Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2348/04.6TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INVALIDADE
BOA-FÉ
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 02/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 410.º, N.º 1, 762.º Nº 1 DO CC
Sumário: 1) O princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 655.º do CPC impede a alteração da matéria de facto fixada em 1.ª instância, quando a decisão tenha sido criticamente fundamentada e a fundamentação não contrarie as regras da experiência nem a lógica do raciocínio.

2) O contrato-promessa rege-se pelas regras do contrato prometido, excepção feita às da forma e às que se mostrem inaplicáveis.

3) O vício decorrente da falta de certificação notarial da existência de licença de utilização ou de construção só gera nulidade do contrato-promessa se for arguido pelo promitente comprador (ou pelo promitente vendedor, no caso excepcional em que a lei o permite).

4) Sempre que seja conhecida a vontade real dos contraentes, é de acordo com ela que o contrato deve ser interpretado; mas sendo o negócio formal, terá de haver correspondência, mínima, ao menos, entre o texto do contrato e a declaração.

5) A boa fé contratual (artigo 762.º, n.º 2, do CC) postula lealdade de cooperação entre as partes.

6) O pedido fundado no enriquecimento sem causa tem de ser formulado expressamente, ainda que em via subsidiária.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I A... e mulher, B.... , residentes X..., Águeda, intentaram acção com forma de processo ordinário contra C... e mulher, D... , residentes na freguesia de Y..., Águeda, com vista a obter a condenação dos réus no pagamento da importância de € 42.772,27, acrescida de juros a contar da citação, alegando que o autor, como promitente comprador, celebrou com os réus, como promitentes vendedores, um contrato-promessa de compra e venda de uma casa de habitação com anexos e logradouro, mas que os réus não cumpriram o prometido, do que resultaram para eles, autores, danos vários, consistentes na perda do que entregaram a título de sinal (€ 35.000,00), na falta de rendimento desse capital (€ 2.882,22), no pagamento de registos provisórios (€ 364,00) e avaliações (€ 520,25) e na diminuição do espaço habitacional (€ 4.000,00).

            Os réus contestaram e deduziram reconvenção. Contestando, afirmaram que foram os autores que não honraram o compromisso assumido, pois que nem compareceram no cartório notarial na data por eles próprios marcada para a celebração do contrato prometido; reconvindo, declararam que a apontada falta de cumprimento lhes acarretou prejuízos, não contabilizados, ainda, ao nível da sua situação financeira. Concluíram pela improcedência da acção e pelo pedido de condenação dos autores no pagamento de quantia a liquidar em execução de sentença.

            Os autores apresentaram réplica, em que nada adiantaram relativamente ao que fora dito na petição inicial.

            Tentada, sem êxito, a conciliação das partes, foi elaborado, então, despacho de saneamento (declaração da validade e da regularidade da lide) e de selecção da matéria de facto (factos assentes e base instrutória), alvo, nesta parte, de reclamação dos réus, merecedora de atendimento.

            Realizado o julgamento e dadas, sem reparo, as respostas aos pontos da base instrutória, foi proferida sentença que julgou improcedentes a acção e a reconvenção.

            Da decisão, na parte em que desatendeu a sua pretensão, recorreram os autores, que finalizaram a sua alegação com 37 conclusões (onde estará a síntese exigida pelo n.º 1 do art. 690.º do CPC, na redacção revogada pelo DL 303/07, de 24 de Agosto?), facilmente redutíveis a, apenas, cinco:

            1) A matéria do artigo 11.º da base instrutória não deveria ter sido dada por provada, tendo em conta o teor dos depoimentos das testemunhas E... , F... , G... e H... , a circunstância de parte do objecto do contrato promessa já não existir à data da sua celebração, devido à sua demolição, e o facto de ter sido criado um outro artigo referente a uma nova construção.

            2) De todo o modo, o contrato-promessa celebrado não é válido, seja porque, na sua feitura, não foram observadas as formalidades a que alude o art. 410.º, n.º 3, do CC, seja porque o seu objecto é absolutamente diferenciado da realidade existente.

            3) Por outro lado, os recorridos não agiram de boa fé, na medida em que alteraram o prédio em causa sem falar com os recorrentes.

            4) Os recorridos locupletaram-se injustamente à custa dos recorrentes.

            5) O tribunal “a quo” violou, por erro na determinação das normas jurídicas aplicáveis, o disposto nos artigos 410.º, n.ºs 2 e 3, 762.º, n.º 2 e 473.º, todos do CC.

            Os recorridos quedaram-se pelo silêncio.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            Conforme as conclusões das alegações dos recorrentes, são questões a decidir:

            a) A modificabilidade da decisão de facto

            b) A invalidade do contrato-promessa.

            c) A boa fé no cumprimento do contrato-promessa.

            d) O enriquecimento sem causa.

            II. Na sentença recorrida deram-se por verificados os seguintes os factos:

            1. Retirados da matéria assente no despacho de selecção:


            A – Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o n.º 03761/100394 o prédio urbano sito em Vale Durão, casa de habitação composta por duas assoalhadas, cozinha, casa de banho-40 m2, anexos com três divisões para arrumos-45 m2, casa de forno-40 m2, currais-40 m2 e logradouro-2800 m2, a confrontar do norte e poente com caminho, do sul com J... , do nascente com estrada.
            B – Em 09 de Fevereiro de 2004, os RR. C... e D... e o A. A... outorgaram e assinaram um documento particular que qualificaram de “contrato promessa de compra e venda”, nos termos do qual os primeiros declararam ser donos e legítimos proprietários de um prédio urbano em Vale Durão, casa de habitação composta por duas assoalhadas, cozinha, casa de banho-40 m2, anexos com três divisões para arrumos-45 m2, casa de forno-40 m2, currais-40 m2 e logradouro-2800 m2, a confrontar do norte e poente com caminho, do sul com J..., do nascente com estrada, sito em Vale Durão, Gravanço, Águeda, descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o n.º 3761 e inscrito na matriz sob o artigo 4832, e declararam prometer vender ao segundo, e este declarou prometer comprar, livre de quaisquer ónus ou encargos, a fracção autónoma referida, pelo preço de 400.000,00 euros (quatrocentos mil euros), a pagar da seguinte forma: a) como sinal e princípio de pagamento 35.000,00 euros (trinta e cinco mil euros); b) a restante parte do preço no montante de 365.000,00 euros (trezentos e sessenta e cindo mil euros), será paga no acto da escritura de compra e venda a celebrar provavelmente até 90 dias da data deste contrato.
            C – No imóvel identificado em A) os RR. edificaram uma casa de habitação, que, à data da assinatura do documento referido em B), não constava da descrição da Conservatória do Registo Predial e não ficou a constar do documento referido em B);
            D – O A. entregou aos RR., a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 35.000,00 euros (trinta e cinco mil euros).
            E – Os RR. procederam a um destaque do prédio referido em A) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o n.º 3761/100394, para efectuarem o registo da construção referida em C), estando registada através da AP 07/20022004 a desanexação do n.º 07931, com 1305 m2.
            F – Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o n.º 07931/20022004 o prédio urbano sito na Rua Vale Durão, casa de habitação composta de cave, rés-do-chão, s. c. 204,50 m2, logradouro e quinta 1100,50 m2, a confrontar do norte e poente com caminho, do sul com I... e do nascente com estrada, omisso na matriz, desanexado do n.º 03761.
            G – Relativamente ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o n.º 03761/100394, encontra-se registada provisoriamente por natureza, pela AP. 06/15032004, a aquisição a favor de A... e mulher, B..., por compra, abrangendo dois prédios e através das AP. 07/15032004 e AP. 08/15032004 encontram-se registadas provisoriamente por natureza duas hipotecas voluntárias a favor da Caixa Geral de Depósitos.
            H – Relativamente ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o n.º 07931/20022004, encontra-se registada provisoriamente por natureza, pela AP. 06/15032004, a aquisição a favor de A... e mulher, B..., por compra, abrangendo dois prédios e através das AP. 07/15032004 e AP. 08/15032004 encontram-se registadas provisoriamente por natureza duas hipotecas voluntárias a favor da Caixa Geral de Depósitos.
            I – Os AA. marcaram a escritura no Cartório Notarial de Albergaria-a-Velha para o dia 06 de Setembro de 2004.
            J – Os RR. estiveram presentes no dito Cartório mas os AA. não estiveram presentes.

          2. Emergentes das respostas aos artigos da base instrutória:

            L – Na altura em que o A. marido se dirigiu à Caixa Geral de Depósitos para efeitos de obter empréstimo para realização do contrato referido em B) foi alertado para a existência de dois artigos matriciais – resposta ao artigo 3.º.
            M – Era intenção inicial dos AA. tornarem o prédio que pretendiam adquirir aos RR. sua residência familiar e venderem a casa onde habitam – resposta ao artigo 8.º.
            N – Os RR. puseram à venda o imóvel referido em A) no seu todo e, apesar de na descrição da Conservatória do Registo Predial não constar a habitação referida em C), os AA. sabiam que estavam a comprar o imóvel urbano incluindo a casa de habitação recente referida em C) – resposta ao artigo 11.º.
            O – O contrato promessa referido em B) refere apenas um prédio urbano porque a descrição da Conservatória assim se encontrava – resposta ao artigo 12.º.
            P – Passado algum tempo do referido em B), a A. mulher disse que a compra era muito cara e que tinham de renegociar o preço acordado – resposta ao artigo 15.º.
            Q – Os RR. acabaram por concordar na verba de esc. 77.500.000$00, pois que, no desconhecimento da A. mulher, o A. marido emitiu um cheque de 12.500,00 euros – resposta ao artigo 16.º.
            R – Os RR. diligenciaram pela obtenção da documentação para outorga da escritura referente ao contrato de compra e venda prometido – resposta ao artigo 17.º.
            S – Os RR. tiveram outros interessados no imóvel e não efectuaram então a venda, pois que já tinham acordado efectuar tal venda aos AA., sendo que posteriormente, depois de frustrado o negócio com os AA., passaram outras pessoas a residir em tal imóvel – resposta ao artigo 20.º.
            T – Foi gorada a oportunidade de venda aos AA. e a aplicação dos capitais que resultariam dessa venda poderia ter dado lucros aos RR – resposta ao artigo 22.º.


          III. O direito

          a) A modificabilidade da decisão de facto

          São três as hipóteses em que a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida; b) se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou (artigo 712.º, n.º 1, do CPC, na redacção vigente até 31.12.07, que é a aplicável ao caso vertente).
          Gravados, que foram, os depoimentos prestados e tendo os recorrentes indicado a matéria que consideravam incorrectamente julgada e os meios probatórios gravados (transcrevendo, inclusivamente, parte das gravações) que, na sua óptica, impunham decisão diversa, é claro que é possível a este Tribunal apreciar a factualidade dada por provada.
          Cumpre advertir, porém, que o princípio da livre apreciação das provas, vigente no nosso ordenamento processual (n.º 1 do artigo 655.º do CPC), limita, de algum modo, a censura por parte do tribunal de recurso. Exposto o percurso lógico/racional que conduziu à convicção do julgador, com lastro bastante nos elementos probatórios constantes dos autos, dificilmente poderá ser alterada a decisão de 1.ª instância.
          A modificabilidade é, na verdade, a excepção. Dando ao princípio da prova livre o alcance de “prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas em perfeita conformidade … com as regras da experiência e as leis que regulam a actividade mental”[1], não se vê como alterar o julgamento de facto, se a solução encontrada reflectir, com razoabilidade, uma convicção fundada em provas consideradas credíveis à luz dos dados da experiência, da ciência e da razão.
          Entendem os recorrentes que o artigo 13.º da BI, que recebeu resposta afirmativa, deveria ter sido julgado não provado, por força dos depoimentos das testemunhas E...... , F... e G... , ao referirem as dúvidas daqueles (recorrentes) quanto ao que estavam a comprar, pelo facto de o objecto do contrato promessa ser distinto do que tinha sido mostrado, e, ainda, da testemunha H... , na medida em que referiu que, depois da celebração do contrato promessa, houve uma demolição.
          Antes de prosseguir, convirá traçar, para uma melhor compreensão do problema em análise, uma breve panorâmica da situação.
          Os réus prometeram vender e os autores prometeram comprar um prédio urbano composto de casa de habitação com duas assoalhadas, cozinha e casa de banho, com 40 m2, anexos com três divisões para arrumos, com 45 m2, casa de forno, com 40 m2, currais, com 40 m2 e logradouro, com 2800 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o n.º 3761.
          Sucede, porém, que, ao tempo do contrato-promessa, a realidade física existente era diversa da retratada no registo, pois que os réus tinham edificado no imóvel, em substituição da casa com 40 m2, uma moradia com uma área superior a 200 m2, que, mais tarde, registaram na CRP sob o n.º 7931, para o que procederam a um destaque do prédio registado sob o n.º 3761.
          A perspectiva dos autores, vertida na petição inicial, é a de que os réus excluíram voluntariamente do contrato-promessa a nova moradia, com a intenção de a venderem a outrem, e que se tornou impossível celebrar o contrato definitivo, pela circunstância de já não existir a casa primitiva e de a casa recente não constar da promessa de compra e venda; porque, continuam eles, só iriam adquirir os currais, os arrumos, a casa de forno e o logradouro, houve uma alteração substancial das circunstâncias, o que era imprevisto para eles, pelo que deixaram de ter interesse no contrato prometido.
          Diferente é a posição dos réus, que alegaram ter posto à venda o imóvel no seu todo, que era murado, com inclusão da moradia construída, e que o contrato-promessa foi celebrado nessa base, aceite por ambos os contraentes, acrescentando que não constou deste a nova edificação, mas sim a antiga, pela simples razão de que a mesma não tinha sido, ainda, levada ao registo, o que só aconteceu em momento posterior.
          Foi em função desta alegação que foi lavrado o artigo 11.º, cujo teor é o seguinte: “os réus puseram à venda o imóvel referido em A) no seu todo, e apesar de na descrição da Conservatória do Registo Predial não constar a habitação referida em C) os autores sabiam que estavam a comprar o imóvel urbano incluindo a casa de habitação recente referida em C)?”
          O tribunal respondeu afirmativamente ao quesito, tendo fundamentado a resposta nos depoimentos das testemunhas E... (amigo dos autores, a quem estes mostraram o imóvel, referindo que o negócio abrangeria o que estava dentro dos muros de vedação do prédio, incluindo moradia e piscina), L... (empresário, que mostrou interesse em negociar o imóvel em causa e foi informado de que era todo o conjunto que estava à venda pelo preço de 80.000.000$00), M... (pessoa que revelou disponibilidade procurar possíveis compradores para o prédio, tendo ficado ciente de que os réus o pretendiam alienar na sua totalidade por 80.000.000$00) e H... (mediador imobiliário, a quem os réus encarregaram de vender o prédio no seu todo – tudo o que estava dentro dos muros –, que esclareceu ter sido essa a vontade dos intervenientes no contrato-promessa, apesar de, na sua elaboração, ter sido levada em conta a realidade registral, que não a física, e ter sido fixado o preço de 80.000.000$00 por sugestão sua, que era o adequado à totalidade do prédio).
          Segundo os recorrentes, os depoimentos das testemunhas E..., F..., G... e H... postulariam resposta completamente diversa.
          Mas não é isso o que resulta dos depoimentos destas testemunhas e, muito menos, do conjunto da prova produzida.
          Em primeiro lugar, a testemunha
E...amigo dos recorrentes, que se deslocou ao local na companhia do recorrente, disse muito claramente, a perguntas, tanto dos ex.mos mandatários de ambas as partes, como do ex.mo juiz (o que os recorrentes omitiram, cautelosamente, da transcrição que efectuaram), que entendeu que a promessa abrangia todo o conjunto, onde se inseria a nova construção. Objectou, é certo, com a desconformidade entre o que constava do contrato promessa e o que estava no terreno, assim como com a circunstância de, posteriormente, ter sido criado um novo número registral. Só que isso (já assente, de resto, no despacho de selecção) nada tem a ver, nem contende, com a matéria do quesito, que se reporta, tão-somente, à intenção das partes quanto ao objecto da promessa de compra e venda.
          Pormenor com alguma importância, porque desmistificador da afirmação do autor de ser pessoa inexperiente neste tipo de negócios (cfr. o artigo 3.º da PI), declarou, ainda, a testemunha que os autores eram pessoas que estavam habituadas a comprar imóveis, tendo adquirido já dois apartamentos e uma moradia, pelo menos.
          O depoimento da testemunha F..., nora dos autores, nada contém de útil para a pretensão destes, pois que se limitou a dizer aquilo que já era sabido, ou seja, que, em vez de uma casa com 40 m2, se achava no terreno uma outra dez vezes maior (manifesto exagero, pois que a casa velha tinha 40 m2 e a nova pouco mais de 200 m2) e que existiam dois registos prediais e não um só, como estava no contrato promessa.
          Disse, porém, algo que confirma a tese dos recorridos: por um lado, que os sogros teriam contactado um gabinete de arquitectura com vista a efectuar alterações na casa nova (o que não pode deixar de significar que os autores sabiam que esta era objecto do contrato promessa) e, por outro, que só depois de ler o contrato ficou com dúvidas acerca da inclusão da moradia, porque anteriormente não as tinha.  
          O mesmo se diga do depoimento da testemunha G..., pai da testemunha antes referida. A perguntas do ex.mo mandatário dos recorrentes, falou da falta de coincidência entre o que estava no contrato-promessa e no terreno (a moradia existente era muito maior do que a prometida vender) e na demolição de anexos, mas nada que pudesse significar que os contraentes não quiseram incluir a nova moradia na promessa de compra e venda. Já a perguntas do ex.mo mandatário dos recorridos, esclareceu que o autor lhe mostrou o imóvel e lhe confidenciou que pretendia fazer alterações à nova moradia, para o que teria contactado um gabinete de arquitectura. É bom de ver que se o autor queria alterar a moradia, é porque entendia que a mesma era objecto do contrato que celebrara.
          A testemunha .L...., cujo depoimento é de extrema importância, pois quer foi quem, profissionalmente, mediou o negócio de compra e venda entre autor e réus, declarou, efectivamente, tal como referem os recorrentes, que o objecto inserto no contrato-promessa não correspondia ao que estava no terreno. Mas, como já antes se referiu, isso é ponto assente, que nada adianta para a questão em apreço; de facto, tendo ocorrido a demolição de parte das construções antes existentes e edificação de uma nova moradia, muito mais ampla do que a anterior, a questão que se coloca é a de saber se os contraentes quiseram comprar e vender as construções antigas ou as actuais.
          Ora, esta testemunha esclareceu, sem margem para dúvidas, que o objecto do contrato promessa, querido pelos contraentes, compreendia todo o conjunto murado (a instâncias do ex.mo advogado dos recorrentes, disse isso mesmo por dez vezes) e que a nova moradia só não ficou a constar do contrato-promessa, pela circunstância de não estar, na altura, inscrita no Registo Predial, tendo acrescentado que cerca de três semanas depois da celebração do contrato foi procurado pela autora, que lhe disse que o preço tinha sido muito alto e pretendia a sua renegociação.
          Não ficaram, contudo, por aqui os elementos confirmativos do acerto da decisão impugnada.  
          Desde logo, porque houve outros depoimentos no sentido de que a vontade dos contraentes foi a de incluir no contrato-promessa tudo o que se achava intra muros; foi o que sucedeu com as testemunhas arroladas pelos réus, Alberto Augusto Santos Ribeiro e Carlos Alberto Santiago dos Reis.
          A primeira, empresário de profissão, declarou que, quando soube que os réus estavam em processo de divórcio e pretendiam vender o prédio, se interessou em o negociar, com vista, até, à respectiva aquisição por um familiar emigrado, e foi informado que estava à venda todo o conjunto pelo preço de 80.000.000$00.
          A segunda, que, ao tempo, era bancário de profissão e exercia, nas horas livres, a actividade de desenhador da construção civil, disse ter procurado comprador para o bem, a pedido da ré, que o elucidou de estar à venda todo o imóvel compreendido dentro dos muros e ser pedido o valor de 80.000.000$00.
          Depois, e este é um dado praticamente decisivo, porque os próprios recorrentes revelaram, pela sua conduta, que não tinham dúvidas de que o objecto da promessa era tudo o que se continha dentro do terreno murado, com inclusão da nova moradia; se assim não fosse, como conceber que tivessem efectuado, como efectuaram, o registo provisório da aquisição de ambos os números prediais?
          Neste quadro probatório, afigura-se inquestionável (se a lógica e o senso comum têm algum valor, claro), que o tribunal não poderia responder ao artigo em causa de forma diferente da que respondeu. Quando a testemunha melhor colocada para esclarecer os factos – o mediador imobiliário – não deixou dúvidas quanto à intenção dos contraentes, as próprias testemunhas arroladas pelos autores ficaram com a noção de que a promessa abrangia todo o imóvel, acrescentando, até, a valiosíssima indicação de que aqueles teriam contactado um gabinete de arquitectura para remodelar a casa que é, afinal, o pomo da discórdia (mas pomo estranho, porque os autores parecem desdenhar daquilo que, realmente, valorizava a sua posição), e os próprios recorrentes registaram a aquisição em seu favor, não é viável outra conclusão, que não seja a da falência da versão que trouxeram aos autos.
          Considerando, por fim, que a resposta ao artigo 11.º se mostra cabalmente fundamentada, com a análise crítica dos depoimentos que lhe serviram de suporte, e que não contraria as regras da experiência nem a lógica do raciocínio, só há que concluir que a decisão de facto não merece qualquer censura, pelo que haverá de ser mantida.   

          b) A invalidade do contrato-promessa                                       

          Se bem se compreende o teor da alegação dos recorrentes, um tanto prolixa, à semelhança das conclusões que a encerram (ou, talvez melhor, que a copiam), o contrato-promessa não seria válido, seja porque não foi referenciada ou exibida licença de habitabilidade ou utilização, seja porque o respectivo objecto é diferenciado da realidade existente ao tempo da sua celebração.
          Na sentença recorrida qualificou-se juridicamente o acordo celebrado entre autor e réus – desenhado, em termos factuais, na alínea B) da matéria assente – como um contrato-promessa de compra e venda. Apesar de o enquadramento jurídico efectuado pelo tribunal “a quo”, mesmo se aceite pelas partes, como é o caso, não vincular o tribunal de recurso, temos por certo que não vale a pena discuti-lo, evidente, que é, que a aludida factualidade encaixa na perfeição no conceito de contrato-promessa, tal como é definido pelos nossos mais eminentes tratadistas, em função da previsão do artigo 410.º, n.º 1, do C. Civil: “convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato” (Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral, volume I, 7.ª edição, página 312; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição refundida, páginas 282/283; Abel Pereira Delgado, Do Contrato-Promessa, página 14).
          O contrato-promessa rege-se, como decorre do referido artigo 410.º, n.º 1, do CC, pelas normas aplicáveis ao contrato prometido; vigora, pois, o chamado princípio da equiparação, que significa que “o contrato-promessa, quanto aos requisitos e efeitos, se encontra, via de regra, submetido às normas respeitantes aos contratos em geral e às que sejam específicas do contrato prometido” (Almeida Costa, Contrato-Promessa, uma síntese do regime actual, 4.ª edição, página 21).  
          Aplicam-se-lhe, assim, as regras comuns sobre capacidade, vícios da vontade, resolução, excepção de não cumprimento, etc., mas, também, as normas específicas da compra e venda quanto à capacidade dos contraentes, às proibições de aquisição, à interpretação e integração do negócio e à disponibilidade de direitos (Antunes Varela, ob. cit. página 319).
          O princípio da equiparação comporta, no entanto, duas excepções, já que não são extensivas ao contrato-promessa as disposições relativas à forma, nem aquelas que, pela sua razão de ser, se mostrem inaplicáveis.
          No que tange à forma, há que distinguir entre o contrato-promessa referente à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir e o contrato-promessa relativo a outros fins.
          Para esta última hipótese rege o n.º 2 do citado artigo 410.º: se para a celebração do contrato prometido for exigível documento, seja autêntico, seja particular, o contrato-promessa só é válido se constar de documento assinado pelos contraentes.
          À primeira hipótese aplica-se o n.º 3 do mesmo preceito: o documento deve conter o reconhecimento presencial da assinatura do promitente ou promitentes e a certificação, pelo notário, da existência da licença respectiva de utilização ou de construção; mas o contraente que promete transmitir ou constituir só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.
          Como se sabe, não colheu unanimidade de pontos de vista a interpretação a dar à última parte do n.º 3 do artigo 410.º, havendo quem entendesse que configurava uma verdadeira nulidade e, como tal, invocável pelos terceiros interessados e susceptível de ser decretada oficiosamente pelo tribunal,[2] e quem sustentasse que se tratava de uma nulidade atípica, não invocável por qualquer interessado nem susceptível de ser declarada oficiosamente pelo tribunal e passível de sanação ou convalidação, na perspectiva de estar em causa a garantia de protecção ao promitente comprador, que é, por norma, a parte mais frágil no negócio (João Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, páginas 59 e seguintes).
          O problema está, hoje, ultrapassado por via jurisprudencial; de facto, o assento n.º 15/94 (DR de 12.10.94), primeiro, e o assento 3/95, (DR de 22.04.95), depois, vieram clarificar aquilo que até aí constituía uma dor de cabeça para os intérpretes do direito: a omissão das formalidades prescritas no n.º 3 do artigo 410.º do CC não é invocável por terceiros (primeiro assento), nem susceptível de ser conhecida oficiosamente pelo tribunal (segundo assento).
          Não obstante esta doutrina ter sido extraída sobre a primitiva redacção do preceito, parece líquido que se mantém em vigor, na sua função actual de mera uniformizadora de jurisprudência, por não ter havido modificação substancial entre uma e outra redacção do preceito (acórdão do STJ de 12.01.98, CJ do Supremo, Ano VI, tomo III, página 110). [3]
          O contrato-promessa em questão não obedece ao preceituado no referido n.º 3 do art. 41º.º, pois que a promessa se refere à compra e venda de edifício, mas faltou a certificação notarial da existência de licença de utilização ou de construção.
          A sentença recorrida declarou não poder ser conhecida a invalidade, por não ter sido arguida por quem quer que seja.
          Defendem, agora, os recorrentes que o tribunal deveria ter declarado a nulidade, por estarem em causa interesses suscitados em sede de audiência de julgamento. Mas é evidente a sua falta de razão.
          A acção foi proposta com base no incumprimento definitivo do contrato-promessa pelos recorridos, o que, naturalmente, pressupõe a afirmação da sua validade. A possibilidade de o mesmo enfermar de qualquer irregularidade nunca foi aventada nos articulados, nem sequer como mera hipótese académica.
          Independentemente de saber se a arguição da nulidade, importando alteração da causa de pedir e do pedido, era, ainda, admissível em audiência de julgamento, [4] a verdade é que, analisando o teor das actas correspondentes às diversas sessões do julgamento, não se descortina o que quer que seja acerca de uma eventual pretensão dos recorrentes em ver declarada a invalidade do contrato-promessa; nem, tão-pouco, uma mera alusão aos tais “interesses” que os recorrentes teriam suscitado em audiência de julgamento. E “quod non est in actis, non est in mundo”.
          Nem se vê, de resto, como poderia ter sido trazido à colação o espectro da nulidade, se os recorrentes não alteraram uma vírgula que fosse da pretensão deduzida “ab initio”, cuja procedência passava pela validade do contrato. Validade e invalidade, em simultâneo, é algo que briga com o rigor do direito e com a razoabilidade das coisas.
          Em resumo, não foi arguida e, como tal, não pode ser declarada a nulidade ora pretendida pelos recorrentes.        

          Melhor sorte não logra a invocação da pretensa invalidade do contrato-promessa, derivada da circunstância de o seu objecto ser diverso da realidade.
          Os recorrentes não explicitam os contornos de facto e de direito da teoria trazida à liça, limitando-se a dizer que “não se poderá validar um contrato promessa de compra e venda quando o objecto desse contrato seja absolutamente diferenciado da realidade existente”.
          Parece óbvio, no entanto, que se reportam ao facto de a casa prometida vender, com a área de 40 m2, não existir de facto, por ter sido construída no seu lugar uma outra com a superfície de mais de 200 m2 (construção já existente à data da celebração do contrato-promessa).
          A invalidade é, conforme Mota Pinto, uma espécie do género ineficácia, que provém de uma falta ou irregularidade dos elementos internos (essenciais, formativos) do negócio e se desdobra, por sua vez, em três subespécies: inexistência, nulidade e anulabilidade (Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª edição actualizada, páginas 591 e seguintes).
          Segundo, ainda, o mesmo autor, são elementos essenciais de todo e qualquer negócio jurídico, a capacidade das partes (e a legitimidade, quando a sua falta implique invalidade e não apenas ineficácia), a declaração de vontade sem anomalias e a idoneidade do objecto (ob. cit., páginas 381/382).
          O que, aparentemente, ancora a posição dos recorrentes, tendo em conta, naturalmente, a sua alegação, é a inidoneidade do objecto.
          Nos termos do artigo 280.º, n.º 1, do CC, é nulo o negócio cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
          Retornando a Mota Pinto, “será fisicamente impossível o objecto, quando, por exemplo, se vende um prédio urbano que já não existe por ter sido destruído por um incêndio” (ob. cit. páginas 546/547).
          À primeira vista, a hipótese em apreço ajustar-se-ia aqui como uma luva; não existindo a casa prometida vender, o contrato-promessa seria, inelutavelmente, nulo.
          Só que o problema não é tão simples assim. O objecto visado pelo contrato, o que as partes quiseram, efectivamente, incluir na promessa de compra e venda foi, não a casa com 40 m2 que consta do documento assinado (que, aliás, já não existia, como era do conhecimento de ambos os contraentes), mas a nova moradia erguida no lugar daquela.
          A questão é saber se a vontade dos contraentes releva no caso concreto, atenta a natureza formal do negócio.
          A resposta não pode deixar de ser afirmativa. Assente que os outorgantes quiseram realmente comprar e vender a nova construção e tendo a declaração correspondência, ainda que sem expressão perfeita, no texto do contrato (em qualquer dos casos, o objecto é um prédio urbano, com anexos e logradouro), não pode deixar de se entender, em face do preceituado nos artigos 236.º, n.º 2, e 238.º, n.º 1, do CC, que o objecto negocial foi a casa existente no terreno, e não a que a redacção do contrato-promessa contempla; tanto mais que desta interpretação nenhum prejuízo resulta para o promitente-comprador (a parte mais fraca, em princípio), na exacta medida em que a nova construção tem um valor muito mais elevado do que a anterior.
          O objecto visado pelo contrato-promessa tem, pois, existência física e legal (os recorrentes até registaram provisoriamente a sua aquisição) e não aparenta outros vícios (que não foram, também, indicados), pelo que a alegada invalidade é totalmente de excluir.

          c) A boa fé

          Nos termos do n.º 1 do artigo 762.º do CC, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado; acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo que, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.
          Para caracterizar o conceito, escreveu Antunes Varela, que, “do que se trata é de apurar, dentro do contexto da lei ou da convenção donde emerge a obrigação, os critérios gerais objectivos decorrentes de dever de leal cooperação das partes, na realização cabal do interesse do credor com o menor sacrifício possível dos interesses do devedor, para a resolução de qualquer dúvida que fundadamente se levante, quer seja acerca dos deveres de prestação (forma, prazo, lugar, objecto, etc.), quer seja a propósito dos deveres acessórios de conduta de uma ou outra das partes” (ob. cit, volume II, 5.ª edição, página 13).
          Segundo os recorrentes, a falta de boa fé dos recorridos decorreria da circunstância de terem demolido parte especificada do objecto prometido vender posteriormente à assinatura do contrato-promessa, sem audição ou informação prévia à contraparte; o objecto teria sofrido, portanto, uma retracção posteriormente à assinatura do contrato.                   
          Basta ler, porém, a matéria de facto assente para concluir que nada ficou provado nesse âmbito; não ficou, nem poderia ficar, porque, muito simplesmente, a petição inicial é completamente omissa a tal respeito.
          Recorde-se que os ora recorrentes fundamentaram a acção no facto de os recorridos terem excluído intencionalmente do contrato-promessa a nova moradia edificada em substituição da anteriormente existente, “iludindo assim a boa fé daqueles”, como escreveram no artigo 14.º da PI. A questão não é, pois, de alteração no terreno do objecto prometido vender, mas de omissão no contrato do objecto que devia integrar a promessa de venda.
          A nova tese não passa de um remendo, mal conseguido, numa construção pouco feliz, destinada a ruir pela base.
          O problema real dos recorrentes, sejamos claros, é que se arrependeram do preço estabelecido no contrato-promessa e pretenderam renegociá-lo (alínea P dos factos assentes). Não o tendo conseguido, na medida, ao menos, em que era seu desejo, recorreram a juízo, na tentativa de resolver o contrato, sob a invocação de terem sido enganados pelos recorridos, que teriam omitido intencionalmente do objecto daquele a moradia recentemente construída. Mas, apurado em audiência, que o objecto querido do contrato-promessa foi esta mesma moradia, como os recorridos haviam sustentado, logo curaram os recorrentes de alterar o rumo da sua argumentação, defendendo, agora, que aqueles subverteram a fisionomia do prédio sem os consultar ou informar.
          Ora, o se os factos alguma coisa demonstram é a cooperação leal dos recorridos para a celebração do contrato prometido nos moldes previstos no contrato-promessa: inscreveram no registo a nova moradia construída, que era o alvo da promessa e a razão de ser do estabelecimento do preço (€ 400.000,00), diligenciaram pela obtenção da documentação necessária para a celebração do contrato definitivo e compareceram no Cartório Notarial, na sequência da marcação efectuada pelos recorrentes.
          Que mais lhes poderia ser exigido?
          Ao invés, os recorrentes, não obstante terem assinado o contrato-promessa perfeitamente cientes do que estava em causa, em razão, aliás, do que requereram registo provisório da aquisição do todo a seu favor e registo provisório da hipoteca a favor da Caixa Geral de Depósitos, acabaram por não comparecer no acto da escritura que haviam marcado, inviabilizando, assim, a concretização do negócio prometido.  
          Se alguém não agiu de boa fé, foram eles, que não os recorridos. Como podem vir, agora, alegar que estes tinham a intenção de vender a nova moradia a outrem, se não se deram ao trabalho de se deslocar ao Cartório Notarial na data por eles mesmos aprazada?
          Em conclusão, não ficou demonstrado que os recorridos se tenham recusado a cumprir o contrato-promessa ou tenham dificultado, fosse por que forma fosse, o respectivo cumprimento, razão pela qual não pode, nesta parte, também, o recurso obter procedência.

          d) O enriquecimento sem causa

          Mais uma vez, não concretizam os apelantes os pressupostos da conclusão retirada, quedando-se pela afirmação de que se verificou um enriquecimento sem causa dos recorridos à custa dos recorrentes.
          Quererão referir-se, porventura, ao que desembolsaram a título de sinal, que os recorridos, naturalmente, embolsaram. Mas, se assim é, continuam a trilhar caminho errado.
          Como se sabe, o enriquecimento sem causa, previsto no art. 473.º, n.º 1, do CC, pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: a) que haja um enriquecimento de alguém; b) que tal enriquecimento careça de causa justificativa; c) que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição (Antunes Varela, ob. cit. volume I, página 467).
          Por outro lado, o enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, não havendo lugar à restituição quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento (artigo 474.º do mesmo diploma).
          Ora, e em primeiro lugar, a deslocação patrimonial dos recorrentes para os requeridos teve origem num negócio sem vícios inerentes à sua celebração [5] ou posteriores à sua conclusão (que tenham sido declarados, pelo menos); falta de causa justificativa não se verifica, portanto.
          Em segundo lugar, porque existe regime específico quanto ao sinal (artigo 442.º do CC) e a restituição fundada no enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária.
          Em terceiro lugar, e decisivamente, porque o enriquecimento sem causa não foi erigido em causa de pedir na acção, nem formulado o correspondente pedido de restituição, ainda que subsidiariamente. E a sentença não pode condenar em objecto diverso do que se pedir (artigo 661.º, n.º 1, do CPC).
          Logo, não procede o recurso com este fundamento.


          IV. Síntese final:

          1) O princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 655.º do CPC impede a alteração da matéria de facto fixada em 1.ª instância, quando a decisão tenha sido criticamente fundamentada e a fundamentação não contrarie as regras da experiência nem a lógica do raciocínio.
          2) O contrato-promessa rege-se pelas regras do contrato prometido, excepção feita às da forma e às que se mostrem inaplicáveis.
          3) O vício decorrente da falta de certificação notarial da existência de licença de utilização ou de construção só gera nulidade do contrato-promessa se for arguido pelo promitente comprador (ou pelo promitente vendedor, no caso excepcional em que a lei o permite).
          4) Sempre que seja conhecida a vontade real dos contraentes, é de acordo com ela que o contrato deve ser interpretado; mas sendo o negócio formal, terá de haver correspondência, mínima, ao menos, entre o texto do contrato e a declaração.
          5) A boa fé contratual (artigo 762.º, n.º 2, do CC) postula lealdade de cooperação entre as partes.
          6) O pedido fundado no enriquecimento sem causa tem de ser formulado expressamente, ainda que em via subsidiária.


          V. Decisão:

          Por tudo quanto ficou exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em confirmar a douta sentença recorrida.
          Custas pelos apelantes.


[1] Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, volume III, página 245.
[2] Era a posição de Antunes Varela, como se constata da obra supra citada, página 323.
[3] No mesmo sentido, Almeida Costa, última obra citada, página 37.
[4] A alteração da causa de pedir e do pedido estão sujeitos a requisitos apertados, como decorre do disposto nos artigos 272.º e 273.º do CPC.
[5] Que, a existirem, dariam lugar à restituição derivada da nulidade ou da resolução, e não do enriquecimento sem causa.