Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
413/06.4TATND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
Data do Acordão: 09/23/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TONDELA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 107º DO RGIT,113º, L. 64-A/08
Sumário: A alteração introduzida pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro ao nº 1 do art. 105º do RGIT, e que consistiu na introdução de um limiar de relevância penal da prestação tributária nele referida – fixado em € 7.500 – não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no art. 107º do mesmo diploma.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado, foi proferido despacho, no qual se decidiu considerar descriminalizada a conduta dos arguidos e, em consequência, declarar extinto o procedimento criminal e, extinta a instância cível por inutilidade superveniente.
Inconformado, o Magistrado do Mº Pº apresenta recurso para esta Relação.
Na sua motivação, apresenta as seguintes conclusões, que delimitam o objecto do recurso.
1- Os argumentos aduzidos pelo Mm.º Juiz "a quo" não poderão, em circunstância alguma, fazer concluir por uma descriminalização das condutas por referência ao art. 2°, n.º 2 do Código Penal.
2- Os ilícitos contra a segurança social começaram a ter menor benevolência no tratamento sancionatório com a Lei n.º 60-A/2005, de 30/12, razão pela qual pelo que não surpreende que a Lei n." 64-A/2008 acentue tal menor benevolência.
3- Os bens jurídicos protegidos pelos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança em relação à Segurança Social não são coincidentes, como decorre da maior protecção constitucional concedida ao direito à segurança social e do facto de, nas contribuições para a segurança social, existir uma maior proximidade, senão coincidência, entre contribuinte e beneficiário.
4- Os princípios da unidade do sistema e da presunção de que o legislador consagrou as melhores soluções não consentem a interpretação de que a Lei n.º 64-A/2008 operou uma alteração legislativa em que, por força da não previsão legal de responsabilidade contra-ordenacional, se desproteja o bem jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social, quando em causa estejam prestações tributárias de valor igualou inferior a €7.500,00.
5- A interpretação segundo a qual a remissão do n.º 1 do artigo 107°, n.º 1 do R.G.l.T. se faz, quanto aos valores, apenas para o n.º 5 e já não para o n.º 1 do artigo 105° do R.G.I.T., é a mais consentânea com o disposto no artigo 9°, n.º 2 do Código Civil uma vez que, no primeiro caso, tal remissão apenas tem sentido, porque em causa estão, precisamente, valores contributivos que o legislador reputou de merecerem uma maior punição, ao passo que, no segundo caso, é perfeitamente admissível que a remissão se faça exclusivamente para a pena, dado que em causa está a remissão para um tipo matricial (artigo 105°, n.º1) ao qual o legislador introduziu uma especialização que não quis estender, como podia, ao tipo matricial do artigo 107°, n.º 1, como bem se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 4/03/2009, proferido no âmbito do processo n.º 257/03.5TAVIS.
6- Em face do exposto deve ser revogado o despacho recorrido, determinando-se a continuação do procedimento criminal contra os arguidos, ordenando-se, em consequência, que o Tribunal a quo marque nova data para a realização da audiência de julgamento.
Não foi apresentada resposta.
Nesta Relação, o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417 do CPP.
Não foi apresentada resposta.
Colheram-se os vistos e foi realizada a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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É do seguinte teor o despacho recorrido:
Como se sabe, no dia 1 de Janeiro de 2009, entrou em vigor a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, Lei do Orçamento de Estado para 2009, que, novamente e um pouco a despropósito (não se deixando de notar que não se afigura que deva ser essa a sede mais adequada para o efeito, impedindo até uma melhor ponderação das soluções encontradas, que deviam ser mais maturadas, em particular na sua aplicação aos processos pendentes, como bem se viu com toda a controvérsia doutrinal e jurisprudencial levantada pela anterior Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, Lei do Orçamento de Estado para 2007), veio introduzir alterações no R.G.I.T. (Regime Geral das Infracções Tributárias), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
Assim, o Art. 113º desta Lei alterou o disposto no Art. 105º, n.º 1 do R.G.I.T. que passou a ter a seguinte redacção: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”, sendo que, anteriormente, este normativo dispunha, tout court, que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
Ora, como resulta da comparação das duas redacções – a actual e a anteriormente vigente – do Art. 105º, n.º 1 do R.G.I.T., verifica-se ter sido alterado o tipo-de-ilícito objectivo do crime de abuso de confiança fiscal, uma vez que passou a ser punida apenas a não entrega à administração tributária, total ou parcial, de prestação tributária de valor superior a € 7.500, enquanto que anteriormente a verificação deste tipo legal não exigia que a prestação tributária não entregue tivesse um valor mínimo.
Ora, o Art. 107º do R.G.I.T. tem a seguinte redacção: “1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º 2 - É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105.º”.
Cumpre, pois, retirar, in casu, as (eventuais) consequências da alteração em causa na fattispecie imputada aos arguidos nestes autos, dado que as condutas dos mesmos, tais como descritas no libelo acusatório e se entender aplicável in casu na sua plenitude o disposto no Art. 105º, n.º 1 do R.G.I.T., deixaram de ser abrangidas, ao estar em causa um crime continuado (v. também o Art. 79º do Código Penal) e sendo certo que nenhuma das contribuições à Segurança Social é, em relação a qualquer um dos períodos em questão (cfr. Art. 105º, n.º 7 do R.G.I.T.), superior a € 7.500, pelo tipo legal previsto no Art. 105º, n.º 1 do R.G.I.T., fazendo, em primeiro lugar, um (breve) excurso sobre o tipo legal em questão e a sua incriminação.
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O Art. 63º, n.º 1 da Constituição prescreve que “Todos têm direito à segurança social”, incumbindo ao Estado “organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários” (n.º 2).
Por sua vez, no n.º 3 deste mesmo artigo especifica-se as finalidades da segurança social, prescrevendo que ”O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho”.
A Segurança Social propriamente dita surgiu, como se sabe, já no século passado, uma vez que, até então, as situações de falta de rendimentos não tinham qualquer tipo de intervenção estatal, cabendo aos próprios indivíduos, melhor ou pior, procurar sobreviver com os meios de subsistência de que dispusessem. Com a passagem paulatina do Estado Liberal para o Estado de Direito Social foram surgindo sistemas mais ou menos desenvolvidos de protecção social dos mais desfavorecidos, como aquele existente entre nós.
De facto, decorre destas disposições constitucionais, que concretizam parcialmente o princípio da democracia económica, social e cultural, uma “imposição constitucional conducente à adopção de medidas existenciais para os indivíduos e grupos que, em virtude de condicionalismos particulares ou de condições sociais, encontram dificuldades no desenvolvimento da personalidade em termos económicos, sociais e culturais” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2.ª Edição, Coimbra, 1998, p. 323).
Por sua vez, e dada a escassez dos meios estatais (cada vez mais patente no caso da própria Segurança Social), põe-se, desde logo, a questão do financiamento do sistema de protecção social. E, entre as fontes de financiamentos prioritárias, contam-se, desde logo, as contribuições dos próprios trabalhadores ou órgãos sociais das empresas, descontadas das suas retribuições e entregues ao Estado para as repartir por pessoas necessitadas de apoio social.
Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, Coimbra, 1993, concluem, pois, que “a segurança social não depende apenas do financiamento público, mas sim também (ou sobretudo) das contribuições dos respectivos beneficiários” (nosso destacado).
Cumpre, pois, ao Estado assegurar, prima facie, que as contribuições para a Segurança Social sejam efectivamente descontadas e entregues, sob pena de não ser possível proceder ao pagamento das prestações sociais. Todo o sistema de segurança social assenta, assim, na cobrança efectiva das contribuições, repartidas “de forma igual pelos cidadãos”, no que constitui uma das vertentes do princípio da igualdade perante os encargos públicos (Gomes Canotilho, ob. cit., p. 393).
O sistema de Segurança Social assenta, pois, num pressuposto básico, que todos os trabalhadores e empregadores cumpram com as suas obrigações (só assim podendo existir igualdade entre todos), que não sendo impostos, assumem natureza parafiscal, devendo, para o efeito, ser sujeitos à fiscalização das entidades competentes e à aplicação de sanções. Neste âmbito, claro é que não basta a intervenção do direito de mera ordenação social, uma vez que a simples aplicação de uma coima pode não constituir um desincentivo suficiente para os agentes.
Tornou-se, pois, necessária, a criação de tipos legais associados aos incumprimentos mais graves das obrigações para com a segurança social, permitindo a aplicação das sanções reservadas para o direito penal stricto sensu. O que, entre nós, levou à alteração, em 1995, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras – R.J.I.F.N.A. (Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro), introduzindo nele, entre outros crimes, o de abuso de confiança em relação à segurança social (cfr., sobre a sua constitucionalidade, detalhadamente, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 516/00, retirado de www.tribunalconstitucional.pt).
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No nosso ordenamento jurídico, e até à publicação do citado Decreto-Lei n.º 20-A/90, as infracções fiscais não aduaneiras eram tipificadas como contravenções e estavam previstas de forma dispersa por diversos códigos tributários e respectiva legislação complementar. Só com a entrada em vigor do R.J.I.F.N.A., em 4 de Fevereiro de 1990, se optou por criminalizar certos comportamentos lesivos dos interesses da Fazenda Nacional, estruturando-se as infracções fiscais de acordo com a visão bipartida entre crimes e contra-ordenações.
Como refere Cunha Rodrigues, «Crimes contra o Património – Alguns Problemas de Aplicação» in Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal I, Lisboa, 1996, p. 63: “o aparecimento de uma espécie de Parte Geral deste direito penal secundário – em que se prevê, nomeadamente, a punição da tentativa, a responsabilidade por actuação em nome de outrem, a responsabilidade das pessoas colectivas e a especialidade das penas acessórias –, a abertura do processo a iniciativas de acção popular e a especialização dos órgãos de polícia criminal são alguns dos sinais que, nesta área, definem o modelo português” e que têm contribuído para uma progressiva e crescente depuração dogmático-conceptual deste tipo de infracções.
Importa, desde logo, identificar o bem jurídico protegido com as incriminações típicas do direito penal secundário, enquanto fundamento e suporte da ilicitude material que lhe está subjacente, considerando a “relação de codeterminação recíproca entre o bem jurídico e a conduta típica”, característica recorrente no direito penal secundário, na medida em que “muitas vezes só a partir da consideração do comportamento proibido é possível identificar e recortar em definitivo o bem jurídico” (Figueiredo Dias/Costa Andrade, «O crime de fraude fiscal no novo direito penal tributário português» in Revista Portuguesa de Ciência Criminal 6 (1996), p.81).
Surge, pois, a questão se, com o direito penal secundário, se protegem bens jurídicos autónomos, ou se estamos apenas perante uma outra modalidade de tutela requerida por novas formas e possibilidades de lesão de bens jurídicos já existentes e devidamente cristalizados.
Tem sido entendimento generalizado o que opta pela clara autonomização dos bens jurídicos tutelados pelo direito penal secundário, como salienta Figueiredo Dias, «Direito Penal e Estado–de-Direito Material» in Revista de Direito Penal, 1982, p. 43 (apud Costa Andrade «A nova lei dos crimes contra a economia à luz do conceito de «bem jurídico» in Direito Penal Económico e Europeu – Textos Doutrinários I, Coimbra, 1998 401) ao referir-se à distinção entre direito penal clássico e direito penal secundário: “Num como no outro trata-se de bens jurídicos e, portanto, de uma ordem legal análoga à ordem axiológica constitucional. Só que os bens jurídicos do direito penal de justiça se relacionam com o livre desenvolvimento de cada homem como tal, enquanto os do direito penal secundário se relacionam com a actuação da personalidade do homem enquanto fenómeno social, em comunidade e em dependência recíproca dela”.
Por sua vez, Augusto Silva Dias «Os Crimes de Fraude Fiscal e de Abuso de Confiança Fiscal: Alguns Aspectos Dogmáticos e Político-Criminais» in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n.º 394, Abril/Junho 1999, p. 46, salienta que o legislador nacional optou por um modelo intermédio, em que estão presentes as vertentes de protecção do património fiscal do Estado e o reconhecimento de deveres de verdade e de lealdade fiscal – “o ilícito penal fiscal está estruturado em torno da ofensa dirigida às receitas fiscais do Estado, proveniente da violação de deveres de colaboração do contribuinte respeitantes à obrigação tributária principal. Esta estrutura encerra, pois, níveis e conteúdos distintos: o bem jurídico protegido é constituído pelo património fiscal do Estado como instrumento da política financeira e distributiva (v. art. 81.º e 103.º CRP) enquanto os deveres de colaboração formam o suporte normativo que assegura a protecção do bem. Deste modo, o primeiro aspecto prende-se com o desvalor do resultado, significando o segundo o desvalor da acção das incriminações fiscais”.
É este segundo aspecto que permite estabelecer a diferenciação entre estes crimes e os ilícitos patrimoniais tipificados no Código Penal, em que também o Estado pode ser a vítima.
De facto, é hoje cada vez mais patente a progressiva eticidade de que goza o ilícito penal fiscal, atenta a sua natureza de instrumento essencial de realização da justiça distributiva, que mais e mais se assume como tarefa fundamental do Estado. E isto de tal forma que o dever de pagar impostos (e também as contribuições para a segurança social) se traduz actualmente numa das mais importantes dimensões do exercício dos direitos/deveres de cidadania e de solidariedade para com os outros, com vista à correcção das desigualdades e desequilíbrios sociais, sendo os deveres de colaboração meramente instrumentais em relação àquele dever fundamental.
O reconhecimento de que o pagamento de impostos e tributos parafiscais relaciona-se não só com a satisfação das necessidades financeiras do Estado, mas também e sobretudo com a realização da justiça distributiva, tendo em conta as necessidades de financiamento das actividades sociais do Estado, com vista à progressiva diminuição das desigualdades sociais e elevação dos níveis de bem-estar da população em geral, tem contribuído para a crescente consciência da eticização e correspondente suporte axiológico dos crimes fiscais, acentuando o desvalor ético-social destes ilícitos.
No entanto, ainda não se consolidou nos contribuintes em geral um sentimento de adesão aos objectivos essenciais do sistema tributário, o que pode ser explicado, nomeadamente, considerando a relativa mutabilidade dos sistemas tributários e a ausência de uma representação da correlação entre os sacrifícios fiscais e os benefícios públicos daí resultantes no pensar da colectividade, o que permite explicar a ainda actual elevada taxa de evasão fiscal, a qual implica para os cidadãos que efectivamente pagam os impostos devidos um sacrifício injusto, porquanto a sua contribuição é seriamente agravada.
Por outro lado, há que considerar que estamos numa área privilegiada de “white collar criminality”, onde avultam pessoas de elevado estatuto social, profissional e financeiro às quais está frequentemente associada uma imagem de relativa impunidade, sendo, por outro lado, um domínio em que exercem particular influência as regras da economia de mercado, em que os impostos e contribuições sociais representam factores de custo que importa reduzir, o que implica o correspondente aumento dos lucros.
Contudo, o “tratamento privilegiado da criminalidade fiscal ao nível das sanções, com a cominação e aplicação de sanções de fraco índice estigmatizador, além de não corresponder, nos casos mais graves de evasão, aos danos causados, repercutir-se-á negativamente na respectiva prevenção e contribuirá para uma erosão ainda maior da consciência fiscal. Em suma, a intervenção do Direito Penal no âmbito tributário não pressupõe necessariamente a existência de uma consciência colectiva sólida relativamente às questões da fiscalidade, antes, o próprio Direito Penal pode ser um instrumento válido para a evolução e consolidação de uma tal consciência” (Augusto Silva Dias, «O Novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro» in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários II, Coimbra Editora, 1999, p. 245).
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Quanto ao crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, incriminação inovadora integrada no Capítulo II da Parte II do R.J.I.F.N.A., introduzido posteriormente pelo Decreto-Lei n.º 140/95, de 14 de Junho, e mantido também com o R.G.I.T., o mesmo apresenta um recorte em tudo semelhante ao abuso de confiança fiscal.
A única especialidade deste crime reside no facto de o ofendido ser a Segurança Social, porquanto se exige a não entrega às instituições de segurança social do montante das contribuições legalmente devidas pelos trabalhadores, deduzidas nas respectivas remunerações, no prazo de 90 dias, sendo que se impunha no R.J.I.F.N.A. a apropriação desses mesmos montantes pela entidade empregadora – cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Julho de 1998, CJ/ASTJ II, p. 231, sendo que, no R.G.I.T., deixou de ser exigida a apropriação enquanto elemento integrante deste tipo legal.
Segundo alguns autores, nomeadamente Carlos Almeida, «Os Crimes contra a Segurança Social previstos no Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras» in Revista do Ministério Público n.º 72, p. 99, o bem jurídico protegido por estas novas incriminações prende-se directamente com a “tutela dos interesses patrimoniais da Segurança Social, mais precisamente, do seu erário, formado a partir das receitas contributivas do sistema definidas segundo critérios materiais e afectas aos fins específicos de solidariedade”, sendo que subsidiariamente e de forma subordinada se visa proteger também os “valores de verdade e transparência”. Não obstante, o mesmo autor entende que relativamente ao específico crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, o bem jurídico protegido assume natureza exclusivamente patrimonial, “consubstanciado na tutela do respectivo erário, assente na satisfação dos créditos contributivos de que a Segurança Social é titular” (ob. cit., p. 103, sendo que a determinação deste bem jurídico tem muita importância na aferição da possibilidade de haver constituição de assistente da Segurança Social neste crime – cfr., por todos, o recente Acórdão da Relação de Coimbra de 26 de Maio de 2004, retirado de www.dgsi.pt, com abundante citação da jurisprudência sobre esta matéria).
Nos termos do Art. 5º, n.ºs 2 e 3 do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio e do Art. 18º do Decreto-Lei n.º 140-D/86, de 14 de Junho, o pagamento ou entrega das contribuições pelas entidades empregadoras nos centros regionais de Segurança Social deve ser efectuado até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito. Assim, passados 90 dias sobre o termo desse prazo sem que tenha havido a entrega das contribuições efectivamente deduzidas nas remunerações pagas aos trabalhadores e aos órgãos sociais e havendo apropriação desses montantes, está preenchido o crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social.
Estamos perante um crime específico próprio, pois que o agente do crime apenas pode ser a entidade empregadora, a qual está obrigada a deduzir e posteriormente entregar às instituições de segurança social o montante das contribuições legalmente devidas pelos trabalhadores e seus órgãos sociais, ou dito de outro modo, é o dever de retenção que impende sobre aquela entidade que delimita o campo possível da autoria.
Este ilícito pressupõe não o dever de pagamento da dívida tributária por parte do sujeito passivo dessa obrigação, mas a figura da substituição tributária, uma vez que a lei impõe o dever de realizar a prestação tributária a pessoas em relação às quais não se verificam os pressupostos tributários, através da retenção na fonte ou de um direito de regresso. E, quer os sujeitos passivos, quer os substitutos, são, consoante os casos, os responsáveis directos da dívida de imposto, ou seja, é sobre eles que impende o dever de pagamento – neste sentido Rui Barreira, «A Responsabilidade dos Gestores de Sociedade por Dívidas Fiscais» in Fisco n.º 16 (1990), p. 3. Ou seja, neste caso concreto é sobre a entidade empregadora que recai directamente o dever de pagar (entregar) o montante das contribuições devidas pelos trabalhadores e seus órgãos sociais, aliás já previamente deduzido nas respectivas remunerações.
Por sua vez, como referem Figueiredo Dias/Costa Andrade, ob. cit., p. 91, a propósito do crime de abuso de confiança fiscal, este “pressupõe, entre os elementos da factualidade típica, a efectivação de um dano/enriquecimento, sob a forma de descaminho de prestações correspondentes a créditos tributários”.
Na redacção inicial do preceito (do R.J.I.F.N.A.), para o preenchimento do tipo legal de abuso de confiança fiscal era suficiente a não entrega, total ou parcial, da prestação tributária devida ao Fisco. Contudo, posteriormente, passou a exigir-se que essa não entrega seja acompanhada de apropriação dos montantes não entregues, isto é, que o agente faça sua a prestação deduzida nas remunerações dos trabalhadores, integrando-a na sua esfera patrimonial, à semelhança do que exige o Art. 205º do Código Penal.
Este novo desenho típico permitia destrinçar claramente o crime aqui em apreciação e a contra-ordenação do Art. 29º do R.J.I.F.N.A., sendo que, actualmente, com a entrada em vigor do R.G.I.T (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho) e como já se referiu, a apropriação deixou, novamente, de ser elemento do tipo de crime em análise.
Por outro lado, também no que diz respeito ao tipo objectivo deste ilícito, temos a necessidade de existência de uma relação de confiança, a qual é violada pelo substituto se, após ter procedido correctamente à determinação da prestação tributária e correspondente detenção/retenção (se o substituto não procedeu à detenção/retenção não há sequer tipicidade, pois que falta o objecto sobre o qual se institui a relação de confiança), não entrega as contribuições às instituições da Segurança Social, pelo que, nesta parte, estamos em face de um comportamento de estrutura omissiva.
Em sede de R.J.I.F.N.A., porém, uma vez que além da não entrega se exige também apropriação, o ilícito configurava-se como de comissão por acção, uma vez que a violação da relação de confiança só assume relevância típica desde que acompanhada da apropriação da quantia deduzida e retida, sendo este o resultado típico previsto na norma, pelo que estávamos em face de um crime de resultado.
A exigência de apropriação por parte da entidade empregadora que era feita no tipo legal levantava algumas dificuldades, pois que esta pressupõe, não apenas a simples intenção de apropriação, mas também a efectiva apropriação. Ou seja, não bastava que o agente quisesse fazer sua a coisa, uma vez que essa intenção deveria ser sempre confirmado por uma actuação de apropriação claramente reconhecível exteriormente, manifestada por um dispor da coisa ut dominus. Ou, nas palavras de Alfredo José de Sousa, Infracções Fiscais Não Aduaneiras, 3.ª Edição, Coimbra, 1998, p. 108, “a apropriação pode traduzir-se na simples fruição ou na disposição pelo devedor de cada uma das prestações tributárias deduzidas ou retidas ou liquidadas com obrigação de as entregar ao credor tributário”.
Como refere Augusto Silva Dias, Os Crimes de Fraude Fiscal e de Abuso de Confiança Fiscal: Alguns Aspectos Dogmáticos e Político-Criminais cit., p. 49, embora reportando-se ao crime de abuso de confiança fiscal, para que se verifique o correspondente desvalor de acção “é condição necessária o incumprimento do dever legal de entregar o montante de imposto retido na fonte, mas não suficiente, pois o tipo do art. 24.º do RJIFNA exige ainda a acção de apropriação desse montante”, entendendo que só essa apropriação traduz a plena consumação da obrigação imposta ao agente e “forma o substrato para a reprovação ética da atitude do agente no plano da culpa”.
Contudo, quando se trata de coisas fungíveis, como, por exemplo, somas em dinheiro, difícil se torna a destrinça no património de quem recebe ou detém a coisa, daquilo que é próprio e daquilo que é alheio. Daí que alguns autores defendam que a entrega de coisas fungíveis impõe a quem as recebe a obrigação de as autonomizar no respectivo património, por forma a torná-las certas e a permitir a reserva de um direito real sobre elas por parte de quem as entrega, garantindo assim a restituição ao respectivo proprietário logo que solicitado, sob pena de não se cumprindo tal dever se poder concluir que houve apropriação. Ou seja, só haverá apropriação quando aquele a quem são entregues coisas fungíveis não tiver bens suficientes para responder pelo respectivo montante (cfr. o Acórdão da Relação do Porto de 22 de Maio de 2002, retirado de www.dgsi.pt, embora relativo ao abuso de confiança tout court, concluindo que “quando a coisa móvel alheia é constituída por objectos fungíveis, nomeadamente por dinheiro, o tipo objectivo não é integrado pela mera confusão ou o simples uso de coisa fungível, mas, mais tarde, pela sua disposição de forma injustificada ou pela não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidas, ao que terá de acrescer o respectivo dolo”).
Contudo, não havendo tal autonomização no património da entidade empregadora (substituto fiscal) do montante descontado nas remunerações dos trabalhadores, difícil se torna a prova da apropriação quanto a essas quantias, uma vez que estas apenas são “artificialmente retidos”, ou seja, na verdade eles não chegam sequer a sair do giro comercial do substituto fiscal.
Para contornar tais dificuldades, Carlos Almeida, ob. cit., p. 105, defende que no crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social a “acção incide sobre um valor próprio objecto de uma relação jurídica de natureza obrigacional”. Este autor reforça, assim, a ideia de que o bem jurídico protegido com a incriminação não é a propriedade, como no crime de abuso de confiança comum, mas o erário de que é titular a Segurança Social, o qual é lesado pela não satisfação de um seu direito de crédito, para concluir que “no contexto do tipo legal de abuso de confiança em relação à Segurança Social o conceito «apropriação» não pode ter o mesmo sentido que tem no tipo comum. Apropriação apenas pode querer significar que o agente não cumpriu a obrigação no prazo que a lei penal lhe fixou”. Nestes termos, continua o mesmo autor, sempre estará garantido o preenchimento do elemento objectivo do tipo de crime em análise, desde que verificado o não cumprimento.
Quanto ao tipo subjectivo do crime de abuso de confiança em relação à segurança social, temos que o respectivo elemento subjectivo se esgota com o dolo, enquanto elemento subjectivo geral, em qualquer das suas modalidades previstas no Art. 14º do Código Penal.
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Posto isto, cumpre debruçar-nos então sobre a alteração legal em causa, considerando-se, antes de mais, que o legislador penal não terá, de facto, devidamente ponderado e sopesado as eventuais consequências da alteração operada no Art. 105º, n.º 1 do R.G.I.T., maxime na sua ligação (umbilical) ao Art. 107º do mesmo diploma legal, que remete, agora, até para uma disposição revogada (Art. 105º, n.º 6), o que não faz o mínimo sentido, existindo uma clara aporia legislativa nas alterações operadas neste regime legal.
Não se nos afigura, assim, que se possa decidir esta questão com base numa possível mens legis, que se desconhece qual seja e se será até existido (e que não é propriamente o mais relevante em direito penal, face, desde logo, às exigências postuladas na hermenêutica penal pela existência do princípio da legalidade em todas as suas diversas vertentes, não podendo condenar-se alguém com base no que o legislador quis, mas sim com fundamento no que consta efectivamente das leis penais), sendo certo que é perfeitamente possível (e até crível) que o legislador nem sequer se tenha apercebido que essa simples alteração poderia ter repercussões noutros tipos legais que remetiam para esse artigo.
De facto, o Direito vem oscilando entre Cila e Caribdis no que diz respeito à produção legislativa, desde o imobilismo quase absoluto (cfr. as palavras de Simão Gonçalves Preto dirigindo-se a Filipe I de Portugal, em 1587 “Renuncie Vossa Majestade toda a vontade a qualquer novidade nos Costumes e nas Leys deste País postoque toda novidade nestas couzas abre reparos e juízos que são perigosos”) até a uma grande incontinência e proliferação legislativa (v. a famosa expressão de Kirchmann, na Alemanha, em 1847 “Três palavras de correcção do legislador e bibliotecas inteiras transformam-se em papel de embrulho”), assente na crença liberal da omnipotência/ominisciência do legislador e do poder criador/corrector do Direito, que vem levando a uma abundância excessiva e falta de qualidade da extensa e rápida produção legislativa, que põe em causa o princípio da razoabilidade do Legislador (Art. 9º, n.º 3 do Código Civil) e que leva a largos dissídios jurisprudenciais que seriam fáceis de evitar caso fossem devidamente pensadas as soluções legislativas e expostas de forma clara, perceptível, congruente e não ambígua.
Em suma, trata-se de uma questão nada fácil, que podia ter sido perfeitamente evitada ab initio, e que, com algum grau de certeza, será decidida, em sentidos opostos, nos Tribunais, como sucedeu com a última alteração ao R.G.I.T. operada pela Lei do Orçamento para o ano de 2007 (com decisões diversas nos Tribunais da 1.ª instância, sendo os arguidos absolvidos ou condenados conforme o local onde fossem julgados, dividindo-se também os Tribunais de 2.ª instância, tendo sido necessário que o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciasse a esse respeito, no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 9 de Abril de 2008 e retirado de www.dgsi.pt, que fixou jurisprudência no sentido de que “A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT)”), cumprindo, pois, tentar lançar alguma luz (a nossa “luz”, pelo menos) sobre esta questão, referindo, antes de mais e com a devida data venia, que se concorda com os frisantes argumentos do Ministério Público expostos, de forma brilhante, na excelente promoção que antecede, pelos motivos que se passam a expor.
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O Art. 107º do R.G.I.T. corresponde, pelo menos parcialmente, a um tipo legal em branco, ipso est, “tem a particularidade de descrever de forma incompleta os pressupostos da punição de um crime (norma sancionadora), remetendo parte da sua concretização para outras fontes normativas (norma complementar ou integradora” (Teresa Beleza/Costa Pinto, O regime legal do erro e as normas penais em branco, Coimbra, 1999, p. 31).
O Art. 107º do R.G.I.T. não determina totalmente o regime penal aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, mormente no que diz respeito à sua punição, antes reenviando a fixação das penas aplicáveis para outra disposição do mesmo diploma legal – o Art. 105º.
Antes de mais, cabe referir que o Art. 107º, n.º 1 do R.G.I.T. remete, expressis verbis, apenas para as penas do Art. 105º, sendo, na parte restante (no que diz respeito à definição dos próprios elementos do tipo legal), aparentemente auto-suficiente, embora tal seja, em verdade, perfeitamente ilusório.
De facto, se o agente é punido com as penas previstas no Art. 105º n.ºs 1 e 5 do R.G.I.T., tal pressupõe que se distinga, face ao valor em causa, entre os n.os 1 e 5 desse normativo, com penas muito diversas ligadas aos concretos valores não entregues pelos agentes, sendo que nunca foi antes questionado que a distinção entre essas duas penas devia ser feita de acordo com o disposto unicamente neste artigo.
Ipso est, o Art. 107º, n.º 1 do R.G.I.T., em verdade, remete, implicitamente, para os valores constantes do Art. 105º, n.ºs 1 e 5, como sucede também com outros valores e prazos referidos nos outros números deste artigo, pelo que, ao não se ter previsto um regime específico para o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social (como sucedeu, quanto ao crime de fraude fiscal e de fraude contra a Segurança Social, em que o legislador refere, de forma expressa, os dois valores a partir dos quais são criminalizadas as condutas, sendo que, em relação à Segurança Social, o valor a partir do qual existe crime é, justamente, o de € 7.500), ter-se-á de entender que a alteração introduzida no Art. 105º, n.º 1 do R.G.I.T. também se reflecte no próprio crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
É verdade que estão em causa dois bens jurídicos diversos e que a Segurança Social portuguesa está com problemas graves de solvabilidade financeira, mas tal nunca impediu que houvesse, antes, uma total identidade de regime entre os dois crimes, sendo que, aliás, o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social surgiu historicamente depois do crime de abuso de confiança fiscal, nunca tendo propriamente qualquer autonomia dogmática e material em relação a esse primeiro crime.
De resto, e se a Segurança Social apresenta esses problemas financeiros, também o próprio Fisco e o erário público atravessam dificuldades devido à elevada taxa de evasão/incumprimento fiscal e à dificuldade de obter a cobrança efectiva de diversos impostos, sendo certo que, caso as contribuições não sejam suficientes para a sustentabilidade do sistema da Segurança Social, serão os impostos a ter de assegurar, necessariamente, o pagamento das prestações sociais. Aliás, não é o simples facto de estas condutas, em qualquer dos casos, não constituírem crime que impede que as quantias em dívida sejam cobradas através das respectivas execuções, não se podendo ligar, à outrance e sem mais, a criminalização de uma conduta à necessidade de obtenção do pagamento das contribuições, que poderão ser satisfeitas coercivamente e sendo certo que não é a condenação criminal que assegura, de qualquer forma, o seu cumprimento voluntário.
Assim, entende-se que não se pode decidir esta questão partindo da ideia, com base em considerações prévias ligadas à diferente natureza dos bens jurídicos e às necessidades financeiras do sistema da Segurança Social, de que o legislador deverá ter procurado distinguir entre os dois crimes para justificar um diferente tratamento de dois crimes que sempre foram afins e punidos de forma idêntica e sem que haja qualquer fundamento bastante para o efeito, o que levaria também, a nosso ver, a uma violação, constitucionalmente inválida, do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade (o tratamento diverso, não justificado e desproporcionadamente agravado de duas situações de natureza muito similar), que devem sempre ser respeitados em qualquer lei penal.
De facto, a propugnar-se uma interpretação diversa, o crime de abuso de confiança fiscal só seria punido a partir dos € 7.500, ficando perfeitamente impune a maior parte das condutas anteriormente abrangidas por este crime, enquanto que o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social puniria praticamente toda e qualquer conduta de não entrega de contribuições, qualquer que fosse o seu valor, não estando em causa o estabelecer de dois escalões de valor diversos a partir dos quais as condutas serão punidas como crime, mas antes uma impunidade quase absoluta (dado que os impostos não entregues, na generalidade dos casos, nunca atingem os € 7.500) versus uma punição em quase todos os casos.
Quem, durante vários períodos tributários (verbi gratia, durante anos, atingindo montantes elevadíssimos), não entregasse impostos no valor de € 7.400 ficaria perfeitamente impune do ponto de vista do direito penal clássico, do direito penal stricto sensu (sem prejuízo de poder cometer ilícitos de mera ordenação social, mas com consequências jurídico-penais muito menos gravosas, enquanto que, anteriormente, seria, com toda a probabilidade, condenado numa pena de prisão efectiva ou suspensa na sua execução mediante a condição de pagar os impostos em dívida), enquanto que a mera não entrega, num período contributivo, de € 10 de contribuições para a Segurança Social sem a respectiva declaração, constituiria um crime punível, mesmo que, depois de passados os 90 dias previstos no Art. 105º, n.º 4, al. a) do R.G.I.T., essa quantia fosse paga, dada a não aplicabilidade, devido a não ter sido entregue a declaração referida na al. b) do mesmo normativo e face à expressa revogação do Art. 105º, n.º 6 do mesmo diploma legal, não sendo o agente sequer notificado para pagar a quantia em dívida.
Assim, uma lei aparentemente descriminalizadora acabaria, num contra senso legal, por permitir a punição de condutas que antes não eram punidas e por criar dois regimes legais substancialmente diversos, apesar da natural similitude dos bens jurídicos em causa e da correspondente gravidade das condutas, sem que tal resulte perfeitamente aparente e inteligível do próprio texto actual dos dois artigos em causa, mas antes indo contra o sentido literal da remissão do Art. 107º para o Art. 105º do R.G.I.T..
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A regra penal tem, na formulação expressiva de Stamatios Tzitis, Filosofia Penal, 1999, p. 19-21, uma função principal, poiética, que é “ontológica” e “ôntica” e que “que cria a acção punível”, uma vez que “é inconcebível condenar alguém sem uma previsão jurídica”, bem como, secundariamente, uma função referencial (relativa à ligação entre o acto previsto na norma penal e a punição, estabelecendo a lógica punitiva) e uma função expressiva, que “tende a transmitir pela semântica de punição claramente formulada, uma mensagem compreensiva e concreta aos destinatários do direito penal”, para o fazerem respeitar.
Esta primeira função corresponde, assim, à conhecida expressão Nullum crimem, nulla poena sine lege, que Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral I, Coimbra, 2004, p. 163, destacado do autor, traduz como correspondendo a “não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa”, tendo como fundamento vários princípios constitucionais (o princípio liberal, democrático e da separação dos poderes) e, já no âmbito do direito, penal, a ideia de prevenção geral e o princípio da culpa – ob. cit., p. 167-168.
Assim, esta primeira função da regra penal corresponde à chamada função de garantia do tipo penal (cfr., por todos, Cobo del Rosal/Vives Antón, Derecho Penal. Parte General, Valencia, 1984, p. 271, ampliando essa função a todas as categorias científicas do tipo-de-ilicito, Jescheck, Tratado de Derecho Penal. Parte General, 4.ª Edição, trad. espanhola, Granada, 1993, §15, p. 112 e ss., e Roxin, Teoría del tipo penal. Tipos abiertos y elementos del deber jurídico, trad. espanhola, Buenos Aires, 1979, p. 170), garantindo que ninguém pode ser condenado criminalmente senão em virtude de uma lei anterior que criminalize a sua conduta (pelo que a lei penal constitui, na expressão de Lizst, a Magna Carta do cidadão – cfr. Zugaldía Espinar, Fundamentos de Derecho Penal, 3ª Edição, Valencia, 1993, p. 276).
Como refere Figueiredo Dias, ob. cit., p. 168, “Não pode esperar-se que a norma cumpra a sua função motivadora do comportamento da generalidade dos cidadãos – seja na sua vertente “negativa” de intimidação, seja sobretudo na sua vertente positiva de estabilização das expectativas – se aqueles não puderem saber, através de lei anterior, estrita e certa, por onde passa a fronteira que separa os comportamentos criminalmente puníveis dos não puníveis”.
Por seu lado, e em decorrência directa do princípio da legalidade, temos que a analogia não é permitida em direito penal em desfavor do agente (in malam partem, cfr., detalhadamente, Polaino Navarrete, Derecho Penal – Parte General I, Barcelona, 1996, p. 412 e ss.), como resulta claro do Art. 1º, n.º 3 do Código Penal.
Aliás, Faria Costa, Noções Fundamentais de Direito Penal, Coimbra, 2007, p. 139, junta a esta proibição da analogia, outra ideia, embora algo dubitativamente, a de “odiosa restrigenda. Por outras palavras, a norma incriminadora deve ser sempre interpretada restritivamente”.
Ora, neste caso, considera-se que a alteração operada no Art. 105º, n.º 1 do R.G.I.T. não pode deixar, face à remissão para esse artigo constante do Art. 107º do mesmo diploma legal e até por interpretação extensiva in bonam partem, de ser entendida como também o sendo para o valor agora aí constante, não sendo possível “fugir” à literalidade desta norma sob pena de se atingir uma interpretação jurídico-penalmente proibida – cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., p. 179, referindo que a “interpretação admissível tem passar a prova de fogo (…) da sua admissibilidade face ao teor literal da lei e aos significados comuns que ele encerra”.
A exigência de “cognoscibilidade e dirigibilidade objectivas” impedem, pois, que se possa “legitimar, em matéria incriminadora, uma aplicação analógica ou mesmo uma interpretação extensiva que ponha em causa a função de garantia do tipo” – Figueiredo Dias, «Para uma dogmática do direito penal secundário» in Direito Penal e Económico e Europeu: Textos Doutrinários I, Coimbra, 1998, p. 62-63, o que, no nosso entendimento, aconteceria caso se decidisse, com base no texto legal actualmente vigente, existir um regime diverso para os dois crimes.
De resto, chegou-se a idêntica conclusão no muito recente Acórdão da Relação de Lisboa de 25 de Fevereiro de 2009, retirado de www.dgsi.pt, que foi, pelo menos aparentemente, o primeiro aresto publicado a referir-se a esta questão concreta, onde se escreveu, “Verificou-se apenas a introdução de um valor abaixo do qual não há crime, pese embora persista a obrigação de entregar a quantia devida, tal como existia um valor até ao qual era possível a extinção da responsabilidade criminal pelo pagamento (até à introdução da al. b) do nº 4 do artº 105º, a partir da qual passou a ser sempre possível tal extinção, independentemente do valor) e tal como existe um valor a partir do qual o crime é qualificado. Ou seja: sempre se tiveram em consideração todos os valores referidos no artº 105º para os aplicar aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social (por virtude das remissões feitas pelo artº 107º).
Então porquê agora também não se aplicar o novo valor de € 7.500, previsto no nº 1 do artº 105º? Só porque a remissão do nº 1 do artº 107º é para as penas?
Mas a remissão para o nº 5 do artº 105º também é para as penas e sempre tem que se considerar o valor de € 50.000 aí indicado!”.
Se é verdade que se trata de uma conclusão nada pacífica do ponto de vista jurisprudencial, existindo já arestos da Relação do Porto e de Coimbra em sentido contrário, entende-se ser esta a interpretação jurídico-penal correcta desta alteração legal e aquela que, salvo melhor opinião e por honestidade intelectual e imperativos de consciência ético-jurídica, o signatário adoptou.
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Chegando então à conclusão que o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social deixou, actualmente, de punir a não entrega de contribuições de valor inferior a € 7.500, cabe ponderar as concretas consequências dessa conclusão no caso concreto.
Ora, o Art. 2º do Código Penal, sempre na sua redacção actual, prescreve que:
“1 — As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.
2 — O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.
3 — Quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser punível o facto praticado durante esse período.
4 — Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior”.
Assim, o Art. 2º, n.º 1 do Código Penal corresponde, além do mais, a um dos corolários do princípio da legalidade, derivado da conhecida expressão Nullum crimem, nulla poena sine lege, fixando o princípio da aplicação do tempus commissi delicti (Tulio Padovani, Diritto Penale, 5.ª Edição, Milano, 1999, p. 49 e ss.).
Por sua vez, como o “princípio da irrectroactividade assenta na função garantística dos direitos fundamentais”, “resulta constitucionalmente legítima a retroactividade das normas penais favoráveis, isto é, das leis que despenalizam uma conduta ou que reduzem a punição da mesma” – Gomez de La Torre/Arroyo Zapatero/Ferré Olivé/Serrano Piedecasas/García Rivas, Lecciones de Derecho Penal - Parte general, Barcelona, 1999, p. 51, embora, defendendo que tal apenas deva suceder quando “a lex posterior resulte como consequência de uma mudança de valoração social por parte do legislador da conduta até então ilícita ou considerada mais grave, o que se expressava com uma pena superior à que a lei posterior impõe”.
Quanto ao Art. 2º, n.ºs 2 e 4 do Código Penal, estes duas normas penais constituem a “consequência teórica e praticamente mais importante do princípio segundo o qual a proibição da retroactividade só vale contra o agente, não a favor dele” (tendo também consagração constitucional no Art. 29º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, dispondo que “Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”), consubstanciando-se no “princípio da aplicação da lei (ou do regime) mais favorável (lex mellior)” – Figueiredo Dias, ob. cit., p. 186, com excepção, claro, do regime específico das leis temporárias (Art. 2º, n.º 3 do Código Penal).
Este autor entende, assim, que o Art. 2º, n.º 2 do Código Penal corresponde a situações de descriminalização, “em que uma lei posterior à prática do facto deixe de considerar este como crime (descriminalização em sentido técnico”, enquanto que o n.º 4 integra “o caso em que a nova lei atenua as consequências que ao facto se ligam, nomeadamente a pena, a medida de segurança ou os efeitos penais do facto”.
Como refere Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português I, Lisboa, 1981, p. 115, “justifica-se a retroactividade da lei mais favorável ao arguido como expressando uma garantia dos cidadãos e uma limitação do poder do Estado; este não terá nunca um direito de punir mais amplo do que o que for considerado pela lei vigente no momento da sua aplicação, se este é mais limitado do que aquele que a lei anterior lhe concedia”.
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Cabe referir, prima facie, que se concorda com a interpretação que Figueiredo Dias, como caput scholae da Escola de Coimbra, faz destes dois normativos, que se afasta, em alguma medida, como também sucede com parte da jurisprudência, da longa e complexa elaboração doutrinal de Taipa de Carvalho, que foi o autor que, entre nós, mais se debruçou sobre as decorrências do tempo e das alterações legais na aplicação do direito penal, mormente na sua obra Sucessão de Leis Penais, 2.ª Edição, Coimbra, 1997.
De facto, entende-se que se deve partir do disposto na lei penal, sem qualquer parti pris ou pré-juízo sobre o que seja, no seu específico sentido jurídico-penal, a descriminalização e a despenalização, para procurar enquadrar o caso concreto no Art. 2º, n.º 2 ou n.º 4 do Código Penal.
Aliás, a própria definição e distinção da descriminalização/despenalização em sentido técnico-jurídico, dada até a própria e particular equivocidade dessas duas designações (cuja destrinça constitui uma questão vexata na doutrina), é particularmente difícil, e nunca deve constituir um fim em si mesmo, sob pena de, algo quixotescamente e com base numa verdadeira petição de princípio, se cair numa “jurisprudência dos conceitos”, mais preocupada em delimitar conceitos puros e abstractos do que procurar a correcta aplicação prática do direito à situação concreta, que deve ser sempre a primeira preocupação da jurisprudência.
Assim, e face a uma alteração de um tipo legal, a primeira preocupação, o mais singela e chã possível, será verificar, tão somente, se a conduta do agente continua a ser punível segundo a lei penal nova, tal como já o era na lei antiga.
Desta forma, “Se o facto já não é considerado crime pela nova lei, seria injusto por um lado, e inútil por outro, sujeitar a responsabilidade o seu agente. Para revogar ou suprimir uma incriminação, o legislador toma em atenção todos os aspectos de carácter social e jurídico; e se eles levam a considerar como não sendo já nocivo aos interesses fundamentais da sociedade o facto, praticado embora quando como anti-social era considerado, seria injusta a punição como seria inútil a prevenção da criminalidade, porquanto o facto deixou de ser criminoso” – Cavaleiro de Ferreira, ob. cit., p. 116.
Em suma, e caso se chegue à conclusão que a conduta já não é punível segundo a lei penal nova, dever-se-á aplicar, sem mais, a lei nova, nos termos do Art. 2º, n.º 2 do Código Penal, deixando o facto de ser punível, não sendo necessário lançar mão do n.º 4 do mesmo artigo, que pressupõe sempre, como prius fundamental, que o facto concreto em apreciação seja sempre punível segundo as leis penais sucessivas.
Como refere o próprio Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 159, “a questão da despenalização ou não do facto praticado na vigência da L.A. [Lei Antiga] é uma questão prévia face à determinação da lei mais favorável. Só na hipótese de se afirmar a continuidade da responsabilidade penal do facto concreto é que se colocará o problema da ponderação e determinação de qual das duas leis (L.A. e L.N. [Lei Nova] é a mais favorável ao arguido”.
No caso sub judice, como facilmente se alcança e o reconhece o próprio Ministério Público, titular da acção penal, a conduta dos arguidos era punida face ao disposto no R.G.I.T., mas, em virtude da entrada em vigor da Lei do Orçamento de Estado para 2009, deixou de ser punida enquanto crime, sendo de aplicar o Art. 2º, n.º 2 do Código Penal e extinguindo-se o presente procedimento criminal contra os arguidos, determinando-se o arquivamento dos presentes autos, sendo perfeitamente despiciendo chamar à colação o disposto no Art. 2º, n.º 4 do Código Penal.
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Pelo exposto, declaro extinto o procedimento criminal instaurado contra os arguidos Rui Manuel Simões Leitão Ribeiro, Paula Cristina Silva Matos e “Movimatos – Móveis e Pavimentos, Lda.”, devido às alterações operadas no tipo legal do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social imputado aos arguidos pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, Lei do Orçamento de Estado para 2009, e ao disposto no Art. 2º, n.º 2 do Código Penal, com a consequente descriminalização da conduta dos arguidos, determinando o arquivamento dos presentes autos.
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Considerando a descriminalização da conduta dos arguidos, com a consequente extinção do procedimento criminal, e atenta a sua dependência relativamente ao procedimento criminal (cfr. Art. 71º do Código de Processo Penal), declara-se extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide, relativa ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto de Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Viseu, contra os demandados cíveis Rui Manuel Simões Leitão Ribeiro, Paula Cristina Silva Matos e “Movimatos – Móveis e Pavimentos, Lda.”, nos termos do Art. 287º, al. e) do Código de Processo Civil (ex vi Art. 4º do Código de Processo Penal).
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Conhecendo:
Questão suscitada:
A única questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se a alteração introduzida pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro ao nº 1 do art. 105º do RGIT, e que consistiu na introdução de um limiar de relevância penal da prestação tributária nele referida – fixado em € 7.500 – é ou não aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no art. 107º do mesmo diploma.
O despacho recorrido encontra-se devidamente fundamentado.
No entanto, não é o entendimento aí sufragado o que seguimos, que aliás não vem sendo seguido nesta Relação.
Seguiremos de perto os Acs. desta Relação proferidos nos processos Nº 386/07.6TAMGL.C1 e Nº 148/98.0IDCBR.C2
No primeiro se concluiu que, “A alteração introduzida pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro ao nº 1 do art. 105º do RGIT, e que consistiu na introdução de um limiar de relevância penal da prestação tributária nele referida – fixado em € 7.500 –não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no art. 107º do mesmo diploma”, e no segundo, “O entendimento segundo o qual o limite de €7500 previsto no art.º 105/1 também é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no art.º 107/1 constitui interpretação «contra legem»”.
Sobre esta mesma questão foi elaborado um estudo pelo colega da Relação de Guimarães, Desembargador Cruz Bucho, o qual conclui: “Tudo devidamente ponderado, afigura-se-nos que o limite de € 7500 a que alude o n.º 1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º do RGIT”.
O artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, veio alterar a redacção do n.º 1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, mediante a introdução de um limite ao valor da prestação tributária ali considerada, passando-se a exigir que ela seja de "valor superior a € 7500".
No caso dos autos, foram aos arguidos imputados factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, sendo que nenhuma das prestações, perfazia 7.500€.
Como se refere nesse estudo, uns entendem que a nova redacção dada ao artigo 105º, n.º 1 do RGIT pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2009 de 31 de Dezembro, que estabeleceu o limite de €7500 para o crime de abuso de confiança fiscal, é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por força do n.º 1 do artigo 107º desse mesmo RGIT (cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 25-2-2009, proc.º n.º 102/04.4TACLD.L1-3, rel. Nuno Garcia, in www.dgsi.pt e Ac. da Rel. de Guimarães de 23-3-2009, proc.º n.º 2378/08-2ª, rel. Anselmo Lopes) outros sustentam que o referido limite de € 7500 não tem aplicação em sede de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social (cfr. o Ac. da Rel. de Coimbra de 4-3-2009, proc.º n.º 257/03.5TAVIS.C1, rel. Jorge Raposo, além dos supra referidos e o Ac. da Rel. do Porto de 25-3-2009, proc.º n.º 1131/01.5TASTS, rel. Maria Leonor Esteves, ambos in www.dgsi.pt).
A redacção actual resultante da alteração legislativa é do seguinte teor: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”
Com esta nova redacção, por força daquele limite, é inquestionável que deixaram de ser punidas as condutas em que o valor da prestação tributária - o de cada declaração a apresentar à administração tributária, de acordo com o n° 7 do referido art. 105° - não excede € 7.500.
A redacção do art. 107 do RGIT, que não sofreu alteração, é a seguinte: "1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos 1 e 5 do art. 105°.
2. É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105º”.
- O tipo de crime abuso de confiança contra a segurança social é autónomo, independente do do crime de abuso de confiança fiscal;
- Um e outro destes crimes tutelam bens jurídicos distintos;
- A remissão para o crime de abuso de confiança fiscal apenas respeita às penas.
- A entender-se que o nº 1 do art. 105 do RGIT se aplicava na totalidade, por força do disposto no art. 107, tal consistiria numa quase total despenalização dos factos integradores do crime de abuso de confiança contra a segurança social. Por um lado, apenas grandes empresas terão prestações mensais à segurança social de valor igual ou superior a 7500€, por outro, verifica-se que, com a revogação do nº 6 do referido art. 105, ficaria totalmente despenalizado (nem contra-ordenação) o abuso contra a segurança social em que a dívida fosse inferior ou igual a 7500€.
Como salientado no Ac. desta Relação, no processo 257/03.5TAVIS.C1, “entender-se que o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social foi despenalizado, cria-se um espaço de absoluta impunidade para comportamentos bem mais censuráveis do que aqueles que são tipificados como contra-ordenações contra a Segurança Social”.
Por outro lado, o art. 113º da Lei 64-A/2008, de 31.12 (Lei do Orçamento de 2009) integra-se na sua secção II –“Procedimento e Processo Tributário” do Capítulo XI –“Procedimento, processo tributário e outras disposições”, enquanto as alterações legislativas que o OE contempla para o regime da Segurança Social se inserem no seu Capítulo V –“Segurança Social” (art.s 55º e seguintes) e, nesta parte é que poderia –deveria – caber qualquer alteração aos crimes contra a segurança social.
No mesmo Acórdão se refere: “Enquanto nos crimes fiscais os deveres impostos aos contribuintes convergem para a revelação da real capacidade contributiva de cada um e de todos os cidadãos obrigados a pagar impostos, tendo em vista a realização da igualdade e justiças tributárias, reconduzindo-se assim a um mais amplo bem jurídico tutelado, qual seja "a confiança da administração fiscal na verdadeira capacidade contributiva do contribuinte";
Já no crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, não é o Estado/Administração Fiscal o destinatário desses montantes, mas sim o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, com personalidade jurídica e património próprio, dotado de autonomia administrativa e financeira para a gestão dos interesses de segurança social que lhe estão cometidos defender e prosseguir, e cujo orçamento próprio assenta fundamental e prioritariamente nas receitas provenientes das prestações sociais resultantes dos descontos efectuados, sendo pois esta efectiva arrecadação o bem jurídico tutelado”.
Assim, presumindo-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, como impõe o art. 9º do Código Civil, tem de se concluir que o art. 113º da referida lei não procedeu a qualquer despenalização dos crimes de abuso de confiança contra a segurança social”.
Assim que se entenda inexistir lei despenalizadora dos crimes de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, nem lei nova, que consagre regime mais favorável ao arguido, não havendo necessidade de lançar mão do disposto no art. 2 nº 1 ou 4 do CP.
Se bem atentarmos nos transcritos segmentos legais, neles se define o que deve entender-se, respectivamente, por crime de abuso de confiança fiscal e por crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Constata-se que não são idênticas as respectivas previsões. Efectivamente, o elemento gramatical é a regra de ouro quando se trate da previsão de tipos legais de crime.
Dum modo geral, o ponto de partida na interpretação de qualquer lei é o seu elemeto literal. Elemento este irremovível (O.. Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, Lisboa, 13ª ed. 2005, pág. 396) e que assume especial acuidade quando se trate de definir tipos legais de crime atento os princípios da legalidade e da tipicidade.
Pela simples leitura dos preceitos constata-se, por um lado, que os elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social constam integralmente do n.º1 do art.º 107° que permaneceu intocado perante as alterações introduzidas no RGIT pela Lei 64-A/2008; pelo outro, que a remissão constante do artigo 107°/1 se circunscreve às penas.
Assim, como se diz no Ac. da RG de 23/3/2009, a falta de remessa no art.º 107º para o novo valor inscrito no art.º 105/1 encerra só por si as portas à aplicação da restrição ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.
O argumento de que não faz sentido que se interprete a mesma norma de duas formas diferentes, consoante a remissão se faça para o n.º1 ou para o n.º 5 do mesmo preceito (cfr. neste sentido o citado Ac. da RG de 23/3/2009) não colhe pois não há quaisquer diferentes atitudes de interpretação já que o n.º5 do art. 105º se limita à previsão duma circunstância qualificativa que apenas releva quanto à penalidade aplicável.
A favor da repudiada tese observou-se no Ac. da RL de 25-2-2009 que “não se compreenderia que prevendo agora o legislador uma menor severidade quando estão em causa quantias não superiores a €7.500 se aplicasse tal alteração apenas aos crimes de abuso de confiança fiscal e não também aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, não se fazendo a identidade de punições que sempre o legislador entendeu fazer”.
Tal visão carece de qualquer valor interpretativo pois só o legislador está em posição de ajuizar da oportunidade das alterações a introduzir no tecido penal.
A dar-se-lhe valia corresponderia à possibilidade de criação ou de alteração pela via jurisprudencial de tipos legais de crime, o que é insustentável.
O art.º 1º do Código Penal consagra o princípio da legalidade e seu corolário lógico é o princípio da tipicidade, pelo qual cabe à lei e só a esta especificar quais os factos ou condutas que constituem um crime e quais os pressupostos que justificam a aplicação duma pena. Por isso importa que a sua definição seja tanto quanto possível precisa.
Com função primacialmente garantística impõe-se que só a lei possa delimitar uma função delituosa. Donde a sua consagração no art.º 29º da CRP e a apresentação da lei penal como um sistema fechado, sem possibilidade de aplicação analógica ou extensiva (embora nesta última com indefinição sobre o que ela realmente constitui).
A isto adite-se que é da competência relativa da Assembleia da República a definição dos crimes e penas. E que o legislador ordinário tem uma ampla liberdade de conformação dos tipos dentro do respeito dos princípios constitucionais.
Não obstante alguma semelhança decorrente da igual conformação dos tipos em causa (ambos omissivos puros cuja consumação ocorre com a não entrega de prestações/contribuições deduzidas) e a identidade dos regimes punitivos, os tipos em causa são autónomos e encontram previsão em diferentes capítulos o RGIT.
Servem de exemplo a autonomia, o limite a partir do qual a conduta é punível no crime de fraude fiscal (€15.000/artigo 103º/2) e no crime de fraude contra a segurança social (€7500/artigo 106/1); bem como a previsão dum regime sancionatório especial quanto aos ilícitos contraordenacionais contra a Segurança Social (art.º 1º/2 da Lei 15/2001).
Não há que fazer apelo ao princípio da igualdade já que se trata de crimes que protegem bens jurídicos diversos.
A orientação que em termos sintéticos aqui se deixa delineada é uniforme nesta Relação.
Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação e Secção Criminal em:

- Julgar provido o recurso interposto pelo Magistrado do Mº Pº e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que dê continuidade aos autos.

Sem custas.
Coimbra,
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