Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4262/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA BAPTISTA
Descritores: FALTA DE LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
RECUSA DE REGISTO DEFINITIVO DE AQUISIÇÃO
Data do Acordão: 03/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART. 116º DO CRP
Sumário:

1. A escritura de justificação notarial pode servir par suprir a falta do título necessário para a primeira inscrição no registo predial.
2. É, porém, exigível a licença de utilização (ou de construção) para todos os casos de justificação notarial previstos no art. 116º do CRP.
3. Devendo o conservador recusar o registo definitivo da primeira inscrição se não constar da escritura de justificação notarial a existência da licença de utilização (ou de construção se for caso disso) para o prédio dela objecto.
Decisão Texto Integral:
Agravo nº 4262/03

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


AA, inconformado com o despacho proferido pela senhora Conservadora do Registo Civil, Predial e Comercial de Penacova que, em 19/4/2002, indeferiu o seu pedido de registo de um bem imóvel a favor de BB e mulher CC e da hipoteca voluntária a seu favor, veio dele, mas sem êxito, interpor recurso hierárquico para o senhor Director Geral dos Registos e Notariados.
Inconformado, veio o requerente interpor recurso contencioso anulatório do aludido despacho, o qual foi julgado improcedente pela senhora Juíza do Tribunal Judicial de Penacova.
Ainda inconformado, veio o mesmo interpor o presente recurso de agravo, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - A escritura de justificação notarial que serviu de base ao pedido de registo constitui um título de aquisição originária para os seguintes efeitos:
a) descrição ex novo de um prédio urbano omisso na competente Conservatória;
b) inscrição do respectivo direito de propriedade a favor dos justificantes.
2ª - Enquadrando-se na figura jurídica do "estabelecimento do trato sucessivo" previsto no art. 89º do C. Notariado e no art. 116º, nº 1 do CRP;
3ª - A qual, por sua natureza, não envolve qualquer transmissão do prédio urbano objecto da justificação notarial;
4ª - Ademais, na "fattispecie" em apreço, a casa de habitação foi construída pelos próprios justificantes em prédio rústico que lhes foi doado verbalmente por volta de 1968, pelo que lhe é inaplicável o disposto nos arts 4º e 1º do DL 281/99 cuja previsão se restringe aos casos de reatamento de trato sucessivo e de estabelecimento de um novo trato sucessivo previstos nos arts 90º e 91º do C. Notariado e 116º, nº 2 do CRP;
5ª - Assim, careceria de fundamento legal a exigência de licença de utilização do prédio pelo senhor notário documentador da escritura de justificação;
A senhora Juíza a quo sustentou tabularmente o seu despacho.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

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Com interesse para a solução deste agravo podem dar-se como assentes os seguintes factos:

No dia 2 de Março de 2001, no 2º Cartório Notarial de Aveiro foi lavrada escritura de justificação, no âmbito da qual BB e mulher CC, declaram serem donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito no lugar de S. Mamede, freguesia de Lorvão, Penacova, inscrito na matriz sob o art. 1812. Mais aí tendo declarado que edificaram tal construção em prédio de natureza rústica que adquiriram por contrato verbal de doação, realizado em 1968, e que desde então e até hoje têm andado na posse do prédio, desfrutando dele como coisa própria, na convicção de não lesarem direito de outrém, à vista de toda a gente, de forma pacífica e ininterrupta.

Para a realização da aludida escritura foram juntas uma certidão de teor matricial, passada pela Repartição de Finanças de Penacova e uma certidão, passada pela CRP de Penacova, onde consta a omissão do prédio no registo.

Encontra-se descrito na CRP de Penacova um prédio urbano sob o nº 0659/230401.

Através da inscrição G1, efectuada em 23/4/01, foi registada provisoriamente por dúvidas a aquisição de propriedade sobre tal prédio a favor de BB e mulher CC.

Através da inscrição C1 foi registada provisoriamente por natureza uma hipoteca voluntária a favor de AA c.c. DD.

No pedido de registo de aquisição do prédio a favor de BB e mulher e do registo da hipoteca voluntária a favor de AA, efectuado pela apresentação 10/11 de 23/4/01, consta o seguinte despacho da senhora Conservadora:
" Provisório por dúvidas o registo pedido pela Ap. 10/230401, por não constar da escritura a existência de licença de utilização para o prédio urbano objecto de justificação notarial (artigos 68º, 70º do C.R.Predial, art. 4º do DL 281/99, de 26/07)".

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A questão que se coloca no presente recurso prende-se apenas com a de saber se, não constando da escritura a existência de licença de utilização para o prédio urbano objecto de justificação notarial, tal facto não obsta ao registo definitivo da respectiva aquisição e da hipoteca que sobre tal imóvel incide.

Ora, dúvidas parece não haver que para suprir a falta do título necessário para a primeira inscrição no registo predial pode ser utilizada a escritura de justificação notarial, tal como in casu sucedeu.
Podendo o adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito obter a primeira inscrição predial por tal via - Isabel Pereira Mendes, CRP Anotado, p. 277 e ss e Estudos sobre o Registo Predial, p. 109, bem como Seabra Lopes, Direito dos Registos e Notariado, p. 214 e Mouteira Guerreiro, Noções de Direito Registral, p. 261 e ss.
Sendo normalmente invocada - como também in casu se verificou - na escritura de justificação para primeira inscrição a usucapião como causa de aquisição do direito.
Só podendo serem titulados os factos de que nomeadamente resulta a constituição de encargos sobre imóveis desde que os bens estejam definitivamente inscritos a favor daquele contra quem se constituiu o encargo. É o que resulta do princípio da legitimação de direitos sobre imóveis a que se refere o art. 9º, nº 1 do CRP cujo corolário é o princípio do trato sucessivo consagrado no art. 34º do mesmo diploma legal, por força do qual, também além do mais, o registo definitivo de constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os onera.

Ora bem, o art. 1º, nº 1 do DL 281/99, de 26 de Julho preceitua que "não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão de propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial, ou da respectiva participação para inscrição, e da existência da correspondente licença de utilização, de cujo alvará ou isenção de alvará se faz sempre menção expressa na escritura".
Dispondo o seu art. 4º que " A justificação para os efeitos do artigo 116º do CRP que tiver por objecto prédios urbanos fica sujeita á disciplina deste diploma, na parte que lhe for aplicável".
Entendendo o agravante que tal preceito é inaplicável á hipótese em apreço, tendente ao estabelecimento do trato sucessivo, tendo apenas em vista os casos do reatamento do trato sucessivo e do estabelecimento de um novo trato sucessivo, estando os mesmos também previstos no mesmo art. 116º, mas nos seus nºs 2 e 3.
Procurando evitar-se através do citado art. 1º do DL 281/99 o tráfico jurídico de prédios urbanos ou das suas fracções autónomas que não se mostrem devidamente licenciadas, assim se evitando a proliferação das construções clandestinas.
E, como inexiste qualquer transmissão, não há lugar á exigência prevista no citado art. 1º, nº 1.

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O Regulamento Geral das Edificações Urbanas aprovado pelo DL 38382, de 7/8/1951, introduziu, no seu art. 8º, a necessidade de licença municipal para a utilização de qualquer edificação nova, reconstruída, ampliada ou alterada, quando da alteração resultem modificações importantes das suas características.
Só podendo ser concedidas tais licenças nos termos dos §§ 1º e 2º do ora citado preceito legal, designadamente após vistoria destinada a verificar se as obras obedeceram às condições da respectiva licença, ao projecto aprovado e ás condições legais e regulamentares aplicáveis.
Tendo o aludido diploma, segundo consta do preâmbulo do DL que o aprovou, não só a preocupação de tornar as edificações urbanas salubres, mas também de as construir com os exigidos requisitos de solidez e defesa contra o risco de incêndio e de lhes garantir condições mínimas de natureza estética.
Assim, o prédio urbano ora em causa carece, sem dúvida, de licenciamento municipal.

O DL 281/99, de 26 de Julho que agora está em causa e que determinou a recusa da senhora Conservadora visou, conforme o seu próprio exórdio, superar os efeitos "gravemente nocivos" do diferendo interpretativo que o nº 1 do art. 44º da Lei 46/85, de 20 de Setembro vinha suscitando, mormente os da posição que vinha exigindo a exibição da licença que ao caso concreto coubesse: a de construção, no caso de a compra incidir sobre prédio em construção; a de utilização, se respeitar a prédio já concluído.
Apercebendo-se o legislador que tal interpretação podia inviabilizar a transmissão de milhares de prédios urbanos e que era necessário pôr cobro à incerteza em que se encontram inúmeros adquirentes de fracções autónomas transmitidas apenas mediante licença de construção, veio então, até melhor estudo, fazer publicar a ora aludido diploma legal, prevendo, quer a apresentação de licença de utilização, quer de licença de construção, conforme melhor consta nos seus arts 1º e 2º.

Ora, a origem do citado art. 44º, nº 1 remonta ao DL 445/74, de 12 de Setembro, também denominado "lei das rendas", onde se preceituava, no seu art. 11º, nº 1 que:
"Não poderão ser celebrados contratos que impliquem a transmissão da propriedade de fogos destinados a habitação ou de prédios urbanos que comportem um ou mais fogos desse tipo sem que faça perante o notário competente a exibição da correspondente licença de utilização, à qual se fará sempre menção no respectivo acto formal".
Com a exigência da exibição da licença de utilização e a obrigatoriedade da sua expressa menção na escritura de transmissão da propriedade de fogos destinados á habitação terá o legislador pretendido, com plena justificação, desencorajar a construção clandestina - A. Neto, Inquilinato, 5ª ed., p. 375.

Tal DL 445/74 foi revogado pelo DL 148/81, de 4 de Junho, o qual, no seu art. 13º passou a aí contemplar a proibição dos contratos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos destinados a habitação sem prova da licença de habitação ou de construção, assim rezando o mesmo:
"Não podem ser celebrados contratos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos destinados a habitação sem que se faça perante o notário prova suficiente da existência da correspondente licença de construção ou de habitação, quando exigível, da qual se fará sempre menção na escritura."
Tendo-se aproveitado o ensejo da publicação de tal diploma, para mantendo a preocupação do combate à construção clandestina, se desbloquear a transmissão da propriedade dos fogos destinados á habitação sempre que se mostre legalizada a respectiva construção, através da prova, em alternativa, da licença de construção ou da licença de habitação no momento da transmissão - preâmbulo do ora aludido DL 445/74.

Assim, embora o atrás mencionado DL 281/99 tivesse tido a preocupação fundamental, segundo assinalado no seu preâmbulo, de superar os efeitos nefastos do diferendo interpretativo que o exigido licenciamento vinha causando, procurando, dentro dos limites razoáveis da segurança do comércio jurídico, desbloquear a transmissão dos prédios urbanos, dúvidas não restarão que se manteve a preocupação, com a manutenção da exigência da prova do licenciamento, nas condições aí melhor previstas, de obviar à construção clandestina, com todos os efeitos perniciosos que a mesma, a todos os níveis - desde, nomeadamente, a segurança até ao ordenamento territorial, passando por razões estéticas também - claramente pode provocar.

E, naturalmente, que a proibição em causa se dirige, em primeira linha, às transmissões dos prédios urbanos, as quais, na grande generalidade dos casos são alvo de escritura pública.
Abrangendo a mesma não só a compra e venda, como também a troca, a dação em cumprimento, a doação, a partilha extrajudi-
cial e também, necessariamente, a judicial.
Não podendo tal proibição deixar de abranger as escrituras de justificação relativas ao trato sucessivo e previstas no nº 1 do art. 116º do CRP - cfr. epíteto do mencionado art. 4º do DL 281/89, em inteira consonância com o deste mesmo preceito legal.
Pois também estas, destinadas ao estabelecimento do trato sucessivo, constituindo um título de aquisição originária, respeitam ao mesmo, cujo princípio, como já vimos, se encontra prescrito no art. 34º do mesmo diploma legal.
Não contemplando, aliás, o mesmo art. 116º qualquer transmissão, em si mesma.
Não estando dispensado o adquirente do prédio urbano - mesmo aquele que originariamente o adquiriu - que quer obter a primeira inscrição no registo e que não tem prova do seu direito, de, na escritura de justificação notarial, de se submeter à disciplina do aludido DL 281/99.
De contrário, fácil seria desvirtuar o natural e louvável empenhamento da lei em obviar á construção clandestina.
Pois, tendo o justificante logrado obter a prova do seu arrogado direito de propriedade sobre o prédio urbano não licenciado, poderia fazer a sua primeira inscrição no registo e a da constituição do encargo que aquele onera, in casu, a hipoteca.
Não cumprido o contrato de mútuo, por tal meio garantido, viria o credor intentar a correspondente execução.
Sendo o urbano aí vendido judicialmente ou até adjudicado ao exequente, por exemplo.
Para ele, ou para terceiro, se transmitindo o prédio, sem necessidade de qualquer escritura pública e da exibição da prova do licenciamento devido.
E assim sucessivamente, sendo fértil a imaginação humana para contornar a proibição legal.
Mas, não pode ser, a lei não pode querer ter distinguido situações em tudo idênticas nos seus resultados.
Sendo, assim, in casu, exigível a licença de utilização - ou de construção, se caso disso for - como na sentença recorrida se refere, para todos os casos de justificação notarial previstos no citado art. 116º

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Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação em se negar provimento ao agravo, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelo agravante.