Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1208/17.5T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO:
PRESUNÇÃO DE CULPA
Data do Acordão: 06/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DO TRABALHO DE LAMEGO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL (SECÇÃO SOCIAL)
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: DEC. LEI 433/82
Sumário:
I – A verificação objetiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contra-ordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência que o agente agiu, por ação ou por omissão, pelo menos negligentemente, tudo sem prejuízo da possibilidade de demonstração, designadamente pelo agente, de que o mesmo agiu sem culpa.

II – Essa presunção mínima e ilidível de negligência não viola a presunção de inocência.

Decisão Texto Integral:
I) Relatório
*
A Autoridade Para As Condições do Trabalho condenou a recorrente A…, na coima de 4.500€, pela prática de uma contra-ordenação muito grave, na forma negligente, p. e p. no art. 12º/2 do CT/09.
*
Inconformada, deduziu a arguida impugnação judicial, tendo a decisão da entidade administrativa recorrida sido integralmente confirmada pelo Juízo do Trabalho de Lamego do Tribunal da Comarca de Viseu.
*
Mais uma vez inconformada, recorre a arguida para esta Relação, rematando as suas alegações com as concussões seguidamente transcritas:
(…)
Contra-alegou o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:
1ª) se os factos dados como provados não permitem concluir no sentido de que a conduta da recorrente causou prejuízos ao Estado ou aos trabalhadores;
2ª) se a sentença recorrida incorreu em nulidade decorrente da circunstância de terem sido dados como provados factos distintos dos que constavam da acusação/decisão administrativa impugnada;
3ª) se os factos provados permitem concluir no sentido da verificação do elemento subjectivo do tipo de contra-ordenação pela qual a recorrente foi condenada.
*

III – Fundamentação

A) De facto

Factos provados

O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos A numeração é da nossa responsabilidade.:
(…)
*
B) De Direito

Primeira questão: se os factos dados como provados não permitem concluir no sentido de que a conduta da recorrente causou prejuízos ao Estado ou aos trabalhadores.

Nos termos do art. 12º/2 do CT/09, “Constitui contra-ordenação muito grave imputável ao empregador a prestação de actividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.”. – o negrito é da nossa responsabilidade.
Assim, é elemento objectivo do tipo de contra-ordenação tipificada na norma acabada de transcrever, a mera possibilidade da conduta do infractor causar prejuízo, não sendo necessária a emergência efectiva desse prejuízo.
Não acompanhamos, assim, a recorrente quando refere que “O prejuízo para o Estado ou para os trabalhadores é um elemento objectivo do tipo contra-ordenacional consagrado no art. 12º, nº 2 do CT.” (conclusão 1ª); a letra da norma supra transcrita, na qual se refere a mera possibilidade de prejuízo e sem qualquer menção ao prejuízo efectivo, deixa sem qualquer espécie de suporte tal posição da recorrente no sentido de que é elemento do tipo de contra-ordenação em análise a emergência de um prejuízo da conduta do infractor.
Consequentemente, fica sem suporte de sustentação todo o raciocínio e argumentação desenvolvida pela recorrente no sentido de que “Em momento algum a acusação fez qualquer referência ao dito prejuízo” Não tinha que o fazer já que o prejuízo não é elemento objectivo do tipo de contra-ordenação em análise. (conclusão 2ª), que “Tão pouco alegou ou produziu prova sobre factos concretos que demonstrassem esse prejuízo. Não tinha que ser demonstrado qualquer prejuízo efectivo, mas a mera possibilidade dele. (conclusão 3ª), que “Da factualidade provada não consta qualquer facto que permita concluir pela existência de um prejuízo.” Não tinha que se concluir pela verificação de qualquer prejuízo efectivo, mas pela mera possibilidade dele. (conclusão 4ª), e que “Nessa medida, nunca se poderia considerar verificado aquele elemento objectivo do tipo. O prejuízo não é elemento objectivo do tipo de contra-ordenação em análise. (conclusão 5ª).
Neste enquadramento, fica destituída de fundamento e queda inútil qualquer teorização sobre se está ou não preenchido um determinado elemento que a recorrente considera integrante do tipo objectivo de um ilícito mas que, em rigor, o não integra.
Por outro lado, a recorrente nada alega no sentido de tentar demonstrar que os factos dados como provados não preenchem realmente aquele que constitui o verdadeiro elemento objectivo do tipo em análise, qual seja o da possibilidade de um prejuízo para os trabalhadores ou para o Estado, não constituindo tal discussão, por isso, um dos temas integrantes do objecto deste recurso.
Como assim, improcede a pretensão da recorrente no sentido de ser absolvida pela circunstância de os factos provados não permitirem ter por preenchido um dos elementos que a recorrente considera integrar o tipo objectivo da contra-ordenação em apreciação mas que, no rigor, o não integra.
*
Segunda questão: se a sentença recorrida incorreu em nulidade decorrente da circunstância de terem sido dados como provados factos distintos dos que constavam da acusação/decisão administrativa impugnada.

No que concerne à nulidade da sentença decorrente da circunstância de a condenação ter tido “…por base a existência de um prejuízo que não foi alegado na acusação nem resulta dos factos nela constantes.” (conclusão 8ª),Situação que é geradora de nulidade da sentença nos termos do disposto no art. 379º, nº 1, b) do CPP e que aqui expressamente se arguiu.” (conclusão 9ª), importa dizer que a nulidade arguida pela recorrente se reporta à condenação “…por factos diversos dos descritos na acusação…” (art. 379º/b do CPP).
Ora, percorridos os factos descritos como provados na decisão recorrida neles não se divisa a afirmação de que resultou demonstrado qualquer espécie de prejuízo De resto, como visto, essa demonstração não tinha que realizar-se para se terem por preenchidos todos os elementos objectivos do tipo de ilícito em análise., assim se afirmando em termos de decisão de facto algo que não tivesse sido afirmado na decisão administrativa impugnada.
O que ocorreu foi que em sede de integração jurídica dos factos descritos como provados, a sentença recorrida concluiu que os factos aí dados como provados e que já o tinham sido dados como tal na decisão administrativa impugnada permitiam concluir no sentido de que ocorria um prejuízo para o Estado.
Demonstra-o o seguinte trecho da decisão recorrida Tal trecho consta da alínea D) da sentença recorrida, com a epígrafe “Subsunção Jurídica dos factos”.: “E claro está que ocorreu prejuízo para o Estado, porquanto, ao proceder à comunicação de admissão de todos os trabalhadores, à excepção de B…, na data da visita inspectiva, admissão que manteve “activa” até 15.09.2016, mas tendo, nesta data comunicado a cessação da qualificação da relação laboral por conta de outrem, note-se mas com data efeito à data de 30.08.2016, não foi paga a contribuição para a Segurança Social devida pela recorrente. O prejuízo para os trabalhadores também decorre de tal factualidade, pois que não viram os seus direitos, pelo menos no que respeita a contribuições para a Segurança Social a suportar pela entidade empregadora, durante o período de trabalho prestado, acautelados, nem eventualmente outros créditos salariais.”.
Não se tratou, assim, de dar como provados factos diversos daqueles que nessa qualidade tinham sido descritos na decisão administrativa impugnada e que se converteu em acusação, mas sim de integrar juridicamente os factos dados como provados.
A integração jurídica em questão pode ou não estar certa.
No entanto a deficiente integração dos factos dados como provados traduz um erro de direito que, porventura, permite concluir no sentido de que um dado elemento típico do ilícito foi dado como demonstrado de modo indevido, porque os factos provados o não consentiam; não traduz um erro ao nível da decisão de facto consistente em se dar como demonstrado um facto diverso da acusação.
Ora, é este erro da decisão de facto, que não se vislumbra cometido na decisão sob censura, que não aquele erro de direito, que não vem arguido no recurso e que por isso não importa conhecer, o que é sancionado com o vício de nulidade previsto no art. 379º/b do CPP.
Como assim, não se verifica a nulidade arguida pela recorrente e correspondente ao aludido erro na decisão de facto que não se descortina cometido na decisão recorrida.
Responde-se negativamente, por consequência, à questão em análise.
*
Terceira questão: se os factos provados permitem concluir no sentido da verificação do elemento subjectivo do tipo de contra-ordenação pela qual a recorrente foi condenada.
A recorrente foi condenada pela autoria de uma contra-ordenação que se considerou cometida na forma negligente.
Sobre esta questão e porque se mostra de todo pertinente, iremos aqui expor o que se exarou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/04/2012, proferido no processo nº 2122/11.3TBPVZ.P1, e disponível em www.dgsi.pt:
β) O elemento subjetivo nas contraordenações
i) A autonomia do direito contraordenacional
O regime das contraordenações foi instituído no nosso ordenamento jurídico através do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24/Julho, justificando-se essa opção, tal como foi enunciado no seu preâmbulo, pela “necessidade de dotar o nosso país de um adequado “direito de mera ordenação social” …. Tanto no plano da reflexão teórica como no da aplicação prática do direito se sente cada vez mais instante a necessidade de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal.
Ordenamento que permita libertar este ramo de direito das infrações que prestam homenagem a dogmatismos morais ultrapassados e desajustados no quadro de sociedades democráticas e plurais, bem como do número inflacionário e incontrolável das infrações destinadas a assegurar a eficácia dos comandos normativos da Administração, cuja desobediência se não reveste da ressonância moral característica do direito penal. E que permita, outrossim, reservar a intervenção do direito penal para a tutela dos valores ético-sociais fundamentais e salvaguardar a sua plena disponibilidade para retribuir e prevenir com eficácia a onda crescente de criminalidade, nomeadamente da criminalidade violenta” [Ponto 1].
Aí também se disse mais à frente que “Hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contraordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (Eduardo Correia, ibidem, p. 268)”[5] (ponto 2), acrescentando-se “Está em causa um ordenamento sancionatório distinto do direito criminal” (ponto 4).
Estes propósitos de autonomia do direito de mera ordenação social foram reiterados quando foi instituído o atual regime das contraordenações, através do Decreto-Lei n.º 433/82, ao manifestar, como se afirma no seu preâmbulo, que as considerações ali expendidas “conservam plenamente a sua pertinência” (ponto1, § 3.º).
Ficou, de resto, também aí expresso que “a urgência de conferir efetividade ao direito de ordenação social, distinto e autónomo do direito penal, apontam as transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-criminal”.
A primeira alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 359/89, continuava a reconhecer que “deu-se um passo fundamental no sentido de dar tratamento jurídico autónomo a infrações verificadas em domínios nos quais se assiste a uma crescente intervenção conformadora do Estado e que, submetidas à tutela do direito penal, o vinham descaracterizando retirando-lhe eficácia persuasiva e preventiva”.
Mas foi com a revisão de 1995, realizada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14/Set., que perante a “inerente transformação em contraordenações de muitas infrações anteriormente qualificadas como contravenções ou como crimes, …com o alargamento notável das áreas que agora são objeto de ilícito de mera ordenação social e, do mesmo passo, com a fixação de coimas de montantes muito elevados e a cominação de sanções acessórias especialmente severas” (§ 1.º) que se sentiu a necessidade “[d]o efetivo reforço das garantias dos arguidos perante o crescente poder sancionatório da Administração”, a par de cumprir “a eficácia do sistema punitivo das contraordenações” (§ 2.º).
Também aqui surgiu um propósito de “proceder ao aperfeiçoamento da coerência interna do regime geral de mera ordenação social, bem como de coordenação deste com o disposto na legislação penal e processual penal” (§ 2.º), os quais incidiram na “distinção clara entre apreensão, as medidas de natureza provisória e a perda com efeitos definitivos, a clarificação do regime de perda e apreensão de objetos perigosos, a fixação de regras sobre a suspensão da prescrição do procedimento e a interrupção da prescrição da coima, para além da substituição do chamado processo de advertência pela previsão da sanção de admoestação” (§ 10.º).
O Tribunal Constitucional tem feito eco desta autonomia, tendo vindo a afirmar a “diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções” entre o ilícito contraordenacional e o ilícito penal, considerando que os princípios e as regras do direito penal não se aplicam automaticamente ao direito de mera ordenação social [Ac. 344/93; 278/99; 160/2004; 537/2011 e 85/2012].
O Supremo Tribunal de Justiça também tem dado conta e reafirmado essa mesma autonomia [Assento 1/2003, de 2002/Nov./28, DR I-A, de 2003/Jan./25], sem prejuízo de ter optado pela aplicação subsidiária do Código Penal ao RGCO nos casos dos limites do prazo de prescrição [Acórdão 6/2001, DR I-A, de 2001/Mar./30], na situações que levam à sua suspensão [Acórdão n.º 2/2002, DR I-A, de 2002/Mar./05] ou quanto à aplicação da lei que em concreto se mostre mais favorável ao arguido [Ac. 11/2005, DR I-A, de 2005/Dez./19].
Do que fica transposto, teremos naturalmente que reconhecer que existe uma nítida autonomia entre o RGCO e o Código Penal, decorrente de uma manifesta valoração e opção política por parte do legislador.
A mesma advém desde logo de uma diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal seja numa perspetive da censura ético-penal, seja do bem jurídico protegido, mais precisamente da sua inexistência ou existência, a que se segue a gravidade das reações sancionadoras, através da aplicação de uma coima ou de uma pena de prisão e, por último a natureza distinta dos órgãos competentes decisores que aplicam a lei em primeiro lugar (3), autoridades administrativas, num caso, tribunais, noutro caso.
ii) A responsabilização do infrator
O atual RGCO abandonou aquilo que se poderia considerar a admissibilidade da imputação objetiva de um facto contraordenacional, na medida em que a verificação de uma contraordenação poderia ocorrer independentemente da sua imputação subjetiva.
E isto porque não transpôs para o atual regime o preceituado no artigo 1.º, n.º 2, que deveria ler-se conjugadamente com o artigo 8.º, n.º 1 ambos do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24/Jul. – no primeiro segmento normativo dispunha-se que “A lei determinará os casos em que uma contraordenação pode ser imputada, independentemente do carácter censurável do facto” e no segundo referia-se que “Salvo na hipótese a que se refere o n.º 2 do artigo 1.º só é sancionável o facto praticado como dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
O RGCO manteve apenas no seu artigo 8.º, n.º 1 que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, mantendo aqui literalmente a disciplina do Código Penal existente no seu artigo 13.º.
Em conformidade, a culpabilidade continua a ser um elemento típico das condutas contraordenacionais [Ac. R. C. de 2009/Mai./13], afastando-se a possibilidade de punição de uma contraordenação independentemente do carácter censurável do facto cometido [Ac. STJ de 2003/Jun./26].
Daí que a imputação de um facto contraordenacional e a sua responsabilização, exija sempre um nexo de imputação subjectiva, seja através de uma conduta dolosa, seja através de uma conduta negligente [Ac. R. C. de 2009/Mar./11 e Ac. R. E. de 2011/Dez./06].
Mas a questão que se coloca é se é necessário que o respetivo auto e a subsequente decisão administrativa transcrevam expressamente essa imputação subjetiva ou se se basta com a sua descrição objetiva, podendo presumir-se desta aquela.
O TEDH tem se manifestado sobre esta temática a partir do direito a um processo justo e equitativo, contemplado no artigo 6.º da CEDH, tanto na vertente do significado de uma “acusação em matéria penal” (“criminal charge”) [n.º 1], como na amplitude do princípio da presunção de inocência, mais precisamente ao âmbito da referência “A qualquer pessoa acusada de um infracção” (“Everyone charged with a criminal ofense”) [n.º 2].
Relativamente ao conceito de que se entende por “acusação em matéria penal”, tem sido considerado que o mesmo tem um significado autónomo, independente das categorizações dadas pelas leis nacionais [Ac. Adolf c. Áustria, de 1982/Mar./26].
Assim, acusação (“charge”) será sempre qualquer notificação ou comunicação oficial, efectuada pela entidade competente, do cometimento de uma infracção criminal [Ac. Deweer c. Bélgica, 1980/Fev./27; Eckle c. Alemanha, de 1982/Jul./15].
Porém, o significado de “criminal” não poderá sempre estar contido ou ter uma natureza estritamente criminal, aceitando-se também aqui um conceito autónomo [Ac. Öztürk c. Alemanha, de 1984/Fev./21], partindo-se para o efeito de três critérios [Ac. Engel e outros c. Holanda, de 1976/Jun./08]: 1. a classificação das leis nacionais; 2. a natureza da ofensa; 3. a severidade ou a gravidade da reação ou da pena a que a pessoa pode incorrer.
A propósito estendeu-se o conceito de “criminal charge” às sanções administrativas ou contravenções, que antes eram infrações penais [Ac. Öztürk c. Alemanha], às sanções disciplinares graves militares [Ac. Engel e outros c. Holanda, de 1976/Jun./08], prisões disciplinares graves prisionais [Ac. Campbell e Fell c. U K, 1984/Jun./28], às leis aduaneiras customs law [Salabiaku c. França, 1988/Out./07], à lei da concorrência [Société Stenuit c. França, 1992/Fev./27], às sanções impostas por um tribunal com jurisdição em matéria financeira [Guisset c. França, de 2000/Set./26] e mesmo no âmbito do regime fiscal não penal [Ac. Jussila c. Filância, de 2006/Nov./23].
No que concerne à presunção da inocência, na vertente que cabe à acusação provar a culpabilidade do agente [Ac. Barberá, Messegué e Jabardo c. Espanha, 1988/Dez./06], o TEDH admitiu três situações em que esse ónus de prova pode vir a ser atenuado ou excluído.
Uma delas diz respeito às infrações de responsabilidade objetiva ou similares, cabendo apenas à acusação invocar e demonstrar a prática do ato físico (actus reus), mas já não da intencionalidade (mens rea) [Ac. Salabiak c. França, de 1988/Out./07], devendo-se restringir estas presunções a limites razoáveis e assegurando-se sempre os direitos de defesa.
A outra situação é quase semelhante à anterior, muito embora mais restritiva da presunção da inocência, pois deixa para o acusado o ónus de provar a sua inocência, só se justificando essa carga de prova para as infrações de menor gravidade, que são aquelas que não contemplam qualquer pena ou medida privativa da liberdade [Ac. Salabiak v. França, de 1988/Out./07].
Por último, existem os casos em que está em causa a recuperação de ativos decorrentes de uma atividade criminosa, sendo aceitável que a partir de uma probabilidade dessa proveniência ilícita se aceite a inversão do ónus de prova [Ac. Welch c. R. U., de 1995/Fev./09; Ac. Philips c. R.U., de 2001/Jul./05].
Aqui chegados, podemos certamente concluir que o processo contraordenacional está sujeito às exigências de um processo equitativo.
Mas também podemos acertar que sendo as contraordenações apenas punidas com uma coima, que na conceitualização do TEDH corresponde a uma reação punitiva que não é grave, se possa presumir o elemento subjetivo da conduta integradora da respetiva infração a partir da descrição do seu elemento objetivo.
De resto o Supremo Tribunal de Justiça chegou a estabelecer, no caso das contraordenações rodoviárias, que estando o infrator devidamente habilitado para conduzir, sendo portador da respetiva licença, partiu da presunção que o mesmo estava em condições de observar as regras estradais, agindo sem o cuidado a que estava obrigado [Ac. 2006/Dez./06].
Tanto mais que a culpa nas contraordenações não se baseia em qualquer censura ético-penal, mas tão só na violação de certo procedimento imposto ao agente, bastando-se por isso com a imputação do facto ao mesmo agente [Ac R. P. 2007/Set./12], o que não afasta, obviamente, a possibilidade de demonstração de que o mesmo agiu sem culpa.
Nesta conformidade, a exigência efetuada pela decisão recorrida de que a decisão administrativa deve conter expressamente a descrição do elemento subjetivo não é concernente com o regime contraordenacional, nem com o direito fundamental à presunção da inocência, pois aqui a sua intensidade mostra-se mais atenuada do que em relação ao processo penal.
Também no Acórdão da Relação de Lisboa de 08/12/2012, proferido no processo 272/11.5TTBRR.L1-4 e disponível em www.dgsi.pt, escreveu-se o seguinte:
“Nos termos do art. 8.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações (RGCO) aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, aqui aplicável ex vi art. 2.ºdo Regime Geral das Contraordenações Laborais (RGCOL) aprovado pela Lei nº 116/99, de 4 de Agosto [s]ó é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
O art. 3.º,do RGCOL, diz-nos que em matéria de contraordenações laborais a negligência é sempre punível.
Nenhum destes diplomas legais define o dolo ou a negligência nas suas várias modalidades, mas o Código Penal é subsidiariamente aplicável na fixação do regime substantivo das contraordenações (art. 32.º do RGCO) e por isso a ele recorreremos, sobretudo quando abordarmos a questão da eventual atuação negligente da arguida.
O dolo é um elemento fundamental na definição do conteúdo material da culpa, mas é também (a par da negligência) uma forma de realização do tipo.
Um dos critérios substanciais avançados para a distinção entre crimes e contraordenações reside na neutralidade ética do ilícito de mera ordenação social: as condutas que integram os ilícitos contraordenacionais são axiológico-socialmente neutrais (se bem que, conexionadas com a proibição legal, passem a constituirsubstrato idóneo de um desvalor ético-social (Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, T. I, Coimbra Editora, pág. 150).
Por isso questiona-se se deverá em rigor falar-se de culpa nas contraordenações, respondendo Figueiredo Dias (“O Movimento de Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social” in Jornadas de Direito Criminal, edição CEJ, 328) que aqui não se trata de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto a responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima.
Daí que o nº 2 do art. 1.º do RGCO, na sua redação originária, admitisse a possibilidade de haver contraordenações em que a imputação se fizesse independentemente do carácter censurável do facto.
Mas, mesmo nesses casos, ainda se exigia que o facto, para ser punido como contraordenação, fosse praticado com dolo ou negligência, tal como dispõe o nº 1 do art. 8.º do RGCO.
A nula ou pouco significativa relevância axiológica das condutas que consubstanciam ilícitos de mera ordenação social reflete-se na configuração do elemento cognitivo ou intelectual do dolo: à afirmação do dolo do tipo não bastará o conhecimento dos elementos do tipo objetivo (ou, se se preferir, o conhecimento da factualidade típica e do decurso do acontecimento), sendo ainda indispensável o conhecimento da proibição legal respetiva.
Pode, então, dizer-se que pratica uma contraordenação a título doloso todo aquele que, no momento em que age (ora, por acção, ora por omissão), fá-lo com conhecimento e vontade de realização da factualidade material típica, ou seja, da conduta descrita como infração contraordenacional, e com consciência da respetiva proibição.
Nas palavras de Figueiredo Dias (“Direito Penal - Parte Geral” T. I, Coimbra Editora, pág. 488) reportando-se ao ilícito penal doloso, mas que são válidas para o ilícito contraordenacional doloso, o “tipo de culpa doloso” verifica-se quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas; se uma tal comprovação se não alcançar ou dever ser negada o facto só poderá eventualmente vir a ser punido a título de negligência.
Tal como sucede em processo penal, é questão de facto a determinação da materialidade relativa ao tipo subjetivo do ilícito contraordenacional.
Na verdade, sendo o dolo - tal como a negligência - uma atitude pessoal do agente perante o dever-ser jurídico-penal, ele está relacionado com realidades psicológicas mas a intenção do agente - seja qual for a modalidade de dolo - mesmo requerendo a prova de um elemento do foro íntimo, e por isso só sendo alcançável por via indireta, através de dados exteriores e apelando às regras da experiência comum, não deixa de constituir matéria de facto.
Ora, do elenco de factos considerados provados não é possível concluir pela imputação à arguida de uma conduta dolosa no (in)cumprimento das obrigações a que está adstrita no âmbito da sua atividade.
A tal conclusão já havia chegado a autoridade administrativa que por isso lhe imputou a prática de uma contraordenação, mas a título negligente.
Importa, então, focar a nossa atenção no “tipo de culpa negligente”.
Do conceito legal de negligência fala-nos o art. 15.º do Cód. Penal, nos termos do qual age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas atua sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ou não chega, sequer, a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente).
Temos, assim, que a violação do dever de cuidado objetivamente devido é elemento essencial e característico do tipo de ilícito negligente, com o que se pretende designar a violação de exigências de comportamento tipicamente específicas, cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respetiva, para evitar o preenchimento de um certo tipo objetivo de ilícito (Figueiredo Dias, “Temas Básicos da Doutrina Penal”, 2001, pág. 3593).
Convém, a propósito, esclarecer que, embora o ilícito negligente comporte um momento omissivo - precisamente o não ter o cuidado, ou de prever um certo resultado ou, tendo-o previsto, de evitá-lo - não se confunde com a omissão, que qualifica um tipo legal em relação à estrutura do comportamento.
A violação do dever de cuidado tanto pode traduzir-se numa acção como numa omissão.
Por outro lado, o cuidado exigível há-de ser determinado pela capacidade de cumprimento que, no dizer de Figueiredo Dias (“Pressupostos da Punição” in “Jornadas de Direito Criminal”, ed. CEJ, pág. 70), constitui o elemento configurador da censurabilidade da negligência - o elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever ser jurídico-penal.
Está aqui verdadeiramente em causa - acrescenta aquele Professor (loc. cit.) - um critério subjetivo e concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objetivamente imposto e devido - mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respetiva punição.
Em suma, a negligência determina-se com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, há que procurar saber que comportamento era objetivamente devido em determinada situação em ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais.
Sempre que determinado comportamento se afasta daquele que era objetivamente devido numa situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, considera-se que esse comportamento preenche o tipo de ilícito do facto negligente.
Parece-nos adequado enquadrar aqui a situação concreta cuja tutela se faz através da tipificação como contraordenação da violação dos respetivos comandos legais.
Trata-se daquilo que é designado como “obrigações da entidade executante”, previstas no art. 20.º do Decreto-Lei nº 273/2003, de 29 de Outubro, ou seja, o conjunto de regras e procedimentos a observar por aquela tendo em vista promover a segurança, higiene e saúde no trabalho em estaleiros da construção.
Uma dessas obrigações consiste em organizar um registo atualizado dos subempreiteiros e trabalhadores independentes por si contratados com atividade no estaleiro, nos termos do art. 21.º - art. 20.º alínea j) – obrigação esta que tem como finalidade o controlo efetivo de todos aqueles que intervêm na execução da obra.
Segundo o nº 1 do referido art. 21.º:
1 — A entidade executante deve organizar um registo que inclua, em relação a cada subempreiteiro ou trabalhador independente por si contratado que trabalhe no estaleiro durante um prazo superior a vinte e quatro horas:
a) A identificação completa, residência ou sede e número fiscal de contribuinte;
b) O número do registo ou da autorização para o exercício da atividade de empreiteiro de obras públicas ou de industrial da construção civil, bem como de certificação exigida por lei para o exercício de outra atividade realizada no estaleiro;
c) A atividade a efetuar no estaleiro e a sua calendarização;
d) A cópia do contrato em execução do qual conste que exerce atividade no estaleiro, quando for celebrado por escrito;
e) O responsável do subempreiteiro no estaleiro.
Foi este procedimento que não foi respeitado tendo a autoridade administrativa considerado haver negligência neste caso.
A arguida teria, assim, incorrido na prática da contraordenação prevista na alínea c) do nº 3 do art. 25.º do citado Decreto-Lei nº 273/2003, de 29 de Outubro.
É quase impossível evitar a conclusão de que foi negligente a acção da arguida.
Apesar das reservas e objeções (sobre as razões destas reservas, veja-se o texto de Euclides Dâmaso Simões “Prova Indiciária - Contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente”, publicado na revista “Julgar”, nº 2, 2007, págs. 203 e segs.) que, ainda, lhe são opostas, está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta (Acs. da RP, de 28.01.2009, da RC, de 30.03.2010 e do STJ, de 11.07.2007, todos disponíveis em www.dgsi.pt), também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, a perceção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal, ao passo que na segunda a perceção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
Uma vez que em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), delas não pode ser excluída a prova por presunções, prevista, como noção geral, no art. 349.º do Cód. Civil, mas prestável e válida como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos no processo penal em que se parte de um facto conhecido (o facto base, que pode ser um único, mas, desejavelmente, devem ser factos plurais e estar inter-relacionados, que funciona como indício para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade, que deve ser razoável e fundamentado, alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.
Neste âmbito, importam as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção, que se encontram na base de qualquer juízo probatório. São meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exatidão no caso concreto.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, não havendo confissão, a prova dos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente) não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta.
Como ensinava Cavaleiro Ferreira (“Curso de Processo Penal”, II, 1981, pág. 292) existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são suscetíveis de prova indireta como são todos os elementos de estrutura psicológica
Não se compreendem, pois, os complexos e os pruridos que subsistem quanto à verificação do dolo por meio de presunções.

Aliás, é inteiramente lógico pensar e concluir que a pessoa (por si ou pelos seus representantes), nos comportamentos ativos ou omissivos que assume, nas omissões ou atos que pratica, obedece às suas potencialidades volitivas, escolhendo, direta ou indiretamente, os resultados da sua atividade ou mantendo-se, por incúria, indiferente à produção de tais resultados.
Por isso, verificada a materialidade da infração e conhecida a proibição legal, segundo as regras da experiência comum, podemos deduzir que aquela foi cometida com dolo ou, pelo menos, com negligência.
Pense-se, por exemplo, numa das infrações mais frequentes: a condução de veículo automóvel em estado de embriaguez.
O agente que esteve a confraternizar com os amigos e ingeriu várias bebidas alcoólicas, se, imediatamente a seguir, vai conduzir o seu veículo automóvel na via pública, sabendo que a lei proíbe e pune a condução com uma taxa de alcoolemia acima de determinado valor, e é fiscalizado, sendo-lhe detetada uma taxa de álcool no sangue de 1,5 g/litro, é inteiramente legítimo inferir o dolo ou, no mínimo, a negligência nessa conduta (vide os Acs. da RP de 17.12.2003, desta Relação, de 12.01.2011, da RC, de 09.12.2009, da RE de 05.04.2011 e desta Relação de 10.01.2012, que aqui seguimos de perto, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
No sentido de que uma presunção ilidível de dolo ou de negligência não viola a presunção de inocência, pode ver-se a jurisprudência do TEDH citada por Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição atualizada, UCE, anotação ao artigo 127.º, pág. 334.
Se é assim no âmbito criminal, pelo menos, por identidade de razão também deve sê-lo em matéria de contraordenações.
Assim, a verificação objetiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contraordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos, negligentemente.
No caso, estão em causa regras e procedimentos previstos no Decreto-Lei nº 273/2003, de 29 de Outubro, que visam garantir o controlo efetivo de todos aqueles que intervêm na execução da obra.
A arguida na qualidade de dona da obra e entidade executante, tinha, necessariamente, conhecimento e capacidade para levar a cabo esses procedimentos, tal como sabia que a violação dessas regras era punível como contraordenação – note-se que ficou provado que a arguida iniciou a sua atividade em 1991 e os factos ocorreram em 2008.
Apesar disso, não obstante a singeleza das obrigações impostas, de fácil adimplemento, a arguida não as cumpriu.
Sempre que determinado comportamento se afasta daquele que era objetivamente devido (e conhecido do agente), como aqui aconteceu, considera-se que esse comportamento configura uma atuação dolosa ou, pelo menos, negligente, pois é esse juízo que se revela em sintonia com a normalidade das coisas e as máximas da experiência.
Face a este quadro, cabia à arguida, a bem da sua defesa, alegar e provar factos que pusessem em crise aquela inferência, invocar circunstâncias que, pelo menos, fizessem surgir uma dúvida razoável sobre a imputação subjetiva daquela conduta - sem que isso signifique aceitação de um ónus de alegação e prova em processo penal ou no contraordenacional, antes decorrendo de um princípio de cooperação e lealdade processual -, e não à ACT apurar as razões do inadimplemento que a lei tipifica como infração contraordenacional.”.
Aplicando os ensinamentos acabados de enunciar nas decisões transcritas supra No mesmo sentido poderia invocar-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 5/4/2018, proferido no processo 4016/17.0T8VNF.G1., afigura-se-nos evidente que tem de se ter por preenchido o elemento subjectivo do tipo de ilícito em análise nestes autos.
Com efeito, deles decorre, conjugadamente e em resumo, as seguintes conclusões: i) quando determinado comportamento é imposto por uma norma jurídica específica, como forma de evitar a verificação do resultado que se procura evitar, a actuação negligente traduzir-se-á na inobservância do comportamento imposto por essa norma jurídica; ii) a verificação objectiva da conduta que integra a descrição típica do ilícito contra-ordenacional permite concluir, por presunção natural, judicial ou de experiência que o agente agiu, por acção ou por omissão, pelo menos, negligentemente, tudo sem prejuízo da possibilidade de demonstração, designadamente pelo agente, de que o mesmo agiu sem culpa; iii) essa presunção mínima e ilidível de negligência não viola a presunção de inocência.
No caso em apreço, a recorrente violou, do ponto de vista objectivo, a obrigação legal de celebrar com os trabalhadores identificados na decisão recorrida os contratos de trabalho correspondentes à verdadeira situação de subordinação jurídica em que os mesmos se encontravam em relação à recorrente e que, de resto, foi afirmada na sentença recorrida sem impugnação da recorrente; por consequência dessa violação, sujeitou-os, tal como reconheceu nas próprias alegações de recurso que interpôs da decisão administrativa impugnada Ali se sustentou, designadamente, que a relação entre a recorrente e os seus colaboradores pautava-se pela liberdade e autonomia destes últimos, não sendo alvo de qualquer poder de direcção, nem de qualquer controlo de pontualidade ou assiduidade, configurando um verdadeiro contrato de prestação de serviço em que aqueles se comprometeram a garantir a confecção das refeições e o respectivo serviço aos clientes da recorrente, sendo que, desde sempre, foi esse o intuito e a vontade de ambas as partes intervenientes no dito contrato., a um regime contratual de prestação de serviço e, portanto, a um regime de prestação de actividade por forma aparentemente autónoma.
Ora, em face do supra exposto, tendo a recorrente assumido um comportamento objectivamente divergente daquele que lhe era imposto legalmente e nessa medida preenchendo a tipicidade objectiva de um tipo contra-ordenacional, tal permite presumir, sem que tal presunção de mostre ilidida pelo factos demonstrados, que a recorrente actuou, pelo menos, com negligência.
Preenchido está, assim, o elemento subjectivo do tipo de contra-ordenação que está em análise, conclusão que, de resto, dispensa qualquer discussão em torno da questão que neste âmbito a recorrente também suscita Questão essa que não será objecto desta decisão pela inutilidade da discussão que a mesma encerra. sobre se o tribunal recorrido poderia ou não ter dado como provado, dada a alegada conclusividade do assim descrito, que “A arguida ao não actuar como podia e devia fazer, celebrando um contrato de trabalho com os trabalhadores acima mencionados, bem sabendo que a tal estava obrigada, não agiu com a diligência devida, quando o podia e devia fazer.”.
Tanto basta, sem necessidade de outras considerações, para responder positivamente à questão em análise.
IV) Decisão

Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Coimbra,

.....................................
Jorge Manuel Loureiro)

.....................................
(Paula Maria Roberto)