões de facto que dependam de prova documental e aquelas cuja indagação se possa fazer com provas que, embora de outra espécie, se coadunem com a índole sumária da prova a produzir naquele processo, não sendo lícito remeter os interessados para os meios comuns senão nas questões cuja complexidade é evidente e que só através desses meios possam ser decididas -–Ac. Rel. Po. de 30/11/78, in C. J. 1978, tomo V, pg. 1624; e Ac. Rel. Po. de 1/03/83, in BMJ 325, 607 .
Convenhamos que tal não sucede no presente incidente de oposição ao inventário, até porque nem se vê que outros meios de prova pudessem servir para se decidir tal incidente, na medida em que contamos com os referidos meios documentais e uma vez que na interpretação dos testamentos há que atender ao disposto no artº 2187º, nºs 1 e 2, do C. Civ. , disposição segundo a qual na interpretação das disposições testamentárias deverá ser observado o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento, e embora seja admitida prova complementar, ela não surtirá qualquer efeito sem que tenha um mínimo de correspondência com o contexto do testamento , ainda que se possa considerar imperfeitamente expressa a vontade do testador .
Nem as partes reclamam sobre a existência de alguma imperfeição da vontade da testadora manifestada no testamento redigido, a ser dilucidada por outros meios de prova, apenas se socorrendo da sucessão das leis no tempo para justificarem os seus fins, quer num sentido quer no outro, conforme melhor lhes aproveita ...
Sendo assim, como é, a questão colocada no referido incidente de oposição ao inventário pode e deve ser imediatamente decidida, nos termos do artº 1344º, nº 2, do CPC, não sendo admissível a remessa dos interessados para os meios comuns, como fez a 1ª Instância, pois não há que ter lugar a produção de qualquer prova e muito menos com foros de complexidade, o que então justificaria essa remessa, nos termos dos artºs 1335º e 1336º, nº 2, do CPC .
Logo, impõe-se a revogação do despacho recorrido, com vista à imediata prolação de decisão judicial sobre o incidente suscitado, com apreciação judicial sobre a interpretação a dar ao referido testamento, a fim de se poder decidir sobre a legitimidade ou ilegitimidade dos Requerentes do inventário, tendo em conta o disposto nos artºs 1327º, nº 1, al. a) e 1332º, nº 2, ambos do CPC, e 2101º do C. Civ. .
No entanto, afigura-se dever ser feito um reparo no sentido de dever ser ordenada a cumulação de inventários por morte de ambos os cônjuges, ao abrigo do artº 1337º, nº 1, al. b) e c), do CPC, tanto mais que não faz qualquer sentido exigir-se a apresentação de relações de bens em separado para cada um dos cônjuges testadores, na medida em que ainda não existe essa separação ( o que parece resultar do despacho de fls. 467 / 468 ), questão que só através da presente partilha se poderá lograr conseguir .
IV
Decisão :
Face ao exposto, acorda-se em dar provimento ao agravo, revogando o despacho de fls. 519 / 520, o qual deve ser substituído por outro com vista à imediata prolação de decisão judicial sobre o incidente suscitado, com apreciação judicial sobre a interpretação a dar ao referido testamento, a fim de se poder decidir sobre a legitimidade ou ilegitimidade dos Requerentes do inventário, tendo em conta o disposto nos artºs 1327º, nº 1, al. a) e 1332º, nº 2, ambos do CPC, e 2101º do C. Civ. .
Custas do presente agravo pelos interessados que vierem a decair no incidente de oposição ao inventário ( fls. 249) .