Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
775/22.6T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: MEDIDAS DE PROMOÇÃO DOS DIREITOS E DE PROTECÇÃO
CONFIANÇA COM VISTA À ADOPÇÃO
VÍNCULOS PRÓPRIOS DA FILIAÇÃO
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 35.º, N.º 1, ALÍNEA G), E 38.º-A, AMBOS DA LPCJP, E ARTIGO 1978.º, N.º 1, ALÍNEA D), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Os «vínculos afetivos próprios da filiação», a que alude o n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil, resultam de um processo que se prolonga no tempo, sujeito, inclusive, a retrocessos e, por isso, exigem para se formarem e manterem que os pais se dediquem aos filhos de forma permanente, verificando e satisfazendo as suas necessidades físicas e emocionais, corrigindo-lhes as suas ações desadequadas e mostrando-lhes por palavras e ações o afeto que sentem por eles e fazendo-lhes sentir que eles têm valor para os pais e que aquela relação tem existido assim, existe e existirá para sempre.

II -  Se os pais não conseguem cumprir os deveres de pais e causam por essa razão a institucionalização dos filhos nos meses seguintes ao seu nascimento, com tal comportamento impedem, no presente, a formação dos “vínculos próprios da filiação” e, salvo se os factos apontarem em sentido diverso, idêntico prognóstico tem de ser feito em relação ao futuro, pelo que o interesse dos filhos indica, nestes casos, que o caminho a seguir é o da confiança com vista a futura adoção.

Decisão Texto Integral:

Relator: Alberto Ruço
Adjuntos: Vitor Amaral
Luís Cravo

I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto do acórdão que decidiu submeter a menor AA, nascida a .../.../2022, à medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, prevista no artigo 35.º, n.º 1, al. g) da LPCJP.

b) Vem interposto por parte de ambos os pais, separadamente.

1 - As conclusões do recurso apresentado por BB, pai da menor, são as seguintes:

«1.º Por acórdão datado de 24/10/2022, foi decidido aplicar à menor AA, nascida em .../.../2022, a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção, mantendo a criança confiada ao C..., da ..., (…), ficando os pais inibidos do exercício das responsabilidades parentais (art.º 62.º-A, Nº 3, da L.P.C.J.P. e art.º 1978.º - A, do Código Civil), e ainda as visitas à menor, tal como os contactos por outras vias, ficam proibidos à mãe e à restante família natural da criança, nos termos do art.º 62.º - A, nº 6, da L.P.C.J.P., tendo em vista o nº 1 do art.º 1986.º do Código Civil;

2.º O progenitor, discorda da medida aplicada, pois não estão comprometidos os laços afetivos com a sua filha e não estão, ainda e de modo nenhum, esgotadas as possibilidades da sua própria recuperação (com a aplicação coerente dos meios de apoio social que lhe deverão ser prestados) ou de integração no seio da família alargada (avós paternos, também com o devido apoio e acompanhamento);

3.º O processo de promoção e protecção visa a protecção e a manutenção da família biológica, devendo, pois, ser tido em conta o interesse superior da criança (interesse que passa pela sua integração no seio da sua família biológica ou alargada, investindo na melhoria e/ou recuperação das suas disfuncionalidades;

4.º Da factualidade dada como provada, ressalta que os progenitores diligenciaram pelo registo da menor AA bem como pela sua inscrição na ..., para a continuidade dos cuidados médicos, que os progenitores promoveram a inscrição da menor, na creche ..., que os progenitores e os avós paternos têm visitado a menor AA no C... em ..., local onde se encontra temporariamente acolhida, de acordo com o estipulado pelo regulamento do referido Centro, tendo o pai comparecido em todas as visitas.

Mais se deu como provado que nessas visitas os pais e avós mostram-se afetuosos com a criança, tendo a avó paterna chorado uma vez com saudades da neta;

5.º A adoção, só pode ser aplicada depois de esgotadas as possibilidades de integração na família biológica;

6.º O progenitor, embora com dezassete anos de idade, tem vínculos afetivos fortes com a menor e que não cremos que estejam comprometidos, pois desde o nascimento da sua filha que se tem esforçado por se dedicar de forma permanente e atenta, verificando e satisfazendo as suas necessidades físicas e emocionais, nomeadamente para a sua saúde e são crescimento pessoal e social, evidenciando por atos concretos, o autêntico afeto que sente por ela e o valor e significado dos vínculos que os unem;

7.º Sempre que a menor esteve aos seus cuidados, o progenitor, dela cuidou e se aquando das visitas à menor, parecia uma criança encantada com uma bebé acabada de nascer, é porque o seu amor pela sua filha é totalmente verdadeiro e sincero;

8.º Porém, este progenitor tem uma particularidade - ser de etnia cigana, facto que não podemos ignorar e que é determinante na vida e no modo de pensar deste progenitor e da comunidade em que está inserido, e que foi sancionado por uma conduta – o absentismo escolar – que na sua cultura não é perniciosa e, se é verdade que anteriormente não valorizou a sua formação escolar, não é menos verdade que agora, com mais experiência de vida e com mais amadurecimento, pretende frequentar formação profissional que lhe possibilite terminar a escolaridade mínima obrigatória e ingressar no mercado de trabalho, só não estando presentemente a frequentar em virtude de não ter possibilidades económicas para custear as despesas de transporte em virtude de a área da sua residência não estar provida de uma rede de transportes públicos;

9.º O progenitor, por integrar um agregado familiar de etnia cigana que segue as regras, tradições e princípios culturais próprios desta comunidade, a qual desvaloriza a frequência da escola e, por isso, não é um hábito enraizado nesta comunidade, o que se deve em grande parte à história de perseguição e exclusão da comunidade cigana, ele próprio, contrariando a tendência, o desincentivo e as tradições da comunidade cigana, nomeadamente, matriculou a menor AA na creche ...;

10.º Neste caso concreto, verifica-se um confronto de diversos direitos: o direito dos pais à educação e à manutenção dos filhos (art. 36.º, n.º 5 da CRP); o direito à identidade da criança previsto no art. 8.º da Convenção sobre os direitos da criança); o direito a não ser separado dos seus pais contra a vontade destes previsto no art. 9.º da Convenção sobre os direitos da criança; o direito da criança à liberdade de pensamento, consciência e de religião previsto no art. 14.º da Convenção sobre os direitos da criança e o direito a não ser privada do direito de, conjuntamente com os membros do seu grupo, ter a sua própria vida cultural;

11.º Pelo que, atendendo e dando primazia à situação especial de saúde da menor AA, que carece de seguimento médico, situação, que ao contrário daquilo que é referido no acórdão, o progenitor e os avós maternos valorizam e admitindo-se, a existência de uma situação de perigo desta criança, questiona-se a opção do tribunal recorrido pela aplicação da medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adopção, considerando-a a única medida adequada neste momento à remoção do perigo concreto existente para o desenvolvimento da criança;

12.º O artigo 4.º da LPCJP estipula os princípios orientadores a ter em consideração na escolha da medida de promoção e proteção a aplicar, dos quais destacamos o interesse superior da criança e do jovem (alínea a)), o princípio da proporcionalidade e atualidade (alínea e)) e o princípio da prevalência da família (alínea h)). O interesse superior da criança determina a necessidade de promoção e proteção da sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, mas, não se basta apenas com a educação e formação. É também necessário promover a sua segurança, saúde e bem-estar para assegurar o seu desenvolvimento integral. É necessário proporcionar-lhes e permitir-lhes a vivência no seio da sua família, pois, a família é uma referência essencial para as crianças para lhes permitir o seu são desenvolvimento e a sua estabilidade física e psicológica;

13.º Não respeita o interesse superior da criança a decisão do tribunal que se foca apenas na proteção da sua saúde e esquece de forma iníqua, não respeitando e fazendo tábua rasa do seu direito à prevalência da família e ao seu direito à identidade e etnia cigana, todos os outros vetores necessários ao seu são desenvolvimento;

14.º O próprio legislador privilegia e dá preferência às medidas que integrem as crianças em família, de acordo com o princípio da prevalência da família consagrado na alínea h) do art. 4.º da LPCJP, princípio que também se retira do art. 36.º, n.º 6 da C.R.P e do art. 9.º da Convenção sobre os direitos das crianças;

15.º Desta forma entende-se que o interesse da criança ou jovem, deve ser realizado na medida do possível no seio da sua família e a aplicação das medidas que provoquem o afastamento da criança ou do jovem da família deve ser o último recurso;

16.ºPorém, neste caso concreto, mesmo perante a possibilidade de aplicação de uma medida alternativa em meio natural de vida, nomeadamente, a medida de apoio junto de outro familiar (avós paternos), o tribunal negou essa possibilidade, preterindo o princípio da prevalência da família, negando a esta criança a possibilidade de viver com a sua família;

17.º Assim, atendendo às finalidades das medidas de proteção das crianças e jovens e sublinhando-se que as medidas são elencadas pela ordem de prevalência e preferência, preferindo-se as medidas a executar no meio natural de vida, entendemos não ser de aplicar, neste caso, a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção, por se considerar excessiva e contrária às finalidades que se pretendem alcançar, tendo em conta o princípio da proporcionalidade;

18.º Com a aplicação desta medida de promoção e proteção a esta criança estar-se-á antes a promover a sua revolta, tristeza e angústia, por à nascença, não lhe ter sido reconhecido o direito à sua identidade étnica – o seu direito a viver uma infância inserida na sua família e na sua comunidade, discriminando a sua família em virtude de não lhe ter sido reconhecido capital de mudança;

19.º Inevitavelmente, ao ser arrancada do seu seio familiar estar-se-á a provocar o desenraizamento desta criança nada garantindo que o processo de adoção será concretizado ou bem sucedido, podendo, ao contrário, acontecer que esta criança permaneça institucionalizada sem se chegar a encontrar qualquer casal ou pessoa adotante interessado em adotá-la, atendendo à sua situação relativa à sua saúde e etnia cigana, podendo, ai  sim, a sua estrutura e estabilidade emocional ficar gravemente afetada, sentindo-se para sempre órfã de uma identidade própria e da família biológica, que esteve e está disponível para a acolher e amar incondicionalmente;

20.ºConsideramos, pois, que a medida aplicada é desproporcionada e inevitavelmente propiciadora e suscetível de graves consequências que embora num futuro muito próximo não sejam visíveis, será, certamente desencadeadora de reatividade contrária ao objetivo prosseguido com os presentes autos de promoção e proteção;

21.º Por todo o circunstancialismo que deve ser sopesado, entendemos que não se mostram ainda esgotadas todas as possibilidades de integração na família biológica, ou mais concretamente junto do progenitor e no agregado em que ele próprio se encontra integrado, antes pelo contrário, mostra-se a solução mais justa e respeitadora do seu superior interesse.

Efetivamente, ninguém nasce a saber ser pai ou mãe, muito menos de uma criança com cuidados especiais, é uma aprendizagem mútua e constante.

Assim, não se pode argumentar que o progenitor apresenta défices ao nível das competências parentais, pois todos apresentamos, quando nos deparamos pela primeira vez com uma criança, especialmente se esta tiver necessidades especiais;

22.ºO próprio progenitor peticionou que lhe fosse possibilitado a frequência de programas para reforço das suas competências parentais e outrossim, requereu ainda avaliação das suas competências parentais, medidas e meios de prova que o Tribunal a quo desmereceu;

23.º No caso sub judice, o tribunal a quo, após proceder a extensas considerações, apoiadas em parte em depoimentos indiretos, imprecisos e sem a recurso a qualquer relatório médico ou perícia/avaliação médica, quer quanto à menor quer quanto ao progenitor, limitando-se a classificá-lo como um indivíduo intelectualmente muito limitado, algo infantil, repete-se, sem qualquer base/prova científica, proferiu decisão aplicando a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção;

24.º O progenitor/agravante discorda, reitera-se, dessa medida e pede, neste recurso, a sua revogação, aduzindo, além do mais, que o tribunal não valorou todos os elementos de prova existentes nos autos, não ordenando nomeadamente a perícia /avaliação das competências parentais do progenitor, como requerido.

25.ºNão olvidando do passado do progenitor, mas atendendo agora ao quadro atual de vida deste e do seu agregado familiar, diremos, que se trata de uma família que reúne as condições necessárias para que a menor lhe seja confiada;

26.º O progenitor vive com os seus pais, avós paternos da AA, com condições de habitabilidade adequadas às necessidades do agregado familiar.

Ademais, os avós paternos da AA, que estão conscientes da sua situação especial de saúde e dos cuidados médicos necessários para o seu desenvolvimento, têm, outrossim, a seu cargo 4 menores no âmbito dos seus processos respetivos de P.P.P., de quem sempre cuidaram e desde a primeira hora se disponibilizaram para que lhe fosse confiada a menor AA;

27.º Quer o progenitor, quer os avós paternos, demonstraram sempre interesse na criança e vínculos afetivos por esta, sempre acompanharam a criança e desde que esta foi institucionalizada, fizeram visitas, nas visitas interagiram com a menor, questionaram a equipa técnica sobre o estado da filha, sobre as suas necessidades e mantiveram sempre os contactos telefónicos, nunca se tratou de um progenitor Ausente!

28.º Não se vêm nos autos razões sérias e plausíveis para não se decidir ainda pela medida de apoio junto do progenitor, podendo o mesmo beneficiar de programas para desenvolver as suas competências parentais, não podendo ignorar-se o facto de se tratar de um jovem pai e, portanto, naturalmente, terá sempre que efetuar-se a necessária adaptação, aprendendo a conviver com criança pequena, com uma situação especial de saúde, criando hábitos, rotinas, único caminho possível ao estabelecimento de laços afetivos entre ambos e ao sucesso desta outra opção;

29.º Sem que esse caminho seja efetuado, com os riscos de retrocesso ou insucesso que todos os caminhos têm (incluindo, como bem se sabe, o da adoção), mas sem menosprezar também as possibilidades que nele se encerram, desde que empenhados todos os esforços exigíveis ao acompanhamento e apoio deste agregado familiar, não se pode, sem mais, colocar de parte, e sem esgotar as suas possibilidades, esta alternativa;

30.º Por conseguinte, deve-se correr o risco, sabendo que, se estará a procurar, de forma prudente e razoável, atingir o superior interesse da menor AA, no contexto da sua família natural, e a procurar salvar os vínculos afetivos existentes, devendo a medida a aplicar ser a de APOIO JUNTO DOS PAIS, neste caso, junto do progenitor, com o devido acompanhamento e apoio social no desempenho das suas funções parentais e a necessária ajuda económica (artigos 35º, al. a) e 39º, da LPJCP);

31.º Em alternativa à adopção, e caso a medida a aplicar não ser a de Apoio Junto dos Pais, neste caso, junto do progenitor, entende o progenitor que  deverá ser ainda aplicada a medida de acolhimento da menor junto dos avós paternos, medida já aplicada noutros P.P.P, relativos a primos da menor AA, dando oportunidade a estes de demonstrarem se têm capacidade para  da neta cuidarem e zelarem pelo seu bem-estar físico e emocional, ainda que para o efeito seja necessário um estreito e rigoroso controlo por parte das várias equipas de intervenção, salvaguardando também, desta forma, o convívio e criação de vínculo familiar da menor com a sua família alargada;

32.º Caso assim não se entenda, o progenitor, entende que poderá ainda ser salvaguardado o superior interesse da menor, com a manutenção da menor na situação de acolhimento na instituição onde se encontra, com a duração de um ano, no decurso da qual e sempre com a supervisão da Senhora Técnica da Segurança Social que tem acompanhado a menor, seria de implementar um regime de visitas gradualmente mais aberto;

33.º Nesse período, em que o progenitor e os avós paternos estariam sujeitos a um “regime de prova”, ou seja, onde iriam sendo avaliadas as suas competências por uma última vez, as visitas estariam confinadas a visitas à menor na instituição pelo período de cerca de seis meses, findo o qual deveria evoluir para visitas já processadas fora da instituição, evoluindo de seguida para a possibilidade de visitas da menor à casa do progenitor aos fins de semana

34º Deste modo, entende-se que será salvaguardado o verdadeiro interesse da menor, que é, sempre que possível e no caso dos autos entende-se que o é, a manutenção da menor no seio da família biológica articulando com o acolhimento residencial no C..., onde se encontra.

Termos em que se julgue o recurso procedente e, consequentemente, seja o acórdão recorrido revogado aplicando-se em lugar da medida de confiança a pessoa que venha a ser selecionada para adoção e, no imediato, a instituição com vista a futura adoção, pela medida supra indicada de apoio junto dos pais, neste caso junto do progenitor, com o devido acompanhamento e apoio social no desempenho das suas funções parentais e a necessária ajuda económica, ou em alternativa pela medida de apoio junto de outro familiar (avós paternos), ou ainda em alternativa À ADOPÇÃO a manutenção da menor em acolhimento em instituição pelo período de um ano, com o regime de visitas preconizado.

Decidindo-se de acordo com o alegado, suprindo, doutamente, o que há a suprir, VV. Exas. farão como é hábito, a CORRECTA E SÃ JUSTIÇA»


*

2 - As conclusões do recurso apresentado por CC, mãe da menor são as seguintes:

«A) Pelo presente recurso, a progenitora vem manifestar a sua discordância relativamente ao acórdão datado de 24/10/2022, onde foi decidido aplicar à menor AA, nascida em .../.../2022, a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, mantendo a criança confiada ao C..., da ..., ficando os pais inibidos do exercício das responsabilidades parentais (art.º 62.º-A, nº 3, da L.P.C.J.P. e art.º 1978.º - A, do Código Civil), e ainda as visitas à menor, tal como os contactos por outras vias, ficam proibidos à mãe e à restante família natural da criança, nos termos do art.º 62.º - A, nº 6, da L.P.C.J.P., tendo em vista o nº 1 do art.º 1986.º do Código Civil.

B) É precisamente desta medida aplicada que vem a progenitora, no exclusivo interesse da menor, discordar, por entender que a mesma não acautela, nem segue o seu superior interesse.

C) Destarte, a progenitora, discorda da medida aplicada, pois não estão comprometidos os laços afetivos com a sua filha e não estão, ainda e de modo nenhum, esgotadas as possibilidades da sua própria recuperação (com a aplicação coerente dos meios de apoio social que lhe deverão ser prestados) ou de integração no seio da família alargada (avós paternos, também com o devido apoio e acompanhamento).

D) Com efeito, da matéria dada como provada, não se pode inferir que os progenitores não têm amor e carinho pela menor. Resultou provado precisamente o contrário. Que não faltam a nenhuma visita na instituição onde esta está acolhida.

E) Os progenitores e os avós paternos têm visitado a filha AA no C..., em ..., local onde a menor se encontra temporariamente acolhida, de acordo com o estipulado pelo regulamento do referido Centro, sendo que as suas visitas são às segundas-feiras das 15H00 às 16H00, em número de treze até agora, tendo o pai comparecido em todas e a mãe em sete visitas (ponto 148). Nessas visitas os pais e avós mostram-se afetuosos com a criança, tendo a avó materna chorado, com saudades da neta” (ponto 149).

F) Facto é que, os progenitores são muito pobres. Não têm todas as condições objetivas, porquanto vivem num acampamento cigano, situado na ..., Freguesia ..., concelho .... Não dispõem de água canalizada (têm de ir buscar a água de que precisam a mais de 1 km de distância), não há rede de esgotos nem gás canalizado, e por vezes não revelam competências para, cabalmente exercerem as suas responsabilidades parentais. Porém, na medida das suas possibilidades, não obstante todas as carências que lhe são reconhecidas, têm proporcionado à sua filha as condições necessárias para a sua subsistência.

G) Até, porque cabe aos pais e às pessoas que têm a criança a seu cargo a responsabilidade de assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida necessárias ao seu desenvolvimento (art.º 27º, nº 2, da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Estado Português).

H) A AA teve consulta na Maternidade ..., em 1/4/2022, estando acompanhada por ambos os pais, bem cuidada e com boa evolução ponderal. A mãe demonstrou preocupação relativamente ao estado clínico da filha na última semana, verbalizando que a filha estava muito constipada e por vezes ficava roxa durante a respiração.

Ficou com nova consulta agendada para o dia 6/5/2022. Durante a permanência no Centro de Acolhimento, a progenitora, diariamente, quando estava psicologicamente estável, prestava alguns cuidados básicos à filha, seja na amamentação ou higiene. Durante o internamento apresentou-se estável, com bom estado geral, a mamar na mama e na tetina com bons reflexos. Não houve intercorrências durante o internamento. A mãe foi ensinada sobre os cuidados de higiene à criança, o posicionamento e a preparação do leite;

Em 01/5/2022, AA é levada pelos pais de urgência ao Hospital ..., por traumatismo, após "embate em porta quando seguia ao colo da mãe". Foi avaliada em neurocirurgia, realizou radiografia craniana e teve alta. Ao ter alta clínica, ficou claro que nunca existiu qualquer traumatismo, na criança, quando seguia ao colo da mãe, como de resto resultou apurado no estudo radiológico. Até porque qualquer “traumatismo craniano”, pela sua gravidade e ou necessidade de vigilância, implicaria o seu internamento. Estamos perante um recurso estilístico, lançando mão ao exagero, na elaboração do relatório. Em 5/5/2022, a bebé teve a consulta dos 2 meses no Centro de Saúde e levou vacina. A AA mostrava-se higienizada e vestida devidamente, aquando da visita da Técnica Gestora, em 12/5/2022. Depois de acordar chorou, e foi-lhe preparado um biberão. Engasgou-se e a mãe CC foi expedita em virá-la de barriga para baixo e em fazer-lhe movimentos nas costas. Os progenitores diligenciaram pelo seu registo bem como pela sua inscrição na extensão de Saúde de ..., para a continuidade dos cuidados. Os progenitores promoveram a inscrição da menor AA, na creche d a ....

I) Tudo, isto constituí resultados assinaláveis, não obstante os progenitores exibirem algumas fragilidades em termos de práticas educativas e de gestão da vida quotidiana, parcialmente por conta dos hábitos da etnia do pai e da idade dos elementos do casal.

J) No entender da progenitora, não terá sido devidamente explorada a possibilidade de entrega da menor aos avós paternos (medida prevista na al. e) do art.º 35º da Lei 147/99 na redação introduzida pela 26/2018, de 05/07, actualmente em vigor.

K) Os avós paternos querem e podem acolher a menor, conforme resultado dos seguintes pontos da matéria dada como provada: Os avós paternos estão disponíveis para supervisionar os progenitores nos cuidados à bebé ou, em alternativa, passarem a ser os cuidadores da criança. Na hipótese de lhes ser negada a medida de apoio junto aos pais, os progenitores veem como uma alternativa para a sua filha a medida de apoio junto dos avós paternos. Esta também é a vontade dos progenitores. Esta decisão seria aquela que melhor se adequaria a salvaguardar os superiores interesses da menor, porque evitaria a rutura total e definitiva com a família biológica.

L) A adoção, só pode ser aplicada depois de esgotadas as possibilidades de integração na família biológica;

M) Ao assim não ter decidido o douto acórdão desrespeitou o princípio da prevalência da família na promoção de direitos e na proteção.

N) A aplicação desta medida desrespeita o disposto no art.º 39º da Lei de Proteção e Promoção de Crianças e Jovens em Perigo, bem como os princípios, tais como o da prevalência da família, da responsabilidade parental e, sobretudo, o do superior interesse da menor.

O) O artigo 4.º da LPCJP estipula os princípios orientadores a ter em consideração na escolha da medida de promoção e proteção a aplicar, dos quais destacamos o interesse superior da criança e do jovem (alínea a)), o princípio da proporcionalidade e atualidade (alínea e)) e o princípio da prevalência da família (alínea h)). É necessário proporcionar-lhes e permitir-lhes a vivência no seio da sua família, pois, a família é uma referência essencial para as crianças para lhes permitir o seu são desenvolvimento e a sua estabilidade física e psicológica.

P) O próprio legislador privilegia e dá preferência às medidas que integrem as crianças em família, de acordo com o princípio da prevalência da família consagrado na alínea h) do art. 4.º da LPCJP, princípio que também se retira do art. 36.º, n.º 6 da C.R.P e do art. 9.º da Convenção sobre os direitos das crianças;

Q) Desta forma entende-se que o interesse da criança ou jovem, deve ser realizado, na medida do possível, no seio da sua família. Devendo ser implementadas medidas que impeçam o afastamento da criança ou do jovem da família.

R) Porém, neste caso concreto, mesmo perante a possibilidade de aplicação de uma medida alternativa em meio natural de vida, nomeadamente, a medida de apoio junto de outro familiar (avós paternos), o tribunal negou essa possibilidade, preterindo o princípio da prevalência da família, negando a esta criança a possibilidade de viver com a sua família;

S) Assim, atendendo às finalidades das medidas de proteção das crianças e jovens e sublinhando-se que as medidas são elencadas pela ordem de prevalência e preferência, preferindo-se as medidas a executar no meio natural de vida, entendemos não ser de aplicar, neste caso, a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção, por se considerar excessiva e contrária às finalidades que se pretendem alcançar, tendo em conta o princípio da proporcionalidade;

T) Ao ser retirada do seu seio familiar estar-se-á a provocar o desenraizamento desta criança, quando não é certo que a adoção possa ser a melhor solução para esta menor, uma vez que tendo reconhecidos problemas de saúde e de desenvolvimento, poderá vir a ser rejeitada pela família adoptante ou nem sequer reunir os requisitos para a adoção.

Por outro lado, sendo cigana e reconhecendo-se os estigmas e preconceitos que incidem em particular sob esta etnia, poderá tal facto contribuir decisiva e irremediavelmente para o total insucesso da promovida adoção. Certo é que a sua família biológica a ama, exatamente como ela é.

U) Deles não deve, em princípio, ser separada. Ora, não é pelo facto destes pais serem jovens (17 e 20 anos), não estarem preparados para os desafios da parentalidade e terem sérias dificuldades económicas que condicionam o seu modo de vida que se retira a criança do seio familiar.

O amor dos pais e dos avós, demonstrado ao longo dos 8 (oito) meses de  vida da menor, os cuidados médicos proporcionados, o espirito de sacrifício demonstrado, mesmo quando não tinham meios económicos para se deslocar aos hospitais situados a mais de 50 km de distância, bem como as visitas que sempre fizeram ao Centro de Acolhimento sito em ..., localizada a cerca de 60 km, demonstram simplesmente que pode não haver o dinheiro suficiente para tudo dar (conforme parece ser a exigência das técnicas da Segurança Social) mas, têm afeto e carinho suficiente para a amar. E, nestes caso, o amor faz a diferença.

V) Dos factos provados, resulta claramente a vontade dos progenitores de estarem com a filha: Se o amor e o carinho são essenciais e preponderantes na relação parental e um sinal de extrema importância quando se discute o afastamento da filha da família biológica, as competências dos pais têm também grande relevância na caraterização do caso concreto, sendo imperativo dotá-los das ferramentas necessárias para o cumprimento dessa função e dar-lhe as oportunidades necessárias á sua efectiva concretização.

W) No caso sub judice, o tribunal a quo proferiu decisão, aplicando a medida de confiança da menor a instituição, com vista a futura adopção, após ter formado a sua convicção, nos relatórios sociais, os quais foram elaborados com recurso a depoimentos indiretos, imprecisos e conclusivos, neles se opinando sobre questões médicas, sem ter apresentado qualquer relatório médico ou perícia/avaliação médica, designadamente no que se refere à progenitora, menor e progenitor.

X) Não se vislumbram nos autos, razões plausíveis para que se não decida pela medida de apoio junto dos progenitores, podendo os mesmos beneficiar de programas para desenvolver as suas competências parentais. Por se tratar de um jovem casal, terá sempre de se dar tempo para a necessária adaptação, na convivência com a criança que refira-se, tem apenas 8 (oito) meses de idade e apresenta uma situação especial de saúde. Tal medida visa criar hábitos, rotinas, por forma a reforçar laços afetivos entre ambos.

Y) Devem ser mobilizados todos os esforços exigíveis ao acompanhamento e apoio deste agregado familiar, não se pode é, sem mais, colocar de parte tal possibilidade, sem esgotar as suas virtualidades.

Z) O superior interesse da menor AA, é a questão primordial, devendo este ser realizado no contexto da sua família natural, por forma a salvaguardar os vínculos afetivos existentes e devendo a medida a aplicar ser a de apoio junto dos pais, neste caso com o devido acompanhamento e apoio social no desempenho das suas funções parentais e a necessária ajuda económica (artigos 35º, al. a) e 39º, da LPJCP)

AA) Em alternativa à adopção, e caso a medida a aplicar não seja a de Apoio Junto dos Pais, entende a mãe que deverá ser aplicada a medida de acolhimento da menor junto dos avós paternos, ainda que para o efeito seja necessário um estreito e rigoroso controlo por parte das várias equipas de intervenção, salvaguardando também, desta forma, o convívio e criação de vínculo familiar da menor com a sua família alargada;

BB) Caso assim não se entenda, a progenitora considera que poderá ainda ser salvaguardado o superior interesse da menor, com a manutenção desta, por acolhimento na instituição onde se encontra, com a duração de um ano, no decurso da qual e sempre com a supervisão da Senhora Técnica da Segurança Social que tem acompanhado a menor, devendo neste caso ser implementado um regime de visitas as quais poderiam, ser gradualmente alargadas.

CC) Nesse período, os progenitores e os avós paternos estariam sujeitos a um “regime de prova”. Iriam, assim ser avaliadas as suas competências numa derradeira oportunidade.

DD) Deste modo, entende-se que será salvaguardado o verdadeiro interesse da menor, que é a manutenção desta no seio da família biológica, articulando com o acolhimento residencial no C..., onde se encontra.

Termos em que e nos mais de direito doutamente supridos por V.Exªs, deve o

presente recurso ser julgado procedente por provado e consequentemente, ser o acórdão recorrido revogado, substituindo-o por outro que:

a) Decrete a medida de apoio junto dos pais, com o devido acompanhamento e apoio social, no desempenho das suas funções parentais, ou se assim se não entender,

b) Se decida pela medida de apoio junto de outro familiar (avós paternos), ou caso assim se não entenda,

c) A manutenção da menor em acolhimento em instituição pelo período de um ano, com o regime de visitas preconizado, assim se fazendo sã e serena JUSTIÇA.»

c) A Ex.ma magistrada do Ministério Público contra-alegou e concluiu nos seguintes termos:

«I - Por não se conformar com o douto acórdão que aplicou à criança AA, nascida a .../.../2022, vieram o Recorrente - progenitor e a Recorrente – progenitora apelar, por entenderem não dever ser aplicada à criança a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, prevista no artigo 35.º, n.º 1, al. g) da LPCJP.

II – Sucede que, no concernente à matéria de facto dada como provada e não provada, a convicção do tribunal fundou-se na apreciação do conjunto da prova testemunhal e documental, criticamente analisada.

III – Matéria de facto essa que nenhum dos Recorrentes impugnou, pretendendo, agora, retirar da prova testemunhal ilações distintas das que o Tribunal a quo percecionou e explicitou detalhadamente na respetiva fundamentação.

IV - Pelo que a modificação quanto à valoração da prova, tal como foi captada e apreendida pelo Tribunal a quo, só se justificaria se, feita a reapreciação, fosse evidente a grosseira análise e valoração que foi efetuada pelo tribunal, o que não é caso dos autos.

V – Ora, in casu, é manifesto, perante a factualidade provada e que não foi impugnada pelos Recorrentes, que qualquer dos progenitores descurou os cuidados de saúde e de higiene que a sua filha AA necessitava, pondo em perigo a sua saúde, a sua formação, a educação e bem assim o seu desenvolvimento harmonioso e equilibrado, tudo se resumindo na incapacidade dos progenitores na manutenção e educação dos filhos, mostram-se preenchidos os pressupostos de facto da al. d) do  art.º 1978.º, n.º 1 do C. Civil.

VI – Assim, tendo apurado o tribunal que, in casu, ocorre uma situação em que se verifica a inexistência de vínculos afetivos próprios da filiação entre pais e filhos ou uma situação em que tais vínculos estejam “seriamente comprometidos” decidiu ordenar a confiança de uma criança com vista a futura adoção.

VII – O superior interesse da criança na manutenção dos seus laços biológicos de filiação, pressupõe que a realidade familiar que estes traduzem reflita a afetividade recíproca entre ela e os pais, e as condições físicas e psicológicas que o ambiente familiar lhe deverá proporcionar, por forma a assegurar o seu são e integral desenvolvimento.

VIII - Sendo que esta menina está em acolhimento há mais tempo do que esteve em meio natural de vida.

IX - Os factos que os progenitores não impugnaram são, por si, suficientes para perceber a total ausência de capacidade parental desta mãe e deste pai da criança.

X - O entendimento de que as necessidades básicas da criança AA, nomeadamente em termos de precoce e exigente desenvolvimento emocional, com vinculação à sua figura primacial de referência em termos afetivos e securizantes, não pode deixar de ser qualificado como inexistente, ou francamente deficitário e insuficiente, no caso dos progenitores.

XI - Independentemente das circunstâncias pessoais dos progenitores era-lhes, em nosso entendimento, exigível um comportamento parental diferente de modo a estabelecer com a AA laços afetivos consentâneos com uma desejada parentalidade / filiação e, bem assim, garantir as condições que lhes permitissem prover ao são e integral desenvolvimento da sua filha.

XII - O que, de todo, in casu, não se verificou e nem se verifica da parte dos progenitores nem dos avós paternos da menina.

XIII - Não é o facto de os progenitores serem jovens ou de, como quaisquer pais com o nascimento do(a) primeiro(a) filho(a), não terem experiência que inviabilizou que estes progenitores estabelecessem com a filha os referidos laços afetivos e securizantes.

XIV - Foram os comportamentos mantidos desde o nascimento da menina por banda dos pais e dos avós paternos desta que manifestaram falta de atenção, falta de empenho e falta de cuidados de saúde, de higiene e de bem-estar que o evidenciaram de forma notória.

XV - O facto de os progenitores e os avós terem visitado a AA, no C..., salvo o devido respeito por opinião contrária, não nos permitem concluir pela existência e manutenção de laços com a criança nem revelam a efetiva reunião de condições económicas e pessoais para o efeito, que não têm, assim como não asseguram uma progressiva aproximação afetiva entre ela e o respetivo agregado familiar.

XVI - Dos autos resulta a inexistência de uma forte relação afetiva entre a AA e os progenitores, seja com a mãe, seja com o pai, o mesmo se dizendo com os avós paternos, os quais não reconhecem sequer a possibilidade de a menina necessitar de cuidados especiais de saúde, como necessita, desvalorizando o acompanhamento médico em consulta de neurologia na Maternidade e demais consultas, uma vez que tinha feito um RX recentemente e, em sua opinião, não acusava nenhuma anormalidade.

XVII - Ora, in casu, é manifesto, perante a factualidade provada e que não foi impugnada pelo recorrente e pela recorrente, que qualquer dos progenitores descurou os cuidados de saúde e de higiene de que a sua filha AA necessitava, pondo em perigo a sua saúde, a integridade física e até vida, a sua educação e bem assim o seu desenvolvimento harmonioso e equilibrado, tudo se resumindo na incapacidade dos progenitores na manutenção e educação dos filhos, mostram-se preenchidos os pressupostos de facto da al. d) do art.º 1978.º, n.º 1 do C. Civil.

XVIII - Mal se compreenderia que se colocasse uma menina com 8 meses de idade, com as peculiaridades da AA, aos cuidados de um pai com reconhecidas e comprovadas dificuldades cognitivas conducentes a importantes limitações ao nível das capacidades parentais essenciais para o exercício da parentalidade, sendo estas de natureza estrutural e por isso não aberto a mudança.

XIX - Não bastando pegar na menina ao colo aquando das visitas no centro de acolhimento, o que só aí aprendeu pois até então não sabia fazer, ou tirar fotografias a dar beijos na boca da filha para publicitar no “Tic Toc” para que, sem mais, possamos concluir, como pretende o Recorrente, que este lhe poderá assegurar os cuidados de saúde e de higiene de que a sua filha AA necessita e necessitará e, bem assim, zelar pela sua saúde, bem-estar e desenvolvimento em segurança e harmonioso.

XX - Esta criança, face à patologia diagnosticada, exige da parte do progenitor e demais família uma presença adulta, permanente, responsável, atenta, consciente e que zele por ela, o que no caso não resulta dos factos provados.

XXI - Se é um facto que os avós têm a seu cargo 4 netos, também não é menos verdade que a essas crianças foram aplicadas medidas de promoção e proteção, sem olvidar que ao próprio filho, pai da AA, foi aplicada medida de promoção e proteção.

XXII - O que é revelador de contantes e reiteradas situações de perigo em que todas as crianças se encontravam.

XXIII - O Tribunal a quo valorou adequadamente a postura dos pais da AA, percecionada pelas Técnicas e a relação estabelecida que a AA estabelecia com eles e com os avós paternos.

XXIV - Assim, dos factos provados terá de se concluir que a criança, em face do comportamento dos pais e dos avós paternos, é por estes negligenciada em toda a linha, seja em termos de saúde, educação e bem-estar, bem como em termos afetivos.

XXV - A família exerce uma função que visa a proteção biopsicossocial dos seus membros, facilitadora do seu crescimento e sociabilidade e funcionando como veículo de transmissão de cultura.

XXVI - Uma vez que a família biológica da criança AA não consegue assegurar as necessidades globais desta, a sociedade e o Estado podem e devem ser interferir na vida privada familiar, no sentido de proporcionar condições indispensáveis que permitam a esta crescer de forma saudável.

XXVII - Assim, urge dar à criança AA, em tempo útil, outra família que vise estes mesmos objetivos e com os técnicos que a rodeiam a prepará-la para esta mudança, responder atempadamente às necessidades da criança em perigo e privada do meio familiar adequado, de modo a que esta fique o menos tempo possível na instituição.

XXVIII - Inviabilizada qualquer outra solução no âmbito da família biológica, a proteção da criança AA não pode continuar exclusivamente centrada na ideia de recuperação da família biológica, olvidando que o tempo da criança não é o mesmo das suas famílias de origem.

XXIX - Não há qualquer progresso da família biológica que justifique que a AA continue a aguardar por uma aquisição de competências parentais que tarda e não chega, pelo que a prorrogação da medida de acolhimento residencial não acautela os seus interesses.

XXX - Esgotadas as possibilidades de a criança usufruir de um crescimento feliz, saudável e seguro dentro da sua família biológica, mesmo alargada, com o apoio do Estado e da sociedade, resta a adoção como a resposta adequada.

Termos em que e nos mais de Direito, julgando improcedentes os recursos e, consequentemente, mantendo na íntegra o douto acórdão recorrido, farão, Vossas Excelências, JUSTIÇA!»

II. Objeto do recurso.

As questões que este recurso coloca são as seguintes:

Verificar se a medida de confiança para futura adoção deve manter-se ou se, ao invés, a menor deve beneficiar da  medida de apoio junto dos pais, seja apenas junto do pai, ou de ambos os progenitores, com o devido acompanhamento e apoio social no desempenho das suas funções parentais e a necessária ajuda económica, ou em alternativa, da medida de apoio junto de outro familiar (avós paternos), ou, por fim, a manutenção da menor em acolhimento em instituição pelo período de um ano, com regime de visitas.

III. Fundamentação

1. Matéria de facto – Factos provados

1. AA nasceu a .../.../2022 e é filha de BB e de CC, então de 16 e 20 anos de idade, respetivamente.

2. Quanto à mãe, é a terceira de uma fratria de cinco. O irmão mais velho e o irmão mais novo são filhos de outros pais.

3. Os pais da CC separaram-se quando esta tinha três meses.

4. A CC foi entregue a uma família de acolhimento - por incapacidade de a mãe prestar os cuidados à bebé com apenas 6 meses; naquela data, o progenitor encontrava-se detido.

5. Após julgamento, o progenitor emigrou para ..., onde tinha retaguarda dos pais e não teve contactos com a CC durante vários anos; conheceu-a em novembro de 2014 (quando a CC tinha 13 anos e já apresentava comportamentos disruptivos).

6. Depois da família de acolhimento, CC ficou aos cuidados de uma tia materna - Tia ..., bem como outra irmã de nome ..., mais velha 4 anos.

7. Os restantes irmãos também foram acolhidos por diferentes familiares/entidades.

8. A mãe da CC veio a falecer quando esta tinha 3 anos de vida.

9. A Tia ... assumiu-se, então, como retaguarda familiar efetiva.

10. A relação com a tia era difícil, uma vez que a CC sempre foi uma menina difícil; quando contrariada partia para a agressividade inicialmente verbal, posteriormente com tentativa de agressões físicas, embora a jovem sempre a tenha acusado de ser agredida, tendo mesmo existido Processo de Promoção e Protecção na CPCJ ... em 2005, com proposta de acolhimento residencial, não aceite pela tia.

11. No acompanhamento em tribunal, a família foi considerada competente para tomar conta da jovem, embora existissem dificuldades em lidar com os seus problemas comportamentais.

12. Durante o primeiro ciclo ocorreram episódios de violência para com a sua professora primária e ainda nesse ciclo (2010) é internada por ingestão de toda a medicação que havia disponível em casa.

13. Veio a ser acolhida, por maus-tratos físicos e psicológicos e condutas desviantes, numa vaga de emergência – Lar ..., em maio de 2015, onde permaneceu um mês.

14. Integrou o Lar ..., a 11/6/2015.

15. Em acolhimento efetuou inúmeras fugas, regressando apenas para dormir, comer e trocar de roupa, acabando por se ausentar novamente.

16. Nestas ausências, CC acompanhava um grupo de indivíduos da comunidade cigana e não realizava a medicação prescrita em pedopsiquiatria.

17. Quando na Casa Residencial, não reconhecia qualquer autoridade à equipa da instituição e da escola; não cumpria com as orientações, usando frequentemente expressões como “não faço (…) vós não mandais em mim (…) vou sair”; usava linguagem obscena ou intimidatória quando se referia aos funcionários; com frequência iniciava lutas físicas, manifestando crueldade física para com os outros (colegas e adultos da instituição); destruía  deliberadamente propriedade alheia (partir janelas de carros, e actos de vandalismo); mentia com frequência para obter ganhos ou favores ou para evitar obrigações; realizou furtos de pequeno valor (telemóveis, dinheiro, roupas, mochilas); revelava incapacidade em gerir a sua sexualidade.

18. Em 9/5/2016, foi transferida para Lar Especializado, o ..., onde permaneceu até à maioridade.

19. No Lar Especializado cumpria as regras e as rotinas da casa, respeitando os adultos, estabelecendo uma positiva relação com as outras jovens.

20. No entanto, após a revelação de abuso sexual perpetuado pelo avô materno, que a jovem efetuou a 9/12/2016, CC passou a evidenciar um retrocesso comportamental, revelando-se mais impulsiva, não cumprindo com as suas obrigações, sendo desadequada.

21. No Lar foi beneficiando de consultas de pedopsiquiatria, encontrando-se medicada e também frequentava consultas de Psicologia.

22. Frequentou um curso EFA que lhe conferiu o 9.º ano.

23. Saiu do Lar aos 18 anos.

24. Após saída do Lar, CC esteve uma noite na ... no ... e depois saiu; foi ao PIAC de ... pedir acolhimento porque se encontrava em situação de sem-abrigo; em 23/10/2019 – voltou a pedir ajuda no PIAC para ser acolhida.

25. De outubro a dezembro de 2019, esteve em casa do pai e da madrasta em ..., saiu por sua iniciativa porque, segundo estes, não queria cumprir com as regras.

26. Em 10/08/2020, dirigiu-se à PSP ... a pedir acolhimento referindo que tinha abandonado a casa do pai em ..., onde tinha estado alguns dias, devido ao alcoolismo dele.

27. Tinha ido para um acampamento de ciganos em ... e nesse acampamento terão querido que esta casasse com um jovem, tendo fugido para o ....

28. Nesse dia foi acolhida numa pensão provisoriamente e informada que deveria contactar a ... ou a ... para ser acolhida, mas não o fez.

29. Em Outubro de 2020 foi acolhida no Centro de Acolhimento ..., onde permaneceu até Fevereiro de 2021, sem aderir à intervenção.

30. Em Fevereiro de 2021, pediu apoio para ir para ... referindo lá ter família. Essa família foi contactada e aceitaram recebê-la desde que a mesma cumprisse regras. Foi apoiada em dinheiro para fazer o transporte para ....

31. CC tem beneficiado de RSI, nas várias localidades por onde passou, designadamente ..., ..., ... e agora em ....

32. Em 2/8/2021, deslocou-se à GNR ... referindo ser vítima de violência doméstica por parte do companheiro, encontrando-se grávida de 2 meses. Esta participação deu origem ao processo-crime n.º 149/21...., que foi arquivado por posterior falta de colaboração da CC.

33. Durante o acompanhamento pré-natal, a CC verbalizou vários episódios violentos por parte do companheiro BB e outros elementos da família, mas recusou a integração em Casa-Abrigo.

34. CC contraiu casamento com BB em 21/9/2021.

35. O pai da AA, BB, é o mais novo de uma fratria de seis filhos, de DD e EE, tratando-se de uma família de etnia cigana, sendo os avós «casados» de acordo com os costumes do seu grupo étnico.

36. BB e os irmãos tiveram processos de promoção e protecção e tutelares educativos.

37. BB teve o PPP n.º 1892/16...., por absentismo escolar, fraco aproveitamento escolar (não sabe ler, não atingiu o 9.º ano de escolaridade), fraca supervisão e acompanhamento familiar, envolvimento em comportamentos delinquentes e chegou a ter aplicada a medida de acolhimento residencial face aos reiterados incumprimentos, contudo, as autoridades nunca conseguiram executá-la porque este fugia e ficava em paradeiro desconhecido.

38. Pretendeu emancipar-se, pelo que veio a casar com a CC.

39. Em 2017, de acordo com a avaliação efetuada no seu processo, BB revelava dificuldades que pareciam estar associadas à falta de apoio e de estimulação por parte dos seus cuidadores, negligência que é mais visível ao nível escolar, por a escola não ser prioritária na vida familiar deste agregado.

40. Os pais de BB cumpriram sessões de parentalidade positiva e as ações constantes no seu plano de inserção. Porém o agregado foi reconhecido pelos Técnicos como resistente à mudança.

41. BB foi acompanhado em Pedopsiquiatria no Hospital Pediátrico ..., tendo deficit cognitivo e necessitando de medicação, que recusava fazer.

42. O BB não tem qualquer rendimento.

43. O NIAVE, em 27/9/2021, na Maternidade, sensibilizou a mãe para o acolhimento, tendo esta aceite; ficou internada dois dias, contudo, veio a pedir alta para se juntar ao companheiro, recusando prestar declarações no processo de violência doméstica.

44. Após o nascimento da AA, em 14/3/2022, numa ida da Centro de Saúde ..., CC solicitou proteção em Casa-Abrigo para acolhimento com a filha, referindo que queria abandonar a relação e temer pela sua integridade física e psíquica após ter sido agredida fisicamente diversas vezes tanto pelo cônjuge como pela sogra e cunhadas. Disse ter sofrido um corte profundo no dedo que precisou de assistência médica e também já tinha sido atingida por um prato na cabeça, provocando-lhe um ferimento grave que a obrigou a ir às urgências.

45. A criança AA foi sinalizada à CPCJ de ..., pela Assistente Social da Maternidade ..., a 22 de Março de 2022, que deu conta do percurso pessoal da mãe, com sucessivas institucionalizações desde a sua infância até à maioridade, do contexto de violência doméstica em que vivem os pais da criança, dos vários episódios de violência relatado pela mãe da criança, ainda durante a gravidez, perpetrados pelo companheiro e familiares e do pedido da mãe para integração, em Casa-Abrigo, em 14/3/2022.

46. Em 16/3/2022, CC e AA foram acolhidas numa Casa Abrigo em ....

47. Durante a permanência no Centro de Acolhimento, a progenitora, diariamente, quando estava psicologicamente estável, prestava alguns os cuidados básicos à filha, seja na amamentação ou higiene, mas no mesmo dia tinha períodos em que ficava psicologicamente descompensada e não prestava os cuidados básicos à filha, tendo de ser substituída por pessoal da casa nesses cuidados, necessitando de supervisão constante, por exemplo, no posicionamento nos braços e um reforço permanente das rotinas.

48. Revelou falta de vinculação com a bebé, pois chegou a referir, ao ser alertada para o perigo de regresso ao agregado paterno: “Se não me deixam ir embora na sexta não cuido mais dela (bebé)”.

49. Em 25/3/2022, CC exigiu sair do Centro de Acolhimento ..., para regressar ao agregado do pai da AA, assinando o termo de saída apesar de alertada de que a sogra e família haviam proferido ameaças de retaliação para o seu comportamento.

50. De regresso ao agregado, solicitou a reativação do RSI suspenso e reagiu com exaltação ao saber que não seria imediato.

51. AA teve consulta na Maternidade ..., em 1/4/2022, estando acompanhada por ambos os pais, bem cuidada e com boa evolução ponderal.

52. A mãe demonstrou preocupação relativamente ao estado clínico da filha na última semana, verbalizando que a filha estava muito constipada e por vezes ficava roxa durante a respiração. Ficou com nova consulta agendada para o dia 6/5/2022.

53. Aberto processo de promoção e proteção pela CPCJ de ..., em 7/4/2022, veio o mesmo a ser remetido ao Serviços do M.P. por falta de consentimento dos pais para a intervenção.

54. Em 7/4/2022, AA deu entrada nas urgências do Hospital ... por episódio de alteração do estado de consciência.

55. Durante o internamento apresentou-se estável, com bom estado geral, a mamar na mama e na tetina com bons reflexos. Não houve intercorrências durante o internamento. A mãe foi ensinada sobre os cuidados de higiene à criança, o posicionamento e a preparação do leite;

56. Em 11/4/2022, mãe e família paterna querem a “alta” da AA. Foram informados pela assistente social e pela pediatra dos riscos decorrentes da situação da criança e que não aconselhavam a alta clínica. A mãe veio a assinar o termo de responsabilidade para a alta a pedido.

57. Em 1/5/2022, AA é levada pelos pais de urgência ao Hospital ..., por traumatismo, após “embate em porta quando seguia ao colo da mãe”. Foi avaliada em neurocirurgia, realizou radiografia craniana e teve alta.

58. Em 5/5/2022, a bebé teve a consulta dos 2 meses no Centro de Saúde e levou vacina. Houve necessidade de realizar ensinamentos à mãe quanto às questões de higiene dos genitais, uma vez que a AA apresentava restos de fezes e alertada para a necessidade de trocar regularmente a fralda.

59. Na consulta dos 2 meses, ambos os pais manifestaram intenção de faltar à consulta pediátrica de follow up de neurologia, marcada para 6/5/2022, pela Maternidade, o que veio a ocorrer, embora não tenham adiantado motivo válido para não comparecerem, alegando, sem o provar, que a mãe estava doente e havia muitos casos de COVID no acampamento.

60. Em 9/5/2022, CC deslocou-se ao posto da GNR ... a denunciar crime de violência doméstica, após ter fugido do acampamento, disse ter sido agredida fisicamente e ameaçada de morte pelo marido e que não conseguiu trazer a filha tendo esta permanecido com a família paterna, temendo pela sua vida e pela vida da filha.

61. CC ficou com estatuto de vítima e foi instaurado novo processo de violência doméstica com o NUIPC 79/22...., que se encontra em fase de inquérito.

62. Em 9/5/2022, CC foi encaminhada para o Centro de Acolhimento ... para vítimas de VD, em ....

63. Em 10/5/2022, o GAF de ... remeteu informação ao processo a solicitar, com o máximo de urgência, o encaminhamento da bebé para junto da mãe.

64. Em 10/5/2022, ao final do dia, CC abandonou o Centro de Acolhimento, não informando da sua saída.

65. Em 10 de Maio de 2022 foi instaurado este processo e logo nesse dia chegou aos autos notícia, através do GAF – Gabinete de Atendimento à Família, de ..., de que a mãe havia sido acolhida de novo, no dia 9 de maio, por ser vítima reiterada de violência por parte do companheiro, sem levar a filha, que permaneceu aos cuidados do agressor, sem ser amamentada pela mãe.

66. Perante o comunicado, foi ordenada a passagem de mandados para condução da AA ao Centro de Acolhimento ... onde a mãe se encontrava, solicitada a elaboração de informação social atualizada da situação da mãe e da filha e marcada audição dos pais para 20/5/2022.

67. Em 12/5/2022 a Segurança Social verificou, em visita domiciliária efetuada a casa dos pais e dos avós paternos que a progenitora e a AA se encontravam de novo integradas no agregado familiar dos pais do marido (e já não no Centro de Acolhimento).

68. Tal agregado é composto pela criança, pais, avós paternos e quatro primos, todos menores de idade.

69. A AA mostrava-se higienizada e vestida devidamente, aquando da visita da Técnica Gestora, em 12/5/2022. Depois de acordar chorou, e foi-lhe preparado um biberão. Engasgou-se e a mãe CC foi expedita em virá-la de barriga para baixo e em fazer-lhe movimentos nas costas.

70. AA nasceu fruto de uma gravidez de risco por diagnóstico pré-natal de displasia de corpo caloso e quisto aracnoideu retrocerebeloso e teve alta com programação de seguimento multidisciplinar em consultas na Maternidade ... (follow-up neurológico) e no Hospital ... (Genética).

71. Os pais e a avó paterna referiram que a criança não tem qualquer problema de saúde, desvalorizando o acompanhamento médico em consulta de neurologia na Maternidade, uma vez que tinha feito um RX recentemente e, em sua opinião, não acusava nenhuma anormalidade.

72. AA dormia com os pais na casa dos avós paternos, uma vez que a casa destes não possuía ainda portas e janelas, estando o avô paterno a fazer obras de melhoria.

73. Abordado o motivo da sinalização (episódios de violência doméstica, imaturidade dos pais, problemas de saúde da bebé) os pais disseram que agora já estavam bem e pretendiam o arquivamento do processo.

74. Confrontados com a gravidade da situação, a mãe referiu que não se importava de ir para uma casa de mães desde que ficassem asseguradas as visitas do pai BB.

75. A avó ... estava presente, mas não entendeu o teor da conversação, exaltando-se com extrema agressividade, ofendendo CC, dizendo-lhe que ela foi abandonada pela família, que é mentirosa e que abandonou a filha.

76. A mãe, com a bebé ao colo, em completo descontrolo emocional também respondeu com agressividade, sendo que num dos movimentos impulsivos, por pouco a cabeça da bebé não batia na parede rebocada.

77. Rapidamente se juntaram na casa dos avós paternos as tias ... e FF e seus respetivos maridos aos gritos, numa postura de defesa da avó paterna e contra a mãe.

78. Já de saída, CC disse que era muito maltratada pela sogra e pelas cunhadas, tendo inclusive sido agredida com dois murros na barriga pela D. ..., quando se encontrava grávida.

79. O NIAVE de Coimbra, com intervenção no âmbito do processo de violência doméstica, devolve extrema preocupação com a integridade física da criança, pela perigosidade do contexto de integração e dos pais não estarem a colaborar.

80. Em 18/5/2022, AA faltou à consulta antecipada pela Maternidade, embora o pai tenha telefonado a confirmar a marcação.

81. Em face das vulnerabilidades detetadas, e perante a falta de vaga em Comunidade de Inserção, para integração de mãe e filha, foi proposta pelo SATT a aplicação à AA, a título cautelar, de uma medida de acolhimento residencial.

82. Realizada audição dos pais, em 20/5/2022, não se logrou obter acordo para aplicação da medida proposta.

83. Perante a situação de perigo eminente para a saúde, integridade física e até vida da criança, foi aplicada à AA, a título cautelar, em 25/5/2022, a medida de acolhimento residencial, a executar no CAT ... – ..., da Santa Casa da Misericórdia ....

84. Os pais não estavam presentes e mantiveram-se foragidos até ao final da tarde (17h30m), altura em que o avô paterno se dirigiu com a mãe e a AA ao posto da GNR ... para que ambas fossem acolhidas.

85. Nessa ocasião, constatou-se que o jovem casal estava a ocupar a casa que está em obras, ao lado da casa dos avós paternos, composta por duas divisões, sem janelas nem portas (existindo correntes de ar), e sem as condições mínimas de habitabilidade.

86. Mãe e filha apresentavam parcos cuidados de higiene, com mau odor.

87. Porém, por ter sido disponibilizada vaga em Comunidade de Inserção, mãe e filha foram conduzidas, em 27/5/2022, ao Centro de Apoio à Vida – ..., sito na Rua ..., ..., em ... (...), vindo a medida de acolhimento a ser substituída pela de apoio junto da mãe, também a título cautelar, e pelo período de 6 meses, com a obrigatoriedade de mãe e filha permanecerem integradas e com a salvaguarda de que, se a mãe abandonar a casa, a bebé não poderá acompanhá-la e será acolhida em CAR.

88. Em 1/6/2022, mãe e bebé tiveram consulta na USF ... no Centro de Saúde na ..., aceitando a primeira o encaminhamento para psiquiatria e a toma imediata da medicação (estabilizador de humor) que fizera antes quando era acompanhada em pedopsiquiatria no ....

89. AA apresentava perda de peso desde o último registo e foi referenciada para o Centro Materno Infantil do ....

90. No mesmo dia, CC contactou a Gestora do Processo, dizendo “estou farta desta merda, só querem tirar os filhos, ajudar não, não posso ir para casa? Vou arranjar um advogado para me tirar daqui. É só mentiras o que disseram em Tribunal. Amanhã não vou à reunião. Vocês foderam-me, fez-se de minha amiga, eu quero ir para perto de casa e sei que há vagas mais perto.”

91. A equipa da Comunidade de Inserção, em contacto telefónico com o SATT comunicou que CC estava muito instável, recusando-se a fazer a medicação, que estava constantemente em contacto com a família paterna da filha, sendo estes contactos perturbadores da sua estabilidade, que revelava dificuldades no cuidado direto à filha, necessitando de muita orientação e não reconhecendo os sinais de fome da filha; a bebé quando foi acolhida apresentava-se com fracos cuidados de higiene, trazia as orelhas com crosta castanha de sujidade acumulada e as unhas pretas.

92. Em reunião com a equipa técnica da Comunidade de Inserção e a Técnica Gestora do Processo, realizada em 2/6/2022, CC apresentou postura agressiva e de desvalorização das agressões da família, fazendo observações provocatórias, em agitação física permanente, sem qualquer capacidade de escuta.

93. Em 13/6/2022, CC continuou com instabilidade emocional, o que foi comunicado pela Psicóloga da Comunidade de Inserção, dando a conhecer que a mãe tem momentos de grande descontrolo (tendo num deles atirado com água da esterilização dos biberões a ferver para o chão) e que em contacto com a família, fica de tal forma perturbada que não cuida da filha.

94. CC apresenta um comportamento pautado por elevada instabilidade emocional e agressividade dirigida aos outros e pela dificuldade extrema em controlar os seus impulsos.

95. Apresenta igualmente baixa tolerância à frustração, com tendência para um tratamento “quente” que resulta muitas vezes num estado de frustração ou zanga, que não consegue controlar.

96. Na breve avaliação psicológica através do Inventário de Sintomas Psicopatológicos, apresentou uma pontuação clinicamente significativa na sintomatologia relativa à hostilidade, ideação paranóide e psicoticismo, o que se manifesta na desconfiança na maioria das pessoas, irrita-se com muita facilidade, tem impressão que os outros a costumam observar ou falar de si, sente que os outros não lhe dão o devido valor e que se deixa aproveitem dela.

97. CC beneficiaria de complementar o apoio psicológico com apoio psiquiátrico.

98. Em 20/6/2022, CC contactou a Técnica Gestora do Processo a dizer que estava a ser muito difícil para si estar longe da sua família (referindo-se à família do marido), que tinha receio que a deixassem de visitar uma vez que é muito dispendiosa a viagem; que o sogro já tem as obras da casa quase concluídas; que consegue mais facilmente arranjar trabalho que o BB; confirma as discussões frequentes com a sogra; e que quer vir para uma instituição mais próxima de casa.

99. Na Comunidade de Inserção, CC fez de tudo para se ausentar da casa e não ficar a cuidar da filha, revelando instabilidade e pouca vontade em assumir os cuidados dela. A bebé tinha estado bem, mas muitas vezes era cuidada pela equipa educativa.

100. Em 21/6/2022, CC manifestou vontade de sair da Comunidade de Inserção com a filha, disse já não querer frequentar o curso; “não quero saber da filha, cumpro a minha pena lá em baixo em ..., vou-me embora. Aqui não fazem nada, não resolvem nada” e dirigindo-se à filha disse “a puta da chavala rouba-me o tempo todo, não tenho tempo para mim”. Mais disse que pretende retirar a queixa-crime contra o marido, que é tudo mentira e que foi a advogada dela que lhe disse para o fazer.

101. Em 22/6/2022, CC contactou a Técnica Gestora do Processo pedindo vaga para a ..., em ..., referiu que se anda a portar mal porque lhe custa muito estar longe da família, onde tem “carinho e amor”, que estava prevista visita para esse dia, mas que o sogro e o BB andavam a pedir dinheiro e que, se calhar, não conseguiam ir, estando a ser, para si, insuportável manter-se acolhida.

102. Depois foi dizendo que a TG é “cínica, diz-me uma coisa a mim e outra à minha família, aproveitou-se da bondade do meu sogro que me entregou de livre vontade, só diz mentiras”, que só houve um episódio que correu mal, negando que esteja a causar problemas na CI.

103. “Vocês não me vão afastar deles. Não desisto dela (filha) e vocês não ma podem tirar porque eu tenho direito a ela”.

104. Disse que pagou a uma advogada, cujo nome desconhece, e que vai desfazer as queixas para que os serviços não tenham nada contra o BB, “vocês não estavam lá, eu posso ter inventado tudo” e que vai pedir aos sogros para lutarem pela guarda da AA.

105. Disse que o seu pai e a sua irmã a tinham ido visitar uma vez e questionada se tinha gostado dessa visita respondeu que não.

106. Mais tarde, da Comunidade de Inserção informaram de que CC estava a verbalizar um conjunto de ameaças, nomeadamente, “se não me deixarem ir embora com ela, primeiro eu mato-a; eu esgano-a, vocês não vão ficar com ela”. Uma funcionária ouvia-a dizer à filha “sua puta dorme, se não eu esgano-te”.

107. Contactada a sogra, por parte da Comunidade de Inserção, foi devolvido sobre a CC que “ela não sabe o que é ser mãe, não se sacrifica pela filha, deixem-na ir embora, mas depois não a deixem entrar”; durante esta conversação eram audíveis os gritos no acampamento.

108. CC queria sair e foi-lhe questionado onde ia, uma vez que eram recorrentes as saídas sem compromissos conhecidos. Quando lhe foi pedido que trouxesse justificação, respondeu “eu vou dar o cu e a cona”. Era hora de alimentar a AA e CC recusou fazê-lo para se ausentar de casa.

109. No início da tarde, CC informou de que ia mesmo embora e foi levada a apanhar o comboio com destino a ... onde estava o sogro à sua espera.

110. Em 22/6/2022, pretendendo reintegrar o agregado do marido, a mãe saiu do Centro de Apoio à Vida – ..., aí deixando a AA, que veio a ser colocada no CAT ..., em C..., em 23/6/2022 onde ainda se encontra (conforme decisão datada de 28/6/2022).

111. A AA é uma criança simpática e risonha, que dorme toda a noite.

112. Está a ter um desenvolvimento adequado à idade, apesar de ter um diagnóstico de má formação neurológica que poderá ter impacto na sua qualidade de vida.

113. Tem o pescoço curto e não faz rotação completa dele, o que obriga a cuidados redobrados com a pele, sendo necessário limpeza e hidratação frequentes para não gretar com a humidade.

114. Tem possibilidade de convulsivar, não pode ficar em espreguiçadeira e não deve ficar de pé.

115. Tem rejeitado o leite e, por orientação do médico, foi alterada a marca, estando agora a aceitá-lo melhor.

116. Apesar de estarem sempre a pedir para frequentarem cursos de formação, quando houve possibilidade de criar um na sede da Junta de Freguesia ... (mais próximo para potenciar a assiduidade), os avós da AA frequentaram metade das aulas, sendo que qualquer motivo era justificativo para faltarem, não existindo verdadeira motivação para a conclusão do mesmo.

117. As tias paternas da bebé – FF e GG, nunca chegaram a frequentar a formação, vendo agora a sua prestação de RSI suspensa.

118. Os avós paternos têm a cargo 4 netos: HH (DN: 19/07/2012) teve PPP 19/14...., e é filha de FF; os restantes meninos são filhos de II: JJ (DN: 25/10/2007), GG (DN: 14/01/2011) e KK (DN: 15/05/2015), todos com processo de promoção activo, com medida de apoio junto dos avós (processo n.º 1227/17....).

119. As mães destas crianças estão a residir no acampamento e já tiveram mais filhos posteriormente.

120. Ambos os avós desvalorizam a patologia da AA e os conflitos entre o casal.

121. A avó paterna é extremamente reativa, impulsiva e agressiva no trato.

122. Não existem hábitos de trabalho e com frequência existem rusgas no acampamento por suspeitas de envolvimento em furtos na redondezas e armas.

123. O pai de CC – LL, DN: 8/4/1978, NISS -..., reside na Rua ..., ... ..., contactável para o .... n.º ...93.

124. O avô materno não tem trabalho nem rendimentos declarados desde agosto de 2021.

125. Este avô não faz parte da vida da filha, não mantendo contactos com a mesma desde que esta saiu de sua casa em dezembro de 2019.

126. CC, como a sua irmã MM, referem adição etílica do pai, que se manterá até à atualidade.

127. O avô ter-se-á separado recentemente da companheira e terá pedido para ir viver para cada da filha MM, a qual o recusou.

128. A tia materna MM, DN: 16/7/1997, NISS -..., reside em ... (em morada que transmitiu ao SATT, mas que pretende que a sua irmã desconheça), está contactável para o .... ...19, tem como habilitações literárias o 12.º ano, trabalhou durante 3 anos e meio numa empresa, mas veio a negociar a cessação do contrato em maio de 2022, encontrando-se atualmente a trabalhar em limpezas, recebendo à hora.

129. Auferirá cerca de €400 por mês.

130. Vive sozinha, pagando €300 de renda, acrescendo mais €100 em água, luz e gás e €134 de prestação ao dentista.

131. Quando tem necessidades económicas conta com o apoio da família amiga e da D. NN (quem a criou até ir para o acolhimento).

132. Tem sido saudável e não tem relacionamento amoroso atualmente; não tem dívidas nem problemas com a justiça.

133. MM, aquando da doença da mãe, ficou aos cuidados de D. NN (ex-mulher do seu padrinho) tendo lá permanecido dos 5 anos 13 anos, altura em que integrou uma casa de acolhimento onde permaneceu até aos 21 anos de idade.

134. MM não tem filhos e não contacta com os outros irmãos: OO (+/- 28 anos) cujo paradeiro desconhece; PP (+/- 26 anos) que talvez resida na ..., com percurso de detenções e de consumos de estupefacientes; e QQ (+/- 18 anos) cujo paradeiro desconhece. PP, MM e CC são filhos do mesmo pai LL.

135. Relativamente à sobrinha, MM referiu que soube da gravidez pelo seu pai e depois viu fotos da menina quando esta tinha 1 mês de vida, veio a conhecê-la na CI da ....

136. MM tem dificuldades em se relacionar com a irmã CC, com quem não convive, pelo que também não tem qualquer relação com AA.

137. Disponibiliza-se para ficar com a sobrinha (mas não formalizou o pedido ao tribunal) se o Tribunal ordenar o afastamento total dos pais, pretendendo que estes não saibam do paradeiro da filha, alterar-lhe o nome e ir com ela para ... para junto da D. NN.

138. Confrontados pelo tribunal 29/6/2022 quanto ao projeto de vida da filha e a possibilidade de a mesma ser encaminhada para adoção, BB e CC opuseram-se.

139. A progenitora assistiu à primeira sessão do debate judicial através de Webex, a partir de Casa-Abrigo sita no ..., onde se encontrava acolhida no momento do debate.

140. No decurso da primeira sessão do debate judicial, da parte da tarde desse dia, a mãe verbalizou não pretender continuar a assistir àquela sessão de debate judicial, requerendo também a sua dispensa em futuras sessões que fossem agendadas.

141. Os avós paternos estão disponíveis para supervisionar o BB nos cuidados à bebé ou, em alternativa, passarem a ser os cuidadores da criança.

142. Na hipótese de lhes ser negada a medida de apoio junto aos pais, os progenitores vêem como uma alternativa para a sua filha a medida de apoio junto dos avós paternos.

143. O avô paterno acha desnecessária a formação parental para avós e pai, pois tratou de seis filhos.

144. O BB tem fotografias a beijar a AA na boca, que coloca no «Tic-Toc».

145. Os progenitores diligenciaram pelo seu registo bem como pela sua inscrição na extensão de Saúde de ..., para a continuidade dos cuidados.

146. Os progenitores inscreveram-se para frequentar uma formação profissional, que teria o seu início em 18/7/2022, com bolsa de formação mensal, através do centro de Emprego da ..., que não frequentaram, alegando falta de verba para despesas de transporte.

147. Os progenitores promoveram a inscrição da menor AA, na creche ..., que não tinha vaga para a criança.

148. Os progenitores e os avós paternos têm visitado a filha AA no C... em ..., local onde a menor se encontra temporariamente acolhida, de acordo com o estipulado pelo regulamento do referido Centro, sendo que as suas visitas são às segundas-feiras das 15H00 às 16H00, em número de treze até agora, tendo o pai comparecido em todas e a mãe em sete visitas.

149. Nessas visitas os pais e avós mostram-se afetuosos com a criança, tendo a avó materna chorado uma vez com saudades da neta.

150. Os progenitores exibem algumas fragilidades em termos de práticas educativas e de gestão da vida quotidiana, parcialmente por conta dos hábitos da etnia do pai e da idade dos elementos do casal.

2. Matéria de facto – Factos não provados

a) A progenitora no período pré-natal não faltou às consultas agendadas e tendo demonstrado em todo o período de gestação vinculação emocional com o seu bebé e preocupação em se capacitar em termos parentais.

b) Durante a permanência no Centro de Acolhimento em ..., a progenitora não demonstrou possuir quaisquer competências para prestar os cuidados básicos à filha.

c) Os alegados nos artigos 11.º, 12.º, 14.º, 17.º, 19.º, 22.º do pai e correspondentes alegações de facto da mãe.

d) Os requeridos/progenitores são pessoas educadas e cumpridoras e apresentam higiene pessoal.

e) Os alegados nos artigos 24.º, 26.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 46.º, 47.º, 48.º do pai e correspondentes alegações de facto da mãe.

3. Apreciação das questões objeto do recurso

Vejamos se deve manter-se a medida de confiança com vista a futura adoção ou substituí-la pelas medidas propostas pelos Recorrentes, ou seja, apoio junto dos pais ou/e dos avós paternos, com adequado controlo por parte das várias equipas de intervenção ou então a manutenção da menor na situação de acolhimento na instituição onde se encontra, com a duração de um ano e com regime de visitas primeiramente pelo período de cerca de seis meses na instituição e depois fora da instituição com a possibilidade da menor passar os fins de semana com os pais, período este durante o qual os progenitores e avós paternos se preparariam para assumir de modo mais conseguido as respetivas responsabilidades parentais, sem descurar a  ajuda económica.

(I) A Constituição da República Portuguesa, no n.º 6 do artigo 36.º determina que «Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.»

A al. h) do artigo 4.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) – Lei n.º 147/99, de 01 de setembro – também foca como princípio orientador das medidas de proteção das crianças a «prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável.»

Estes textos legais dizem-nos que o lugar dos filhos, principalmente enquanto recém-nascidos e crianças, é, em regra, junto dos pais.

Trata-se de reconhecer aquilo que as relações familiares desde sempre evidenciam ao longo da História: o interesse dos filhos aponta no sentido de crescerem junto dos pais e restante família porque é aqui que são amados e aprendem a amar os demais familiares e podem depois irradiar esse amor e respeito para a sociedade quando contatam com ela.

Esta é a regra e, mais que isso, a regra desejável.

Porém, por vezes, os pais não mostram capacidade para assegurar aos filhos os cuidados que eles necessitam para o seu adequado crescimento, físico e espiritual.

Por isso, o n.º 1 do artigo 69.º, da Constituição, proclama que «As crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.»

Descendo mais ao concreto real, o artigo 34.º da LPCJP determina que «As medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo, adiante designadas por medidas de promoção e proteção, visam:

a) Afastar o perigo em que estes se encontram;

b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvi­mento integral;

c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.»

Tais medidas de promoção e proteção são as que constam do artigo 35.º da mesma lei, a saber:

a) Apoio junto dos pais; b) Apoio junto de outro familiar; c) Confiança a pessoa idónea; d) Apoio para a autonomia de vida; e) Acolhimento familiar; f) Acolhimento residencial e g) Confiança a pessoa selecionada para adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção.

Como se referiu acima, quando não é viável o crescimento dos filhos junto dos pais, aqueles têm de ser afastados do seu convívio e, no limite, «anulada» a respetiva relação jurídica de filiação.

Tal ocorre naqueles casos em que os progenitores não cumprem os seus deveres fundamentais de pais e com essa sua postura impedem no momento, a médio ou a longo prazo, que se formem os laços afetivos entre pais e filhos próprios da filiação, podendo, nestes casos, justificar-se a implementação de uma medida que passe por retirar os filhos do convívio dos pais para que esses laços se estabeleçam com outras pessoas que substituam os pais biológicos nesse desiderato.

(II) No caso dos autos, a decisão sob recurso aplicou a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção.

A decisão baseou-se, em traços gerais, no facto dos pais da menor não terem capacidade para cuidar dela, outro tanto sucedendo com os familiares paternos (avós) que vivem de apoios sociais, têm a seu cargo outros quatro menores sujeitos a medidas de promoção e proteção e não mostram conhecimentos adequados para lidarem com os défices da menor ao nível da sua saúde, não existindo do lado materno qualquer família que revele real interesse em tomar a seu cargo esta criança.

Entendeu-se que esta situação preenchia o condicionalismo previsto no artigo 1978.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil, por manifestar uma sintomatologia no sentido de se encontrar comprometido o futuro relacionamento afetivo característico e normal entre pais e filhos.

III) A medida aplicada está prevista no artigo 38.º-A da mesma lei, onde se determina que «A medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção, aplicável quando se verifique alguma das situações previstas no artigo 1978.º do Código Civil, consiste:

a) Na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de candidato selecionado para a adoção pelo competente organismo de segurança social;

b) Ou na colocação da criança ou do jovem sob a guarda de instituição com vista a futura adoção».

Por sua vez, o artigo 1978.º (Confiança com vista a futura adoção) do Código Civil, tem a seguinte redação, na parte que interessa a este caso:

«O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações: a) …; b) …; c) …; d) …; e) Se os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.

2 - Na verificação das situações previstas no número anterior, o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança.

3 - Considera-se que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à proteção e à promoção dos direitos das crianças.

4 - A confiança com fundamento nas situações previstas nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 não pode ser decidida se a criança se encontrar a viver com ascendente, colateral até ao 3.º grau ou tutor e a seu cargo, salvo se aqueles familiares ou o tutor puserem em perigo, de forma grave, a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou se o tribunal concluir que a situação não é adequada a assegurar suficientemente o interesse daquela.»

O critério para decidir se se deve ordenar a confiança de um menor com vista a futura adoção consiste, pois, em apurar se ocorre uma situação em que se verifica a inexistência de vínculos afetivos próprios da filiação entre pais e filhos ou uma situação em que tais vínculos estejam «seriamente comprometidos».

O que pretende a lei dizer com isto?

Um «vínculo» significa o mesmo que «ligação entre dois ou mais polos» e tratando-se de um vínculo afetivo, ficamos a saber que a sua natureza pertence à realidade mental, emocional da pessoa, tratando-se, pois, de um estado mental relativo a sentimentos.

Tratando-se de vínculo afetivo próprio da filiação estamos então perante um sentimento que nasce e se desenvolve entre os filhos e os pais e vice-versa, recíproco, resultante do facto dos filhos descenderem biologicamente dos pais e se estabelecer naturalmente uma convivência que se inicia imediatamente a seguir ao seu nascimento, gerando sentimentos mútuos de pertença e união, diferentes de quaisquer outros, reforçados ainda pela própria sociedade que os valoriza e institucionaliza como algo de positivo e de perene, como fazendo parte da «natureza das coisas», exigindo e esperando a sociedade, em qualquer caso, a sua verificação.

Trata-se, pois, de uma zona da realidade pertencente ao mundo da mente o que implica, dada a sua natureza, que não possa ser apreendida diretamente pelos nossos sentidos.

Por conseguinte, quando tal vínculo existe (ou quando não existe) só pode ser detetado por terceiros quando se revela na atuação dos pais ou dos filhos, de forma consciente, intencional e livre, no sentido de, tratando-se dos pais, zelarem pelos filhos, disponibilizando-lhes meios de subsistência e segurança enquanto deles necessitarem e na manifestação de um sentimento de amor paternal que tende a perdurar pela vida inteira, colocando os pais os interesses dos filhos em primeiro lugar e os seus, em iguais domínios, em segundo lugar.

E, nos filhos, revela-se no facto de tratarem os progenitores por pais, querendo estar com eles, esperando deles o sustento, a segurança e manifestações de afetividade filial.

Sentindo uns e outros a falta física ou emocional do outro como algo de negativo e sofrendo ou rejubilando emocional e reciprocamente com as respetivas desventuras ou sucessos.

Dada a natureza imaterial destes vínculos, para aferirmos da sua existência ou da sua não existência ou, ainda, da medida dessa existência, resta-nos, como se disse, a interpretação das ações dos pais e dos filhos, daquelas ações com capacidade para revelarem a existência de tais vínculos ou para os negarem.

As situações enumeradas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil, mostram, precisamente, situações objetivas que indiciam a ausência de tais vínculos ou o seu sério comprometimento.

Sintetizando:

Os «vínculos afetivos próprios da filiação», a que alude o n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil, são o resultado de um processo que se prolonga no tempo, sujeito, inclusive, a retrocessos e que, por isso, exige para se formarem e manterem que os pais se dediquem aos filhos de forma permanente, verificando e satisfazendo as suas necessidades físicas e emocionais, corrigindo-lhes as suas ações desadequadas e mostrando-lhes por palavras e ações o afeto que sentem por eles e fazendo-lhes sentir que eles têm valor para os pais e que aquela relação tem existido assim, existe e existirá para sempre.

As ações dos pais e dos filhos, na sua mútua convivência, são factos que expressam os seus estados mentais, cognitivos e afetivos, e revelam se esses “vínculos próprios da filiação” existem, não existem, estão em processo de construção, de consolidação ou desagregação e permitem, ainda, efetuar um juízo de prognose sobre se no futuro tais vínculos serão ou não algo de existente, de real, de efetivo.

Se os pais não conseguem cumprir os deveres de pais e com isso impedem no presente a formação dos “vínculos próprios da filiação” e idêntico prognóstico é feito para o futuro, o interesse dos filhos indica que o caminho a seguir é o da adoção.

Nas ações dos pais também se compreende o seu próprio comportamento declarativo, aquilo que eles dizem a propósito desta matéria. Assim, como os compromissos que eles assumem; aquilo que dizem pretender fazer, cumprindo, no entanto, ter na devida conta que aquilo que os pais dizem pode não corresponder ao que eles têm, na verdade, em mente, seja porque dizem aquilo que sabem dever ser dito, para evitarem a censura social, seja por qualquer outro motivo, como seja o caso de garantirem o acesso a prestações sociais.

E, mesmo quando há correspondência entre o que dizem e o seu genuíno desejo, podem não ter força de vontade para, depois, no dia-a-dia, dirigirem a sua ação de acordo com aquilo que sabem ser os seus deveres, não sendo de colocar de parte casos de ausência de capacidade permanente para cumprir os deveres da paternidade.

Daí que, dada a natureza não visível de tais vínculos, o artigo 1978.º do Código Civil, aluda, no seu n.º 1, à inexistência ou comprometimento sério dos vínculos afetivos próprios da filiação e de seguida enumere situações factuais, suscetíveis de revelarem a inexistência ou o comprometimento desses vínculos.

(IV) Vejamos então o caso concreto, tendo em conta o exposto.

(a) A menor AA nasceu em .../.../2022 (vai fazer 10 meses de idade) – F. Prov.1.

Verifica-se, face à matéria de facto provada, que a mãe e o pai da menor não têm capacidade para cuidar diariamente da criança, desde a alimentação aos cuidados de saúde e acarinhamento.

Desde logo porque ambos os progenitores além de serem jovens e lhes falar por isso experiência de vida, ele nascido em .../.../2005 (17 anos) e ela em .../.../2001 (21 anos), não trabalham e não têm rendimentos, vivendo de ajudas de terceiros, e, além disso, vivem uma relação trespassada pela conflitualidade, incluindo a violência física.

A mãe ora recorrente teve uma infância e juventude desamparadas porque nunca esteve inserida numa família. Com efeito, a mãe da AA foi entregue a uma família de acolhimento com apenas 6 meses de idade, devido ao facto da sua mãe não ter capacidade para lhe prestar os cuidados necessários e o seu pai, naquela data, se encontrar detido (F. Prov. 4). A sua mãe (avó da AA) faleceu quando tinha 3 anos de idade (F. Prov. 8) e só conheceu o pai quando já tinha 13 anos (F. Prov. 5).

Devido a estas circunstâncias, à ausência de uma família, a mãe da AA esteve a viver em diversas instituições de acolhimento até completar os 18 anos (F. Prov. 23), tendo vivido despois até fevereiro de 2021, de modo intermitente, em diversas instituições sociais de apoio (F. Prov. 30), tendo contraído casamento com o pai da menor, BB, em 21 de setembro de 2021 (F. Prov. 34).

Verifica-se que a mãe da AA cresceu sem te podido beneficiar da integração e vivência numa família e, talvez por isso, por falta de modelos a seguir, não tem conseguido ela mesma formar uma família coesa, porquanto, após ter sido mãe, tem vagueado de instituição em instituição, com regressos e abandonos entre estas e o agregado familiar do seu marido.

Após o nascimento da menor, em 16 de março de 2022, mãe e filha foram acolhidas numa Casa Abrigo em ... (F. Prov. 45 e 46), mas 3 dias depois a ora Recorrente regressou ao agregado familiar do seu marido.

Em 9 de maio de 2022 a mãe da menor fez uma denúncia criminal por violência doméstica, após ter fugido do acampamento onde vivia, deixando a filha com a família paterna (F. Prov. 60) e deu entrada, nesse dia, no Centro de Acolhimento de Emergência para vítimas de Violência Doméstica em ..., mas no dia seguinte, sem informar, abandonou este Centro (F. Prov. 64) e regressou ao agregado familiar do marido (F. Prov. 67).

Em 25 de maio de 2022, perante a situação de perigo eminente para a saúde, integridade física e até vida da criança, foi aplicada à menor, a título cautelar, a medida de acolhimento residencial, a executar no CAT ... – ..., da Santa Casa da Misericórdia ... (F. Prov. 83).

Em 27 de maio de 2022 mãe e filha ingressaram no Centro de Apoio à Vida – ..., sito em ... (...), vindo a medida de acolhimento a ser substituída pela de apoio junto da mãe, também a título cautelar, e pelo período de 6 meses, com a obrigatoriedade de mãe e filha permanecerem integradas e com a salvaguarda de que, se a mãe abandonar a casa, a bebé não poderá acompanhá-la e será acolhida em CAR (F. Prov. 87). Nesta altura a bebé apresentava-se com fracos cuidados de higiene, trazia as orelhas com uma crosta castanha de sujidade acumulada e as unhas pretas (F. Prov. 91).

Em 21 de junho de 2022, a mãe da menor manifestou vontade de sair da Comunidade de Inserção com a filha (F. Prov. 100) e no dia seguinte regressou ao agregado do marido, deixando a filha no Centro, a qual veio a transitar para o C..., em ..., em 23 de junho de 2022, onde ainda se encontra (conforme decisão datada de 28 de junho de 2022). (F. Prov. 110).

Numa breve avaliação psicológica apresentou uma pontuação clinicamente significativa na sintomatologia relativa à hostilidade, ideação paranóide e psicoticismo, o que se manifesta na desconfiança na maioria das pessoas, irrita-se com muita facilidade, tem impressão que os outros a costumam observar ou falar de si, sente que os outros não lhe dão o devido valor e que se deixa aproveitem dela (F. Prov. 96).

Quanto ao pai da menor, verifica-se que é um jovem atualmente com 17 anos de idade. É o mais novo de 6 irmãos e todos eles tiveram processos de promoção e proteção e tutelares educativos (F. Prov. 35 e 36); não tem o 9. º ano de escolaridade (F. Prov. 37) e não tem rendimentos (F. Prov. 42) e depende do seu agregado familiar, dos seus pais, para sobreviver.

Verifica-se que não tem conseguido assegurar à mãe da menor estabilidade afetiva de modo a constituir com ela uma família capaz de cuidar da menor, nem ele, por si, tem essa competência.

No que respeita aos restantes familiares, verifica-se que, do lado materno, as relações familiares são praticamente inexistentes, sendo, por esta razão irrelevantes para a apreciação do caso dos autos.

É certo que a tia MM, do lado materno, se disponibilizou a ficar com a menor (mas não formalizou o pedido ao tribunal), mas na condição do Tribunal ordenar o afastamento total dos pais, pretendendo que estes não saibam do paradeiro da filha e que possa alterar o nome da criança e ir com ela para ... para junto da D. NN.

Esta tia tem dificuldades em se relacionar com a mãe da menor e não mantém qualquer relacionamento com a criança (F. Prov. 136 e 137).

Esta hipótese não representa um projeto viável, pelo que nada mais se diz sobre ela.

Restam os familiares do lado paterno, mas, quanto a estes, verifica-se também que não têm capacidade para tomar conta desta criança e proporcionar-lhe um crescimento adequado ao natural desenvolvimento físico e espiritual e, por tal razão, a menor encontra-se institucionalizada.

Acresce que há um elemento deveras relevante e que respeita à saúde da menor AA porquanto esta carece de cuidados de saúde especiais. Nasceu de uma gravidez de risco, com diagnóstico pré-natal de displasia de corpo caloso e quisto aracnoideu retrocerebeloso; teve alta com programação de seguimento multidisciplinar em consultas na Maternidade ... (follow-up neurológico) e no Hospital ... (Genética). (F. Prov. 70).

É certo que a menor tem desenvolvimento adequado à idade, mas com diagnóstico de má formação neurológica que poderá ter impacto na sua qualidade de vida; tem o pescoço curto e não faz rotação completa dele, o que obriga a cuidados redobrados com a pele, sendo necessário limpeza e hidratação frequentes para não gretar com a humidade (F. Prov. 112 e 113).

No entanto, os pais e avó paterna dizem que a criança não tem qualquer problema de saúde (F. Prov. 71).

Devido a esta incapacidade da família paterna (e materna) para cuidarem da AA, a menor, como se referiu, foi institucionalizada em 25 de maio de 2022 (F. Prov. 83), com a apenas 3 meses de idade.

Por outro lado, os avós paternos têm a cargo 4 netos, com 15, 11, 10 e 8 anos de idade, todos com processo de promoção ativo, com medida de apoio junto dos avós; as mães destas crianças estão a residir no acampamento e já tiveram mais filhos posteriormente (F. Prov. 118/120).

Como se refere na sentença recorrida, não se mostra viável, pelo exposto, o regresso da menor ao agregado familiar paterno, devido especialmente a sua tenra idade, conflitualidade entre a mãe da menor e a família paterna e aos problemas de saúde da criança.

Por conseguinte, o futuro da menor passa, se as circunstâncias não se alterarem e não se prevê que se alterem, pela manutenção da menor na instituição onde se encontra ou noutra congénere.

(b) A que conclusões e consequências leva esta factualidade?

Estes factos mostram que a mãe desde que a menor nasceu não tem ido condições de qualquer tipo para ter a filha consigo e cuidar dela e o mesmo se diga do pai e familiares de um e outro lado.

Nestas condições, torna-se praticamente impossível a formação de vínculos afetivos próprios da filiação entre mãe/pai e filha, porque estes vínculos, para se formarem e manterem exigem convívio diário e relação afetiva plena a todo o tempo.

Como refere T. Berry Brazelton, «Para o bebé acabado de nascer, a vinculação não se processa da noite para o dia (…). Efectivamente, em larga medida, a vinculação é instintiva, mas não é instantânea nem automática. Deve ser encarada como um processo contínuo a fim de haver consciência das respectivas complexidades e possíveis armadilhas» - Tornar-se Família. Lisboa. Terramar, 2000, pág. 9/10.

Por outro lado, tais vínculos são fundamentais para o desenvolvimento da criança a todos os níveis e têm etapas para se formarem durante os primeiros anos de vida.

Nas palavras de Henry Gleitman, «Os primeiros anos são decisivos, no sentido de que certos padrões sociais têm muito mais probabilidades de serem adquiridos nesta altura, como a capacidade de formar vínculos com outras pessoas. Estes primeiros vínculos são um pré-requisito provável para formação de vínculos posteriores. A criança que nunca foi amada pelos pais intimidar-se-á com os seus pares, e o seu desenvolvimento social ulterior ficará obstruído. Mas embora os primeiros vínculos (à mãe e ao pai) constituam as bases dos vínculos vindouros, com os amigos, amantes e com os próprios filhos, os dois são, no entanto bastante diferentes. Assim, pode haver modos (…) de adquirir os instrumentos sociais para lidar com a vida posterior que contornem os males da primeira infância. Pois ainda que o passado afete o presente, ele não o predetermina» - Psicologia. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pág. 676/677.

Referindo ainda este autor:

«Parece que muitas destas deficiências precoces persistiram na vida futura. Alguns estudos demonstraram que, num razoável número de casos, embora de forma nenhuma em todos, há vários défices intelectuais, por exemplo na linguagem e no raciocínio abstracto, que persistem na adolescência e depois dela. Há também vários efeitos a longo prazo na esfera social e emocional: maior agressividade, delinquência e indiferença aos outros» - Ob. cit., pág. 673.

Ou seja, o sucesso futuro e boa integração social de cada ser humano dependem da boa qualidade da sua infância.

Esta situação, isto é, a institucionalização sem perspetivas de regresso à família é inapropriada para uma criança atualmente com quase 10 meses de idade e carecida, até agora, até de adequados cuidados maternais.

Quer-se dizer com isto que é desaconselhável que esta criança continue, sem se saber até quando, nesta situação, isto é, privada de crescer no seio de uma família.

Nesta fase da vida das crianças, como diz Myriam David, «Entregue à alegria da descoberta do seu “eu”, do mundo e da mãe, estabelece com eles uma relação activa e possessiva que voltaremos a encontrar em todos os campos da sua existência: motricidade, alimentação, relacionamento com o adulto. Deste modo, volta-se para novos prazeres, abandonando os antigos. Este período, que se situa aproximadamente entre os oito e os 14 meses, representa uma viragem no desenvolvimento da criança que, de passiva e “submissa”, se vai tornar “agente”. Mantém uma grande dependência em relação aos adultos, embora de uma forma diferente; o seu despertar afectivo torna-a “ávida” de contacto: já não se contenta em “receber”, procura, pede, exige. A sua avidez, as suas exigências encontram, forçosamente, determinados limites.

Começa então um lento processo de “separação” entre a criança e a mãe, que se manifesta simultaneamente plano alimentar, com o desmame, e no psicológico, quando a criança se torna mais consciente de que é distinta da mãe» - A Criança dos 0 aos 2 Anos (vida afectiva, problemas familiares). Lisboa, Editora Compendium, pág. 39.

Verifica-se, pois, que a formação da personalidade humana é influenciada de forma relevante nos primeiros anos de vida, porquanto esses são os anos em que ocorre um desenvolvimento psíquico acelerado em todas as suas vertentes, entre as quais a emocional, cognitiva e volitiva [ Como referiu Francoise Dolto, «É com efeito entre o zero e os três anos que a vida da criança entre os pais se equilibra. Esse equilíbrio, ela adquire-o por vezes lentamente, segundo as circunstâncias. Mas há uma crise a atravessar para chegar às fases seguintes do seu desenvolvimento. Se não lhe forem asseguradas as condições necessárias ao seu desenvolvimento, arriscamo-nos a bloquear nela certos processos de crescimento» - A Criança e a Família (Desenvolvimento emocional e ambiente familiar). Editora Pergaminho, 1999, pág. 90].

Cumpre, por isso, assegurar às crianças que estes primeiros anos decorram de modo que elas beneficiem de um ambiente no qual possam confiar sob todos os seus aspetos.

Ora, um dos aspetos que influenciam o sentimento de confiança tem a ver com a presença da mãe e do pai ou de quem desempenhe adequadamente idênticas funções e restante rotina diária.

Daí que, como refere Berthe Reymond-Rivier, a ausência da mãe da criança (ou quem a substitua adequadamente) a afete negativamente.

Diz esta autora:

«As principais teses de Bowlby, que formulou uma verdadeira teoria da separação, podem resumir-se no seguinte:

1. A partir dos seis meses até aos três ou quatro anos, qualquer separação da mãe, mesmo breve, representa uma experiência traumatizante. Contrariamente à opinião de Spitz, o primeiro ano não é mais crítico do que os outros.

2. No decurso da separação (no caso de boas relações com a mãe e na condição de não ter havido separação anterior), o comportamento da criança passa por três, fases que Bowlby intitula de: protesto, desespero, desapego.

3. A aflição da criança é idêntica, no conteúdo e nas manifestações, à dor do adulto, abalado pela perda de um ente querido» - O Desenvolvimento Social da Criança e do Adolescente, Editorial Aster, Lisboa-1983, pág. 45.

Pode, pois, concluir-se que o convívio diário e a relação que daí resulta entre a criança e os pais e restantes familiares é fundamental para a vinculação recíproca e formação dos respetivos laços familiares e, mais que isso, para a formação de um adulto capaz de mais tarde conviver com os seus semelhantes de modo positivo.

Ora, a vida de uma criança recém-nascida numa instituição social não é um projeto de vida para uma criança, porquanto só aí permanece porque não tem uma família onde possa crescer.

Como se vem dizendo, é fundamental para o desenvolvimento salutar do corpo e também da dimensão espiritual do ser humano, que a criança viva integrada numa família onde se possa autoperceber como alguém que tem valor, que é amada e respeitada, pois só vivendo estes sentimentos estará em condições de os imitar e repetir, isto é, de os atribuir no futuro a outros e de os colocar em prática na sua vivência social quando for jovem e depois adulto.

Efetivamente, para que seja possível a realização pessoal, a confiança na sociedade e a boa convivência humana, é necessário que cada um compreenda a posição do outro (colocar-se no lugar do outro), seja capaz de confiar nele e abra mão de algo seu a favor do outro (solidariedade) se necessário for quando este está carecido.

Tudo isto só é possível (não estando inclusive garantido) se a criança se sentir amada e cuidada desde o início pelos seus pais e outros familiares, pois não se poderá dar aos outros em adulto aquilo que não se recebeu na infância e juventude.

Porém, se a criança nasce e passado pouco tempo tem de sair do convívio dos pais e habitar em residências de acolhimento onde se mantem ano após ano, claro está que não se podem formar os mencionados laços afetivos próprios da filiação, os quais pressupõem convívio contínuo e dispensa de afeto parental.

É certo que se provou que «Os progenitores e os avós paternos têm visitado a filha AA no C... (…) sendo que as suas visitas são às segundas-feiras das 15H00 às 16H00, em número de treze até agora, tendo o pai comparecido em todas e a mãe em sete visitas (F. Prov. 148) e que «Nessas visitas os pais e avós mostram-se afetuosos com a criança, tendo a avó materna chorado uma vez com saudades da neta (F. Prov. 149).

Porém, esta situação, apesar de positiva, não é mais que uma visita semanal (1 hora em 168 horas) e não gera vinculação entre a menor e os seus familiares porque não há proporciona condições de convívio para isso ser efetivo.

Cumpre concluir esta parte referindo que a institucionalização desta criança (ou qualquer outra), agora com quase 10 meses, sem perspetivas de regresso ao convívio com os seus pais e familiares, inviabiliza a formação dos vínculos próprios da filiação a que se refere a al. d) do n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil.

c) Os pais recorrentes argumentam que a medida de apoio junto dos pais ou/e dos avós paternos é a medida adequada a este caso, pois quer o pai, quer a mãe, quer os avós paternos interessam-se pela criança e querem tê-la com eles e tal medida é viável mormente quando integrada com a orientação e vigilância dos serviços de apoio social.

Alertando ainda para a circunstância de não existirem boas perspetivas da menor vir a ser adotada devido aos problemas de saúde e, por isso, o corte com a sua família biológica implicará que a criança cresça desenraizada de laços familiares e relações afetivas.

Quanto a este último aspeto, é verdade que a adoção, como facto futuro, não está garantida, mas isso ocorre em todos os casos em que tal medida é decretada.

Os problemas de saúde não favorecem a adoção, mas não se mostra que sejam insuperáveis.

Relativamente às medidas alternativas promotoras do regresso da menor à família biológica, com apoio junto dos pais e/ou avós paternos, cumpre referir que não se mostra viável neste momento, nem há elementos factuais que permitam concluir que isso poderá ser viável no prazo de 6 meses, ou de 1, 2 ou mais anos.

Neste prognóstico, o indicador mais fiável que o tribunal tem é aquilo que já conhece, ou seja, o passado familiar.

Os Recorrentes e familiares (em especial os adultos, os avós paternos) não mostraram capacidade para cuidar da criança, proporcionando-lhes um ambiente familiar minimamente seguro, não só em termos de cuidados alimentares, mas especialmente de saúde e de afetividade.

Não se trata apenas de pobreza material, a qual, é certo, só por si é um enorme entrave ao sucesso familiar, muitas vezes insuperável, mas essencialmente de postura comportamental, de força de vontade e persistência para, através de ações concretas, lograr viver em paz e harmonia, mesmo na pobreza.

Muito embora seja verdade que as pessoas podem mudar de posturas, de comportamentos, e de facto mudam, um dos modos mais fiáveis de prognosticar o comportamento futuro das pessoas é olhar, quando isso é possível, para o que elas fizeram no passado em situações semelhantes, pois é de presumir que as pessoas se comportam no futuro obedecendo aos mesmos valores e fazendo uso das mesmas faculdades e capacidades que já exibiram no passado.

O que ocorreu no passado acabou de ser mencionado e consta da matéria de facto.

Quer-se dizer com isto, que, na falta de elementos factuais objetivos, que neste caso não existem, não temos fundamento para supor que o futuro desta criança entregue à sua família vai ser diferente do passado que já é conhecido, ou seja, o padrão observado no passado será aquele que, em regra, podemos esperar no futuro.

E se nestes primeiros 10 meses de vida a menor tem tido uma vida atribulada e desprovida dos cuidados e dos afetos que normalmente são dispensados a uma criança pelos seus pais, não temos razões para supor que continuando na instituição, com visitas dos pais e familiares, com vista ao regresso ao seio familiar, esta situação se alteraria com sucesso.

Antes pelo contrário, o comportamento passado leva-nos a concluir que, podendo existir uma melhoria inicial, depressa se regressaria ao que já é conhecido e que levou à institucionalização da menor, pois não é fácil reverter modos ou maneiras de estar e encarar a vida já enraizados.

Com efeito, como resulta da matéria de facto (F. Prov. 118/120) e já foi acima realçado, os avós paternos têm a cargo 4 netos, com 15, 11, 10 e 8 anos de idade, todos com processo de promoção ativo e o próprio pai da menor foi objeto de processo de proteção.

E não se afigura que esta situação se inverta com a ajuda e vigilância dos técnicos dos serviços sociais, pois estes, como é sabido, não acompanham diariamente, hora a hora, nem podem acompanhar, o que se passa na intimidade dos agregados familiares.

Acresce que a menor tem problemas de saúde que requerem vigilância apertada e prolongada no tempo e os familiares, apesar das suas boas intenções, não mostram possuir sensibilidade, talvez por falta de conhecimentos ou força de vontade, para interiorizar a gravidade da situação e agir em conformidade.

Depois, as medidas «no meio natural de vida» podem durar no máximo 18 meses – artigo 60.º, n.º 2 da LPCJP – e não é certo que nos próximos 18 meses a situação familiar que levou à institucionalização esteja superada, pelo que perscrutando o futuro imediato dos próximos 1 ou 2 anos não se mostra previsível o regresso da menor ao ambiente familiar.

d) Os Recorrentes defendem ainda a manutenção da institucionalização com posterior evolução para convívios temporalmente mais alargados no seio da família, como, por exemplo, aos fins de semana.

Esta medida poderia ser adotada se a institucionalização tivesse ocorrido devido a uma situação passageira que tivesse surgido acidentalmente no agregado familiar da menor e que carecesse apenas de uma saída do agregado durante algum tempo.

Mas, não é o caso, como já se vem referindo, pois não há perspetivas de que as condições atuais melhorem no futuro só pelo passar do tempo.

Ora, se já é difícil cuidar adequadamente daquelas 4 crianças, o sucesso com mais uma, e esta com apenas 10 meses de idade, fica mais difícil de perspetivar o respetivo êxito.

A manutenção e prolongamento da vida de uma criança de 10 meses de idade numa instituição social não é um projeto de vida para esta criança, pois só aí permanece porque não tem uma família onde possa crescer.

Mais uma vez se realça que é fundamental para o desenvolvimento salutar da criança, nas suas dimensões corporal e espiritual, que ela viva integrada numa família onde se possa autoperceber como alguém que tem valor; que aí é amada e respeitada, pois só vivendo estes sentimentos estará em condições de os retribuir no futuro a outros e de os colocar em prática na sua vivência social quando for jovem e depois adulto.

Ora, se as crianças nascem e passado pouco tempo têm de sair do convívio dos pais e habitar em residências de acolhimento onde se mantêm ano após ano, claro está que não se podem formar os mencionados laços afetivos próprios da filiação, os quais pressupõem convívio contínuo e dispensa diária de afeto parental.

E esta situação não se supera com convívios de fins de semana, que, por outro lado, só seriam viáveis a partir do momento em que a criança já tivesse alguma autonomia e não carecesse de cuidados aturados.

Os convívios ao fim de semana, porventura a partir dos 2,5/3 anos de idade não gerariam laços afetivos próprios da filiação, porquanto, como se disse, estes exigem para se formarem e manterem, convívio contínuo com ambos ou algum dos pais, ou com quem ocupe o seu lugar, situação esta agravada no caso concreto pelo facto de eles não existirem neste momento no que respeita à criança que está institucionalizada desde os 3 meses de idade (F. Prov. 83).

Afigura-se, pois, que a situação factual se enquadra na situação subsumível ao disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 1978.º do Código Civil, atrás já transcrito, onde se prevê a hipótese dos pais colocarem seriamente em risco a formação dos vínculos afetivos próprios da filiação.

As crianças carecem de uma família onde possam experimentar o amor paternal e retribuí-lo, sob pena de serem amputadas de uma vivência fundamental para a respetiva formação e realização pessoal futura.

Concluindo, verifica-se que os pais dos menores e restantes familiares, em conjunto ou individualmente, não conseguiram criar um lar para acolher a menor o que levou à separação de pais e filha e nesta idade precoce não tem permitido e inviabiliza até para futuro a formação de vínculos próprios da filiação, não sendo possível prognosticar um futuro diverso do passado, pelo que a medida de confiança com vista a futura adoção decretada pelo tribunal recorrido se revela adequada aos factos, o que implica a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelos Recorrentes


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Coimbra, 13 de dezembro de 2022