Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
41/05.1IDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: RECURSO
AMPLEXO COGNITIVO
Data do Acordão: 01/14/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 36º CP
Sumário: 1. Os recursos são forma de corrigir as decisões – tanto de erros in judicando como in procedendo – não sendo licito ao recorrente ultrapassar os limites de cognoscibilidade que lhe são fornecidos pelo leque de questões que enformam a decisão proferida.
2. Não pode o tribunal de recurso conhecer uma questão nova que não tinha sido alanceada por ele na sua defesa nem o tribunal a ponderou no leque de questões que elegeu para pronúncia e decisão do caso. E isto tanto no plano factual como no plano do conhecimento do direito.
3. Deste modo não pode ser apreciada a questão suscitada pelo recorrente no recurso da exculpação da sua conduta por ter agido no exercício de um direito que a necessidade de resguardar os postos de trabalho dos seus empregados lhe exigia e porque esta exigência (ético-social) sobrepujava o dever de pagar os impostos devidos ao Estado, uma vez que não havia sido objecto de pronúncia na decisão sob impugnação, por não haver sido alegada pelo recorrente durante o processo.
Decisão Texto Integral: I. – Relatório.
No processo supra epigrafado, foi deduzida, pelo Ministério Público, acusação – cfr. fls.   84 a 86 –, contra:

“MG…”,  com sede na Zona Industrial do Baião,  em Góis,

FJ..., casado, empresário, residente na Avenida …, Góis,

e AD..., casado, maquinista, e residente na Suiça e em Portugal em Góis, imputando-lhes a prática, à primeira, como autora material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 7º, n.º 1, e 105º, nºs. 1, 2 e 4, da Lei nº. 15/2001, de 5/06, por referência ao disposto nos artºs. 1, 2, 3, 8, 98, 99 e 101, do CIRS, e no artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal; e aos, segundo e terceiro arguidos, como autores materiais e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artº., 105.º, nºs. 1, 2 e 4, da Lei nº. 15/2001, de 5/06, e 30º, n.º 2, do Código Penal.”

A final, após produção de prova apresentada pelo arguido FJ... –cfr. fls. 135 e 136 – foi decidido:  

“(…) julgar procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência:

Condenar o arguido FJ..., como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo art. 105, nºs. 1, 2 e 4, da Lei nº. 15/2001, de 5/6, e artº. 30, nº. 2, do Código Penal, na pena de 12 (doze) meses de prisão.

Condenar, igualmente, o arguido AD..., como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelo art. 105, nºs. 1, 2 e 4, da Lei nº. 15/2001, de 5/6, e artº. 30, nº. 2, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão.

Suspender a execução da pena de prisão aplicada aos mesmos arguidos FJ... e AD... pelo período de 12 (doze) meses, sob a condição de pagamento ao Estado, no prazo de 12 (doze) meses, a contar do trânsito desta decisão, da quantia de imposto em dívida - € 8.563,76 (oito mil, quinhentos e sessenta e três euros e setenta e seis cêntimos).

Condenar, ainda, a arguida “MG…”, nos termos do art. 7.º, n.ºs. 1 a 3, da Lei nº. 15/2001, de 5/6, pelo crime de abuso de confiança fiscal continuado, p. e p. pelo art. 105, nºs. 1, 2 e 4, do citado diploma legal, e artº. 30, nº. 2, do Código Penal, na pena de 25 (vinte e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no total de € 125,00 (cento e vinte e cinco euros).”
Em divergência com o julgado recorre o arguido FJ..., que despede a motivação com o quadro conclusivo que a seguir queda extractado.   

“A) Foi, o ora recorrente, condenado, na pena de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob a condição de pagamento da quantia de imposto devida, pela autoria de material de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelos artigo n.º 105, n.º 1, 2 e 4 da Lei n.º 15/2001, de 5/6, e artigo 30 n.º 2 do código penal, por acórdão proferido em 19 de Junho de 2008.

B) Contudo não pode o arguido concordar com a aplicação de tal pena nos termos e com os seguintes fundamentos.

Da matéria de facto:

C) Não retirou em nosso entender o Tribunal a quo, as devidas conclusões da prova produzida em sede de audiência.

D) Com efeito, das declarações quer do arguido, quer das testemunhas VM..., JA... e AL..., resulta que o ora recorrente nunca retirou vantagem económica para si directamente ou através da empresa.

F) Ora tanto a situação económica do ora recorrente como a da própria empresa eram há data dos factos e também posteriormente de grande fragilidade, sendo que, foram as grandes dificuldades financeiras da empresa arguida que motivaram a falta dos pagamentos devidos à administração fiscal.

G) Atento o depoimento prestado quer pelo arguido Armando (cassete 1 lado A de 000 a 720), quer pelas testemunhas de defesa VM... (cassete 1 lado A de voltas 721 a 1050), JA... (cassete 1 lado A de voltas 1051 a 1230) e AL... (cassete 1 lado A de voltas 1231 a 1620), o tribunal a quo não deveria ter dado como provado o ponto 7) da matéria de facto dada como provada.

H) O imposto em causa, não é um imposto que foi entregue aos arguidos, mas sim que os mesmos eram obrigados a reter no vencimento dos trabalhadores e entregar à Administração Fiscal no mês subsequente.

I) A arguida à data dos factos encontrava-se numa situação económica muito grave, tendo dificuldade em efectuar o pagamento de ordenados aos seus trabalhadores.

J) Assim, entendemos que o ponto 7 foi incorrectamente dado como provado.

L) Deveria ter sido dado como provado que a actuação do ora recorrente foi motivada apenas pela situação económica da empresa arguida.

Da matéria de direito:

M) Deu o Tribunal a quo como provado, que a actuação dos dois arguidos na qualidade de sócios gerentes da arguida visou o favorecimento patrimonial desta, e ao mesmo tempo que a situação económica da arguida era frágil, tendo acabado por se declarar a sua insolvência.

N) Ora se assim é, terá necessariamente de se concluir que os valores da prestação tributária que não foram pagos, foram utilizados pelos arguidos para fazer face às despesas da arguida, nomeadamente salários e pagamentos a fornecedores.

O) Pelo que a conduta do ora recorrente não poderá ser considerada ilícita, visto se encontrar ao abrigo da cláusula de exclusão da ilicitude prevista no art. 34.º do C.P..

P) De uma leitura atenta deste artigo, a única dúvida séria que pode restar quanto à sua aplicação ao ora recorrente, seria o requisito presente na alínea b) desse artigo que se refere à necessidade de haver sensível superioridade do bem que se visa proteger em face do bem sacrificado.

Q) Sensível superioridade essa que a nosso ver existe. É certo que a falta de cumprimento das obrigações fiscais acarreta prejuízos sérios para a fazenda pública e em última análise para todos os contribuintes. Encontrando-se esse prejuízo, contudo, diluído na grande massa de contribuições fiscais, e o efeito sentido pelo contribuinte individual é quase nulo.

R) Já a falta de pagamento de salários, tem efeitos nefastos muito mais contundentes. Com efeito, para um agregado familiar, ver-se sem uma, senão exclusiva, pelo menos muito importante fonte de rendimento, acarreta problemas e sofrimentos muito sérios, infelizmente sobejamente conhecidos.

S) Pelo exposto, não se entende como alguma doutrina tem entendido serem estes dois interesses em análise de valor igual. Quanto a nós, o sofrimento que a falta de pagamento de salários acarreta, não só para o trabalhador mas também para todo o seu agregado familiar, não tem paralelo com os prejuízos sofridos pelo estado com a falta de pagamento do imposto.

T) Assim entendemos não ter o ora recorrente praticado qualquer acto ilícito, uma vez que a sua actuação, sacrificando um bem sensivelmente inferior para proteger um direito de terceiros se encontra ao coberto do direito de necessidade pelo que deve ser absolvido.

U) Mesmo que assim não se entenda sempre se dirá que,

V) O Tribunal a quo, retirou as devidas consequências da alteração legislativa introduzida pela Lei 53-A/2006, no artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, que introduziu um novo numero com a seguinte redacção:

Artigo 105.º …

3. …

4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníreis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida da juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

X) Perante esta nova redacção, necessário se toma, que a administração fiscal proceda à notificação prevista da alínea a) supracitada, e que esta não seja paga.

Z) Ora esta notificação nunca foi feita ao arguido, apenas lhe foi efectuada uma notificação nos temos do n.º 6 do artigo 105 do Regime Geral das Infracções Tributárias.

AA) Notificação esta que de modo algum se pode confundir com aquela a que alude a alínea b) do número 4 do referido artigo.

AB) Contudo, estas notificações não se podem confundir visto terem enquadramentos dogmáticos, fundamentos e efeitos distintos.

AC) A notificação efectuada ao arguido nos termos do n.º 6 do referido artigo, não constitui um pressuposto da punibilidade, nem tão pouco uma causa de exclusão da ilicitude dos factos, mas apenas uma mera causa de extinção do procedimento criminal. Já a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do referido artigo, é urna condição necessária para que haja procedimento criminal

AD) Não restam também dúvidas, quanto à aplicabilidade da referida norma ao ora arguido à luz do artigo 2.º do Código Penal, visto esta lhe ser manifestamente favorável.

AE) Assim, cumpre analisar os efeitos da falta da necessária notificação para o presente processo penal.

AF) Ora a nosso ver, a alteração legislativa em análise configura uma verdadeira alteração do tipo legal de crime, acrescentando-lhe mais um elemento que necessariamente terá de se preencher para que se verifique o ilícito penal.

AG) Neste sentido se tem manifestado alguma jurisprudência, nomeadamente o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, referente ao processo 2464/03.1 TALRA.

AH) Entendemos assim que a alteração legislativa em análise, é uma verdadeira despenalização, nos casos em que foi omitida a referida notificação.

AI) Mesmo que assim não se entenda, e se considere que a nova cláusula introduzida, configura apenas uma causa objectiva de punibilidade, a conclusão seria a mesma, visto esta não se verificar a data dos factos.

AJ) Pelo que deverá ser a sentença proferida pelo Tribunal a quo revogada e o ora recorrente absolvido do crime que vem acusado.”

Em munificente resposta a Exma. Senhora Procudora-Adjunta junto da comarca conclui depois de contraminar, pontualmente, os argumentos aduzidos pelo recorrente, remata com as conclusões que a seguir ficam transcritas.    

“1. A decisão impugnada estabeleceu a matéria de facto – que, na sua totalidade foi enumerada como provada – em conformidade com a confissão integral e sem reservas de um dos arguidos e com o depoimento das testemunhas de defesa quanto às condições pessoais, situação sócio-económica e profissional e à personalidade do arguido recorrente.

2. Dessa factualidade – e nenhuma outra foi objecto de alegação e de discussão, em audiência de julgamento, para que pudesse ser apreciada e enumerada na decisão recorrida – nenhuma se reporta a qualquer conjuntura em que os arguidos tivessem actuado e, muito menos, a um qualquer contexto de exclusão da ilicitude nessa actuação.

3. A factualidade assente preenche todos os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, a cuja punibilidade nada obsta, mostrando-se observada a exigência da notificação prevista na al. b), do n.º 4, do artigo 105.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias.

4. Na escolha da pena, o Tribunal a quo deu justificada preferência à pena privativa de liberdade, desde logo em razão dos antecedentes criminais dos arguidos.

5. A pena de doze (12) meses de prisão, aplicada ao arguido/recorrente, pela autoria de um crime de abuso de confiança, na forma continuada, mostra-se criteriosa e fundamentadamente fixada, sendo ajustada à culpa do infractor e às necessidades de prevenção especial e geral, resultando, ainda, da circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depunham a favor e contra o agente.

6. A decretada suspensão da execução dessa pena, por igual período, sob a condição de pagamento ao Estado, no prazo de doze, meses contados sobre a data do trânsito da decisão, da quantia correspondente ao imposto em dívida, mostra-se justificada e adequada.

7. A douta sentença condenatória recorrida não deixou de interpretar correctamente qualquer preceito legal, não se mostrando ofendido, designadamente, o disposto nos artigos 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias, 30.º, n.º 2, 34.º, 40.º, 70.º, 71.º, 72.º, do Código Penal, 124.º, 344.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), e 345.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.”

Já nesta instância o Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto é de parecer que:

“Resumindo as questões suscitadas pelo arguido recorrente, reconduzem-se as mesmas, por um lado, ao seu inconformismo perante a matéria de facto fixada no ponto 7 da sentença, no tocante ao elemento subjectivo do crime, para o que também invoca ter agido em estado de necessidade devido à situação financeira da empresa, e, por outro lado, mais alegando, não só de que a Lei do Orçamento para 2007, n.º 53-A/2006, de 29/12 despenalizou o crime pelo qual foi condenado, como também, subsidiariamente, que não terá sido notificado nos termos e para os efeitos do artigo 104.º, n.º 4 b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, na redacção introduzida pela referida Lei.

De facto, sobre o objecto do recurso, também nos parecendo que não assistirá qualquer razão ao recorrente, deveremos também referir que sufragamos inteiramente a resposta apresentada pela Exma. Procuradora-Adjunta Ministério Público junto da 1.ª instância, na qual, de forma cuidada e proficiente, desmonta eficientemente, e ponto por ponto, as inconsistentes razões da referida motivação de recurso do arguido, e à qual, com a devida vénia, pouco mais se nos oferecendo aditar-lhe com relevo para a decisão, aqui a damos por inteiramente reproduzida para todos os efeitos legais.

Com efeito, como primeira nota, não podemos deixar de salientar que tendo o co-arguido AD..., por forma livre e fora de qualquer coacção, nos termos do artigo 344.º n.º 1 do C.P.P., confessado todos os factos da acusação, e tendo, perante tal, com a concordância de todos os sujeitos processuais, sido pacificamente renunciada e dispensada a prova arrolada, não se percebe ora a sua posição sobre o referido ponto 7 fixado na matéria de facto, o qual é reprodução do que constava na acusação, e que não poderá ora já ser sindicado.

Por outro lado, e por isso, estando correctamente assente na matéria de facto que, para além do mais, designadamente o arguido recorrente, reteve e não entregou Estado os descontos efectuados aos trabalhadores a título de IRS, por tal ser de maior interesse patrimonial para a co-arguida sociedade comercial de que os arguidos singulares eram sócios gerentes, sendo certo essa retenção e não entrega, pouco ou nada importará para a tipificação deste ilícito penal o destino que efectivamente terá sido dado a essas importâncias, pois que ainda que se tratasse de mera apropriação contabilística, não deixariam os factos de integrar o crime pelo qual os arguidos foram condenados pois que, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15/07/2007,

“A apropriação não tem de ser necessariamente material, podendo ser – como quase sempre é – apenas contabilística” (www.ggsi.ptljtrl).

No mesmo sentido, aliás, se pronunciou já este Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, designadamente por Acórdãos, de 10/01/2007 (Processo n.º 549/03.3TAFIG.Cl), e de 09/04/2008 (Processo n.º 143/05.4TATMR.C1).

Por outro lado, no que toca à pretensa despenalização do crime de Abuso de Confiança Fiscal pelo qual foram os arguidos condenados, previsto e punido pelos artigo 7.º, n.ºs 1 a 3, e 105.º, n.ºs 1, 2, e 4, ambos da Lei n.º 15/2001, de 05/06, por efeito da introdução, pela referida Lei do Orçamento para 2007, n.º 53-A/2006, de 29/12, da notificação do artigo 104.º n.º 1 b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, caberá dizer que tal condição não faz parte do tipo legal de crime, sendo antes uma acrescida condição objectiva de (exclusão) de punibilidade, como se infere, aliás, do Acórdão de 09 de Abril de 2008 do S.T.J. (Processo: 07P4080), tirado por unanimidade, no qual foi uniformizada jurisprudência no sentido de que,

A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias)”.

No que toca à pretensa omissão da notificação nos termos e para os efeitos do artigo I04,º n.º 1 b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, em face dos documentos de fls. 69 a 76, parece-nos também óbvia a sem razão do recorrente.

Face ao exposto, acompanhando, como se disse, a bem elaborada resposta apresentada pela Exma. Procuradora-Adjunta junto da 1.ª instância, sem necessidade de outros considerandos, somos de parecer que deverá confirmar-se a sentença em recurso, improcedendo assim o recurso do arguido FJ....”

Sedimentada a ideia de que o tema decidendum do recurso deve ser delimitado pelas conclusões do recurso[1] propomo-nos, para a solução da pretensão endereçada a este tribunal, tratar as sequentes questões:

A) – Reexame da decisão da matéria de facto – ponto 7.

B) – Existência de causa de exclusão da ilicitude – estado de necessidade.

C) – Ajustado cumprimento da notificação a que alude a alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

II. - Fundamentação

II.A. – de Facto:

Para a decisão prolatada considerou o tribunal adquirida a facticidade que a seguir se deixa transcrita.

1) A primeira arguida é uma sociedade por quotas, matriculada em 6/03/2001, na Conservatória de Registo Comercial de Góis, com o n.º 00268/870203 e com o objecto social de serração, corte, polimento e torneamento de mármores, cantarias e granitos e comercialização dos mesmos.

2) Os segundo e terceiro arguidos, à data dos factos, eram sócios gerentes da referida sociedade, sendo os únicos responsáveis pela gestão da mesma.

3) A referenciada sociedade arguida teve ao seu serviço e sob as suas ordens e direcção, durante os anos de 2001, 2002 e 2003, diversos trabalhadores.

4) No âmbito do seu objecto social, os, segundo e terceiro, arguidos, actuando em nome e no interesse da arguida sociedade, durante esses anos, procederam, mensalmente, ao desconto, nas remunerações pagas ao trabalhadores, para, alegadamente, serem entregues ao Estado, dos quantitativos devidos, por cada um deles, a título de Imposto Sobre o Rendimento Singular.

5) A primeira arguida, em conformidade com dever legalmente estabelecido para as entidades empregadoras, competia efectuar essa operação de desconto, reter o quantitativo devido a título daquele imposto e entregá-lo até ao dia 20 do mês imediatamente subsequente – e assim sucessivamente - ao seu legítimo destinatário, o Estado.

6) Embora tivesse em cada um dos meses, que de seguida se discriminarão, dos anos de 2001, 2002 e 2003 realizado essa operação de desconto, a primeira arguida, actuando segundo determinações dos, segundo e terceira, arguidos, não procedeu ao pagamento, não obstante notificação efectuada para o efeito, de tal imposto, acrescido dos juros respectivos e do valor da coima e não entregou ao Estado, naquele prazo, no decurso dos 90 (noventa) dias subsequentes ou até ao presente momento, mensal e sucessivamente, esse montante que, ascendia:

ano de 2001:

Abril, ao total de € 201,76 (duzentos e um euros e setenta e seis cêntimos);

Agosto, ao total de € 164,65 (cento e sessenta e quatro euros e sessenta e cinco cêntimos);

Dezembro,  ao total de € 261,17 (duzentos e sessenta e um euros e dezassete cêntimos;

ano de 2002:

Janeiro, ao total de € 267,94 (duzentos e sessenta e sete euros e noventa e quatro cêntimos);

Fevereiro, ao total de € 278,03 (duzentos e setenta e oito euros e três cêntimos);

Junho,  ao total de € 309,65 (trezentos e nove euros e sessenta e cinco cêntimos);

Julho,  ao total de € 353,87(trezentos e cinquenta e três euros e oitenta e sete cêntimos);

Agosto,  ao total de € 419,04 (quatrocentos e dezanove euros e quatro cêntimos);

Setembro  ao total de € 546,80 (quinhentos e quarenta e seis euros e oitenta cêntimos);

Outubro, ao total de € 383,04 (trezentos e oitenta e três euros e quatro cêntimos);

Novembro, ao total de € 379,57 (trezentos e setenta e nove euros e cinquenta e sete cêntimos);

Dezembro,  ao total de € 716,24 (setecentos e dezasseis euros e vinte e quatro cêntimos),

ano de 2003:

Janeiro, ao total de € 378,00 (trezentos e setenta e oito euros);

Fevereiro, ao total de € 302,00 (trezentos e dois euros);

Março,  ao total de € 342,00 (trezentos e quarenta e dois euros);

Abril, ao total de € 373,00 (trezentos e setenta e três euros);

Maio  ao total de € 372,00 (trezentos e setenta e dois euros);

Junho ao total de € 373,00 (trezentos e setenta e três euros);

Julho, ao total de € 473,00 (quatrocentos e setenta e três euros);

Agosto,  ao total de € 475,00 (quatrocentos e setenta e cinco euros),

Setembro, ao total de € 429,00 (quatrocentos e vinte e nove euros);

Outubro, ao total de € 341,00 (trezentos e quarenta e um euros);

Novembro, ao total de € 256,00 (duzentos e cinquenta e seis euros);

Dezembro, ao total de € 168,00 (cento e sessenta e oito euros);

o que perfaz o quantitativo global de € 8.563,76 (oito mil quinhentos e sessenta e três euros e setenta e seis cêntimos), como melhor se discrimina nos mapas de valores constantes de fls. 50/51, que se dão aqui por reproduzidos na íntegra.

7) Os, segundo e terceira, arguidos, que actuaram de livre e consciente vontade, procederam, conforme descrito, sempre enquanto sócios-gerentes da primeira arguida, em nome desta e segundo uma estratégia que haviam delineado, enquanto legais representantes e gerentes dessa pessoa colectiva, para atingir o que definiram ser de maior interesse patrimonial para a mesma sociedade comercial.

8) Sabiam que a sua conduta era contrária ao direito e penalmente censurada, não obstante, conformando-se com as consequências penais que dessa conduta lhes pudesse advir, os, segundo e terceiro, arguidos, por si, e a primeira arguida, na pessoa daqueles, não se coibiram de actuar como o descrito, reiterando, mês após mês, durante os três mencionados anos, esse propósito ilícito, favorecido, entretanto, pela aparente inércia da entidade lesada, querendo e logrando obter, por esse meio, um proveito patrimonial indevido.

9) O arguido AD… é encarregado de obras em Lausanne, na Suíça.

10) Confessou os factos integralmente e sem reservas. 

11) Possui os antecedentes criminais exarados no certificado do registo criminal junto a fls. 87-90.

12) O arguido FJ… é industrial no ramo de panificação.

13) É tido como pessoa honesta e cumpridora e não possui presentemente uma situação económica estável.

14) Possui os antecedentes criminais exarados no certificado do registo criminal junto a fls. 82-83.

Factos não Provados:

Com interesse para a decisão da causa, não existem factos não provados.

Motivação da decisão de facto:

A convicção do tribunal formou-se, no que aos factos provados respeita, com base nas declarações do arguido AD... que admitiu os factos por que vinha acusado, confessando-os integralmente e sem reservas, esclarecendo ainda as suas condições de vida actuais.

Nos depoimentos das testemunhas de defesa VM..., JA... e AL... quanto às condições pessoais, situação sócio-económica, profissional e personalidade do arguido Fernando Sanches.

Nos documentos juntos aos autos e certificados do registo criminal.”

II.B. – De Direito.

II.B.1. – Reexame da decisão da matéria de facto – ponto 7.

Pretende o recorrente a alteração do facto dado como provado sob o item n.º 7, por em seu juízo não ter provado que “[…] das declarações quer do arguido, quer das testemunhas VM..., JA... e AL..., resulta que o ora recorrente nunca retirou vantagem económica para si directamente ou através da empresa”, porquanto “ (…) tanto a situação económica do ora recorrente como a da própria empresa eram há data dos factos e também posteriormente de grande fragilidade, sendo que, foram as grandes dificuldades financeiras da empresa arguida que motivaram a falta dos pagamentos devidos à administração fiscal”.

Retirou o tribunal da matéria de facto produzida em audiência que: “Os, segundo e terceira, arguidos, que actuaram de livre e consciente vontade, procederam, conforme descrito, sempre enquanto sócios-gerentes da primeira arguida, em nome desta e segundo uma estratégia que haviam delineado, enquanto legais representantes e gerentes dessa pessoa colectiva, para atingir o que definiram ser de maior interesse patrimonial para a mesma sociedade comercial”.  

Como bem centraliza a Exma. Senhora Procuradora-geral Adjunta o que o recorrente pretende colocar em crise é a facticidade que nucleariza o elemento subjectivo do crime de abuso de confiança fiscal por que foi condenado. Ao pretender demonstrar que só não entregou à administração fiscal as prestações correspondentes aos descontos que deveria efectuar nos salários dos trabalhadores que prestavam serviço sob as suas ordens e direcção.

Como de forma lidimar e clarividente escrevem o Prof. Manuel Costa Andrade e a Dr.ª Susana Aires de Sousa, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 17, n.º 1, pags. 53 a 72, - “As Metamorfoses e desventuras de um Crime (Abuso de Confiança Fiscal) Irrequieto – Reflexões Criticas a Propósito da Alteração Introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro – “A Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que estabeleceu o Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), alterou de forma radical a configuração típica do crime de Abuso de confiança fiscal até então vigente. Nos termos do artigo 24.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA). A mais marcante das modificações deu-se ao nível da conduta e, mais concretamente, ao nível da sua ofensividade típica. Que nos termos do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, se esgota na mera não entrega à administração fiscal, dentro de determinado prazo, de prestações tributárias deduzidas pelo substituto fiscal. Vale por dizer que o legislador de 2001 prescindiu do momento apropriação – que, no contexto do RJIFNA, integrava a factualidade típica da incriminação – convertendo a infracção num crime de mera inactividade.” Embora discordando da solução legislativa encontrada – posição que secundamos – Pelas razões que expõem logo a seguir (e que para o caso não interessarão) acrescentam, no entanto, estes penalistas que: “a conduta agora sancionada penalmente Já não corresponde a uma apropriação de bens patrimoniais alheios, não configurando, como tal, aquela danosidade social própria da figura do abuso de confiança como um dos crimes paradigmáticos contra a propriedade. Nem sequer se exige – como acontecia na versão originária do RJIFNA – uma intenção de apropriação. Para se consumar o crime, basta agora a mera violação do dever legal de entrega tempestiva das prestações deduzidas ou retidas”. [[2]]

Ainda em recente acórdão do nosso mais Alto Tribunal se escreveu a propósito do elemento típico inerido no anterior ordenamento em contraposição com a descrição típica consagrada no artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias que: “com a publicação do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 05-06, passou a considerar-se suficiente para a consumação do crime de abuso de confiança previsto no art. 105.º a não entrega da prestação tributária deduzida nos termos da lei, enquanto a apropriação dessas importâncias era elemento constitutivo do crime previsto no art. 24.º do RJIFNA; da alteração legislativa resulta um agravamento da situação do agente, apesar de terem sido mantidas as molduras penais abstractas.[[3]]

Como se constata da recensão doutrinária e jurisprudencial (esta por todas) não se torna necessário para que fique preenchida a materialidade típica descrita no artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias que o substituto fiscal, neste caso os arguidos, inverta o título de posse do quantitativo pecuniário que legalmente detinha na sua posse enquanto depositário da administração fiscal, a partir do momento em que legalmente lhe é exigível a sua entrega. O novo tipo legal basta-se com a mera não entrega, no prazo legal, ou tendo procedido à sua declaração, decorridos noventa (90) dias e depois de ter sido notificado para proceder á sua entrega acrescidas, neste caso, dos juros de mora devidos e da correspondente coima –cfr. n.º 1, ex vi do n.º 4, do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (com a redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29.12.

O facto provado sob o n.º 7 (Os, segundo e terceira, arguidos, que actuaram de livre e consciente vontade, procederam, conforme descrito, sempre enquanto sócios-gerentes da primeira arguida, em nome desta e segundo uma estratégia que haviam delineado, enquanto legais representantes e gerentes dessa pessoa colectiva, para atingir o que definiram ser de maior interesse patrimonial para a mesma sociedade comercial”) não deu como provado que o arguido se apropriou das quantias referidas no facto provado sob n.º 6 antes que como se consagra neste preceito que “(…)não procedeu ao pagamento, não obstante notificação efectuada para o efeito, de tal imposto, acrescido dos juros respectivos e do valor da coima e não entregou  (sublinhado nosso) ao Estado, naquele prazo, no decurso dos 90 (noventa) dias subsequentes ou até ao presente momento, mensal e sucessivamente (…).    

Não tem razão o recorrente ao pretender ver modificada a matéria fáctica constante do indicado item. O tribunal julgou de acordo com aprova que foi produzida e consignou de forma correcta os depoimentos, tanto dos arguidos como das testemunhas que afirmaram que os arguidos não procederam à entrega das prestações que se forma vencendo e que determinariam a sua entrega á administração fiscal, por imposição legal.

II.B.2. – Existência de causa de exclusão da ilicitude – Direito de necessidade.

Clama o recorrente que, ainda que não seja modificado o facto provado constante do item n.º 7, sempre a sua conduta deveria ser justificada dado que agiu para pagar os salários dos trabalhadores pois se “é certo que a falta de cumprimento das obrigações fiscais acarreta prejuízos sérios para a fazenda pública e em última análise para todos os contribuintes, encontrando-se esse prejuízo, contudo, diluído na grande massa de contribuições fiscais, e o efeito sentido pelo contribuinte individual é quase nulo,” “já a falta de pagamento de salários, tem efeitos nefastos muito mais contundentes. Com efeito, para um agregado familiar, ver-se sem uma, senão exclusiva, pelo menos muito importante fonte de rendimento, acarreta problemas e sofrimentos muito sérios, infelizmente sobejamente conhecidos.”

O recorrente suscita no recurso a exculpação da sua conduta por ter agido no exercício de um direito que a necessidade de resguardar os postos de trabalho dos seus empregados lhe exigia e porque esta exigência (ético-social) sobrepujava o dever de pagar os impostos devidos ao Estado. Ainda que crismada pelo recorrente de direito de necessidade a causa de justificação, tal como o recorrente a delineia nos seus contornos e configuração fáctico-material seria enquadrável na causa de exclusão antecipada no artigo 36.º do Código Penal – conflito de deveres – isto é, o dever de pagar os salários encontrar-se-ia em posição conflituante com o dever de pagar os impostos á administração fiscal. 

Seja porém como for, o facto é que o recorrente traz para o recurso uma questão que não havia sido objecto de pronúncia na decisão sob impugnação, por não haver sido alegada pelo recorrente durante o processo. Isto é, pretende que o tribunal de recurso tome conhecimento de uma questão que não foi alvo de tratamento pelo tribunal recorrido e não obteve deste pronúncia na decisão revidenda.

Está desde há muito consolidado, tanto a nível doutrinal como jurisprudencial, que os recursos são forma de corrigir as decisões – tanto de erros in judicando como in procedendo – não sendo licito ao recorrente ultrapassar os limites de cognoscibilidade que lhe são fornecidos pelo leque de questões que enformam a decisão proferida.

Ainda recentemente o nosso mais Alto Tribunal teve oportunidade de ditar um aresto [[4]] em que afastava a possibilidade de o tribunal de recurso conhecer de questões novas, ou seja questões que não estivessem abrangidas pelo amplexo cognitivo da decisão de que se pretendia obter revisão. Escreveu-se, com efeito, no predito acórdão que: “I - Os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu. II – Sendo os recursos meios de impugnação e de correcção de decisões judiciais, e não meio de obter decisões novas, não pode o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas ao tribunal recorrido. III – O tribunal superior, visando apenas a reapreciação de questões colocadas anteriormente e não de outras novas, não pode conhecer de argumentos ou fundamentos que não foram presentes ao tribunal de que se recorre – cf. Acs. do STJ de 27-07-1965, BMJ 149.º/297; de 26-03-1985, BMJ 345.º/362; de 02-12-1998, BMJ 482.º/150; de 12-07-1989, BMJ 389.º/510; de 09-03-1994, Proc. n.º 43402; de 01-03-2000, Proc. n.º 43/00, SASTJ n.º 39, pág. 55; de 05-04-2000, Proc. n.º 160/00; de 06-06-2001, Proc. n.º 1874/02 - 5.ª (não pode o STJ conhecer em recurso trazido da Relação de questões não colocadas perante este Tribunal Superior, mesmo que resolvidas na decisão da 1.ª instância); de 28-06-2001, Proc. n.º 1293/01 - 5.ª; de 26-09-2001, Proc. n.º 1287/01 - 3.ª; de 16-01-2002, Proc. n.º 3649/01 - 3.ª; de 30-10-2003, Proc. n.º 3281/03 - 5.ª (os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a obter decisões ex novo sobre questões não colocadas ao tribunal a quo, mas sim a obter o reexame das decisões tomadas sobre pontos questionados, procurando obter o cumprimento da lei); de 22-10-2003, Proc. n.º 2446/03 - 3.ª, SASTJ n.º 74, pág. 147; de 27-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209; de 20-07-2006, Proc. n.º 2316/06 - 3.ª; de 02-05-2007, Proc. n.º 1238/07 - 3.ª; e de 10-10-2007, Proc. n.º 3634/07 - 3.ª.”

Como se disse supra a decisão de que o recorrente pretende obter correcção não tratou da questão da causa de exclusão referida (direito de necessidade) – por não ter sido objecto ou fundamento esgrimido pelo recorrente para a exculpação da sua conduta – e ao não tê-lo feito não pode o recorrente pretender que ela faça parte do elenco de questões que este tribunal vá sindicar. Se, eventualmente, o arguido tivesse esgrimido essa questão como fundamento da sua defesa e ela não houvesse obtido tratamento ex professo da parte do tribunal recorrido o que poderia ter ocorrido era uma nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

Se se percorrer a matéria de facto – notadamente a parte final do item n.º 7 – constata-se que o tribunal não deu como provado que os impostos retidos e não entregues à administração fiscal tivessem sido utilizados pelos arguidos para fazerem face a soluções de pagamento de salários e que tivesse sido apenas essa a razão pela qual deixaram de proceder à entrega das prestações devidas a título de impostos. Ao invés, se atentarmos na matéria de facto provada o tribunal deu como adquirido que “ (…) actuaram de livre e consciente vontade, procederam, conforme descrito, sempre enquanto sócios-gerentes da primeira arguida, em nome desta e segundo uma estratégia que haviam delineado, enquanto legais representantes e gerentes dessa pessoa colectiva, para atingir o que definiram ser de maior interesse patrimonial para a mesma sociedade comercial”. Não se faz qualquer alusão ao pagamento de salários ou de qualquer outro constrangimento financeiro que tivesse compelido os arguidos a elegerem entre duas situações potencialmente conflituantes e contrapostas em que a satisfação de uma anulasse ou ilaqueasse o cumprimento da outra. Isto é, os arguidos não tiveram, segundo a matéria de facto que ficou transcrita supra que dirimir um conflito interno em que o cumprimento de um dever estivesse condicionado e tivesse ou pudesse ter que ceder perante o cumprimento de outro, de igual ou valia superior.

Sendo, no entanto, como haja de ser, o facto é que o arguido trouxe para a correcção que pretende da decisão prolatada uma questão nova que não tinha sido alanceada por ele na sua defesa nem o tribunal a ponderou no leque de questões que elegeu para pronúncia e decisão do caso. E isto tanto no plano factual como no plano do conhecimento do direito.        

Soçobra, assim, a questão nova que o recorrente trouxe para conhecimento deste tribunal em contravenção com as regras e âmbito definidores dos recursos.

II.B.3. – Ajustado cumprimento da notificação a que alude a alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Sobra para analisar a derradeira questão do cumprimento adequado da condição aposta pela Lei n.º 53-A/2006, de 29.12 e lateralmente a questão da despenalização da conduta ilícita imputada ao arguido.

Incoando pela primeira constata-se que o arguido não colocou em crise a matéria da facto contida no item n.º 6 onde se escreveu apertis verbis “(…) a primeira arguida, actuando segundo determinações dos, segundo e terceira, arguidos, não procedeu ao pagamento, não obstante notificação efectuada para o efeito, de tal imposto, acrescido dos juros respectivos e do valor da coima e não entregou ao Estado, naquele prazo, no decurso dos 90 (noventa) dias subsequentes ou até ao presente momento, mensal e sucessivamente (…)”.

Não tendo o recorrente confrontado o tribunal de recurso com a possibilidade de alteração da matéria de facto neste ponto (na verdade o tribunal de recurso só poderia ter modificado o ponto n.º 7 da decisão de facto, pois só esta foi expressamente posta em causa no recurso atinente a esta segmento da decisão, sendo que essa modificação apenas seria permitida se tivesse ocorrido um erro de julgamento que justificasse a correcção ao amparo da alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal) esta matéria – notadamente que o arguido foi notificado para proceder ao pagamento das quantias em divida e não obstante não o fez, no prazo de noventa (90) dias – tem que se ter por definitivamente adquirida e imodificada para efeitos de recurso quanto a esta matéria.

Explicitando. O tribunal de recurso tem que ter como assente, assim consta da matéria de facto dada como provada, que o arguido foi notificado para proceder ao pagamento das quantias em divida para com a administração fiscal e não o fez. A pretensão do recorrente só obteria sucesso se da prova inerida no processo, nomeadamente da prova documental que estivesse junta, resultasse que essa notificação. Neste caso, e porque o tribunal teria incorrido em erro grosseiro de julgamento da matéria de facto, poderia o tribunal de recurso, no âmbito da chamada revista alargada, corrigir a matéria de facto dada como provada e aditar ou modificar a decisão de facto decidindo em conformidade, ou seja estipular que o arguido não havia sido notificado e que se havia omitido uma formalidade essencial que deveria importar a repetição do acto, com as consequências que daí adviessem para a apreciação da conduta do arguido.

Não é esse o caso, como anota a Exma. Senhora Procuradora-geral Adjunta e na confrontação efectuada da documentação inerida no processo. O recorrente foi notificado na qualidade de legal representação da firma arguida porquanto foi nesta qualidade que agiu e pela qual lhe foi imputada a facticidade por que veio a ser condenado. O arguido agiu na representação de uma pessoa colectiva e foi nesta qualidade que foi instado pela administração fiscal a proceder ao pagamento das quantias que aquela, enquanto entidade responsável pelo pagamento das prestações descontadas aos trabalhadores a título de IRS e com a obrigação de proceder a sua entrega ao Estado que deveria ter satisfeito, se quisesse, a referida obrigação. A qualidade de representante, e só por impulso dessa qualidade é que o arguido foi acusado, importa que a notificação deva ser efectuada à entidade colectiva na pessoa do seu representante, devendo este, se quiser, praticar os actos que desonerariam a pessoa representada e ipso facto a ele próprio. A actuação e imputação efectuada neste procedimento não é feita ao arguido, enquanto pessoa singular e sujeito individualmente considerada, mas sim como legal representante de um ente que não podendo estar por si em juízo deve ser representada, objectiva e legalmente, por uma pessoa singular e fisicamente imputável.         

Para final a questão da despenalização (que o recorrente subordina ao defeituoso cumprimento da notificação aditada pela supra alteração do crime de abuso de confiança fiscal).

Como se deixou dito o recorrente foi correctamente notificado pelo que não fará sentido um excessivo alongamento da questão da despenalização do crime pelo qual foi condenado.

Ainda assim não deixaremos deixar assente que face à recente doutrina contida no douto acórdão de uniformização do nosso mais Alto tribunal não sobrarão dúvidas que a condição aposta pela já mencionada alteração legislativa não se constitui como despenalização da conduta mas tão só como condição objectiva de punibilidade (ou procedibilidade, como seria melhor qualificada).

A propósito deixamos escrito em diversos arestos por nós relatados após a publicação do mencionado aresto. “O recente acórdão para uniformização de jurisprudência prolatado, no dia 09.04.2008, pelo nosso mais Alto tribunal no processo nº 4080/07-3ª, disponível em www.stj.pt, veio fixar a seguinte jurisprudência que passará dever ser seguida pelos tribunais, a menos que fundadamente recusem a sua aplicação. A doutrina que lhe vem adjacente foi sufragada, por unanimidade, pelo Pleno das Secções criminais pelo que remar contra a sua doutrina se torna uma tarefa absolutamente insana.

Reza da seguinte forma a parte final do douto aresto a que se faz referência no parágrafo antecedente: “Face ao exposto entende-se que a alteração produzida pelo artigo 95 da Lei n.º 53-Aj2006 não implicou qualquer alteração nos elementos constitutivos do crime previsto no artigo 105.º do RGIT (a não entrega da prestação tributário retida no prazo legalmente fixado) que permaneceu modificado na sua tipicidade.

A alteração legal produzida revela-se tão-somente como a previsão de uma outra condição de punibilidade que deve ser equacionada na medida em que configure um regime concretamente mais favorável para o agente.

A questão em apreço conjuga-se, assim, pela forma superiormente exposta por Alimena. Refere o mesmo Autor que é indubitável a premissa legal, em termos de sucessão temporal de leis, que se revela na aplicabilidade a lei que é mais favorável ao réu.

Todavia, adianta, essa é apenas uma parte da questão pois que as disposições penais podem ser formadas por várias componentes. Na verdade, as normas que prevêem os crimes são compostas por várias partes. Algumas destas normas cindem-se em duas partes, sendo uma a relativa ao preceito e, a outra, à punição. A parte constitutiva do preceito é passível, por sua vez, de se subdividir conforme se refere aos elementos constitutivos ou às circunstâncias do fato ilícito, conforme se refere ao elemento material ou ao elemento psicológico do crime. Igualmente a parte que prevê a sanção pode regular, muito para além da qualidade ou da medida da pena, as condições de punibilidade

São conhecidos os motivos pelos quais em sede de sucessão de leis se derroga o principio da não retroactividade da lei penal quando a lei posterior é mais favorável ao réu.

Observamos, assim, que a consagração “ex novo” da existência de uma condição de punibilidade permite concluir no sentido de a fazer aparecer como mais favorável em confronto com aquela disposição de lei penal em que a punição do mesmo facto emergia incondicionadamente.

Pode-se objectar que, na sua essência, a subordinação da punição de um facto à presença de uma condição de punibilidade não tem por finalidade, em princípio, o favorecimento do réu. Todavia, não se pode ignorar que, embora a condição não seja emitida com o propósito de favorecer aquele, o certo é que a situação que objectivamente se configura é uma situação mais favorável para o eventual transgressor da norma penal. Por outro lado, e ainda no seguimento do entendimento de Alimena, se a lei posterior inova no confronto com a lei anterior no sentido de que considera dever punir sob condição um facto que a lei revogada reprimia incondicionalmente, é evidente que falta um interesse em punir quando não esteja verificada a condição.

Na verdade, e no que concerne á situação sob análise, foi intenção publicitada do legislador, expressa de forma inequívoca na letra da lei, o objectivo de conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva. A nova lei é mais favorável para o agente pois que lhe proporciona a possibilidade de, por acto dependente exclusivamente da sua vontade, preencher uma condição que provoca o afastamento da punição por desnecessidade de aplicação de uma pena.

A conclusão da aplicação da lei nova é iniludível face ao artigo 2º nº 4 do Código Penal.

Em conformidade com o exposto, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência, delibera na procedência do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência interposto pelo Ministério Público e, em consequência, fixar jurisprudência nos seguintes termos: “ - A exigência prevista na alínea b) do nº4 do artigo 105 do Regime Geral das Infracções Tributárias, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2 nº 4 do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do nº4 do artigo 105 do Regime Geral das Infracções Tributárias)”.

Em face da doutrina que passará a ter força obrigatória geral para os tribunais não se vê razão para a contrariar, até pela razão adiantada de que a regra foi extraída nemine discrepante o votará ao insucesso qualquer decisão que a vá em seu contra, a menos que fosse suscitada a questão da inconstitucionalidade material da norma que foi objecto de apreciação no nosso mais Alto Tribunal.

À luz desta nova orientação interpretativa não restarão dúvidas que se mostram verificados os requisitos materiais para a incriminação dos arguidos e para a sua punição, se verificados os demais pressupostos de que a aplicação da pena.”

O arguido foi correctamente notificado e pour cause não poderá beneficiar da condição aposta pela alteração a que se aludiu supra.

III. – Decisão.

Em face do exposto decidem os juízes que compõem este colectivo na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

- Julgar o recurso interposto pelo arguido FJ… improcedente e, consequentemente, manter incólume a decisão sob impugnação.

- Condenar o arguido nas custas do processo, fixando a taxa de justiça em seis (6) UC’s.

                                               Coimbra, 14 de Janeiro de 2009


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(Gabriel Catarino, relator)


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(Dr. Barreto do Carmo)

[1] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; WWW.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).

[2] No mesmo sentido se tinha pronunciado o Insigne mestre em estudo publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 135.º, n.º 3939; págs. 326 a 352 sob o título “A Fraude Fiscal – Dez anos, ainda um “crime de resultado cortado?” 
[3] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008; proferido no proc. n.º 07P020, in www.stj.pt.
[4] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 04.12.2008; proferido no processo n.º 08P2507, disponível em www.stj.pt