Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2847/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
Data do Acordão: 11/30/2005
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ART.º 139º, N.º 1, DO C. P. PENAL
Sumário: Não se configura o testemunho indirecto proibido quando uma testemunha refere o que ouviu dizer ao arguido que, estando presente, fez uso do seu direito ao silêncio.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Coimbra:
*
No Processo Comum Singular nº 690/03.2PAMGR do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Comarca da Marinha Grande, por sentença de 05.01.26, foi, no que para a apreciação do presente recurso interessa, decidido:
- Absolver os arguidos A..., B... e C..., do crime de furto qualificado p. e p. pelos artºs. 203º e 204º nº 1 f) CP, de que vinham acusados, bem como do pedido de indemnização contra eles formulado.
Inconformado, o assistente interpôs recurso da sentença, em cuja motivação produziu as seguintes conclusões ( sic):
“ 19. Com efeito a este propósito refere o Senhor Juiz Conselheiro Campos Costa num artigo publicado In revista dos tribunais Ano 74 pág. 130 a 143 intitulado " para uma melhor organização da Oralidade em Portugal ": De nada terá valido o esforço do legislador em promulgar as melhores leis para a resolução das questões de Direito, se os Tribunais não são capazes de averiguar com verdade os factos ou matérias ocorridas".
Ora:
20. A produção e Gravação de elementos de prova, designadamente testemunhal é aquela que mais duvidas e angustias suscita quanto á respectiva valoração pelo Tribunal. Decerto os depoimentos não são bacteriologicamente puros, resultando de um certo circunstancialismo, principalmente quando em causa então elementos objectivos e subjectivos dos quais resulta a perca do meio de transporte pelo Assistente em prol da Absolvição dos arguidos.
21. Mas por sua vez o dever de fundamentação da decisão não constitui algo a que corresponda uma soma de depoimentos ou outros elementos sobre determinado facto, como aliás referiu Eurico Lopes Cardoso, in BMJ nº 80 " Os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidos. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento sendo por vezes também um meio de o ocultar "
22. Porém o tribunal recorrido nada fez, bastou-se com a Pseudo prova que revelou lacunas, contraditórias, e obscuras, nem sequer se atendeu á confissão feita pelos Arguidos ao Assistente e sua mãe.
23. Face ao exposto caberá ao tribunal de Recurso, na reapreciação da decisão impugnada, proceder a uma valoração autónoma de todos os meios de prova utilizados pelo Tribunal a quo para fundamentar a decisão.
24. Existe pois um erro notório na apreciação da prova nos termos do aludido artigo 410° nº 2 c) do C.P.P.
25. Caberá pois ao Tribunal de Recurso na reapreciação da decisão impugnada, proceder á valoração autónoma dos meios de prova utilizados pelo Tribunal a quo, para fundamentar a decisão digna de reparo.
26. Face aos apontados vícios elencados nas presentes alegações requer-se que relativamente ao Assistente, ora recorrente, seja revogada a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instancia, que absolveu os Arguidos pela pratica de crime de furto qualificado, devendo estes ser condenados.”
O Ministério Público e os arguidos A... e C... responderam à motivação, concluindo que a sentença recorrida deverá ser mantida.
Nesta instância o Exmº Procurador Geral Adjunto é de parecer, que o recurso merece provimento.
Colhidos os vistos, cumpre decidir, após a realização da audiência.

FUNDAMENTAÇÃO

A matéria fáctica considerada provada na sentença recorrida foi a seguinte:
“ 1. No dia 22 de Agosto de 2003, o ciclomotor de matrícula 3-MGR-03-07 foi entregue ao ofendido desprovido do conta-quilómetros, contra-rotações, farol dianteiro, ignição, espelho e pneu da roda traseira.
2. O ofendido estimou em € 2.000,00 o montante de prejuízos sofridos e atribuiu ao ciclomotor antes de ser danificado, o valor de €2.999,00, pelo qual a adquiriu.
3. O arguido B... frequenta o curso de serralharia mecânica, na Escola Calazans Duarte.
4. Vive com o seu pai, em casa arrendada, o qual lhe proporciona o sustento.
5. Não tem antecedentes criminais.
6. O arguido C.. tem o 9º ano de escolaridade.
7. Vive com os pais, em casa arrendada, os quais lhe proporcionam o sustento.
8. O arguido A.. frequenta o 9º ano na Escola Pinhal do Rei .
9. Vive com os seus pais, os quais lhe proporcionam o sustento.
10. Por sentença transitada em julgado em 29/09/2004 no âmbito do processo sumário nº723/04.5 PAMGR, deste Tribunal foi condenado na pena de 60 dias de multa à razão diária de 2.00, pela prática em 13/09/2004 de um crime de condução sem habilitação legal”
Factos não provados:
“ Produzida a prova e discutida a causa, não resultaram provados os seguintes factos com pertinência para a decisão da mesma:
1.No dia 15 de Agosto de 2003, os arguidos A..., B... e C... planearam apoderar-se do ciclomotor de matrícula 3-MGR-03-07, propriedade de D..., que sabiam encontrar-se na garagem do prédio onde o mesmo habitava, o nº6 da Rua da segurança Social, nesta cidade.
2. Quando já passava das 22.00 horas, para lá se deslocaram mas, ao constatarem que o portão possuía código de acesso, decidiram esperar que entrasse alguma viatura, o que veio a acontecer.
3. Então, aproveitando o momento em que o portão se encontrava aberto, introduziram-se na garagem e dali retiraram o identificado veículo, que guardaram em casa do arguido C....
4. Nessa noite, desmontaram algumas peças e introduziram-lhe outras e alteraram-lhe a cor.
5. Alguns dias depois o veículo ficou a guarda do arguido A..., que lhe substituiu outras peças.
6. O ciclomotor foi utilizado por todos os arguidos.
7. Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
8. Actuaram em comunhão de esforços e de intentos, bem sabendo que o ciclomotor não lhes pertencia e que ao fazê-lo seu, estavam a actuar contra a vontade do dono.
9. Os arguidos alteraram-lhe a cor, retiram-lhe o conta-quilómetros, o conta rotações, o farol dianteiro, a ignição e a roda traseira.
10. Mudaram as peças, o guarda-lamas traseiro e dianteiro, o guiador, o farol dianteiro, o pneu de trás e o escape.”.
Motivação da decisão de facto:
“ Na formação da sua convicção o Tribunal atendeu aos meios de prova disponíveis, atentando nos dados objectivos fornecidos pelos documentos dos autos e fazendo uma análise das declarações e depoimentos prestados. A factualidade que considerou provada e não provada baseou-se na análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida, segundo juízos de experiência e fazendo-se uma apreciação crítica da mesma.
Os arguidos não prestaram declarações.
O assistente não presenciou os factos, no decurso das suas declarações descreveu as diligências a que procedeu após encontrar o seu ciclomotor. Relatou as várias deslocações a casa dos arguidos no intuito de reaver as peças da motorizada.
A testemunha Severino Rosa, comerciante de motos, não presenciou os factos, apenas vendeu e fez um orçamento do arranjo que o ciclomotor, referido nos autos, necessitava.
A testemunha Rui Rodrigues, não presenciou os factos, apenas afirmou em Tribunal que o seu filho encontrou a motorizada em casa do arguido A.... Afirmou que o seu filho, na altura, lhe referiu que o arguido A... teria dito ser um dos autores do furto ciclomotor.
Ora, não pode o Tribunal valorar o depoimento da testemunha, supra referida, no que concerne às declarações prestadas sobre a pretensa confissão do arguido, pois, o mesmo não tomou conhecimento directo desse facto. As declarações proferidas nestas circunstâncias não podem servir como meio de prova, pois, o depoimento resulta do que se ouviu dizer, e o seu filho não foi chamado a prestar depoimento. Contudo prestou depoimento Vanessa Gonçalves, que segundo a supra identificada testemunha teria presenciado os factos, o que não se verificou, pois no seu depoimento, a mesma referiu não ter nenhum conhecimento dos mesmos.
A testemunha Maria da Conceição Ferreira, mãe do queixoso, não presenciou os factos descritos na douta acusação, relatou o Tribunal como foram entregues as peças da motorizada afirmou que os arguidos lhe disseram ter sido eles a furtar o ciclomotor. Quanto a estes depoimentos, são, como se sabe, depoimentos indirectos e o depoimento indirecto só vale como meio de prova, de livre apreciação, em certas ocasiões, exigindo em regra, uma confirmação com a audição das pessoas a quem se ouviu dizer. Ora, tratando-se do que se ouviu dizer ao arguido extraprocessualmente – que tem direito ao silêncio, do qual se socorreu em audiência de julgamento – suscitam-se sérias dúvidas quanto à atribuição de valor probatório a tal testemunho.
Assim, dos factos não provados não foi feita em audiência de julgamento qualquer prova, atendendo a que nenhuma testemunha presenciou os factos, apenas o assistente e a sua mãe relataram as diligências que levaram a cabo, afim de reaver algumas peças da motorizada.
Entende o Tribunal, pelo supra explanado, de que não foi feita em audiência de julgamento prova bastante dos factos descritos na douta acusação.
Valorou, ainda, o Tribunal, os certificados do registo criminal dos arguidos, bem como os relatórios sociais.”.
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O âmbito dos recursos é determinado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
Refere a este propósito o Prof. Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., pág. 350. “ As conclusões da motivação são extraordinariamente importantes, exigindo muito cuidado. Para além da rejeição do recurso quando faltarem as conclusões de direito e as especificações sobre a matéria de facto (Artº 412º, nºs 2 e 3), são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso.”.
Ora conforme resulta da sua leitura a única questão que vem levantada é a da existência do vício de erro notório na apreciação da prova (410º nº 2 c) CPP), traduzida no facto do tribunal recorrido alegadamente não ter atendido à confissão feita pelos arguidos ao assistente e sua mãe.
É certo que na sua motivação o recorrente dizia pretender recorrer da matéria de facto. Acontece, porém que para que este tribunal de recurso pudesse apreciar a matéria de facto, uma vez que esta foi gravada, seria necessário que o recorrente tivesse observado as respectivas exigências legais, isto é dado integral cumprimento ao disposto no Artº 412º nº 3 a) e b) e 4 CPP.
Com efeito aí se estabelece:
“ 3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. “.
Assim incumbia pois ao recorrente, o ónus de concretizar os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, as provas que impunham decisão diversa da recorrida devidamente concretizadas por referência aos suportes técnicos.
Dito isto e considerando que no caso vertente o recorrente não procedeu a nenhuma dessas especificações, condição de que dependia a admissão do recurso relativamente à matéria de facto, ficou este tribunal impossibilitado de aí penetrar.
Passemos então a apreciar se o vício de erro notório se detecta na decisão recorrida.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740. “ Verifica-se erro notório quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto ( positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.”
Por outro lado o vício tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo assim portanto permitida a consulta a outros elementos constantes do processo.
Quer dizer, que o erro notório tem apenas de resultar da própria sentença e não de factos que não se encontram aí vertidos.
É pois com base no que consta da sentença e não naquilo que dela não consta, que se pode invocar o referido vício.
Ora no caso vertente a oposição do recorrente assenta na sua discordância relativamente ao facto do tribunal ter considerado como depoimento indirecto e por isso afastado expressamente valor probatório ao depoimento da testemunha Maria da Conceição, a qual relatou que os arguidos lhe disseram ter sido eles a furtar o ciclomotor, porquanto estes em audiência se remeteram ao silêncio.
Vejamos.
Dispõe o artº 128º, nº 1 CPP, que a testemunha é inquirida "sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova".
Por sua vez o artº 129º nº 1 CPP, estabelece que:
"Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas".
Os nºs 2 e 3 deste artigo não estão aqui em causa, uma vez que o depoimento não resulta da leitura de qualquer documento, nem há recusa ou impossibilidade de indicar a pessoa ou a fonte através da qual se tomou conhecimento dos factos.
Com efeito o que se pretende através da proibição do depoimento indirecto é que o tribunal não acolha como prova um depoimento que se limita a reproduzir o que se ouvir dizer a outra pessoa (Artº 129º nº 1 CPP).
Para que seja valorado, exige-se a confirmação, com a consequente audição das pessoas de quem se ouviu dizer.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, pág. 713. “ Esta confirmação tem em vista a própria validade e eficácia do depoimento, pois o mérito de uma qualquer testemunha tem muito a ver com a razão de ciência da própria testemunha.
Por isso, o depoimento “ por ouvir dizer” só após confirmação será eficaz como meio de prova”.
Exceptuam-se os casos de a inquirição das pessoas indicadas não ser possível, por morte, anomalia psíquica superveniente, ou impossibilidade de serem encontradas.
Inexistem outras ressalvas, nomeadamente quando a “pessoa indicada” é arguido no processo e faz uso do direito ao silêncio consagrado no art. 61 nº 1 al. C) e 343 nº 1 do CPP.
Assim, quando em audiência uma testemunha afirma que ouviu ao arguido, que está presente e que fez uso do seu direito ao silêncio, não colocando em crise a afirmação da testemunha acerca do que afirmou lhe ter ouvido, o depoimento, também nessa parte deve ser valorado.
Não é prova proibida e, como qualquer outra, deve ser apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal –art. 127 do CPP.
O art. 129 do CPP admite o testemunho de ouvir dizer, somente impõe que as pessoas referenciadas no depoimento, sejam chamadas a depor (ressalvando as excepções aí previstas e já referidas).
No caso, estando os arguidos presentes e escusando-se a prestar declarações, verifica-se a impossibilidade de ouvir a “pessoa indicada como fonte”.
Assim, como salienta o Ac. Do T.C. nº 440/99 de 8-7, aqueles depoimentos de ouvir dizer devem ser valorados como meio de prova, “desde logo, porque não há diferença substancial entre a situação do arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência, invoca o seu direito ao silêncio para não depor”.
Nesse Ac. Se tirou a seguinte conclusão:” Há, assim, que concluir que o artigo 129°, n° 1 (conjugado com o artigo 128°, n° 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido”.
Também o STJ. tem aceite tais depoimentos de ouvir dizer, valorando-os como meio de prova, nomeadamente no Ac. de 30-09-1998, in BMJ 479-414, aí se têm como válidas as declarações da queixosa/demandante civil sobre matéria que lhe foi oralmente transmitida pelo arguido, o qual se negou a prestar declarações em audiência de julgamento.
“Não estamos, contudo, perante depoimento indirecto proibido. A queixosa/demandante civil prestou declarações dizendo o que ouviu directamente da boca do arguido e fê-lo na presença deste, que estava assistido pelo respectivo defensor”.
“Por conseguinte, a posição assumida in casu pelo arguido –no uso de direito que não s epõe em causa- de optar pelo silêncio, de forma alguma pode obstar à admissão e valoração das declarações da queixosa/demandante civil”.
Acresce que não estamos perante prova indirecta pura.
Como consta da motivação do acórdão recorrido, o assistente “descreveu as diligências a que procedeu após encontrar o ciclomotor. Relatou as várias deslocações a casa dos arguidos no intuito de reaver as peças da motorizada”. Onde foi encontrado o ciclomotor? Porque se deslocou a casa dos arguidos para reaver peças da motorizada? Conseguiu encontrar peças da sua motorizada na casa dos arguidos? Quem o entregou ao ofendido e em que circunstâncias?
A mãe do queixoso “relatou ao Tribunal como foram entregues as peças da motorizada” como foram? Encontradas onde?, além de afirmar que os arguidos lhe disseram terem sido eles a furtar o ciclomotor.
A prova indirecta, que não é prova proibida, pode ser valorada e complementada, ou complementar outra, nomeadamente a que vier a ser prestada pelo filho da testemunha Rui Rodrigues, pois que este afirmou que seu filho lhe referiu ter encontrado “a motorizada em casa do arguido A...” e que “o arguido A... teria dito ser um dos autores do furto do ciclomotor”.
Assim, aquela prova produzida pelo assistente e por sua mãe (bem como a que deveria ter sido prestada pelo filho da testemunha Rui Rodrigues) deveria ter sido apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do art. 127 do CPP.
Ao não admitir e valorar tal prova, verifica-se a existência do vício invocado, erro notório na apreciação da prova.
Por outro lado, e face ao entendimento supra indicado, também se verifica o vicio da insuficiência para a decisão da matéria de facto.
Como já se referiu e se constata da leitura da fundamentação, a testemunha Rui Rodrigues, que não presenciou os factos, afirmou que o seu filho encontrou a motorizada em casa do arguido A... e ainda que o referido filho, na altura, lhe teria referido que o arguido A... lhe teria dito ser um dos autores do furto do ciclomotor.
Mais se refere aí que o filho não foi chamado a depor.
Ora face ao conteúdo deste depoimento temos que a actuação a seguir pelo tribunal, em ordem a apreciar a verdade dos factos e a boa decisão da causa, seria chamá-lo oficiosamente a depor, ao abrigo do disposto no artº 340º CPP, já que não foi requerida essa chamada.
É pois manifesta a falta de elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição, o que integra o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto (artº 410º nº 2 a) CPP).
Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando há lacuna no apuramento da matéria de facto, necessária para a decisão de direito;
- Lacuna ao não se apurar o que é evidente que se podia apurar;
- O tribunal não investiga a totalidade da matéria de facto, podendo fazê--lo;
Esta insuficiência manifesta-se, pelo menos tendo em conta as regras da experiência, a levar em conta na formação da convicção.
Como se refere no Ac. do STJ in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6º, Fasc. 4, pág. 557, "se se verificar que o Tribunal investigou o que devia investigar e fixou -dentro dessas possibilidades de investigação- matéria de facto suficiente para a decisão de direito, tal vício não existirá. Apenas existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que tal matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz".
Este vício verifica-se, ao não ser chamado a depor o filho da testemunha Rui Rodrigues, que terá conhecimento directo e indirecto de factos relevantes.
Porque assim não procedeu o Mmº juiz, a sentença ficou a padecer do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artº 410º nº 2 a) CPP).
A verificação destes vícios, determina o reenvio do processo para novo julgamento, relativo à totalidade do processo, nos termos dos artigos 426º e 426º-A, do referido Código.
DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em anular o julgamento e sentença recorrida, e determinar o reenvio do processo para novo julgamento, quanto à totalidade do seu objecto, e no âmbito do qual se proceda se possível à audição do filho da testemunha Rui Rodrigues ( artºs 426º e 426º-A CPP).
Sem custas.
Notifique.
Tribunal da Relação de Coimbra, 30 de Novembro de 2005.
________________________ (1º adjunto como relator, art. 425 nº 1 do CPP)


DECLARAÇÃO DE VOTO:
Entendo que o depoimento da testemunha que se referiu à alegada confissão por si recebida do arguido, não podia ser valorada pelo tribunal, pelas razões seguintes:.
Dispõe o artº 128º, nº 1 CPP, que a testemunha é inquirida "sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova".
Por sua vez o artº 129º nº 1 CPP, estabelece que:
"Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas".
Os nºs 2 e 3 deste artigo não estão aqui em causa, uma vez que o depoimento não resulta da leitura de qualquer documento, nem há recusa ou impossibilidade de indicar a pessoa ou a fonte através da qual se tomou conhecimento dos factos.
Com efeito o que se pretende através da proibição do depoimento indirecto é que o tribunal não acolha como prova um depoimento que se limita a reproduzir o que se ouvir dizer a outra pessoa (Artº 129º nº 1 CPP).
Para que seja valorado, exige-se a confirmação, com a consequente audição das pessoas de quem se ouviu dizer.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, pág. 713. “ Esta confirmação tem em vista a própria validade e eficácia do depoimento, pois o mérito de uma qualquer testemunha tem muito a ver com a razão de ciência da própria testemunha.
Por isso, o depoimento “ por ouvir dizer” só após confirmação será eficaz como meio de prova”.
E compreende-se que assim seja, até porque se não houver a confirmação da alegada conversa, nada nos diz que a mesma tenha de facto ocorrido.
Contudo a questão não é pacífica quando a invocada conversa tem como fonte pessoa que posteriormente venha a constituir-se como arguido nos autos e se recuse a prestar declarações, como é o caso dos presentes autos.
E isto porque o arguido tem o direito ao silêncio consagrado quer no artº 61º nº 1 c) CPP, quer concretamente em audiência de julgamento no artº 343º nº 1 CPP, “ sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo”.
Sucede porém que extrair conclusões do silêncio do arguido, significa negar-lhe o direito a esse mesmo silêncio, que, como vimos lhe é reconhecido.
Quer dizer, em tribunal, o arguido que fica calado, apenas é possível concluir que nada disse, ou se se quiser não pode atribuir-se o significado de sim, não ou talvez.
Como escreve Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, II, pág. 169. “ Se o arguido se negar a prestar declarações ou a responder a algumas perguntas, seja qual for a fase do processo, o seu silêncio não poderá ser valorado como meio de prova pois está legitimado como exercício de um direito de defesa que em nada o poderá desfavorecer”.
Significa isto que, salvo o devido respeito por opinião contrária, entendo que não tem qualquer sentido argumentar-se que nesses casos está respeitado o princípio do contraditório, e se o arguido não falou quanto à eventual conversa foi porque não quis.
Arrepia-nos um tal raciocínio, pois constituiria uma forma de coacção intolerável e inadmissível, para que o arguido prestasse declarações, sendo que tinha o direito de não as prestar.
É que o conteúdo essencial do direito de defesa, no qual se inclui o direito de ser ouvido, assenta em que o arguido deve ser considerado como "sujeito" do processo e não como objecto, do que resulta o direito ao silêncio que lhe assiste, directamente relacionado com o principio da presunção de inocência, sendo que só as afirmações por ele produzidas no integral respeito de decisões de sua vontade podem ser utilizadas como meio de prova.
Para além disso o contraditório só pode ser realizado sobre prova legalmente admissível.
Acresce ainda que se tivermos em conta a unidade e a coerência do sistema, sobre a qual nos iremos debruçar em seguida, também facilmente concluímos que valorar-se prova produzida nessas circunstâncias era violar os restantes princípios nessa matéria.
Veja-se que o AcSTJ de 98.10.22, proferido no proc. nº 710/98, citado por Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, pág. 717., afastou até a aplicação do preceituado no artº 129º nº 1 do CPP, com o argumento de que o mesmo não se aplica às declarações do arguido em audiência, já que não depondo este, não há que chamá-lo para fazer algo de que está impedido, excepto no caso previsto no artº 133º nº 2 CPP.
Por outro lado o Tribunal Constitucional pronunciou-se no Ac. nº 440/99 de 99.07.08 DR, II Série de 99.11.09,pág. 16874, nos seguintes termos: “ Há, assim, que concluir que o artigo 129º, nº 1 (conjugado com o artigo 128º, nº 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Não o atinge, ao menos na dimensão em que essa norma foi aplicada no caso.”.
Aparentemente seriamos levados a concluir que estaríamos perante a mesma situação dos autos.
Mas não é assim.
Analisando em pormenor o referido acórdão do Tribunal Constitucional, verifica-se que a situação que nele foi apreciada é completamente diferente da questão dos presentes autos.
Com efeito aí se refere expressamente o quadro factual em que a recusa do arguido, no exercício do seu direito ao silêncio, se verificou:
“Tal recusa por parte do referido arguido verificou-se no seguinte quadro factual: as testemunhas que o indicaram não são meras testemunhas de ouvir dizer, pois que, elas próprias, participaram na actividade delituosa dos arguidos; o tribunal chamou a depor todas as pessoas que essas testemunhas indicaram; dessas pessoas, apenas o referido A. se recusou a prestar declarações, pois os outros arguidos, ora recorrentes, tiveram oportunidade de, na audiência, se pronunciar sobre os depoimentos das referidas testemunhas, designadamente contraditando-os.
Sendo este o quadro em que se verificou a impossibilidade de ouvir a pessoa indicada como fonte pelas testemunhas de acusação, que, de resto, puderam ser contraditadas pelos recorrentes; não havendo nenhum facto cuja prova tenha assentado exclusivamente nos referidos depoimentos indirectos; e sendo estes depoimentos apreciados pelo tribunal com a prudência que a impossibilidade de ouvir a fonte impõe e de acordo com as regras da lógica e da experiência; é razoável e proporcionado que esses depoimentos possam ser valorados como meios de prova. Desde logo, porque não há diferença substancial entre a situação do arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência, invoca o seu direito ao silêncio para não depor. Depois, porque, tratando-se de testemunhas que "tiveram participação importante na actividade delituosa do grupo", se os seus depoimentos não puderem ser atendidos, estar-se-á a desprezar um importante meio de descoberta da verdade. Finalmente, porque não ocorre no caso uma situação similar à julgada no citado acórdão nº 213/94, pois sobre os depoimentos indirectos prestados pelas testemunhas de acusação não incide qualquer proibição de prova.”.
Será então que a testemunha que veio reproduzir em audiência a alegada “ confissão” do arguido pode ser valorada, não obstante o silêncio deste ?
A resposta não pode, a meu ver, deixar de ser vincadamente negativa !
É que se se admitisse que toda e qualquer pessoa pudesse vir a julgamento transmitir uma alegada “ confissão” por si recebida do arguido no circunstancialismo já referido, em total desrespeito pela regras que regem a recolha da prova, violaria manifesta e claramente as garantias de defesa do arguido consagradas no artº 32º CRP.
Acresce que ninguém entenderia que proibindo a lei a inquirição como testemunhas quer dos órgãos de polícia criminal que receberem declarações cuja leitura não seja permitida, quer de quaisquer pessoas que a qualquer título, participarem da sua recolha ( artº 356 nº 7 CPP), se admitisse a possibilidade de valoração do depoimento de pessoa que viesse relatar uma alegada ”confissão” recebida do arguido, ao arrepio de todas as regras de recolha de prova.
Como escreve Damião da Cunha O Regime Processual de Leitura de Declarações na Audiência de Julgamento ( artºs 356º e 357º do CPP), Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Fasc. 3º, Julho-Setembro de 1997, pág. 420. “Pressuposto fundamental para a admissibilidade de uma qualquer leitura de declarações do arguido é a de que o arguido tenha exercido o seu direito a prestar declarações em audiência de julgamento ou então que a leitura corresponda ao exercício desse mesmo direito. O exercício, por parte do arguido, de um direito ao silêncio na audiência de julga-mento preclude, obrigatoriamente, qualquer possibilidade de leitura de anteriores declarações (só assim, de resto, o art. 343º -1 tem aplicação efectiva).
Um segundo pressuposto genérico de admissibilidade de leitura das declarações do arguido é ainda que as declarações, que hipotetica-mente possam ser lidas, tenham sido prestadas por um «arguido», isto é, por uma pessoa após a efectiva constituição como arguido (após a constituição formal e com os formalismos inerentes a tal constituição).
Declarações prestadas por uma pessoa, sem que se tenha verifi-cado a constituição formal ou em omissão de formalidades inerentes a essa constituição (cf. os arts. 58º e 59º do CPP), não podem ser uti-lizadas em processo penal. A razão para tal sanção deve-se ainda ao princípio do nemo tenetur se ipsum accusare. Não podem con-fundir-se, na sua teleologia, as proibições de leitura com esta proibição de prova. Neste caso, a razão de ser de tal proibição de prova radica no facto de as declarações terem sido prestadas por pessoa que, no momento em que as produziu, não estava suficientemente - ou não estava de todo - prevenida - rectius, .esclarecida - sobre o alcance e significado processual que aquelas declarações poderiam conter. Tais declarações, assim prestadas, não valem para qualquer fase processual (e, por maioria de razão, não poderão valer na fase de julgamento); daqui decorre, pois, que declarações, mesmo que reduzidas a auto, pres-tadas em omissão da constituição formal, ou em omissão de formalidades conexas com tal constituição de arguido, não podem ser nunca consi-deradas pelo tribunal (e, mesmo que tais declarações pudessem ser sub-sumidas a uma situação de permissão legal de leitura de declarações do arguido). A proibição de leitura de declarações de um (efectivo) arguido radica noutras considerações e só em casos excepcionais aquela proibição não tem valor.”
Importa ainda referir que se tais declarações informais tivessem sido transpostas para auto, a sua leitura só seria admissível no estreito condicionalismo do artº 356º CP.
Por isso dificilmente se consegue entender que alegadas declarações confessórias prestadas oralmente pelo arguido a terceira pessoa, possam ser contra si aproveitadas.
Como refere Damião da Cunha Obra citada, pág.430., retiraria “ qualquer conteúdo útil ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare e conduzindo à solução, muito próxima de uma visão inquisitória, de o arguido testemunhar ( indirectamente) contra si próprio”.
Seria, a meu ver, verdadeiramente deixar entrar pela janela o que não se quis deixar entrar pela porta.
Como escreve o Exmº Desembargador Barreto do Carmo, em declaração de voto no AcRC 03.06.18, CJ 3/03, pág. 54. “...a diferença fundamental deste para o direito anterior não está no tratamento formal mas no afastamento do princípio inquisitório pleno, onde se via o réu, como objecto do processo, esvaziando-se a personalidade para sobressair a qualidade pressuposta de criminoso. A prova confundia-se com os indícios, o suspeito confundia-se com o criminoso”.
Em resumo o depoimento da identificada testemunha em que se referiu à alegada confissão, não podia ser, como justamente o não foi, valorado pelo tribunal.
É certo que não deixo de reconhecer que uma tal norma concede uma excessiva protecção e garantia do arguido em matéria de defesa, mas isso é tarefa que não me cabe avaliar, por estar no âmbito da política criminal definida por outros órgãos constitucionais.
Aos tribunais compete apenas a interpretação e aplicação da lei. ( todo o sublinhado é meu).