Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
41/09.2GGCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CRIME DE FURTO
TENTATIVA
PENAS DE SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 09/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 4º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 203.º, N.º 2, 22.º, 23.º, 72.º E 73.º,43º DO CP
Sumário: 1. No crime de furto a consumação formal ocorre no momento em que a coisa alheia entra na esfera patrimonial do arguido, não sendo necessário que este a detenha em pleno sossego e tranquilidade.
2. No referido crime está presente o simples fenómeno da detenção das coisas, que se perde e se constitui sem estar pressuposta a continuação de actos de utilização, relevando, desde logo, para o conceito normativo de “subtracção”, o início ou investidura na situação possessória, tomada esta em sentido amplo.
3. Consagrou-se o conceito de consumação formal ou jurídica. Os actos posteriores de aproveitamento da coisa ou efeitos materiais do crime, pressupostos como finalidade da acção delituosa, não respeitam já à consumação formal do crime, mas à sua consumação material ou exaurimento.
4. A opção pela pena principal de prisão em detrimento da pena de multa não determina necessariamente o cumprimento da pena privativa da liberdade.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. No 4.º Juízo Criminal de Coimbra, após julgamento em processo sumário, foram os arguidos N... e B..., melhor identificados nos autos, condenados, pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal, nas seguintes penas:
- O arguido N..., na pena de 6 (seis) meses de prisão;
- O arguido B..., na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros).
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2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido N..., formulando na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
A) Da omissão de pronúncia:
1.ª – O ora recorrente foi condenado nos presentes autos numa pena de 6 meses de prisão pela prática, em co-autoria, de um crime de furto simples.
2.ª – As considerações constantes da sentença, a fls. 6 e 7, serviram para que o Tribunal a quo fizesse a sua opção, nos termos do art. 70.º do CP, relativamente ao arguido N..., se optava pela aplicação de prisão em detrimento da pena de multa.
3.ª – Feita essa escolha, o Tribunal a quo não ponderou sobre a eventualidade de a substituir, pois, não basta que “…só esta pena pode impedir o arguido de voltar a praticar crimes desta ou de outra natureza …”.
4.ª – O Tribunal tem sempre que fundamentar especificamente a negação da aplicação de qualquer pena de substituição susceptível de aplicação ao caso concreto e não responder de forma peremptória que só a pena de prisão efectiva cumpre as finalidades de punição.
5.ª – Assim, deve ser declarada a nulidade da sentença ora em transe, por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, al. c) e 425.º, n.º 4, ambos do CPP, determinando-se a sua substituição por decisão que pondere e aplique ao presente caso uma das penas de substituição previstas nos artigos 43.º, 44.º, 45.º, 46.º, 50.º e 58.º do CP.
B) Da tentativa:
6.ª - Foram os arguidos condenados pela prática, em co-autoria, de um crime de furto simples, artigo 203.º, n.º 1 do CP. Todavia, em nosso entendimento, tais factos não configuraram a prática de um furto consumado, mas sim um furto na sua forma tentada.
7.ª - As provas enunciadas em sede de motivação: auto de denúncia, auto de ocorrência e as declarações do arguido N... impunham decisão diversa da recorrida.
8.ª - A detenção dos arguidos foi efectuada em flagrante delito, o que permitiu a legítima defesa exercida pelo gerente da loja e pela segurança da mesma. Os arguidos estavam a sair da loja quando foram interceptados e de imediato devolveram os objectos, os “produtos”.
9.ª - Coma a actuação dos arguidos no caso concreto, não houve por parte dos agentes da infracção “… um pleno e autónomo domínio da coisa”.
10.ª – Consequentemente, devem os arguidos ser condenados em co-autoria de um crime de furto na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 2, 22.º, 23.º, 72.º e 73.º, todos do CP.
C) Da medida concreta da pena aplicada:
11.ª – Atendendo às circunstâncias do caso concreto, descritas na sentença condenatória, nomeadamente, a confissão integral e sem reservas dos arguidos e a entrega imediata e voluntária dos objectos que os arguidos tentaram furtar, cremos que o limite inultrapassável da culpa, no que ao ora recorrente se refere, foi violado.
12.ª – Ao ora recorrente deve ser aplicada uma pena mais próxima do limite mínimo da moldura penal prevista no artigo 203.º, n.º 1 do CP, especialmente atenuada, em consequência dos artigos 22.º, 23.º, 72.º e 73.º do CP.
D) Da suspensão da execução da pena:
13.ª – Entendeu o Tribunal a quo condenar o ora recorrente na pena de 6 meses de prisão efectiva. Porém, tal pena é susceptível de substituição, conforme os artigos 43.º, 44.º, 45.º, 46.º, 50.º e ss. e 58.º do CP.
14.ª – Em nosso entendimento, e salvo melhor opinião, tendo em consideração os antecedentes criminais do arguido, a pena de substituição prevista nos artigos 50.º e ss. do CP (suspensão da execução da pena) será a mais adequada e suficiente reacção penal.
15.ª – Com efeito, o recorrente não pretende de forma alguma que lhe seja passado um cheque em branco, isto porque, a suspensão da execução da pena deve no seu caso ser acompanhada de regime de prova (artigo 53.º, n.ºs 1 e 2 do CP), já que entendemos que o recorrente carece de um plano individual de readaptação social a elaborar pelo Instituto de Reinserção Social, estando o recorrente totalmente disposto a cumprir com o preceituado nesse plano, a submeter-se à vigilância e a beneficiar do apoio que esse Instituto não deixará de lhe conceder.
16.ª – Como ensina Jescheck, na base da decisão da suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da execução da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal à vontade do condenado em se integrar socialmente, que neste caso passará obrigatoriamente pela sujeição a tratamento médico em instituição adequada (artigo 52.º, n.º 3 do CP), ao qual o arguido se quer submeter.
17.ª – As expectativas de confiança na prevenção da reincidência só terão êxito quando o arguido se livrar do consumo de estupefacientes; tal nunca será alcançado em meio prisional, mas sim com tratamento prolongado em comunidade terapêutica para o efeito.
18.ª – Julgamos ser possível a formulação de um juízo de prognose favorável ao recorrente, no sentido de que a censura do facto e a ameaça da prisão (que terá de cumprir caso não obedeça às injunções aplicáveis ao caso em concreto) constituirão incentivos bastantes para o afastar da prática de novos crimes e darão satisfação adequada e suficiente ao conteúdo mínimo exigido pela prevenção geral, bem como às considerações de prevenção especial.
19.ª – Desta forma, deve o recorrente ver a pena de prisão que lhe vier a ser aplicada suspensa na sua execução, acompanhada de regime de prova, devendo para este efeito, após trânsito, ser solicitada a elaboração do plano de reinserção social.
20.ª – Normas violadas:
- Artigos 22.º, 23.º, 40.º, n.ºs 1 e 2, 44.º, 45.º, 46.º, 50.º e ss., 70.º, 71.º, 72.º e 203.º, n.º 2 do Código Penal;
- Artigo 379.º, n.º 1, al. c) e n.º 2 do Código de Processo Penal.
Termos em que, deve ser julgado procedente o presente recurso e, em consequência:
Ser declarada a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, c) e 425.º, n.º 4, do CPP, determinando-se a sua substituição por decisão que pondere e aplique ao presente caso uma das penas de substituição.
Assim não se entendendo, deve a medida concreta da pena a aplicar ao ora recorrente ser inferior à aplicada pelo Tribunal a quo, nos termos da motivação.
Deve ainda, independentemente da pena que lhe for aplicada, ser suspensa a sua execução, acompanhada de regime de prova.
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3. O Ministério Público concluiu a sua resposta ao recurso nestes termos:
1. A douta sentença recorrida fez uma correcta apreciação dos factos, subsunção jurídica e aplicação do direito.
2. Na verdade, entendemos que a douta sentença não sofre de qualquer nulidade (designadamente por omissão de pronúncia).
3. Por outro lado, também a escolha da pena se nos afigura correcta e adequada, e equilibrada a sua medida.
4. Termos em que deverá, por conseguinte, negar-se provimento ao recurso.
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4. Neste Tribunal da Relação, a Ex.ma Procurador-Geral Adjunta, em parecer a fls. 91/95, entendeu padecer a sentença da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP, por o tribunal a quo não ter omitido pronúncia sobre a eventual aplicação de pena de substituição, considerando prejudicada a abordagem das demais questões suscitadas pelo recorrente.

Notificado nos termos e para os efeitos consignados no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Nestes termos, resumem-se ao seguinte quadro as questões enunciadas pelo recorrente N..., de que cumpre conhecer:

A) Qualificação jurídica dos factos);

B) Medida da pena;

C) Verificação da nulidade plasmada na alínea c) do artigo 379.º do Código Penal, por omissão de pronúncia sobre a aplicabilidade de pena de substituição.


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2. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. No dia 23-02-2009, cerca das 15:10 horas, os arguidos dirigiram-se ao estabelecimento denominado “Rádio Popular”, sito no Retail Parque Mondego, na localidade de Taveiro, área desta comarca de Coimbra, que se encontrava aberto ao público, com o objectivo de se apoderar de artigos ali comercializados.

2. Assim, agindo de comum acordo e em comunhão de esforços, os arguidos apoderaram-se de dois HDD externos (um da marca “Iomega”, de 320 GB, no valor de € 84,90, e outro da marca “Lacie” de 250GB, no valor de € 69,90), e com os mesmos na sua posse, saíram do estabelecimento comercial, passando pelas caixas registadoras de pagamento, sem, contudo, os terem apresentado a pagamento.

3. Por tal motivo, foram os arguidos detidos por um segurança do referido estabelecimento e entregues, passados poucos minutos, a um agente da GNR que, entretanto, foi chamado ao local.

4. Os arguidos apoderaram-se de tais bens, avaliados pela ofendida em € 154,80, e integraram-nos na sua posse, bem sabendo que os mesmos lhes não pertenciam e que actuavam sem o consentimento e contra a vontade da sua legítima proprietária.

5. Todos os objectos furtados foram recuperados e entregues ao legal representante da ofendida que, entretanto, manifestou o desejo de procedimento criminal contra os arguidos.

6. Actuaram os arguidos de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

7. Os arguidos são toxicodependentes.

8. O arguido N... está desempregado e vive com a mãe.

9. O arguido B...está desempregado, vive na instituição Caritas, segundo ele, para deixar de consumir estupefacientes.

10. O arguido N... foi condenado:

a) Em 30.11.1988, pela prática de um crime de ofensas corporais e um crime de desobediência, na pena de 7 meses e 15 dias de prisão, substituída por multa;

b) Em 08.06.1990, pela prática de um crime de receptação, na pena de 5 meses de prisão, substituída por multa;

c) Em 10.09.1983, pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 45 de prisão, substituída por igual número de dias de multa;

d) Em 15.03.1995, pela prática de um crime de consumo e um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 7 meses de prisão, suspensa por dois anos e 50.000$00 de multa.

e) Em 15.03.1995, pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário, nas penas de 1 ano de prisão e 6 meses de proibição de conduzir;

f) Em 21.01.1991, pelo crime de consumo de estupefacientes, na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de 500$00;

g) Em 24.06.1997, pela prática de um crime de consumo e tráfico de menor gravidade, na pena de 14 meses e 10 dias de prisão;

h) Foi efectuado o cúmulo jurídico das penas referidas nas alíneas c), d), e) e g) e foi aplicada a pena única de 26 meses de prisão, 50.000$00 de multa e 30 dias de multa, à taxa diária de 500$00;

i) Em 21.05.2003, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 380 horas de trabalho a favor da comunidade;

j) Em 02.06.2008, pela prática de um crime de furto qualificado, na pena de 7 meses de prisão, substituída por trabalho a favor da comunidade.

11. No certificado de registo criminal do arguido B...nada consta.


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3. Não existindo factos não provados, quanto à motivação da decisão de facto ficou consignado:

Os factos dados como provados assentam na confissão dos arguidos. Com efeito, os arguidos admitiram que os factos constantes da acusação eram verdadeiros, tendo apenas o arguido N... referido que o valor do objecto transportado pelo arguido B...era de cerca de € 40. Embora esta diferença são seja muito relevante para a decisão da causa, demos como assente os valores que constavam da acusação, por o documento de fls. 17 comprovar o valor dos bens.

Também aceitamos as declarações dos arguidos quanto às suas condições pessoais.

Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos, atendemos aos certificados de fls. 27 e 30 a 35.


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4. Primeiramente, importa definir se o crime de furto perpetrado pelos arguidos atingiu o nível da consumação ou se, pelo contrário, não passou da mera tentativa, como preconiza o recorrente N....

Neste conspecto, a motivação e bem assim as respectivas conclusões não são em definitivo esclarecedoras sobre o âmbito do recurso: restrito a matéria de direito ou alargado à impugnação da matéria de facto.

Se a pretensão do recorrente é dirigida à impugnação da decisão na vertente de facto, é patente a falta de todas as especificações exigidas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

O recorrente faz alusão às concretas provas [cfr. alínea b) do n.º 3 daquele normativo] e especifica as passagens das suas próprias declarações, em consonância com o disposto na n.º 4 do mesmo artigo. Não concretiza, porém, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; antes se limita à genérica referência: «Foram os arguidos condenados pela prática em co-autoria de um crime de furto simples, art. 203.º, n.º 1 do CPP. Todavia, em nosso entendimento, tais factos não configuram a prática de um furto consumado, mas sim um furto na sua forma tentada».

De qualquer modo, os extractos, dos documentos e das suas declarações, que invoca, suportam em absoluto o juízo crítico e valorativo conducente à prova dos factos vertidos nos pontos 1 a 3 da sentença recorrida.

Postos estes considerandos, vejamos então a questão nuclear, supra referida.

No crime de furto temos, como elementos do tipo objectivo, o objecto da acção típica, que é a “coisa móvel alheia”, a acção típica, que é a “subtracção”, fazendo parte do tipo subjectivo, por sua vez, o dolo e “a ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa”.

Esta “ilegítima intenção de apropriação”, que alguns consideram um “dolo específico” e outros um “elemento subjectivo da ilicitude”, acresce, pois, ao dolo, e é elemento que não pressupõe, na tipicidade global do furto, uma efectiva apropriação, no sentido de que o agente não tem de exercer sobre a coisa os poderes correspondentes ao exercício do direito de propriedade, tomado este em sentido amplo.

A “subtracção”, elemento fundamental do furto, não é, naquele sentido, uma “apropriação”, o exercício dos poderes que formam o conteúdo do direito, mas tão somente a perda da detenção de facto do detentor originário e a constituição de nova detenção por parte do agente.

A “subtracção”, não é, porém, um puro conceito de facto, antes um conceito de direito, a ser definida, por isso, segundo critérios jurídicos trabalhados pela ciência do direito em ordem a encontrar a solução que melhor se adapte às exigências da tutela dos bens jurídicos.

Assim é que, tendo em vista a consumação do furto, se têm suscitado teorias não coincidentes. Para uns, é indispensável na nova detenção um estado de sossego ou tranquilidade, exigindo-se um mínimo de estabilidade da coisa no domínio de facto do agente. Segundo outros, basta o domínio instantâneo do facto [instantaneidade da amotio (remoção do lugar no qual o objecto se encontra) ou da ablatio (a transferência para fora da esfera do domínio do sujeito passivo)].

Seguindo Faria Costa In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 49., a consumação ocorre «quando a coisa entra, de uma maneira minimamente estável, no domínio de facto do agente da infracção», sendo assim «imprescindível que o agente da infracção tenha adquirido um pleno e autónomo domínio sobre a coisa».

Colocando a questão de saber que tipo de domínio de facto se impõe, considera o insigne Professor critério mais justo a exigência de um mínimo plausível de fruição das utilidades da coisa, tendo de existir um mínimo de tempo que permita dizer que um efectivo domínio de facto sobre a coisa é levado a cabo pelo agente, estando, no entanto, longe de defender que o domínio do facto se tenha de operar em pleno sossego ou em estado de tranquilidade.

Como se dá conta no Acórdão do STJ de 12-09-2007 Publicado no site www.dgsi.pt., a partir do Ac. do mesmo Tribunal Superior de 21-07-87 BMJ 369/376., a jurisprudência teve um ponto de viragem, passando a ser corrente largamente maioritária a que preconiza que no crime de furto a consumação formal ocorre no momento em que a coisa alheia entra na esfera patrimonial do arguido, não sendo necessário que este a detenha em pleno sossego e tranquilidade Neste sentido, v. g., Acs. do STJ de 21-05-1997 (proc. n.º 437/97), 12-02-1998 (proc. n.º 1272/97), 25-10-2000 (proc. n.º 2544/00), 16-01-2002 (proc. n.º 3653/01), com sumários publicados no Boletim Interno do STJ; de 27-03-03, CJ, I, 237, e de 12-09-07, publicado no site www.dgsi.pt..

A nossa posição vai neste sentido.

No referido crime está presente o simples fenómeno da detenção das coisas, que se perde e se constitui sem estar pressuposta a continuação de actos de utilização, relevando, desde logo, para o conceito normativo de “subtracção”, o início ou investidura na situação possessória, tomada esta em sentido amplo.

Consagrou-se o conceito de consumação formal ou jurídica. Os actos posteriores de aproveitamento da coisa ou efeitos materiais do crime, pressupostos como finalidade da acção delituosa, não respeitam já à consumação formal do crime, mas à sua consumação material ou exaurimento.

Escreve Cavaleiro Ferreira Lições de Direito Penal, I, 1987, pág. 283.: «A consumação material ou exaurimento consistirá na produção dos efeitos ou consequências, que não sendo embora exigidos como elementos essenciais da incriminação, constituem a plena realização do objectivo pretendido pelo agente; a consumação formal verifica-se com a realização do tipo legal de crime, a consumação material ou exaurimento do crime terá lugar mediante a obtenção efectiva das consequências prejudiciais que a lei pretende evitar ou que o agente se propusera».

Retomando o caso dos autos, decorre dos factos provados:

No dia 23-02-2009, os arguidos dirigiram-se a um estabelecimento comercial, com o objectivo de se apoderarem de artigos naquele comercializados.

Agindo de comum acordo e em comunhão de esforços, os arguidos retiraram dois HDD externos.

Na posse de tais objectos, saíram do estabelecimento, passando pelas “caixas”, sem, contudo, os terem apresentado a pagamento.

Os arguidos foram logo de seguida detidos por um segurança do estabelecimento.

Assim, em consonância com a posição que assumimos, é manifesto que o crime de furto se consumou.


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5. Do quantum da pena:
Insurge-se o recorrente contra a pena que lhe foi imposta, a qual tem por quantitativamente excessiva.
Assim, esclarece-se, a opção do tribunal a quo pela pena principal de prisão em detrimento da multa que o tipo de furto simples (artigo 203.º, n.º 1 do CP) também prevê, não mereceu reparo ao arguido N....
Vejamos se lhe assiste razão.
Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).
Abstractamente a pena é definida em função da culpa e da prevenção, intervindo, ainda, circunstâncias que não fazendo parte do tipo, atenuam ou agravam a responsabilidade do agente - art. 71.º, n.ºs 1 e 2 do CP.
A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.
Como refere Claus Roxin, em passagens escritas perfeitamente consonantes com os princípios basilares no nosso direito penal, «a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada.
A sensação de justiça, à qual corresponde um grande significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só uma pena de acordo com a culpabilidade.

Certamente a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva.

A pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais». Derecho Penal - Parte General, Tomo I, Tradução da 2.ª edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas), págs. 99/101 e 103.


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No processo de determinação da pena que impôs ao arguido, teceu o tribunal a quo as seguintes considerações:

«Para determinação da medida da pena o tribunal atendeu aos seguintes factores:

a) O grau de ilicitude é mediano, atendendo ao valor dos objectos furtados;

b) O dolo é directo, na sua forma mais intensa, os arguidos representaram claramente o facto criminoso e não se abstiveram de o praticar;

c) Os objectos foram recuperados;

d) Os arguidos confessaram os factos;

(…);

f) O arguido N... já foi condenado diversas vezes e é toxicodependente, sendo, por isso, elevadas as exigências de prevenção especial;

g) As exigências de prevenção geral são elevadas, considerando que este crime é muito praticado na área da comarca e provoca grande insegurança na população.

(…).

Quanto ao arguido N..., importa ponderar que já sofreu diversas condenações, sendo a última delas punida com pena de prisão (embora substituída) pela prática de um crime de furto qualificado, ocorrido em 2008, sem que as mesmas o fizessem ponderar em adequar a sua conduta ao direito. Por outro lado, este arguido continua a consumir estupefacientes o que, como se sabe, anda muitas vezes associado à prática de crimes contra o património (como ocorreu no caso dos autos).

Assim, entendemos que só uma pena de 6 meses de prisão efectiva satisfaz as elevadas exigências de prevenção geral e especial do caso concreto. Com efeito, só esta pena pode impedir o arguido de voltar a praticar crimes desta ou de outra natureza. A personalidade do arguido, traduzida no seu vasto rol de antecedentes criminais, associada ao consumo de estupefacientes, leva-nos a concluir que só esta pena o impede de voltar a delinquir».

Na consideração global dos factores enunciados pelo tribunal a quo, com particular destaque para o comportamento anterior do arguido, acentuam-se necessidades de prevenção geral positiva ou de integração e de prevenção especial positiva ou de socialização.
Na verdade, para além das diversas condenações sofridas pelo arguido, relativas a crimes de diversa natureza, assume especial relevância a que foi imposta recentemente (em Junho de 2008), pela prática de um crime de furto qualificado.
Sopesando também o pequeno grau de ilicitude, revelado pelo pequeno valor dos bens subtraídos, a intensidade da culpa (dolo directo), a confissão dos factos (de diminuto valor, atentas as específicas condições em que os arguidos foram detectados na posse dos objectos), afigura-se-nos justa e adequada a pena de 6 meses de prisão fixada pelo tribunal a quo.


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6. A opção pela pena principal de prisão em detrimento da pena de multa não determina necessariamente o cumprimento da pena privativa da liberdade.
Efectivamente, a preferência pela pena de prisão não é de modo algum incompatível com a aplicação posterior da multa de substituição prevista no artigo 43.º do Código Penal.
Como refere Figueiredo Dias In As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 364., o tribunal, na alternativa, pode decidir-se pela prisão, por esta lhe parecer «preferível» à multa, mas ser legalmente obrigado depois [por ter fixado em concreto uma prisão não superior a 6 meses (actualmente 1 ano)], sem contradição, a substituí-la por multa, por a prisão não ser, no caso, imposta por razões de prevenção. De outra forma, o artigo 43.º - um dos preceitos político-criminalmente mais relevantes de todo o CP - seria, pura e simplesmente, «letra morta» sempre que (como vimos dever ser a regra na pequena e na média criminalidade) um crime fosse, em alternativa, punível com pena de prisão ou com pena de multa.
Aliás, face ao novo limite de um ano previsto agora previsto no artigo 43.º, está alargado o campo para substituir a prisão por multa, dando-se prevalência à pena pecuniária face às restantes penas de substituição aplicáveis.
Justificada a insuficiência da multa, deve o tribunal verificar, então, se, de acordo com as necessidades da punição, outra pena de substituição em sentido próprio (suspensão da execução da pena ou prestação de trabalho a favor da comunidade – artigos 50.º e 58.º do CP) se mostra adequada e proporcional ao caso em análise.
De há muito a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores vêm afirmando o dever de o Tribunal de 1.ª instância, perante a determinação de um pena de prisão de medida não superior a 3 anos de prisão (actualmente 5 anos), ter sempre de fundamentar, especificamente, quer a concessão quer a denegação da suspensão da execução da pena Cfr., v.g. Acs. do STJ de 12-12-2002, proc. n.º 4196/02-5.ª; 09-11-2005, CJ/STJ, pág. 209; de 10-05-2006, proc. n.º 06P3132, in www.dgsi.pt..
Recentemente, igual posição vem sendo sustentada relativamente à prestação de trabalho a favor da comunidade Cfr., v. g, Acórdãos do STJ de 21-06-2007 (proc. n.º 07P2059), da Relação do Porto de 04-02-2009 (proc. n.º 0816730) e da Relação de Coimbra de 01-04-2009 (proc. n.º 476/04.7TAPBL.C1), todos publicados no site www.dgsi.pt...
Como é referido no citado Acórdão desta Relação de Coimbra, tal como sucede com a suspensão da execução da pena, o tribunal não é livre de aplicar ou deixar de aplicar tal pena de substituição; antes, o que está consagrado na lei é um poder/dever ou um poder vinculado, tal como sucede com a suspensão da execução da pena, pelo que, verificados os respectivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de aplicá-la.
Parafraseando o anotado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, «nada garante que, não podendo as exigências de punição ser satisfeitas com a suspensão da execução da pena, não o possam ser com a prestação de trabalho a favor da comunidade».
No caso dos autos, o tribunal a quo limitou-se a considerações sobre a necessidade de aplicação da pena de 6 meses de prisão, omitindo qualquer referência quanto à eventual adequação das referidas penas de substituição, como também não se pronunciou, explícita ou implicitamente, sobre a possibilidade de aplicação das penas de substituição em sentido amplo ou impróprio configuradas nos artigos 45.º e 46.º do CP, e do regime fixado no artigo 44.º do mesmo diploma.
Trazendo de novo à colação o Acórdão da Relação de Coimbra de 01-04-2009, «nas situações em que a sentença (….), pelos fundamentos apresentados, globalmente considerados, revela claramente que o julgador fez uma ponderação dos factores de determinação da pena de prisão, afastando a aplicação de qualquer pena de substituição ou de qualquer forma de cumprimento não contínuo da própria prisão, ainda que sem fazer menção expressa à substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade ou por formas de execução descontínuas, não estaremos perante omissão de pronúncia. Por outras palavras: existem casos em que, apesar da falta de menção expressa a uma ou outra pena, a fundamentação apresentada revela uma» tal «ponderação que, sem margem para dúvida, afastou a aplicação de qualquer pena de substituição. Nestes casos, à falta de menção expressa não corresponde omissão de pronúncia».
Porém, não é o que acontece no vertente caso, em que a fundamentação da sentença não cumpre as requeridas exigências de aplicação ou denegação das referidas penas de substituição, uma vez que não resulta suficientemente claro que sobre tais penas recaiu um adequado juízo de avaliação e ponderação.
Ocorre, assim, a arguida nulidade de sentença prevista no artigo no artigo 379.º, alínea c) do Código de Processo Penal.
Consequentemente, o recurso é, em parte, procedente.
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7. Em face da parcial improcedência do recurso, cumpre condenar o arguido recorrente em custas, nos termos do disposto nos arts. 513.º e 514.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, 82.º, n.º 1 e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, estes do Código das Custas Judiciais.
Tendo em conta a complexidade do processo e a situação económica do arguido, fixa-se a taxa de em 2 UC.

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III. Dispositivo:

Posto o que precede, na procedência parcial do recurso, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

- Mantêm a sentença recorrida, na parte em que condenou o arguido N..., pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;

- Declaram que a omissão de pronúncia sobre as questões acima expostas constitui nulidade da sentença, a qual deve ser suprida, pelo mesmo Juiz, se possível, em nova sentença, que considerará a possibilidade de substituição da pena de 6 meses de prisão imposta ao arguido N... dentro de toda a amplitude de penas de substituição previstas na lei, se necessário com produção suplementar de prova.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça.


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(Processado em computador. Revisto pelo relator, o primeiro signatário)

Coimbra, 9 de Setembro de 2009

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)