Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
777/16.1PBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: PENA DE MULTA
CONVERSÃO EM PENA DE PRISÃO SUBSIDIÁRIA
Data do Acordão: 03/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JL CRIMINAL DE CALDAS DA RAINHA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 49.º DO CP; ARTS. 489.º E 490.º DO CPP
Sumário: I – Existindo requerimento de prestação de trabalho em substituição da pena de multa, de duas uma: o tribunal defere a pretensão do arguido, ou indefere-a.

II – Se no prazo [pagamento voluntário da multa ou, no prazo após notificação do indeferimento do pedido de substituição da multa por dias de trabalho] o condenado não procede ao pagamento voluntário, então entra-se na fase do pagamento coercivo.

III – Só se o pagamento coercivo da multa não for possível, por não terem sido encontrados bens suficientes se procede à conversão da multa em prisão subsidiária que, ainda assim, poderá não ser cumprida, sendo-lhe suspensa, se o arguido provar que a razão do não pagamento não lhe é imputável.

IV – Procedendo à imediata conversão da pena de multa na correspondente pena subsidiária, sem efetuar qualquer ponderação sobre a possibilidade da cobrança coerciva do pagamento da referida multa, violou o Tribunal a quo o disposto no art. 49.º, nº 1, do CP.

Decisão Texto Integral:







Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

                          

     Relatório

Por despacho de fls.63 e 64, proferido no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal de Caldas da Rainha, a Ex.ma Juíza converteu a pena de 50 dias de multa, em que o arguido A... fora condenado por sentença de 21 de novembro de 2016, na correspondente pena de 33 dias de prisão subsidiária.

           Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. Um dos pressupostos da conversão da pena de multa não paga em prisão subsidiária consiste na impossibilidade de obter o pagamento coercivo da referida pena de multa.

2. É, por isso, necessário averiguar previamente à decisão de conversão da existência de bens penhoráveis em nome do arguido não sendo, todavia, e como bem se compreende, necessária a prévia instauração de execução quando já se sabe que ela não vai surtir efeito por não existirem bens penhoráveis na esfera patrimonial do arguido.

3. O art.49º do Código Penal não faz depender a aplicação da prisão subsidiária da instauração de processo executivo, mas da impossibilidade de obter o pagamento coercivo que, como é óbvio, abrange tanto os casos em que se instaurou a execução e através dela não se conseguiu obter o pagamento da multa como naqueles em que a impossibilidade de pagamento coercivo resulta “ab initio”, ou seja, por não existirem bens que permitam pelo menos tentar obter o pagamento.

4. No presente caso não foi efectuada nenhuma diligência no sentido de apurar da existência de bens penhoráveis por parte do arguido.

5. E no despacho recorrido não foi efectuada qualquer ponderação sobre a possibilidade da cobrança coerciva do pagamento da referida multa.

6. Assim sendo, o despacho recorrido viola frontalmente o disposto no art.49.º, n.º1, do Código Penal.

Termos em que, deve o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro que determine a prévia averiguação da existência de bens penhoráveis por parte do arguido.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá proceder e revogar-se a douta decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por outra em que se determinem diligências no sentido do tribunal apurar se o arguido tem, ou não, bens suficientes e desembaraçados que viabilizem a execução patrimonial pelo Ministério Público. 

Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, o arguido nada disse.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

O despacho recorrido tem o seguinte teor:

«Por sentença de 21.11.2016, proferida de fls. 24, e já transitada em julgado, foi o arguido A... condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3º, nº 1 do DL 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros).

Não obstante ter sido notificado para proceder ao pagamento da conta de custas, bem como da multa que lhe foi aplicada com a advertência do disposto no artigo 49º, nº 1 do Código Penal, o arguido nada disse.

Dispõe o artigo 49.º, n.º 1 do Código Penal que, se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão.

Pelo exposto e ao abrigo do que preceitua o art.º 49.º, n.º 1, do Código Penal, determino a conversão da pena de multa de não paga (50 dias) em 33 (trinta e três) dias de prisão subsidiária, a cumprir pelo arguido A... .

Solicite ao OPC territorialmente competente a notificação pessoal do presente despacho ao arguido, com a advertência de que poderá a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução de prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenado (art.º 49.º, n.º 2, do Código Penal).

D.N.

Transitado em julgado o antecedente despacho, emitam-se os competentes mandados de detenção, a fim de serem remetidos à autoridade policial competente, para efeito de cumprimento da pena de prisão subsidiária pelo arguido A... , fazendo referência a que o arguido pode, a todo o tempo, pagar total ou parcialmente a quantia em cujo pagamento foi condenado, obviando, dessa forma, ao cumprimento da pena de prisão (artigo 49.º, n.º 2 do Código de Processo Penal), bem como que, pretendendo proceder ao pagamento mas não podendo realizá-lo no tribunal sem grave inconveniente, o poderá efectuar à entidade policial, contra recibo, aposto no triplicado do mandado.

Remeta boletim aos serviços de identificação criminal após trânsito em julgado – 6º, al. a) da Lei 37/2015, de 05.05.».


*

                O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

Como bem esclarecem os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

Tendo em consideração as conclusões da motivação do recurso interposto pelo Ministério Público, a questão a decidir é a seguinte: 

- se o despacho recorrido violou o disposto no art.49.º, n.º1, do Código Penal, ao substituir a pena de multa aplicada na correspondente pena de prisão subsidiária, sem previamente averiguar da existência de bens penhoráveis na esfera patrimonial do arguido.

            Passemos ao seu conhecimento.

            O Ministério Público defende que o despacho recorrido violou o disposto no art.49.º, n.º1, do Código Penal, ao substituir a pena de multa na correspondente pena de prisão subsidiária sem previamente averiguar da existência de bens penhoráveis na esfera patrimonial do arguido, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que determine a prévia averiguação da existência de bens penhoráveis por parte do arguido.

Em concreto e para fundamentar a sua pretensão, refere, em síntese, que um dos pressupostos de que o art.49º do Código Penal depender a conversão da pena de multa não paga em prisão subsidiária consiste na impossibilidade de obter o pagamento coercivo da referida pena de multa. No presente caso não foi efetuada nenhuma diligência no sentido de apurar da existência de bens penhoráveis por parte do arguido, nem o despacho recorrido efetuou  qualquer ponderação sobre a possibilidade da cobrança coerciva do pagamento da referida multa.

Vejamos.

O art.49.º do Código Penal, que sob a epígrafe « Conversão da multa não paga em prisão subsidiária », estatui, designadamente, o seguinte:

« 1. Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços (…);

      (…)

3. Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de um a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.»

Este preceito deve ser conjugado com o regime de execução da pena de multa, descrito nos artigos 489.º e 490.º do Código de Processo Penal.

Da sua conjugação resulta, em termos sintéticos, que a primeira notificação que o arguido recebe, após o trânsito em julgado da sentença, é para pagamento voluntário da multa, no prazo de 15 dias.

Nesse prazo, se não proceder ao pagamento integral da multa, poderá requerer a prestação de trabalho ou o pagamento dela em prestações.

Para o caso que aqui interessa, que é o da existência do requerimento de prestação de trabalho em substituição da pena de multa, de duas uma: o tribunal defere a pretensão do arguido, ou indefere-a.

Se o tribunal indefere essa substituição, importa atender ao disposto art.490.º, n.º 4, do C.P.P. que estatui:

« Em caso de não substituição da multa por dias de trabalho, o prazo de pagamento é de 15 dias a contar da notificação da decisão».

Querendo o legislador que o condenado cumpra a pena de multa, se nesse prazo o condenado não procede ao pagamento voluntário, então entra-se na fase do pagamento coercivo.

Se o pagamento coercivo da multa não for possível, por não terem sido encontrados bens suficientes - o que, como bem refere o recorrente, abrange tanto os casos em que se instaurou a execução e através dela não se conseguiu obter o pagamento da multa como naqueles em que a impossibilidade de pagamento coercivo resulta “ab initio”, ou seja, por não existirem bens que permitam pelo menos tentar obter o pagamento -, procede-se à conversão da multa em prisão subsidiária que, ainda assim, poderá não ser cumprida, sendo-lhe suspensa, se o arguido provar que a razão do não pagamento não lhe é imputável.

Retomando ao caso concreto, anotamos com interesse para a decisão a tomar, a seguinte sequência de atos processuais, que deu causa à decisão recorrida:

- Por sentença proferida nos presentes autos, em 21 de novembro de 2016, e já transitada em julgado, foi o arguido A... condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art.3.º, n.ºs 1 e 2 do DL 2/98, de 3 de janeiro, numa pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €5, o que perfaz um total de € 250,00.

- Em 2 de dezembro de 2016, alegando não ter disponibilidades económicas e financeiras para proceder ao pagamento da multa, requereu o arguido, nos termos e para os efeitos do art.48.º, n.º1 do Código Penal, a substituição da multa em que foi condenado por dias de trabalho.

- Solicitada pela Ex.ma Juíza do processo, à DGRS, a elaboração do relatório a que alude o n.º1 do art.496.º do C.P.P., com vista à substituição da pena de multa por dias de trabalho, veio a verificar-se que o arguido não compareceu a qualquer das convocatórias que lhe foram feitas com aquele propósito, nem justificou as faltas, mesmo após notificação para o fazer.

- Em despacho proferido a 27 de abril de 2017, a Ex.ma Juíza, considerando não existirem quaisquer condições para que possa ser concedida a requerida substituição, indeferiu a mesma e ordenou a notificação do arguido “… para proceder ao pagamento da pena de multa em que foi condenado, sob pena de vir a mesma a ser coercivamente cobrada, ou não sendo esta viável, vir a mesma a ser convertida em prisão subsidiária (art. 49º, nº 1 do CP), com a advertência de que poderá a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a conversão da pena de multa em pena de prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenado (art.º 49.º do Código Penal)”.

- Notificado o arguido, o mesmo não pagou, nem requereu nada nos autos:

- Na sequência de promoção do Ministério Público, seguidamente, e sem mais quaisquer  diligências, foi proferido o despacho recorrido.

Da sequência de atos processuais supra referidos resulta que o arguido, no prazo em que podia pagar voluntariamente a multa requereu a sua substituição por prestação de trabalho; porém, por razões imputáveis ao arguido, o Tribunal a quo indeferiu a substituição da multa em que aquele fora condenado por dias de trabalho e ordenou a sua notificação para, no prazo legal, proceder ao pagamento daquela multa.

Neste despacho de indeferimento foi mandado comunicar ao arguido, e bem, que procede-se ao pagamento da multa em que foi condenado, sob pena de a mesma vir a ser cobrada coercivamente.

Acontece que o arguido não procedeu ao pagamento voluntário, nem requereu o que quer que fosse, designadamente a indicação de bens penhoráveis.

Face a esta atitude do arguido e ao disposto no art.49.º, n.º1 do Código Penal, impunha-se ao Tribunal a quo proceder a diligências no sentido de averiguar da existência de bens do arguido que permitam proceder ao pagamento coercivo da pena em que foi condenado.

Não o tendo feito e procedendo à imediata conversão da pena de multa na correspondente pena subsidiária, sem efetuar qualquer ponderação sobre a possibilidade da cobrança coerciva do pagamento da referida multa, violou o Tribunal a quo aquela norma penal.

Consequentemente, impõe-se julgar procedente esta questão e o recurso interposto pelo Ministério Público. 

          Decisão

       

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público  e, revogando o douto despacho recorrido, determina-se que o mesmo seja substituído por outro que ordene a averiguação da existência de bens penhoráveis do arguido.

Sem tributação.

                                                                          *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                      
   *

Coimbra, 07 de março de 2018

Orlando Gonçalves (relator)

Alice Santos (adjunta)


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.