Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4/14.6TBMIR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
ACIDENTE DE TRABALHO
Data do Acordão: 06/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI Nº 3/99 DE 13/1, LEI Nº 98/2009 DE 4/9
Sumário: É da competência (material) dos tribunais comuns o conhecimento de ação em que uma seguradora, pretendendo exercer direito de regresso, pede a condenação de uma empresa a pagar-lhe o que despendeu, por lesões sofridas por um trabalhador desta, em razão de acidente de trabalho causado por ato ilícito daquela empresa.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A Companhia de Seguros (…), S.A., intentou ação contra B (…), Lda., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe €27.528,72, alegando, em síntese:

 As partes celebraram um contrato de seguro de acidentes de trabalho, nos termos do qual a Autora assegurou a responsabilidade da Ré pelos acidentes de trabalho sofridos pelos trabalhadores desta, onde estava incluído o funcionário M (…);

Este teve um acidente de trabalho, originando o Processo N.º 816/11.2T4AVR, no Juízo de Trabalho de Aveiro;

No âmbito deste, a Autora procedeu ao pagamento de todos os tratamentos necessários à recuperação do trabalhador, bem como as demais prestações devidas em consequência da sua incapacidade parcial para o trabalho, tendo despendido, com a regularização do sinistro, o valor de €27.528,72.

No âmbito das suas averiguações, a Autora apurou que o acidente ocorreu por violação de normas de Segurança, pelo que, atenta a culpa da entidade empregadora, a primeira tem direito de regresso sobre esta.

Contestou a ré, além do mais, arguindo a incompetência material do tribunal, e em síntese:

A fixação da responsabilidade pelo acidente de trabalho deverá fazer-se na ação especial emergente de acidente de trabalho.

É naquele processo que se averigua a responsabilização das entidades, não podendo a autora pretender, nos presentes autos, o reembolso do que pagou, sem que tenha sido possibilitada, naquele processo, a discussão da culpa da Ré.

Foi proferida decisão a julgar improcedente a arguida excepção dilatória de incompetência material, declarando-se o tribunal competente.


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Inconformada, a Ré recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

A– O Tribunal a quo decidiu, em sede de despacho saneador, não dar provimento à excepção arguida pela recorrente, e declarou o Tribunal Comum (de Competência Genérica) materialmente competente para decidir a acção de direito de regresso intentada pela recorrida (seguradora) contra a recorrente (entidade empregadora) com fundamento no art. 79.º, n.º 3 da lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro decisão com a qual não se conforma a recorrente.

B – Previamente à presente acção, correu termos o processo n.º 816/11.2T4AVR, no Juízo de Trabalho de Aveiro, Comarca do Baixo Vouga que teve na sua génese um acidente de trabalho sofrido por um trabalhador (sinistrado) da recorrida, ali tendo intervindo como partes somente o trabalhador e a recorrida (a seguradora para quem a recorrente havia transferido a responsabilidade por acidentes de trabalho).

C – O eventual direito de regresso da recorrida (art. 79.º, n.º 3 da lei n.º 98/2009) para com a recorrente está dependente da violação, por parte desta, de normas de Higiene, Segurança e Saúde no Trabalho (art. 18.º da lei n.º 98/2009) entendendo a recorrente que o lugar e momento adequados para verificar o preenchimento dos requisitos daquele art. 18.º era o processo por acidente de trabalho n.º 816/11.2T4AVR, que correu termos no Tribunal de Trabalho de Aveiro (arts. 85.º c) LOFTJ, art. 112.º, n.º 1, art. 126.º, n.º 1, art. 127.º, n.º 1, art. 129.º, n.º 1, al. b) e 128.º, todos do CPT), processo para o aqul a recorrente nunca interveio nem foi citada dos e para os respectivos termos.

D – Em sede da fase conciliatória daquele processo de trabalho, a recorrida e o trabalhador acordaram na existência e caracterização do acidente

como de trabalho, na relação de causalidade entre o acidente e as lesões e na entidade responsável (responsabilização da recorrida) pelo ressarcimento dos danos causados ao sinistrado, factos que ficaram então assentes, sem qualquer objecção por parte da recorrida não tendo em nenhum momento, a recorrida, levantado aí a questão da culpabilização da entidade empregadora (recorrente) pela ocorrência do acidente de trabalho (nos termos daquele art. 18.º), onde pudesse, depois, vir a alicerçar o eventual direito de regresso (art. 79.º, n.º 3).

E – Não tendo sido discutida (previamente, no Tribunal de Trabalho), a questão do preenchimento dos pressupostos daquele art. 18.º, não pode agora a recorrida, sem mais, vir “criar” a questão do direito de regresso (art. 79.º, n.º 3), colocando à apreciação do Tribunal Comum (concretamente, o Tribunal de Competência Genérica onde a acção foi intentada), a discussão de todos os factos que estão na sua génese (desde o próprio acidente de trabalho à culpa da recorrente), quando os furtou à apreciação da sede própria. É que esse foro comum só seria competente para apreciar o eventual direito de regresso se, previamente, em sede de processo de trabalho, se tivesse dado como assente a responsabilização da recorrente nos termos daquele art. 18.º.

G – E não tendo sido esse o caso, no litígio ora em apreço, conforme é configurado na p.i. pela recorrida, e conforme por ela foi trazida a juízo, o Tribunal de Competência Genérica é absolutamente incompetente, em razão da matéria, para apreciar a presente acção.

H – Por conseguinte, deve o douto despacho saneador proferido pelo Tribunal a quo ser revogado e substituído por decisão que declare a incompetência absoluta, em razão da matéria (art. 96.º, al. a) e seguintes do CPC), do Tribunal a quo para decidir o pleito em apreço, com as legais consequências, com integral respeito pelo disposto nos arts. 96º, al.a) do C.P.C., 85.º al. c) da LOFTJ (Lei n.º 3/99), e os arts. 112.º, 126.º, n.º 1, 127.º, n.º 1, 128.º e 129.º, n.º 1, al. b), todos do CPT, assim como – e por inerência – do disposto nos arts. 18.º e 79.º, n.º 3 da lei n.º 98/2009 de 04/09, disposições que a douta decisão recorrida violou no sentido que se expressa.


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            A Seguradora contra-alegou, defendendo o bem fundado da decisão recorrida.

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            A questão a decidir passa por saber se é competente para a ação o tribunal de trabalho ou o tribunal comum.

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            Os factos a considerar são os relatados supra.

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A competência é um pressuposto processual relativo ao tribunal, como medida da jurisdição a si atribuída.

            Cabe às leis de orgânica judiciária definir a divisão jurisdicional do território português e estabelecer as linhas gerais da organização e da competência dos tribunais do Estado, em conformidade com a Constituição da República.

            A incompetência decorre então da circunstância dos critérios legais não concederem a certo tribunal a medida de jurisdição suficiente para a apreciação da questão que lhe é colocada.

            Quando ocorre a violação dos critérios da competência material diz-se que a incompetência é absoluta.

            O art.18º, nº1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei 3/99, de 13.1, ainda aqui aplicável, considerando a entrada da ação) determina, residualmente, que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Depois, aos tribunais judiciais, comuns, atribui a lei competência genérica e competência especializada. Definindo quais são as matérias de competência especializada, a lei estipula que as causas que não forem atribuídas a alguma jurisdição especial, são da competência do tribunal comum.

Assim, a competência dos tribunais especializados fixa-se e conhece-se directamente, mediante análise da lei que lhe defina a esfera de competência material, ao passo que a competência dos tribunais comuns determina-se por via indirecta, do que não cabe aos tribunais especializados.

            É pacífico o entendimento de que a competência se determina em função da ação proposta, tanto na vertente objectiva, atinente ao pedido e à causa de pedir, como na subjectiva, respeitante às partes, importando essencialmente para o caso ter em consideração a relação jurídica invocada.

No caso, o que está em causa é definir se a acção, tendo sido proposta num tribunal comum, deveria ter sido proposta num tribunal (especializado) de trabalho.

A lei prescreve competir aos tribunais do trabalho, em matéria cível, no que ao caso importa, conhecer das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais e das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho, ou um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a de trabalho, por acessoriedade, complementariedade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente (artigo 85º, alíneas c) e o), da LOFTJ já referida).

Considerando o pedido e a causa de pedir desta ação, não estamos perante um litígio relativo a questões emergentes de um acidente de trabalho. Este já foi decidido em sede própria. Nessa base, a ação invoca o contrato de seguro, o pagamento realizado e um direito de regresso contra o segurado responsabilizado por ato ilícito.

Por outro lado, a ação não veicula uma relação jurídica laboral cujos sujeitos sejam a seguradora e o segurado.

Na ação está a Ré como sujeito de uma relação jurídica laboral e está a Autora em posição idêntica à de um terceiro, no âmbito de uma outra relação jurídica de seguro conexa com a primeira, em que ambas são partes. Esta conexão não serve para atribuir competência ao tribunal de trabalho porque o pedido feito pela Autora não é cumulado com outro para o qual aquele tribunal seja directamente competente.

Estamos perante uma relação jurídica autónoma da decorrente do acidente de trabalho, embora com ela conexa.

Entende a Ré que a caraterização do acidente de trabalho está consolidada e que no processo respetivo não foi discutida a culpa da entidade patronal por violação das regras de segurança. Mais alega que esta culpa deveria ter sido invocada no referido processo de acidente de trabalho, não podendo sê-lo agora.

Esta questão não colide com o juízo sobre a competência do tribunal, dizendo antes respeito a uma exceção de preclusão ou de caso julgado. Como a Ré aborda a questão nos arts.21º a 26º e 38º da contestação, o tribunal terá de ajuizar dela, definida que esteja a sua competência. Esta questão não foi ainda decidida e não é relativa à competência. Dirá respeito aos pressupostos do invocado direito de regresso decidir se a culpa da entidade patronal tem de estar decidida antes no processo de acidente de trabalho.

Para efeito de determinação da competência do tribunal em razão da matéria não releva o conteúdo da defesa apresentada pela Ré, mas tão só os termos da causa de pedir e do pedido formulados pela Autora.

Conforme resulta da petição inicial, não se trata de apurar a obrigação da seguradora decorrente do acidente de trabalho e do contrato de seguro, no confronto com o sinistrado (o que já aconteceu no identificado processo de acidente de trabalho), mas de apurar se aquela tem ou não direito de regresso contra a entidade patronal segurada, quanto ao montante que pagou em virtude dos mencionados contrato de seguro e acidente de trabalho (o que pressupõe a responsabilidade da entidade patronal). A ação não se reporta à delimitação da responsabilidade da seguradora e da segurada pela reparação do acidente de trabalho.

Sendo admissível, por não ter havido preclusão dos meios da seguradora na caraterização do acidente de trabalho, discutir aqui a culpa da entidade patronal, a Ré não pode dizer que não tem assegurada a sua defesa, tendo tido a oportunidade de defender-se da imputação da sua culpa.

O juízo sobre se ocorrem ou não os pressupostos de facto e de direito da procedência da acção de regresso inscreve-se na problemática do próprio mérito da causa e não da competência do tribunal para a sua apreciação.

Em consequência, não estando perante uma ação da competência dos tribunais do trabalho, esta pertence ao tribunal comum, como decidido. (Neste sentido, os acórdãos citados na decisão recorrida: do STJ, de 22.6.2006, desta Relação, de 17.6.2008 e da RL de 20.4.2010, em www.dgsi.pt.)


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            Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela recorrente.

Coimbra, 2015-6-23


 (Fernando de Jesus Fonseca Monteiro( Relator )

 (Luís Filipe Dias Cravo)

(António Carvalho Martins)