Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
12/19.0GCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: APREENSÃO DE VEÍCULO
FALTA DE SEGURO OBRIGATÓRIO
CESSAÇÃO
DESOBEDIÊNCIA
Data do Acordão: 06/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 150.º E 162.º, N.ºS 1, AL. F), 2 E 6, DO CE; ARTIGO 348.º, N.º 1, AL. B), DO CP
Sumário: I – Por força das disposições, conjugadas, dos n.ºs 2 e 6 do artigo 162.º do Código da Estrada, a apreensão nelas prevista, fundada em falta de seguro, apenas cessa quando for efectuada, perante a administração, prova da transferência da responsabilidade civil decorrente da utilização do veículo.

II – Sem que tal aconteça, a ordem de não circulação dada ao condutor e depositário constituído do veículo continua legalmente válida, sendo a sua violação adequada ao preenchimento do crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do CP, se verificados os demais elementos do tipo.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:       

 

I. Relatório

I.1 No processo sumário 12/19.0GCCBR da Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal de Coimbra – J2, após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Pelos fundamentos expostos, julgo procedente a acusação, e em consequência:

a) Condeno o arguido A. pela prática de um crime de desobediência previsto e punido pelos artigos 348º, n.º 1, al. b), 14º, n.º 1 e 26º, todos do Código Penal pena de onze meses de prisão efectiva.

(…).


*

I.2 Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

“1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão final que, salvo o devido respeito condenou erradamente o arguido pelo crime de desobediência, devendo este ser absolvido.

2. Por via do disposto no artigo 162.º, n.º 2 do Código da Estrada, o veículo que o arguido conduzia já não se podia considerar apreendido a 19 de Agosto de 2019.

3. De facto, tal artigo estabelece um prazo máximo (90 dias) para essa apreensão (e depósito) e portanto estabelece um prazo máximo para as obrigações enquanto fiel depositário.

4. Decorrido o prazo de 90 dias desde a apreensão de 21 de Outubro de 2016, na falta de uma declaração que o declarasse tal veículo perdido a favor do Estado, a 19 de Agosto de 2019 o veículo era propriedade do arguido e já há muito que não se encontrava à ordem de poder público.

5. Não o permitindo a lei, também não se podem manter as obrigações e ordens que lhe foram dadas enquanto fiel depositário, que radicavam nessa apreensão.

6. Sem prescindir, mesmo a prova documental existente nos autos não é passível de demonstrar que o veículo se encontrasse efectivamente apreendido a 19 de Agosto de 2019, existindo apenas um print (nem sequer uma certidão, como fora solicitado) que se reporta à situação do veículo à data de 21 de Agosto de 2019, ou seja, dois dias depois dos factos destes autos.

7. De resto, também as declarações das testemunhas, em julgamento, de que tal veículo se encontrava apreendido a 19 de Agosto de 2019, tiveram lugar por mera confirmação verbal, como se refere na motivação da decisão, "via rádio com o Comando", pelo que, por se tratar de testemunho de ouvir dizer deveriam ter sido consideradas imprestáveis como meio de prova.

8. Saíram violados com a decisão ora em apreços violados, além do mais, o artigo 162.º, n.º 2 do Código da Estrada e os artigos 127.º e 129.º do CPP.

Nestes termos, deve o presente recurso ser recebido e em consequência deverá a decisão condenatória ser substituída por outra que absolva o arguido, nomeadamente por falta de prova bastante dos factos que lhe assacam um crime de desobediência.

Só assim se fazendo a costumada Justiça!”


*

I.3

O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, concluindo:

“1. Por sentença datada de 14/11/2019, foi o ora recorrente A. condenado pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 11 (onze) meses de prisão efetiva.

2. Por ter transitado com o veículo de matrícula 21-79-FD, sem que fosse titular do necessário seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, violando assim o disposto no n.º 1, do artigo 150.º do C.E., foi-lhe o mesmo apreendido, em 21/10/2016, pela competente autoridade de trânsito, que o constituiu como fiel depositário e informou das inerentes obrigações, incluindo a proibição de a fazer transitar, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.

3. Pelo que, ao circular, no dia 19/08/2019, com a viatura apreendida nos termos descritos em 2., e com plena consciência do seu ato, o ora recorrente preencheu todos os elementos dos tipos objetivo e subjetivo do crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

4. De facto, está em causa uma ordem (apreensão) formal e substancialmente legal, emanada de autoridade competente, regularmente comunicada ao destinatário, com a necessária e expressa cominação, a conferir à conduta infratora, o carácter de desobediência. E verifica-se o não acatamento da ordem, consubstanciado na condução da viatura em causa.

5. A apreensão da viatura não havia cessado à data dos factos pelo decurso do tempo e a ausência de declaração de perdimento do veículo a favor do Estado, sendo certo que a cessação da apreensão apenas ocorre com a prova, perante a administração, da celebração do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel cuja falta legitimou a referida apreensão, conforme decorre da leitura da disposição contida na parte final, do n.º 6, do artigo 162.º, do C.E.

6. Se decorridos 90 dias sobre a data da apreensão da viatura e perante a inércia do Estado em declarar a viatura perdida em seu favor, o infrator, constituído fiel depositário da mesma, se visse liberto do ónus que sobre si impendia, ainda que não tivesse celebrado contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o ato de apreensão revelar-se-ia inócuo e desprovido de significância.

7. Sendo válida, vigente e legítima a ordem de apreensão e, como se consignou como provado, tendo o arguido plena consciência de que desobedecia à mesma ordem, é óbvio que o desrespeito tinha de ser punido; como foi.

8. A valoração da prova documental não pode segmentar-se da demais prova carreada para os autos. Os elementos documentais foram concatenados, como não podiam deixar de o ser, com os depoimentos das testemunhas identificadas nos autos, bem assim com as denominadas presunções de facto, que que se fundam nas regras da experiência comum.

9. Bem andou o tribunal a quo ao considerar provado, à data de interesse, o estado de apreendido do veículo em apreço, não tendo omitido o dever de fundamentação quanto à formação da respetiva convicção, tal como lhe é imposto pelos artigos 97.º, n.º 5 e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

10. Os depoimentos prestados pelos militares da Guarda Nacional Republicana nos presentes autos não configuram, de modo algum, depoimentos indiretos. Na verdade, os mesmos declararam ter verificado no local que o veículo não tinha inspeção, nem seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, estando por isso apreendido, o que apenas confirmaram, em ato posterior, via rádio, junto do Comando.

11. Não foram violadas quaisquer normas legais, nomeadamente as disposições contidas nos artigos 162.º, n.º 2, do Código da Estrada e 127.º e 129.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida, nos seus precisos termos, a douta decisão recorrida. V.ªs Ex.ªs, porém, decidirão conforme for de Direito e de Justiça!”


*

I.4

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

“(…) 4. Quanto ao objecto do recurso, acompanhamos a bem fundamentada resposta do Ministério Público junto da 1ª instância, na defesa da douta sentença recorrida, a qual já responde de forma cabal às questões colocadas na motivação.

Desde logo, nesse sentido apenas em reforço da posição já assumida deveremos dizer que que não se verifica no texto da decisão recorrida por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum qualquer dos vícios previsto no art.º 410º, n.º 2 do CPP.

Quando o recorrente argumenta que a prova produzida se apresentou insuficiente está a impugnar a decisão sobre o julgamento feito em matéria de facto no âmbito da eventual violação dos princípios previstos no art.º 127º do CPP.

Deste modo, as questões suscitadas no recurso apresentado pelo arguido quanto à matéria de facto e, não se vislumbrando a sua caracterização como qualquer dos vícios previstos no art.º 410º, n.º 2 do CPP, essa impugnação reconduz-se em substância à impugnação da mesma matéria no âmbito das normas que estão previstas no art.º 127º do CPP.

Será nesta perspectiva que, a nosso ver, o recurso deverá ser apreciado.

Com efeito, quanto à incorrecção da apreciação das provas, o recorrente faz a sua própria avaliação da prova que foi produzida, contrapondo-a ao juízo crítico que foi feito pelo tribunal, sendo certo que a avaliação que releva, em termos de recurso, é a do Tribunal, no âmbito da livre apreciação da prova concedida pelo art.º 127.º do C.P.P., onde se consagra que “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”, a fazer com observância das regras da prova vinculada, as quais, contrariamente ao alegado pelo recorrente, se mostram satisfeitas como resulta da fundamentação e exame crítico da sentença.

Neste sentido, é claro o raciocínio e o percurso lógico percorrido pelo Tribunal recorrido, na apresentação e na formulação do seu juízo, na apreciação crítica que fez da prova. Não se vislumbra aí qualquer erro ou vício, nem se mostra insuficiente ou passível de qualquer dúvida de que os factos ocorreram como estão dados como provados.

Os depoimentos prestados foram avaliados na sua apreciação global e conjugada também com a documentação junta aos autos, sem que mereça censura, não havendo lugar a qualquer alteração da matéria de facto, por tudo o mais referido na resposta do Ministério Público na 1ª instância.


*

Em conclusão, acompanhando o Ministério Público na 1.ª instância, julgando-se improcedente o recurso, deverá ser mantida a douta sentença recorrida.”

I.5

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, respondeu o arguido nos termos já expostos no recurso.


*

I.6

Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.


*

II. Decisão Recorrida:

“Factos Provados da Acusação Pública:

1. No dia 19 de agosto de 2019, cerca das 11h00m, o arguido A. conduziu o veículo ligeiro de marca Opel, com a matrícula (…), na Rua Principal, em (…).

2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar o arguido foi fiscalizado pela GNR, sendo que o veículo conduzido pelo arguido tinha-lhe sido anteriormente apreendido por falta de seguro de responsabilidade civil obrigatório e inspeção periódica, tendo os agentes verificado que o arguido não fizera entretanto qualquer seguro ou submetera para inspeção o referido automóvel.

3. Com efeito, no dia 21 de outubro de 2016, a GNR de Coimbra, procedeu à apreensão do veículo ligeiro de marca Opel, com a matrícula (…), nos termos do disposto no art. 161º nº 1 al. e) do Código da Estrada, por o arguido não ter feito o pertinente seguro de responsabilidade civil e inspeção periódica, auto que o arguido assinou, tendo sido nomeado fiel depositário, com a obrigação de não utilizar o veículo sob pena de incorrer na prática do crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º do CP.

4. Não obstante estar ciente das suas obrigações enquanto fiel depositário o arguido conduziu o veículo nas circunstâncias supra descritas.

5. O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punida.

Outros Factos Provados:

6. O arguido nasceu em 21.12.1949, é divorciado, e está aposentado.

7. O arguido nasceu numa família de modestas condições sociais e económicas, mas sem privação da satisfação das necessidades básicas.

8. Terminou o 6º ano de escolaridade e começou a trabalhar aos 13 anos.

9. Durante o seu percurso laboral trabalhou como artesão (confecção de chapéus de jardim em palha), “caixeiro-viajante”, e, mais tarde, como motorista.

10. Casou aos 25 anos, teve dois filhos e na década de 80 emigrou, juntamente com a família, para Espanha, onde continuou a trabalhar como motorista.

11. Divorciou-se e regressou ao país de origem, em total rotura com a família constituída.

12. Quando regressou a Portugal, cerca de vinte anos depois, reformou-se, actualmente com uma pensão de cerca de € 300,00, e passou a residir numa casa pertença à Conferência (…), que, embora com uma renda baixa, está frequentemente em situação de incumprimento quanto ao seu pagamento.

13. O arguido é reconhecido no meio de residência por ter um temperamento muito conflituoso e provocador, que o leva a ser persona non grata pela vizinhança e a não ter qualquer relação com a família, quer com a de origem, quer com as filhas.

14. O arguido foi recentemente submetido a intervenção cirúrgica do foro ortopédico ao joelho esquerdo.

15. Não apresenta antecedentes médico-psiquiátricos, mantém conservada para os factos de que vem acusado a capacidade de avaliar a sua ilicitude e de se determinar de acordo com essa a avaliação efectuada.

16. O arguido já foi anteriormente condenado nos seguintes processos:

i. Comum Singular nº 310/15.2JACBR, do Juízo Local Criminal de Coimbra, J1, pela prática de um crime de incêndio, explosão e outras condutas perigosas, na forma tentada, por factos de 22.06.2015, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, com regime de prova, por sentença proferida em 08.06.2017 e transitada em julgado em 10.07.2017;

ii. Sumário nº 274/17.8PTCBR, do Juízo Local Criminal de Coimbra, J2, pela prática de um crime de desobediência, por factos de 06.09.2017, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 6, por sentença proferida em 21.09.2017 e transitada em julgado em 30.10.2017;

iii. Sumário nº 141/18.8GDCBR, do Juízo Local Criminal de Coimbra, J3, pela prática de um crime de desobediência, por factos de 23.07.2018, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 5, por sentença proferida em 23.07.2018 e transitada em julgado em 01.10.2018;

iv. Sumaríssimo nº 238/17.1PTCBR, do Juízo Local Criminal de Coimbra, J3, pela prática de um crime de desobediência, por factos de 26.05.2017, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 7, por sentença proferida em 26.05.2017 e transitada em julgado em 14.02.2018;

v. Sumário nº 199/17.7GDCBR, do Juízo Local Criminal de Coimbra, J1, pela prática de um crime de desobediência, por factos de 21.09.2017, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 6, por sentença proferida em 22.09.2017 e transitada em julgado em 23.10.2017;

vi. Sumaríssimo nº 112/17.1GDCBR, do Juízo Local Criminal de Coimbra, J1, pela prática de um crime de desobediência, por factos de 29.05.2017, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 7, por sentença proferida em 16.10.2017 e transitada em julgado em 07.11.2017;

vii. Abreviado nº 27/17.3GDCNT, do Juízo Local Criminal de Coimbra, J1, pela prática de um crime de desobediência, por factos de 10.02.2017, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5, por sentença proferida em 13.12.2017 e transitada em julgado em 25.01.2018.

viii. Nos autos de processo sumário nº 168/18.0GGCBR, pela prática de um crime de desobediência, cometido em 28.11.2018, na pena de 6 meses de prisão substituída por 180 de trabalho a favor da comunidade, por sentença transitada em julgado em 11.02.2019.

ix. Proc. nº 338/15.2GDCBR, do Juízo Local Criminal de Coimbra, J1, pela prática de um crime de dano, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 212º, nº 1 e 2, 22º, nº 1 e 2, al. b) e 23º, todos do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 1200 (mil e duzentos euros);

x. Sumário nº 83/19.0GCLSA, do Juízo de Competência Genérica da Lousã, pela prática em 16/05/2019, em autoria material e na forma consumada de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, n.º 1, alínea b), do Código Penal numa pena de seis meses de prisão.

xi. Sumário 183/19.6GDCBR, do Juízo Local Criminal de Coimbra, Juiz-2, pela prática de um crime desobediência praticado em 19/07/2019, sentença proferida em 31/07/2019, transitada em 30/09/2019, na pena de dez meses de prisão suspensa na sua execução.

xii. Sumário nº 138/19.0GCLSA do Juízo Local Criminal de Coimbra, J3, por sentença proferida em 19/09/2019 e transitada em julgado em 21.10.2019, pela prática de um crime de desobediência, por factos de 27/08/2019, na pena de um ano de prisão, a qual, ao abrigo do disposto nos arts. 50º, nºs 1 e 2, e 53º, nºs 1 e 2 do Código Penal, foi suspensa na sua execução pelo período de dois anos, subordinada ao cumprimento pelo arguido de um regime de prova, assente num plano de reinserção social, por forma a alcançar os seguintes objectivos:

- Prevenir o cometimento pelo arguido no futuro de factos de idêntica natureza;

- Permitir o confronto do arguido com as suas acções e tomada de consciência das suas consequências, de forma a que o mesmo adquira competências pessoais e sociais, tendentes a determinar-se no futuro de acordo com o direito, evitando a reincidência;

xiii. O arguido encontra-se preso desde o passado dia 30 Outubro, no âmbito do processo 83/19.0GCLSA, no cumprimento de seis meses de prisão.


*

Factos Não Provados: Não existem factos não provados com relevância para a boa decisão da causa.”

*

CONVICÇÃO DO TRIBUNAL:

(…).


*

            A sentença recorrida contém os seguintes fundamentos de direito no que respeita à parte impugnada:

(…).


***

III. Apreciação do Recurso

1 - O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P. - Ac. STJ de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271).

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do C.P.P.

 

2- As questões a conhecer são as seguintes:

- Saber se em 19.8.2019 o veículo matrícula 21-79-FD se encontrava apreendido:

- prova documental;           

- prova testemunhal - depoimento indirecto. 

- saber se decorrido o prazo de 90 dias indicado no nº 2 do artigo 162º do Código da Estrada - sem que tenha havido declaração de perda do veículo a favor do Estado - cessa a apreensão do veículo e as obrigações do depositário.


*

III-2 Apreciando:

III.2.1. Conforme resulta do facto provado nº 3, no dia 21 de outubro de 2016, a GNR de Coimbra, procedeu à apreensão do veículo ligeiro de marca Opel, com a matrícula (…), nos termos do disposto no art. 161º nº 1 al. e) do Código da Estrada, por o arguido não ter feito o pertinente seguro de responsabilidade civil.

O arguido assinou o respectivo auto - cfr fls 40 e 51 -, tendo sido nomeado fiel depositário, com a obrigação de não utilizar o veículo sob pena de incorrer na prática do crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º do CP.

No dia 19/08/2019 o arguido circulou com a com a viatura ligeira de marca Opel, com a matrícula (…) apreendida, que continuava sem seguro de responsabilidade civil válido, e sem inspecção periódica obrigatória desde 19-04-2016, conforme auto de notícia de fls 4 e 5.

O arguido tinha o prazo de 90 dias para regularizar a situação sob pena de perda do veículo a favor do Estado - art 162º, nº 2, do CE.

Não procedeu à regularização da situação e pretende agora que por ter decorrido o aludido prazo de 90 dias, sem a declaração de perda do veículo, a apreensão cessou e por consequência cessaram as suas obrigações como depositário.

Ora, da norma em questão não resulta a cessação automática da apreensão por força do decurso do prazo de 90 dias, nem a automática declaração de perda do veículo.            

Estabelece a norma o prazo de 90 dias para que o titular do documento de identificação do veículo diligencie no sentido da regularização da situação que deu causa a apreensão, com a advertência de que decorrido tal prazo, pode vir a ser declarada a perda do veículo a favor do Estado.

Contudo, enquanto a situação não for regularizada e provada junto da ANSR, mantém-se a apreensão até que tal suceda ou até que ocorra a declaração de perda do veículo.

É o que resulta da interpretação do preceito legal em questão.

Com efeito, sendo certo que as normas do Código da Estrada não referem expressamente quando cessa a apreensão, da conjugação do nº 2 com o nº 6 do art 162º do CE resulta inequívoco que a apreensão fundada em falta de seguro apenas cessa quando for efectuada perante a administração prova da efectivação do seguro.

Repare-se que tal norma prevê a manutenção da apreensão, nas condições que assinala, ”sem prejuízo da prova da efectivação de seguro”.

Ou seja, pressupõe a comprovação oficial da efectivação do seguro obrigatório, como condição do levantamento da apreensão e consequente restituição dos documentos do veículo e cessação das obrigações do fiel depositário. Excepto no caso de acidente, em que apreensão (referida na alínea f) do n.º 1) se mantém até que se mostrem satisfeitas as indemnizações dele derivadas (ou, se o respectivo montante não tiver sido determinado, até que seja prestada caução por quantia equivalente ao valor mínimo do seguro obrigatório). Claro que se refere a indemnizações não satisfeitas pelo Fundo de Garantia Automóvel - nº 7 do art 162º do CE - nos termos de legislação própria.

Neste sentido Ac Relação de Coimbra, de 8 de Outubro de 2014, relatora Des. Maria Pilar de Oliveira onde se decidiu:

“À luz do disposto no artigo 162.º, n.ºs 1 e 6, do Código da Estrada, a apreensão nele referida, fundada em falta de seguro, apenas cessa quando for efectuada, perante a administração, prova da efectivação da transferência da responsabilidade civil decorrente da utilização do veículo;

Até esse momento a ordem de não circulação dada ao condutor e depositário constituído do veículo continua legalmente válida, sendo a sua violação adequada ao preenchimento do crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do CP, se verificados os demais elementos do tipo”.

Aí se ponderou “Mal se compreenderia aliás que a apreensão se pudesse considerar cessada à revelia da administração, sem o que o infractor da falta de seguro tivesse que comprovar oficialmente a sua realização. Do mesmo modo só através dessa comprovação poderá reaver os documentos do veículo igualmente apreendidos.”

Tem pois razão o MP quando na resposta questiona que “De facto, se decorridos 90 dias sobre a data da apreensão da viatura e perante a inércia do Estado em declarar a viatura perdida em seu favor, o infrator, constituído fiel depositário da mesma, se visse liberto do ónus que sobre si impendia, ainda que não tivesse celebrado contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o ato de apreensão revelar-se-ia inócuo e desprovido de significância.”


*

III.2.2 - Entende ainda o recorrente que “a prova documental existente nos autos não é passível de demonstrar que o veículo se encontrasse efectivamente apreendido a 19 de Agosto de 2019, existindo apenas um print (nem sequer uma certidão, como fora solicitado) que se reporta à situação do veículo à data de 21 de Agosto de 2019, ou seja, dois dias depois dos factos destes autos.”

Acrescenta que as declarações das testemunhas, em julgamento, de que tal veículo se encontrava apreendido a 19 de Agosto de 2019, tiveram lugar por mera confirmação verbal, como se refere na motivação da decisão, "via rádio com o Comando", pelo que, por se tratar de testemunho de ouvir dizer deveriam ter sido consideradas imprestáveis como meio de prova.

Considerando a motivação da sentença recorrida, a prova de que à data dos factos - 19/08/2019 -, o veículo de matrícula 21-79-FD permanecia apreendido, para além dos “prints” de consultas efectuadas na Base de Dados do Instituto da Mobilidade e dos Transportes em 17/07/2019 (fls. 13) e 21/08/2019 (fls. 42), resultou dos depoimentos de (…), Guarda da GNR e (…), Mestre Florestal, os quais mereceram a credibilidade do tribunal. Foram ainda valorados o teor do auto de notícia de fls. 4 e 5, o auto de apreensão de veículo e documentos relacionados de fls. 40 e sgs. e os fotogramas de fls. 79 a 83. Obviamente que todos os elementos de prova foram conjugados entre si e com as presunções de facto, que se fundam nas regras da experiência comum.

Razão por que a data dos “prints” é insuficiente para infirmar a situação de apreensão da viatura de matrícula 21-79-FD à data de 19/08/2019.

No que respeita à valoração dos depoimentos das testemunhas (…) e (…), militares da Guarda Nacional Republicana, o tribunal recorrido considerou que «de forma objectiva e convincente esclareceram a situação, designadamente, confirmando as circunstâncias de tempo, modo e lugar como fiscalizaram o aqui arguido, as razões pelas quais o fizeram, os procedimentos adotados e a postura do arguido, elucidando ainda o tribunal, de forma congruente com as fotografias que obtiveram (…), que a viatura circulava naquela via principal em muito mau estado de conservação o que lhes chamou a atenção, tendo verificado e confirmado via rádio com o Comando que o veículo não tinha inspecção, nem seguro de responsabilidade civil obrigatória e que, por isso, se encontrava apreendido, o que o arguido demonstrou ser sabedor».

Assim os depoimentos não são indirectos, na medida em que relatam a ocorrência realizada pessoalmente pelas testemunhas, incluindo a natural reacção de quem foi surpreendido na proibida circulação, tudo devidamente justificado do ponto de vista processual numa relação de imediação com as circunstâncias que se depararam às testemunhas no exercício das suas funções (artigo 249º do CPP) numa evidente relação de proximidade sobre o veículo que já antes havia apreendido. E o que resulta do depoimento das testemunhas baseia-se no seu conhecimento directo, advindo da intervenção na acção de fiscalização e na necessidade de constatação de dados relevantes e sua comprovação não só para a existência do crime como do seu autor. Estando os agentes encarregados de tal acção, obrigados não só à sua realização como ao recolhimento de todos os elementos relevantes.

Daí que tenham declarado ao tribunal recorrido ter verificado no local que o veículo não tinha inspecção, nem seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, estando por isso apreendido, o que apenas foi confirmado via rádio junto do Comando. Ou seja, a inexistência do seguro e da inspecção foi resultado de uma percepção directa dos factos, tendo a constatação da apreensão resultado de pesquisas efectuadas, pelos próprios, no local e de imediato documentado nos autos.

Em suma, os depoimentos prestados pelas mencionadas testemunhas não se traduziram em depoimentos indirectos, “de ouvir dizer”, pelo que não ocorreu a invocada violação do artigo 129.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, pelo que se impõe a improcedência do recurso neste âmbito.


*

A ser assim, apesar de há muito ultrapassado o prazo de 90 dias e ainda que sem declaração de perda do veículo, mantendo-se a respectiva apreensão, ao circular, no dia 19/08/2019, com a viatura apreendida nos termos descritos, o arguido recorrente incorreu no crime de desobediência simples, conforme o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2009, publicado no Diário da República, 1.ª série, nº 55 de 19 de Março de 2009, que uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:

«O depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal e não o crime de desobediência qualificada do artigo 22.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro».

O crime de desobediência imputado consubstancia-se no facto de o arguido ter conduzido uma viatura apreendida por falta de seguro e de que era fiel depositário, tendo sido previamente advertido pela autoridade policial que se o fizesse incorreria na prática de um crime de desobediência.

Conforme resulta do nº 1, do Artigo 150.º do CE “Os veículos a motor e seus reboques só podem transitar na via pública desde que seja efetuado, nos termos de legislação especial, seguro da responsabilidade civil que possa resultar da sua utilização.”

Daí que não se suscitem dúvidas quanto à legitimidade da competente autoridade de trânsito para, ao apreender o veículo por falta de seguro «proibir» o depositário de o fazer transitar.

Perante quadro fáctico apurado é manifesto que se encontram preenchidos os elementos objectivos do tipo de crime e consistentes na legalidade formal e substancial da ordem/apreensão, na competência da autoridade que a determinou, na regularidade da sua comunicação ao destinatário e na cominação expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta infractora o carácter de desobediência.

Resulta também dos factos provados nºs 4 e 5 o elemento subjectivo do tipo de crime de desobediência, na modalidade de dolo directo.

Improcede também neste segmento o recurso interposto pelo arguido.

IV. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a sentença recorrida.

Custas a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Coimbra, 24 de Junho de 2020

Processado e revisto pela relatora

Isabel Valongo (relatora)



Jorge França (adjunto)