Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
82/13.5GCFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
UNIDADE DE INFRACÇÕES
PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 01/22/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 86.º, N.º 1, ALÍNEAS C) E D), DA LEI 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO, NA REDACÇÃO DA LEI 12/2011, DE 27 DE ABRIL
Sumário: Não obstante as diversas categorias e distintas previsões legais dos objectos em causa - ambos punidos nos termos do artigo 86.º, n.º 1, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei 12/2011, de 27 de Abril: na alínea c), o primeiro; na alínea d), o segundo -, configura apenas um crime a detenção, na mesma ocasião, de uma arma de fogo - calibre 7,5 mm, com a coronha cortada -, e de dois cartuchos, com invólucro metálico, de igual calibre.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

No âmbito do Processo Sumário nº 82/13.5GCFNV, do Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos, após ter sido acusado pelo Ministério Público como autor material de “Crime: Detenção de arma proibida [artigos 2º nº 1, al. ar), v), 3º, nº 2, alínea l), 6, al. a) e 86º, nºs 1 alíneas c) e d) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, com a redacção da Lei 12/2011, de 27 de Abril), o arguido A... (melhor identificado nos autos) foi submetido a julgamento tendo, a final, sido proferido sentença oral, em cujo dispositivo (registado na respectiva acta), além do mais, ficou a constar:

“DISPOSITIVO:

O tribunal decide:

1. Condenar o arguido A..., como autor material e sob a forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86°, n.º al. c) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro na pena de 200 dias de multa, e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86°, n.º al. d) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro na pena de 100 dias de multa.-

2. Em cúmulo jurídico na pena única de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,5 (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um total de 1.540,00 Euros. –

3. Condenar o arguido nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, reduzida a metade por força da confissão integral e sem reservas (artigo 344°, nº2 alínea c), do Código de Processo penal).-

4. Declaram-se perdidas a favor do estado a arma e as munições, determinando que seja remetidas à Policia Judiciária a fim de inserção no sistema IBIS e posterior remessa à PSP, que determinará o seu destino – artº 78º da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.

Deposite.

Após trânsito, remeta boletim ao registo criminal.”

2. Inconformado com o assim decidido na parte respeitante à condenação por dois crimes de detenção de arma proibida, o Ministério Público interpôs recurso (constante de fls. 56 a 63), retirando da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“1- O arguido A... condenado, em autoria material, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86°, nº 1, aI. c), da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 200 dias de multa, e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86°, nº 1, aI. d), da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 100 dias de multa e, em cúmulo jurídico, na pena única de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um total de € 1.540,00 (mil, quinhentos e quarenta euros).

2- Resulta da matéria provada que o arguido no dia 12 de Junho de 2013, cerca das 20.00 h., tinha na sua posse, no interior do seu quarto sito no (...), Figueiró dos Vinhos, as seguintes armas:

- Uma arma de fogo, marca Carabines brevetees SGDG MANU-ARM, made in France, nº 373209, calibre 7,5 mm, com a coronha cortada;

- Dois cartuchos, com invólucro metálico, de cor amarela/latão, calibre 7,5 mm.

3- Tendo em conta o disposto no artigo 30° do Código Penal, o número de armas e lote de munições detidas pelo arguido não pode constituir o critério determinante para a contabilização do número de crimes de detenção de arma proibida, uma vez que não podemos afirmar mais que uma resolução criminosa, cuja conduta deverá por isso apenas integrar um único crime de detenção ilegal, por apenas ser susceptível de um juízo de censura.

4 - Conforme a matéria de facto provada, integrando-se uma arma na previsão da alínea c) e outra na alínea d), do citado artigo 86° da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, tendo em conta que o bem jurídico protegido é o mesmo em ambas as alíneas e estando-se perante uma única resolução criminosa, deverá o arguido ser condenado apenas por um crime de detenção de arma proibida, punível, no caso segundo a disposição mais grave, da alínea c), e em que a "outra" arma, integrante da alínea d), deverá funcionar como mera agravante na determinação da medida concreta da pena.

5- Pelo exposto, deve o arguido ser condenado por um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86°, nº 1, aI. c), da Lei 5/2006, devendo as munições integrantes da alínea d), servir como agravante na determinação da medida concreta da pena

3. O arguido não respondeu ao recurso.
4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, a fls. 93, sufragando a posição evidenciada pelo magistrado do Ministério Público da primeira instância emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

5. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, o arguido não respondeu.

6. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO:

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, vistas as conclusões do recurso e não se vislumbrando a ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal, a única questão a apreciar e decidir consiste em saber se o arguido deveria ter sido condenado apenas por um crime de detenção de arma proibida p. e p, pelo artigo 86º nº 1 c) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (ao invés do que ocorreu na sentença recorrida que o havia condenado por dois crimes de detenção de arma proibida, sendo um deles pela alínea c) e o outro pela alínea d), alíneas essas ambas do nº 1 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro).

Vejamos, primeiro, o que da sentença recorrida consta quanto à factualidade assente e respectiva fundamentação (e que se retira do que oralmente foi dito face ao que consta da gravação digital).

O tribunal dá como provados os seguintes factos

1 -  No dia 12 de Junho de 2013, cerca das 20.00 h., o arguido A... tinha na sua posse, no interior do seu quarto sito no (...), Figueiró dos Vinhos, as seguintes armas:

a) uma arma de fogo, marca Carabines brevetees SGDG MANU-ARM, made in France, nº 373209, calibre 7,5 mm, com a coronha cortada;

b) dois cartuchos, com invólucro metálico, de cor amarela/latão, calibre 7,5 mm.

2 - O arguido não era titular de qualquer licença de uso e porte de arma.

3 - O arguido conhecia as características da arma e munições descritas no artigo 1°, e sabia que para as ter na sua posse, detê-las, utilizá-las ou guardá-las necessitava de ser titular de licença de uso e porte de arma, emitida pelo organismo competente, licença que sabia não deter, mas mesmo assim não se absteve de agir do modo descrito, o que quis.

4 - Agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

5 - Confessou a prática dos factos supra descritos.

6 - Tem um curso de cozinheiro que tirou na Escola da Beira Aguieira em Penacova que lhe deu a equivalência ao 12.º ano.

7 - Encontra-se desempregado há cerca de 3 meses.

8 - Anteriormente trabalhou na empresa Securitas, onde esteve durante oito meses.

9 - Embora não tenha ainda formalizado o contrato, o arguido irá trabalhar no (...) também como cozinheiro, tencionando auferir cerca de 485 euros, não pagando nada pelo seu alojamento, uma vez esse alojamento faz parte da sua retribuição.

10 - É solteiro e não tem filhos.

11 - Do certificado de registo criminal resulta que o arguido já foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado no Processo 230/10.7GAPCV que correu termos no Tribunal Judicial de Penacova (…) na pena de 250 dias de multa à taxa diária de 6 euros.”

                                                  *

Quanto à motivação da matéria de facto, consta da gravação o seguinte:

“Estes factos resultam do auto de notícia que a fls. 2 e 3 do presente processo, ainda do auto de apreensão da arma e das munições de fls. 27, também do auto de exame directo e avaliação de fls. 28 a 30 de onde constam as descrições da arma tal como ela consta na acusação e também relativamente às munições, ainda no termo de entrega de fls. 31, enfim, que a GNR atesta que entregou a arma neste tribunal, nos serviços do Ministério Público, ainda no seu certificado de registo criminal de fls. 43 e 44 e também naturalmente naquilo que o senhor aqui disse, porque o senhor admitiu que isto era tudo verdade, de facto o senhor tinha esta arma, que sabia que precisava de licença, que nunca tinha tratado dela e, portanto, naturalmente a sua confissão, enfim, junto com a documentação que eu acabei de referir, é mais do que suficiente para dar como provados os factos tal como o tribunal enunciou.”

                                                  *

Quanto ao enquadramento jurídico, consta da gravação áudio da sentença (a qual determinação do tribunal a quo, se encontra transcrita a fls. 76 e segs) o seguinte (transcrição que passamos a fazer da partes mais relevantes de tal transcrição):

“Relativamente ao crime em questão: O crime em questão é punido pelo regime jurídico das armas e munições, que é a Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, devidamente actualizada até 2011, que é a última alteração e aqui diz-se que, enfim, para em termos de definições legais de tipos de arma, esta arma é uma arma de fogo, que a lei denomina espingarda, que é uma arma de fogo longa com cano de alma lisa, ainda porque tem uma peça, o chamado percutor, que é a peça do mecanismo de disparo que actua na a munição por impacto na escorva ou fulminante, que é o caso na arma descrita nos autos. Por outro lado, em termos de classificação da arma em questão, esta arma é uma arma considerada da classe A, porque é uma arma de fogo transformada ou modificada precisamente como também resulta do relatório de exame direto a que já aludi, embora esta arma, enfim, se não tivesse sido alterada ou modificada, seria uma arma da classe D, porque é uma arma de fogo longa com cano de alma lisa com comprimento superior a 62 cm. Esta em causa tem 62 cm e, portanto, seria enquadrada nesta classe, contudo, a lei das armas diz que mesmo estas armas da classe D a partir do momento em que são transformadas ou modificadas passam a enquadrar-se na denominada classe A. Classificada a arma, diz o artigo 86 que em síntese se refere à detenção de arma proibida que comete este crime quem sem estar ... se encontrar autorizado, que é o caso do senhor, que não tem licença, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir ou por qualquer motivo ou meio obtiver esta arma seja por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo, é o caso do senhor neste caso a arma de fogo transformada ou modificada é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. Além da arma, o senhor trazia ainda as munições para efeitos da lei das armas, que estamos aqui a analisar, também as munições, também a detenção de munições para uma arma de fogo, independentemente do tipo de projétil utilizado que é o caso que temos aqui em discussão é considerado, enfim, quem detiver estas munições considera-se que comete também este crime de detenção de arma proibida e este crime neste caso concreto é punido com pena de multa até 480 dias ou com pena de prisão até 4 anos. Enfim, de tudo aquilo que disse penso que se conclui facilmente que o senhor cometeu este crime, portanto, enquadrado nas duas alíneas, na alínea c) relativamente à arma e na alínea d) relativamente às munições, porque efetivamente, enfim, embora o senhor tenha dito que a arma foi herdada e que foi de uma doação que já veio do avô e para o pai e para a sua família de acolhimento, a verdade é que o senhor a detinha e a transportou e guardou e portanto sem licença o senhor não o podia fazer, aliás, disse precisamente que sabia isso, que sabia que as armas precisavam de ter licença para serem utilizadas, o mesmo quanto às munições, pois as armas sozinhas não fazem nada e as munições sozinhas também não fazem nada. Juntas são armas de fogo e naturalmente como todos sabemos, podem causar a morte ou danos muito graves, não só a pessoas, como também a bens patrimoniais e portanto, em suma, o tribunal entende que o senhor cometeu de facto este crime como já disse nas duas vertentes da arma e da munição com o enquadramento no 86, n.° 1, alínea c) e d). “

Ou seja, a nível do enquadramento jurídico - quer pela audição da sentença oralmente proferida e nessa parte transcrita, quer pela leitura do dispositivo que da mesma foi exarado em acta – decorre que o tribunal a quo considerou a conduta do arguido como integradora de dois crimes de detenção de arma proibida: um (o referente à arma de fogo) p. e p. pelo artigo 86º nº 1 c) e o outro (o referente às munições) p. e p. pelo artigo 86º nº 1 c), ambos da a Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.

                                      *
Entremos então na apreciação da única questão suscitada no recurso que consiste em saber se o arguido deveria ter sido condenado apenas por um crime de detenção de arma proibida p. e p, pelo artigo 86º nº 1 c) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (ao invés do que ocorreu na sentença recorrida que - na sequência do enquadramento jurídico ali efectuado e que acabámos de transcrever -  o havia condenado por dois crimes de detenção de arma proibida, sendo um deles pela alínea c) e o outro pela alínea d), alíneas essas ambas do nº 1 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro).

Diz o recorrente na sua 3ª conclusão que “tendo em conta o disposto no artigo 30° do Código Penal, o número de armas e lote de munições detidas pelo arguido não pode constituir o critério determinante para a contabilização do número de crimes de detenção de arma proibida, uma vez que não podemos afirmar mais que uma resolução criminosa, cuja conduta deverá por isso apenas integrar um único crime de detenção ilegal, por apenas ser susceptível de um juízo de censura.”
É certo que, numa análise puramente objectiva da norma incriminadora, o comportamento do arguido preenche o tipo legal de crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º nº 1 c) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (no caso da arma de fogo) e o crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º nº 1 d da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (no caso dos cartuchos/ munições).
Com efeito dispõe o artigo 86.º nº 1 c) e d) da Lei n.º 5/2006, de 23/02 (na redacção dada pela Lei n.º 12/2011, de 27/04), artigo esse que tem como epígrafe “Detenção de arma proibida e crime cometido com arma”:
1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:
(…)
c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projéctil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.”

Porém, face à factualidade apurada nos pontos de facto 1 a 4 (que são os que têm relevância para a questão em análise e que aqui damos por reproduzidos), e numa antecipação do que iremos explanar, consideramos assistir razão ao recorrente, nesta parte, quando à unidade (e não pluralidade) de crime.
Apesar de tal comportamento do arguido preencher o tipo legal de crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º nº 1 c) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (no caso da arma de fogo) e o crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º nº 1 d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (no caso dos cartuchos/munições), deverá - tal como entendeu o tribunal recorrido - o mesmo ser punido pela prática dos dois crimes, considerando-se para tanto que a sua conduta preenche um concurso efectivo de crimes? Ou deverá ser punida como um único crime como sufraga o recorrente?
À matéria do concurso de crimes chamou Eduardo Correia “um dos mais torturantes problemas de toda a ciência do direito criminal” (cfr. citado auto, in “A Teoria do Concurso em Concurso em Direito Criminal - Unidade e Pluralidade d Infracções”, Colecção Teses, Almedina, 1996, pag. 13).
Dispõe o artigo 30.º nº 1 do Código Penal que “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Embora a lei não o refira expressamente, para se concluir pela existência de concurso efectivo, torna-se necessário, além de aferir da pluralidade de tipos violados ou da violação plúrima do mesmo tipo, recorrer ao critério da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas.
A multiplicidade de vezes de preenchimento do tipo objectivo do crime conduz, em regra, à multiplicidade de crimes da respectiva natureza (artigo 30.º, n.º 1 do Código Penal), mas tal multiplicidade deixa de ter tal efeito, não só nos casos em que se deva configurar um crime continuado (artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal), como naqueles em que a unidade de resolução – tipo subjectivo do crime – e a inexistência de violação de bens jurídicos eminentemente pessoais, aliados à continuidade temporal das condutas, fazem com que a multiplicidade formal de violações do tipo criminal deva ser tratada como correspondente à comissão de um só crime.
Se se tratar de uma decisão assumida, deliberada, pensada uma única vez, e a partir de tal decisão não haver qualquer necessidade de renovar o processo de motivação, realiza-se um único tipo legal de crime.
Estamos verdadeiramente perante aquilo que Jescheck designava por “unidade jurídica de acção” (cfr. Tratado de Derecho Penal, Parte General, Volumen Segundo, edição Bosch, pág. 1001 (tradução de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde).
A este respeito permitimo-nos chamar à colação Eduardo Correia quando refere que – de acordo com a concepção normativista do conceito geral de crime – a unidade ou pluralidade de crimes é revelada pelo «número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. ( ... ) Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valores jurídicos negados. ( ... ) Pelo que, deste modo, chegamos à primeira determinação essencial de solução do nosso problema: se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção»
Tal pressuposto seria complementado por um outro pois que, conforme referia o mesmo Mestre, «pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encerram a violação do mesmo bem jurídico (…): a unidade de tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade da conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se toma aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes» (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, Almedina, 1971, págs. 200 a 201.

Figueiredo Dias propõe como solução do problema da unidade ou pluralidade de infracção, o “critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global”. Refere que “o crime por cuja unidade ou pluralidade se pergunta é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais que integra um tipo legal ao caso efectivamente aplicável.
A essência de uma tal violação não reside, pois, nem (por um lado) na mera “acção”, nem (por outro) na norma ou no tipo legal que integra aquela acção: reside no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, reside (…) no ilícito-típico: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes.
E acrescenta este mesmo Mestre que “será a análise do significado do comportamento global que lhe empresta um sentido material (social) da ilicitude, devendo reconhecer-se, de um ponto de vista teleológico e de valoração normativa “a partir da consequência”, a existência de dois grupos de casos:
(a) o caso (“normal”), em que os crimes em concurso são na verdade recondutíveis a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis – hipóteses de concurso efectivo (do art. 30º, nº1), próprio ou puro;
(b) e o caso em que, apesar do concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados – hipóteses de concurso aparente, impróprio ou impuro.
Com a consequência de que só para o primeiro grupo de hipóteses deverá ter lugar uma punição nos termos do art.77º, enquanto que para o segundo deverá intervir uma punição encontrada na moldura penal cabida ao tipo legal que incorpora o sentido dominante do ilícito e na qual se considerará o ilícito excedente em termos de medida concreta da pena.
(…) Se apenas um tipo legal foi preenchido, será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível; a qual no entanto, também ela, pode ser elidida se se mostrar que um e o mesmo tipo especial de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente. Isto significa que o procedimento não pode em qualquer caso reduzir-se ao trabalho sobre normas, mas tem sempre de ser completado com um trabalho de apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto”. (cfr. citado autor, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, págs. 988 a 991).
De tudo isto decorre que, perante uma pluralidade de realizações típicas, a unidade de desígnio criminoso, a identidade de bem jurídico, a unidade temporal e/ou espacial, entre outros e consoante o caso, funcionarão como sub-critérios para definição do sentido fundamentalmente unitário do ilícito.
Ora, do cotejo do artigo 86º da Lei nº 5/2006 (a qual aprovou o novo regime jurídico das armas e suas munições) facilmente se constata que existe nas alíneas do seu nº 1 uma decrescente gravidade do designado “tipo de arma” ou características, partindo-se das armas mais graves, como armas militares, armas de guerra (alínea a)), passando por armas biológicas e químicas - alínea b) – pela arma de fogo modificada … como é o caso da arma detida pelo arguido – alínea c) -, terminando pelas armas brancas, aerossóis e munições como é o caso das munições, dos presentes autos – alínea d).
Esta decrescente gravidade da natureza da arma é acompanhada de uma decrescente moldura penal, de tal modo que a pena na alínea a) é de 2 a 8 anos de prisão enquanto que a da alínea d) é apenas de prisão até 4 anos ou multa até 480 dias.
Mas em todas as alíneas, pese embora as diferentes características das armas, o bem jurídico protegido é o mesmo.
Com efeito, “o crime de detenção de arma proibida é um crime de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção, tutelar o perigo de lesão da ordem, da segurança e tranquilidade públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas” (cfr. Ac da Relação de Évora, de 30.10.2012, in www.dgsi.pt).
Ora, voltando ao caso dos autos, apenas se provou a detenção ilícita de uma arma de fogo e de munições.
E a par da unidade resolutiva criminosa, da identidade do bem jurídico, também constatamos a existência de uma conexão temporal e espacial dos factos – critérios estes todos relevantes, como vimos para aferir da eventual unidade ou pluralidade de crimes.
Conforme a matéria de facto provada, temos em causa dois tipos de arma (arma e munições), integrando-se uma delas (a arma) na previsão da alínea c) e as outras (as duas munições) na alínea d), do citado nº 1 do artigo 86º.
Tendo em conta que o bem jurídico protegido é, de facto, o mesmo, em ambas as alíneas, divergindo apenas a categoria ou natureza da arma em causa, que não se descortina uma pluralidade de resoluções criminosas e que os factos incriminadores ocorrem no mesmo contexto espácio-temporal, podemos deixar de concordar com a pretensão do recorrente de que existe apenas um crime, punível, no caso, segundo a moldura penal mais grave, da alínea c) – cfr. Figueiredo Dias, obra atrás citada, pag. 1037.
Alias do acórdão da Relação de Évora de 08.11.2011 (disponível no site www.dgsi.pt) decorre que “O detentor de duas armas, na mesma ocasião, se bem que de categorias diferentes e previstas em distintas alíneas do nº 1 do artigo 86º do R.G.A.M., deverá ser punido apenas por um crime – o mais grave – não se descortinando do conjunto dos factos dois sentidos materiais ou sociais de ilicitude autónomos entre si”.
E trazendo ainda à colação o Ac. da Relação do Porto de 12 de Maio de 2010 (aliás citado pelo recorrente e disponível in www.dgsi.pt) a dado passo de tal acórdão é dito o seguinte:
O facto de o agente desse ilícito deter mais do que uma arma aí descrita apenas pode significar uma culpa mais intensa, que terá relevância na determinação da pena [40.º, 71.º, n.º 1 C. Penal] e não que tenha cometido tantos crimes quantas armas tivesse em seu poder.
O mesmo se passa em relação à conduta do mesmo agente, que, mediante o mesmo desígnio criminoso, por deter armas de diversa natureza e classificação legal, tipifica os diversos sub-tipos do art. 86.º, da Lei n.º 5/2006, a que correspondem quatro molduras penais distintas.
Nestes casos existe um concurso aparente de infracções, pois tipificando-se o crime de detenção ilegal de arma, num dos seus sub-tipos mais grave, não tem cabimento, face ao princípio da especialidade, que se pune tal conduta ainda por outro sub-tipo desse crime cuja moldura penal seja menos grave.
Não existe por isso nenhum concurso efectivo de crimes de detenção ilegal de armas, quando estejam em causa em relação ao mesmo agente a detenção, sob a mesma resolução criminosa [30.º, n.º 1 C. Penal], de armas de diversa natureza que preenchem mais que um dos diversos sub-tipos do art. 86.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006.”
Nessa sequência, e face ao concurso aparente (e não efectivo) de crimes, apenas poderá o arguido ser condenado por um crime, o previsto pela alínea c) do nº 1 do Novo Regime Jurídico das Armas e Munições.
Como já se deixou implícito, sendo o arguido condenado apenas por  um crime quanto à arma e munições que tinha na sua posse, a gravidade global resultante da conduta resultante da detenção das munições aumenta.
Todavia, existe um bloqueio legal a que se possa alterar, para mais, a pena que havia sido fixada para o crime p. e p. pela c) do nº 1 do artigo 86º, de acordo com a proibição da “reformatio in pejus”, consagrado no artigo 409º nº 1 do Código de Processo Penal.
E tal proibição da “reformatio in pejus” vigora na concreta situação de “desagravamento da qualificação jurídica dos factos” – v. ac. do STJ de 29.4.2003, in SASTJ nº 70, 66, referenciado por Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª Edição, fls. 1074.
Por conseguinte, deve assim manter-se, pois, para este crime [o previsto no artigo 86º nº 1 c)], a pena a ele atinente que havia sido fixada na primeira instância - pena essa que não foi objecto de recurso nem existem fundamentos para a sua diminuição - e que cifra em 200 dias de multa à taxa diária de €5,50), pois que, se mostra “proibida” a sua agravação.
Por isso, na prática, e embora não decorra expressamente da pretensão do recorrente, decorrerá a absolvição do arguido de um crime de detenção ilegal de arma por que havia sido condenado.
Deverá, pois, a sentença recorrida ser revogada na parte em que condena o arguido pelo crime do artigo 86º nº 1 d) da pena de 100 dias de multa. Consequentemente, desaparecendo uma pena parcelar (das duas que tinham sido aplicadas pela primeira instância) impõe-se a revogação do cúmulo jurídico que havia sido efectuado, sobrando assim a pena, em singelo – de 200 dias de multa à taxa diária de €5,50 -  pelo crime p. e p. pelo artigo 86º nº 1 c) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
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III – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em, concedendo provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, quer na parte em que tinha condenado o arguido na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €5,50 pelo crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º nº 1 d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (crime do qual vai, então, absolvido), quer em relação à condenação decorrente do cúmulo jurídico ali efectuado.
No mais, designadamente quanto à condenação na pena de 200 dias à taxa diária de €5,50 pelo crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86º nº 1 c) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, mantém-se a decisão decorrida.
Sem custas.

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(Luís Coimbra - Relator)



 (Isabel Silva)