Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
274/09.1TBLRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
REPETIÇÃO
CASO JULGADO
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.381, 383, 386, 387, 401, 675 CPC
Sumário: I – Devido à natureza e finalidades dos procedimentos cautelares, o instituto do caso julgado não se lhes aplica, mas o legislador preveniu o alcance dos mesmos efeitos práticos através da figura da repetição da providência, prevista no n.º 4 do artigo 381.º do Código de Processo Civil.

II – Há repetição da providência cautelar quando, entre as mesmas partes, na primeira delas se pediu, genericamente, a restituição provisória da posse sobre um prédio, que foi denegada, e na segunda se pede, quanto ao mesmo imóvel, a suspensão de obras de remodelação do terreno, abate de árvores, destruição do seu coberto natural, abertura e alargamento de acessos e proibição de uso de serventia localizada no mesmo terreno, na medida em que estas segundas acções sejam a continuação das acções que já serviram de fundamento à primeira providência e constituam actos em que possa decompor-se a posse genérica alegada e declarada improcedente na primeira providência.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

*

Recorrentes….A (…) e mulher M (…)

Recorridos      G (…) e mulher D (…)


*

I. Relatório.

a) Os recorrentes instauraram a presente providência cautelar por apenso à acção com processo ordinário n.º 274/09.1TBLRA, com o fim de:

(1) Obterem a suspensão das obras de remodelação do terreno e do abate de árvores e destruição do seu coberto natural que vêm realizando num prédio que identificam no artigo 1.º da petição, tratando-se do prédio rústico, sito em ..., freguesia dos ..., adquirido pelos pais e sogros dos autores, por escritura de 22 de Fevereiro de 1952, referindo-se no artigo 2.º da petição que à data este prédio estava inscrito na matriz rústica da mesma freguesia sob o artigo ..., o qual mais tarde terá dado origem, dizem, aos prédios dos artigos matriciais ... e x... da mesma freguesia;

(2) Obterem a suspensão das obras relativas à abertura e alargamento de acessos na parcela de terreno em questão;

(3) Obterem a proibição, em relação aos requeridos, do uso ilícito e abusivo da serventia descrita nos artigos 14.º, 16.º, 18.º e 19.º (o artigo 14 refere-se a um «carreiro a pé» com cerca de 8 metros de comprimento por 1 metro de largura, com início num antigo caminho público, que hoje constitui na Rua ..., carreiro que os requerentes no artigo 16 da petição dizem ter sido transformado pelos requeridos numa autêntica estrada por onde transitam para levar a efeito as obras cuja suspensão pedem.

b) A providência foi julgada improcedente, em síntese, pelas seguintes razões:

(1) Por se ter considerado que já antes tinha sido julgada no âmbito desta mesma acção uma outra providência cautelar cujo objecto é sobreponível ao do presente procedimento cautelar.

Na anterior providência os requerentes pediram a restituição provisória da posse do prédio constituído por «terra de semeadura», inscrito na matriz predial rústica da referida freguesia sob o art. x..., a qual foi inicialmente decretada, mas depois revogada, após dedução de oposição, que foi julgada procedente.

Os requerentes, além dos factos relativos à aquisição e posse daquele prédio (art. 2º a 5º do requerimento inicial), alegaram também que os requeridos haviam invadido este prédio; tinham fechado com um portão o seu acesso do e para o caminho; haviam transportado para o seu interior pedras volumosas e blocos de cimento, com as quais construíram muros de suporte, utilizando para o efeito máquinas pesadas (tipo retroescavadora); tinham aberto caminhos e valas, movimentado terras, procedido ao arranque de oliveiras e de sobreiros, bem como derrubado uma vedação e removido marcos.

Alegaram ainda nessa primeira providência cautelar que os requeridos estavam a edificar novos muros, incluindo um no meio da propriedade e em toda a sua extensão Nascente – Poente.

Esta providência para restituição provisória da posse veio a ser considerada injustificada por, em síntese, não se ter provado indiciariamente que as obras/trabalhos realizados pelo requerido tenham sido feitos no prédio que os requerentes afirmaram pertencer-lhes.

No despacho que indeferiu a presente providência cautelar considerou-se, porém, que esta segunda providência é diversa da anterior, na medida em que a primeira respeitou à restituição provisória da posse, prevista no art. 393.º e seguintes do Código de Processo Civil, o que não ocorre nesta segunda.

Por conseguinte, não existe repetição da providência em contravenção ao disposto no artigo 381.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.

Apesar desta conclusão entendeu-se existir uma situação de caso julgado formado pela decisão da primeira providência que inviabiliza o prosseguimento desta segunda, na medida em que, na providência de restituição provisória da posse (a primeira), o tribunal teve de analisar, em termos indiciários, a existência ou não do alegado direito de propriedade e respectiva posse dos requerentes quanto ao local onde o requerido realizou os trabalhos.

Indagou-se nessa primeira providência se os trabalhos tinham sido executados no prédio inscrito na matriz rústica sob o art. x..., tendo-se concluído no sentido de não ter ficado demonstrado qualquer direito dos requerentes sobre o local onde estavam a ser executadas as obras ou trabalhos.

Por conseguinte, não podem agora os requerentes voltar a discutir novamente se o local onde o requerido leva a cabo os trabalhos estava na posse dos requerentes ou lhes pertence mesmo, por força do caso julgado formado na primeira providência, argumentando que as situações não enquadráveis no âmbito do art. 381.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, deverão, então, ser resolvidas tendo em consideração o instituto do caso julgado (ac. Supremo Tribunal de Justiça de 12/06/97, no Boletim do Ministério da Justiça n.º 468/335).

(2) Em segundo lugar, considerou-se que a pretensão dos requerentes não pode ser admitida quanto ao pedido de «proibição do uso ilícito e abusivo da serventia descrita nos artigos 14.º, 16.º, 18.º e 19.º», considerando o disposto no art. 383.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, onde se diz que o «procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado».

Ora, uma vez que na acção principal os requerentes pedem que se declare «extinta a única serventia privada a onerar o prédio dos AA, para uso exclusivo do prédio urbano, devido ao seu não uso há mais de 20 anos», os mesmos requerentes não podem neste procedimento cautelar, contraditoriamente, requerer a proibição do seu «uso ilícito».

(3) Quanto à suspensão das obras relativas à abertura e alargamento de acessos na parcela de terreno em questão identificada no art. 1º (serão estas as «demais providências a que alude a decisão sob recurso), entendeu-se que dos factos alegados não se podia concluir pela verificação dos necessários pressupostos, designadamente que antes de proferida decisão na acção declarativa seria causada lesão grave e dificilmente reparável ao invocado direito, não bastando para tanto o alegado nos art. 19.º (alegadas fissuras em muro dos requerentes causadas pela passagem de veículos pesados pela serventia), 21.º (desvio do curso natural de águas das chuvas feito pelos requeridos no prédio objecto de litígio), 24.º (remodelação do terreno e destruição do seu coberto vegetal), 25.º e 26º (perda de composição e configuração do terreno devido ao derrube de árvores e vegetação e terraplanagem).

c) Os requerentes recorrem, em síntese, por três ordens de razão, que se resumem desta forma:

Em primeiro lugar, sustentam que as decisões tomadas nas providências cautelares não formam caso julgado, proibindo a lei apenas a repetição da mesma providência.

Por conseguinte, o argumento do caso julgado invocado como fundamento para o indeferimento não subsiste.

Em segundo lugar, não ocorre falta de correspondência entre o pedido de proibição de passagem pela servidão feito na presente providência e o pedido de extinção da mesma servidão formulado na acção com base no não uso da servidão.

Em terceiro lugar, não procede o argumento da ausência de uma situação de perigo, já que, encontrando-se os trabalhos em curso sobre o terreno, se não for decretada a providência os requeridos podem alterar o terreno como bem entenderem.

d) Os requeridos não contra-alegaram.

e) O objecto do recurso consiste, por conseguinte, nas três questões acabadas de referir na anterior alínea c), isto é:

Em primeiro lugar, cumpre analisar se ocorre uma situação de caso julgado ou de repetição entre a primeira providência já julgada improcedente e este segundo procedimento cautelar.

Em segundo lugar, ver-se-á se ocorre um caso de falta de correspondência entre o pedido feito na providência e o pedido feito na acção, isto é, entre a proibição de passagem pela servidão feito na providência e o pedido de extinção da servidão formulado na acção com base no não uso.

Em terceiro lugar, averiguar-se-á se se verifica ou não uma situação de perigo justificativa da dedução de uma providência cautelar.

II. Fundamentação.

a) A matéria provada relevante para a questão a decidir é esta:

1 - Na primeira providência cautelar os requerentes fizeram este pedido:

«…e, em consequência ordenar a restituição provisória aos requerentes, da posse do prédio identificado no artigo primeiro».

O mencionado «artigo primeiro» teve esta redacção:

«Por escritura de 01/09/1976 (…), os pais e sogros dos requerentes, doaram ao requerente, seu filho, que aceitou a doação, por conta da quota disponível, o seguinte imóvel:

“Terra de semeadura com oliveiras (…), inscrito na Matriz Predial rústica da referida freguesia sob o artigo x... e descrito …”».

No artigo 2.º da deste procedimento cautelar alegam: «Este prédio veio à posse dos doadores por compra a (…); por escritura de 23702/1952 lavrada…».

Seguidamente, no artigo 6.º, escreveram:

«Nos últimos dias do mês findo, os requeridos invadiram o prédio, fecharam com um portão o seu acesso do e para o caminho, transportaram para o seu interior pedras volumosas e blocos de cimento, com as quais construíram muros de suporte, utilizando para o efeito máquinas pesadas (tipo retroescavadora) abriram caminhos e valas, movimentaram terras, procederam ao arranque de oliveiras e de sobreiros, bem como mandaram abaixo vedação e removeram marcos, invadindo até prédios confinantes».

O mês «findo» referido neste artigo da petição é Novembro de 2008, pois a petição tem o carimbo de entrada datado de 19 de Dezembro de 2008.

No artigo 10.º referiram ainda:

«A partir de então, a situação vem-se agravando, a ponto de o requerido ter em construção a edificação de novos muros, incluindo um no meio da propriedade e em toda a extensão Nascente-Poente, cuja oposição do requerente de nada logrou, por via do diálogo…».

2 - A providência com esta causa de pedir e este pedido veio a ser julgada improcedente.

Na respectiva decisão consideraram-se provados estes factos:

«1. Após ter sido concedida a posse provisória do artigo x... rústico de ... aos requerentes no âmbito destes autos, o requerente no dia 03-01-2009, arrancou a vedação existente entre um outro terreno pertença dos pais do mesmo, contínuo ao terreno do artigo n.º ....

2. Por escritura de doação celebrada no dia 18/11/2008, no (…), pelos primeiros outorgantes nela identificados foi dito que doam a G (…) segundo outorgante, os seguintes bens:

“Um: - Prédio urbano (…), inscrito na matriz respectiva sob o artigo 97…;

Dois - Prédio rústico (…), inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...…».

3. No urbano n.º 97, o requerido executou: limpeza do terreno que possuía mato, vegetação, silvas, deixando de pé as ruínas da moradia que ali existiu, construiu um muro de vedação que confina com o terreno a norte».

4. Posteriormente foi colocado um portão de obras, provisório na frente (virada a nascente) do artigo urbano n.º 97.

5. O requerente, derrubou em dia não concretamente determinado, posterior à decisão de folhas 36 e segs., 5 pilares que tinham sido colocados pelo requerido sobre um muro para uma posterior colocação de rede de vedação, tendo o requerido apresentado queixa na GNR contra o requerente;

6. O terreno rústico – artigo ... – esteve muitos anos em total abandono, sendo que em datas não concretamente determinadas o requerente limpou parte do mesmo terreno, de silvas e mato alto, tendo inclusive cortado algumas árvores e sobreiros, abrindo ainda uma vala e terraplanaram uma parte do terreno;

7. Aquando da chegada dos requerentes no dia 29-11-08, ao final do dia, os mesmos questionaram o requerido o que se estava alia a passar naqueles terrenos, tendo o requerido informado que era o actual proprietário…».

3 - Foram dados como não provados no âmbito dessa 1.ª providência, entre outros, os seguintes factos:

Não provado - «No artigo rústico n.º ..., o requerido executou: limpeza do terreno que possuía mato, silvas e canas, muro de suporte, um muro de vedação em cerca de metade do comprimento da propriedade sentido Nascente/Poente, utilizando para o efeito máquinas pesadas, abriu valas, movimentou terras;

Não provado - «…o requerido invadiu o prédio que se encontra inscrito na matriz predial rústica da freguesia dos ..., descrito na 2.ª Conservatória do registo predial de Leiria sob o n.º 5639/20080528, e ali inscrito a favor do requerente, transportando para o seu interior pedras volumosas e blocos de cimento com os quais construiu muros de suporte, utilizando para o efeito maquinas pesadas, abriu caminhos e valas, movimentou terras, procedeu ao arranque de uma oliveira e de sobreiros, bem como destruiu uma parte da vedação do mesmo prédio; que o requerido ao continuar os trabalhos construiu um muro naquele prédio dos requerentes e que a casa de habitação destes está construída no terreno que está ocupado pelo requerido».

4 - A providência foi julgada improcedente em 1.ª instância com base no seguinte fundamento:

«…face aos factos que ficaram indiciariamente provados, na sequência da oposição, resulta não estarem verificados os referidos requisitos, pois que não está indiciariamente provado que o requerido tenha levado a efeito obras no art. x...º propriedade dos requerentes» (pág. 18, parte final, da decisão).

Esta decisão foi confirmada em recurso pelo tribunal da Relação de Coimbra (cfr. folhas 209 a 228 destes autos de recurso).

5 – Na 2.ª providência, a presente, os requerentes pedem:

«… e que, em consequência se ordene a suspensão das obras de remodelação do terreno e do abate de árvores e destruição do seu coberto natural bem como da abertura e alargamento de acessos na parcela de terreno em questão identificada no Art. 1.º supra, e proibição do uso ilícito e abusivo da serventia descrita nos artigos 14.º, 16.º, 18.º e 19.º deste articulado…».

O «Art. 1.º supra» tem a seguinte redacção:

«Na acção declarativa com processo ordinário a que a presente providência cautelar será apensada, discute-se a titularidade do prédio rústico sito (…) adquirido pelos pais e sogros dos Autores, por escritura lavrada no cartório Notarial de Ourém no dia 22.02.1952».

Do artigo 14º da presente providência consta:

«É de notar que são pertença dos Réus as ruínas de uma casa antiga com logradouro ou quintal anexo cuja propriedade os AA não discutem e do qual se tinha acesso ao caminho público (hoje Rua ...) sito a Nascente por um carreiro de pé com a extensão de 8 metros de largura de 1 metro, serventia que onera o prédio dos AA, para uso exclusivo dessas ruínas».

E do artigo 16.º:

«Por isso, para lá chegarem transformaram o carreiro de pé numa autêntica estrada que se prolonga através do imóvel em questão dentro do qual abre em duas vias até atingirem os prédios pertencentes aos Réus com os quais confina do lado Norte o imóvel em questão dos Autores».

E dos artigos 18.º e 19.º:

«18º

Não há dúvida que se persistirem os trabalhos que estão sendo levados a cabo pelos Réus, devido ao uso ilícito e indevido da referida serventia de pé posto, dada a sua transformação numa autêntica estrada, os danos já existentes serão significativamente agravados não só pelas razões já expostas,

19º

Mas ainda, porque o terreno transitado não está preparado para a passagem de máquinas e camiões de grande porte, de sorte que, o muro divisório do lado norte da moradia dos AA por eles construído, o qual os RR transformaram num muro de suporte de terras, apresenta já diversas fissuras (rachas) ao longo da sua extensão».

Nos artigos 23.º a 29.º da petição dizem ainda:

«23º

Efectivamente, os AA ao regressarem a sua casa no dia 4 do corrente mês, deram-se conta de que os Réus haviam iniciado a execução de obras de alteração da topografia natural do terreno (Este mês é Agosto de 2010 uma vez que o carimbo de entrada da petição em tribunal ostenta a data de 17 de Agosto de 2010).

24º

Com o recurso a potentes máquinas retro escavadoras vêm procedendo à remodelação do terreno tendo vindo a destruir o respectivo coberto vegetal e seu relevo natural.

25º

Derrubando inclusivamente árvores: (…).

26.

De tal modo que o terreno anteriormente ocupado por mato e árvores vai perdendo por completo a sua composição e configuração, achando-se hoje, em grande parte, já terraplanado e adaptado a duas estradas de largura superior a 7/8 metros cada uma, por onde diariamente estão a mando e no interesse dos Réus, a passar camiões carregados de pedras volumosas e de outros materiais de construção para fins desconhecidos.

27º

Mas não há dúvida que tudo indica que os materiais amontoados pelos Réus se destinam a obras projectadas ou ainda não concluídas.

28º

Obras essas que descaracterizam o terreno, tornando impossível a reconstituição do seu relevo natural, o seu relevo anterior e anterior morfologia

29º

A continuidade desses trabalhos conduziria à descaracterização total do imóvel, impedindo os AA de o desfrutarem tal qual como ele era e como sempre o possuíram».

E no artigo 31.º referem ainda:

«Impõe-se, pois, que seja proferida decisão que ordene que os requeridos cessem toda e qualquer intervenção no imóvel, abstendo-se de nele efectuarem quaisquer obras, escavações, remodelação de terreno e corte de árvores e outra vegetação».

b) Passando à análise da questão objecto do recurso.

1 - Em primeiro lugar, vejamos se ocorre uma situação de caso julgado ou, então, uma situação de repetição da providência já julgada improcedente.
Começando pela hipótese do caso julgado, desde já se adianta que esta figura não é apropriada ao caso das providências cautelares, devido aos pressupostos destes procedimentos e natureza das suas decisões.
Com efeito, a providência cautelar, como nos dizem os autores Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, porque se destina a «…prevenir o perigo da demora inevitável no processamento normal da acção (…) necessita de ter uma estrutura bastante mais simplificada, em consonância com o seu fim específico.
Ao apreciar os pressupostos da providência, o juiz não poderá exigir, na prova da existência e da violação do direito do requerente, nem na demonstração do perigo de dano que o procedimento se propõe evitar, o mesmo grau de convicção que naturalmente se requer na prova dos fundamentos da acção.
De contrário, o remédio nenhuma eficácia teria no combate à doença que se propõe debelar.
Em lugar da prova do direito, o juiz deverá contentar-se nestes casos, como a própria lei (art. 401.º,1) afirma em termos gerais, com uma probabilidade séria da existência do direito; e, em vez da demonstração do perigo de dano invocado, bastará que o requerente mostre ser fundado (compreensível ou justificado) o receio da sua lesão» ([1]).
Além disso, a sorte do procedimento depende da sorte da acção, pelo que, se esta for julgada improcedente, a decisão tomada no procedimento cautelar que tenha sido procedente, caducará ([2]).
Resulta do exposto que a decisão tomada na providência cautelar não tem autonomia, dependendo sim do processo principal. Por outro lado, esta não é uma decisão sobre o mérito da causa, pois é meramente provisória e destina-se tão-só a acautelar os efeitos úteis da acção, enquanto a decisão definitiva não é tomada.
Por conseguinte, a decisão em causa não tem capacidade para formar caso julgado nem dentro, nem fora do processo.
Nas palavras de Lebre de Freitas, «…o efeito do caso julgado é próprio duma decisão de mérito, como tal definidora das situações jurídicas das partes. A preclusão consistente na indiscutibilidade da solução dada às questões por ele abrangidas pressupõe o acertamento definitivo dessas situações jurídicas, só possível num processo que tenha por objecto a afirmação da sua existência e a solicitação da tutela judiciária adequada a esse acertamento. O juízo sobre a probabilidade da existência do direito que tem lugar no procedimento cautelar (o simples fumus boni iuris) afasta, por definição, a ideia de acertamento definitivo que o caso julgado pressupõe (art. 386.º do CPC). Quanto ao juízo sobre o periculum mora, não envolve qualquer decisão sobre a relação de direito material,
pelo que, não integrando uma decisão de mérito, não poderia dar lugar ao efeito de caso julgado; por outro lado, ao inverso do juízo sobre o fumus boni iuris, está condicionado pelas circunstâncias de facto ocorrentes ao tempo da sua emissão, constituindo um juízo temporalmente limitado. Finalmente, o juízo sobre a adequação da providência cautelar solicitada é um juízo de carácter tipicamente processual (cf. art. 199.º CPC).
O preceito do artigo 387.º-1 do C.P.C. explica-se pela inadequação do conceito de caso julgado à figura da providência cautelar: por ele é proibida a repetição do requerimento de providência quando esta for julgada injustificada ou caducar porque, de outro modo, da não atribuição da eficácia de caso julgado à decisão proferida resultaria a admissibilidade do requerimento de nova providência, ainda que com o mesmo objecto» ([3]).
Sustenta ainda este autor que devido à inaplicabilidade do conceito de caso julgado ao campo das providências cautelares, o disposto no n.º 4 do artigo 381.º do Código de Processo Civil, recorre a um conceito de repetição da providência cautelar semelhante ao do artigo 498.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (repetição da causa), «…o que implica que só não pode ter lugar um novo procedimento cautelar entre os mesmos sujeitos e com o mesmo objecto (pedido idêntico fundado em idêntica causa de pedir)» ([4]).
Face ao que fica referido, é de afastar a figura do caso julgado, pois o legislador pretendendo alcançar os mesmos efeitos práticos, senão todos, pelo menos alguns, previu a figura da repetição da providência no n.º 4 do artigo 381.º do Código de Processo Civil, onde se diz que «Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado».
Cumpre, pois, verificar se há repetição da providência.
A resposta é afirmativa.
Com efeito, como resulta da matéria acima indicada como provada, verifica-se que na 1.ª providência os requerentes alegaram serem proprietários e possuidores do prédio a que corresponde o artigo matricial n.º x... da freguesia de ..., e que os requeridos tinham invadido este prédio e foi este o facto que os levou a pedir a restituição provisória da posse desse prédio onde os requeridos executavam obra e trabalhos.
Alegaram que os requeridos «…invadiram o prédio, fecharam com um portão o seu acesso do e para o caminho…»;
«…transportaram para o seu interior pedras volumosas e blocos de cimento, com as quais construíram muros de suporte…»;
«…utilizando para o efeito máquinas pesadas (tipo retroescavadora)…»;
«…abriram caminhos e valas…»;
«…movimentaram terras…»;

«…procederam ao arranque de oliveiras e de sobreiros…»;

«…bem como mandaram abaixo vedação e removeram marcos…».

No final, o pedido de restituição provisória da posse, com esta causa de pedir, foi julgado improcedente.

E foi julgado improcedente por se ter concluído que «…face aos factos que ficaram indiciariamente provados (…) não está indiciariamente provado que o requerido tenha levado a efeito obras no art. x...º propriedade dos requerentes».

Ou seja, analisando os fundamentos da decisão, os requerentes não provaram que os requeridos tenham procedido à realização das obras e trabalhos que deram causa à providência, em terreno pertencente ou possuído pelos requerentes, designadamente em terreno compreendido no perímetro do mencionado prédio inscrito no artigo matricial x...º.

Daí que a providência tenha sido julgada improcedente.
Verifica-se que na 2.ª providência a causa de pedir e o pedido se incluem na parte da causa de pedir e no pedido relativos à 1.ª providência.
Pelas seguintes razões:
Nesta 2.ª providência os requerentes voltam a afirmar que os requeridos continuam a fazer obras e a executar trabalhos no mesmo espaço de terreno onde já antes as executaram aquando da 1.ª providência, isto é, continuaram com as obras e trabalhos que antes haviam iniciado.
Esta actividade dos requeridos agora denunciada era a esperada após a improcedência da 1.ª providência, pois, como se disse, os requeridos continuaram a executar os trabalhos e obras que já estavam a executar e que haviam originado a 1.ª providência.

Sucede apenas que, nesta 2.ª providência, os requeridos em vez de pedirem novamente a restituição de todo o espaço onde os requeridos executam as obras e os trabalhos, pedem apenas isto:

A «…suspensão das obras de remodelação do terreno e do abate de árvores e destruição do seu coberto natural»;

A suspensão «…da abertura e alargamento de acessos na parcela de terreno em questão identificada no Art. 1.º supra»;

A «…proibição do uso ilícito e abusivo da serventia descrita nos artigos 14.º, 16.º, 18.º e 19.º deste articulado…».

Ora, estes pedidos são aspectos parcelares da situação de posse exercida sobre o prédio ou parte do prédio, posse de que os requeridos alegaram, na 1.ª providência, terem sido esbulhados e por isso pediram a sua restituição.

Por outras palavras, a restituição de posse objecto da 1.ª providência, compreende na sua amplitude, quanto aos poderes de facto sobre a coisa, as variadas acções que possam ser executadas sobre o prédio, nas quais se decompõe em abstracto a posse sobre uma coisa.

Isto é, estes três pedidos específicos agora formulados já estão compreendidos no primeiro pedido genérico de restituição da posse do terreno onde os requeridos estavam e continuaram a fazer as obras e a executar trabalhos.

A prova da correcção deste argumento reside no seguinte: se porventura tivesse sido deferida a 1.ª providência, estes três novos pedidos estavam satisfeitos por natureza, por se compreenderem no alcance ou âmbito material do primeiro pedido.

Ou seja, estes três novos pedidos são aspectos particulares ou parcelares do pedido formulado na 1.ª providência, que era, como se referiu, mais amplo e abrangia toda e qualquer hipótese de obras ou trabalhos executáveis pelos requeridos no espaço de terreno em litígio.

Os fundamentos jurídicos alegados nesta 2.ª providência são também os mesmos que já foram invocados na 1.ª providência e baseiam-se na alegação de que os requerentes são proprietários da parte do terreno onde os requeridos levam a cabo as obras e trabalhos.

Nesta 2.ª providência os requerentes apenas não alegam, como na primeira, que são possuidores e foram esbulhados.

Porém, se na 1.ª providência tivessem provado, como alegaram, que eram proprietários do terreno onde os Réus iniciaram as obras e trabalhos, o tribunal ter-lhes-ia conferido a posse pedida, pois a propriedade pressupõe a posse, sendo esta mero reflexo da primeira, salvo quando ambas estejam dissociadas em titulares diferentes, o que não era o caso.

Não era o caso na medida em que os requeridos não possuíam o terreno, apenas o ocuparam na sequência da respectiva compra.

O que implica, na tese dos requerentes, terem estes sido esbulhados da sua posse, a qual resultava desde logo, por não haver outro possuidor concorrente, do facto de serem seus proprietários.

Ora, na 1.ª providência o fundamento agora invocado já foi julgado improcedente.

Isto é, foi decidido não se mostrar provado que as obras e trabalhos executados pelos requeridos estivessem a incidir em prédio pertencente em propriedade aos requerentes ou, pelo menos, possuído por estes últimos.

Ou seja, face à primeira decisão ficou arredada (provisoriamente) a hipótese de haver na esfera jurídica dos requerentes um direito de propriedade ou o exercício de actos de posse sobre o local onde os requeridos executavam obras e trabalhos.

Afigura-se, por conseguinte, que a causa de pedir e os pedidos desta 2.ª providência repetem os já presentes na 1.ª providência, sucedendo apenas que na 2.ª providência quer a causa de pedir, quer os pedidos são mais restritos, isto é, constituem apenas causa de pedir e pedidos parcelares da causa de pedir e do pedido global de restituição da posse feito através da 1.ª providência.

Procurando clarificar: na 1.ª providência invocou-se a propriedade e a posse e pediu-se a restituição da posse da totalidade do terreno ocupado; na 2.ª providência invoca-se apenas a propriedade e pede-se a proibição dos requeridos exercerem certos actos de posse no terreno ocupado.

Verifica-se, por conseguinte, que estamos em termos práticos perante uma situação de repetição da mesma providência, porque a causa de pedir e os pedidos desta 2.ª providência já estão contidos na primeira.

Aliás, se porventura fosse deferido este pedido teríamos esta situação:

Na decisão da 1.ª providência considerou-se, é certo que provisoriamente, que os actos imputados pelos requerentes aos requeridos não estavam a ser exercidos em terreno pertencente a um prédio sobre o qual os requerentes tivessem posse ou um direito de propriedade.

Desta forma, sendo nesta 2.ª providência o mesmo terreno alvo dos actos dos requeridos é claro que estes não podem alegar ter qualquer direito de propriedade ou posse sobre o mesmo, por já ter sido decidido que não tinham.

Se porventura nesta 2.ª providência viesse, por hipótese, a decidir-se que os requerentes tinham posse ou eram proprietários do local, ficaríamos com duas decisão contraditórias proferidas no mesmo processo, com um A e com um não A, situação que é processualmente inadmissível.

Tal situação é, aliás, justamente impedida pela norma do artigo 675.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe:
«1. Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar.
2. É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual».
Conclui-se, por conseguinte, que esta segunda providência constitui repetição da primeira providência, por a causa de pedir e o pedido já estarem contidos na causa de pedir e no pedido formulado na primeira providência.
2 - Passando à segunda e terceira questões colocadas.

A segunda questão tem a ver com a alegada falta de correspondência entre o pedido de proibição de passagem pela servidão feito na providência e o pedido de extinção da servidão formulado na acção com base no não uso.

Esta questão pressupunha que se provasse que existia uma servidão sobre o prédio dos requerentes, mas como já se disse acima, na primeira providência já se considerou que não se fez prova no sentido de que os requeridos estivessem a passar por terreno dos requerentes.

Por conseguinte, esta segunda questão fica prejudicada pela resposta dada à primeira questão.

A terceira consiste em verificar se existe ou não uma situação de perigo justificativa da dedução de uma providência cautelar.

Também esta questão perdeu interesse processual a partir do momento em que esta 2.ª providência não pode prosseguir por se tratar de repetição da primeira.

Ou seja, estes dois pedidos não subsistem a partir do momento em que se considera que a presente providência é repetição da providência anterior.

Cumpre, pois, manter o decidido embora com fundamentos diversos.

III. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente.

Custas pelos recorrentes.



Alberto Ruço ( Relator )
Judite Pires
Carlos Gil


[1] Manual de Processo Civil, pág. 24/25, 2.ª edição, Coimbra Editora/1985.
[2] Cfr. al. c) do n.º 1 do artigo 389.º do Código de Processo Civil, onde se diz que o procedimento cautelar se extingue e, quando decretada, a providência caduca «Se a acção vier a ser julgada improcedente, por de cisão transitada em julgado»
[3] Repetição de providência e caso julgado e caso de desistência do pedido de providência cautelar - Revista da Ordem dos Advogados, 1997, I, pág. 473/475.
[4] Ob. cit. pág. 480.