Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
38/15.3GTLRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: PENA DE MULTA
PRESCRIÇÃO DA PENA
CAUSAS DE SUSPENSÃO
SUBSTITUIÇÃO POR TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Data do Acordão: 01/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 125.º DO CP; ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA N.º 2/2012. D.R. N.º 73, SÉRIE I DE 2012-04-12
Sumário: I – Ao lado do direito fundamental do arguido de se ver julgado em prazo razoável, existe um direito fundamental da sociedade de obter o resultado deste julgamento em prazo que não torne inócua a tutela penal dos bens jurídicos que a incriminação da conduta almeja salvaguardar. Como forma de obstar a esta última surge o instituto da prescrição penal, resultante da demora na persecução penal.

II – Atenta a previsão do corpo do art.º 125.º do CP, bem como, mormente, da alínea a) do seu n.º 1, apenas a lei, que não o foro judicial, pode criar ou estabelecer outras causas de suspensão além das aí especialmente previstas.

III – Por isso que, nomeadamente, o deferimento do requerimento da substituição do pagamento da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade não constitui causa de suspensão do decurso do prazo de prescrição da pena, nos termos do citado art.º 125.º, n.º 1, alínea a).

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.


I

1. Por sentença de 5.3.2015, transitada em julgado em 13.4.2015, foi o arguido OD (melhor id nos autos), condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução e veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.°, n.º 1, e 69.°, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena principal de 65 (sessenta e cindo) dias de multa, à taxa diária de 5,00 (cinco euros), perfazendo € 325,00 (trezentos e vinte e cinco euros); e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 4 (quatro) meses.

            2. Por despacho de 12.1.2018, com o fundamento de a multa não ter sido paga voluntariamente, não ter sido requerido a sua substituição por prestação de trabalho nem ter sido viável a sua execução patrimonial, foi tal pena de multa convertida em 43 dias de prisão subsidiária.

           

            3. Em 7.6.2019 foi pelo Ministério Público promovido que quer a pena principal quer a pena acessória fossem declaradas extintas pelo decurso do prazo de prescrição (das penas).

           

            4. Na sequência desta promoção foi proferido o seguinte despacho judicial datado de 13.6.2019:
“Regularmente notificado, o arguido não procedeu ao pagamento da pena de multa a que foi condenado.
Requereu, porém, em 16.03.2015 (cfr. fls, 28 a 29 dos autos), a substituição da pena de multa por trabalho, o que (apenas) veio a ser indeferido por despacho proferido em 30.05.2017 (cfr. fls. 119 dos autos), por falta de colaboração do arguido com a DGRS para efeitos de caracterização do trabalho.
Novamente notificado para proceder ao pagamento integral da pena de multa, o arguido não o fez, sendo certo que resultou inviável a sua cobrança coerciva.
Atento o exposto, foi promovido (fls. 137 dos autos) e, subsequentemente, determinada (fls, 142 a 143 dos autos), a conversão da pena de multa em prisão subsidiária.
Dessa Decisão de conversão, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por Acórdão proferido 10.07.2018, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida que, assim, transitou em 02.10.2018 (cfr. fls. 64 a 78 do Apenso "A" a estes autos).
Foram emitidos os competentes mandados de detenção do arguido para cumprimento da pena de prisão subsidiária, os quais, todavia, não lograram obter cumprimento, por desconhecimento do paradeiro do arguido [cfr. fls. 244 dos autos].
Encontram-se a ser realizadas nos autos as diligências necessárias à declaração de contumácia do arguido junto do TEP.
Entretanto, foi suscitada a questão da prescrição da pena aplicada ao arguido nestes autos (cfr. fls. 252 e 253 a 253v.).
Cumpre apreciar e decidir:
Nos termos do artigo 122°, n° 1, alínea d), do Código Penal, no caso das penas de prisão inferiores a dois anos, assim como no caso das penas não privativas da liberdade, as mesmas prescrevem no prazo de 4 anos, o qual começa a correr no dia em que transitar em julgado a decisão que tiver aplicado a pena (cfr. o n" 2 do referido artigo).
Caso inexistissem quaisquer causas de interrupção e/ou suspensão do prazo de prescrição da pena [cfr. artigos 125° e 126° do Código Penal], considerando a data do trânsito em julgado da sentença condenatória (13.04.2015), aquela projetar-se-ia para 14.04.2019.
Sucede que nos autos, a nosso ver, ocorreu (e por mais que uma vez) causa de suspensão da prescrição da pena: a prevista no artigo 125.°, n.º 1, al. a), do Código Penal.
Com efeito, dispõe o mencionado normativo que:
"A prescrição da pena (...) suspende-se, para além dos casos previstos na lei, durante o tempo em que:
a) Por força da Lei, a execução não puder começar ou continuar a ter lugar;
(…)”
sendo certo que a prescrição volta a correr "(. . .) a partir do dia em que cessar a causa da suspensão." - cfr. o nº 2 do mesmo preceito.
No caso dos autos, e neste particular, temos que o arguido requereu, em 16.03.2015 (ainda antes do trânsito em julgado da sentença condenatória), a substituição da pena de multa por trabalho, a qual veio a ser indeferida por Decisão datada de 30.05.2017 (cfr. fls. 119 dos autos), por falta de colaboração do arguido com a DGRS para efeitos de caracterização do trabalho, tendo sido ainda determinado, nesse mesmo despacho, a notificação do arguido das guias para pagamento voluntário da pena de multa.
Ora, em nosso entendimento, a factualidade em apreço, enquadra-se na causa de suspensão prescrita na al. a) do artigo 125.° do Código Penal, pois que não só enquanto a pretensão do arguido não foi decidida como também enquanto decorreu o prazo para pagamento voluntário da pena de multa, a sentença, nessa parte, não era exequível [cfr. a este propósito acórdãos da RL de 23.02.2010 e de 21.10.2009, in Col. Jur., Ano XXXV, 1. 1, 145, e Ano XXXIV, 1. 4, 148, bem como, mais recentemente, entre outros, Acórdão do TRE, de 22.01.2019, disponível no sitio www.dgsi.pt].
Temos, assim, por verificada uma de suspensão da prescrição - a prevista na al. a) do artigo 125.°, n." 1, do C. Penal- que perdurou:
- num primeiro momento, desde a data do trânsito em julgado (uma vez que o requerimento de substituição da multa por trabalho foi prematuramente apresentado) até à data da decisão daquela pretensão: isto é, de 13.04.2015 a 30.05.2017; e
- num segundo momento, até o termo do prazo do pagamento voluntário da pena de multa: isto é, de 30.05.2017 a 04.07.2017,
contabilizando-se, assim, um período (global) de suspensão da prescrição da pena de 2 (dois) anos, 2 (dois) meses e 21 (vinte e um) dias.
Assim:
Verifica-se que, sobre a data em que teve início a contagem do prazo prescricional aplicável ao caso sub judice (trânsito em julgado da sentença condenatória: 13.04.2015) - e considerando o período de 2 anos 2 meses e 21 dias de suspensão da prescrição -, ainda não decorreram [quatro] anos, pelo que não se acha extinta, por prescrição, a pena aplicada ao arguido nestes autos [o que só se projecta - nada advindo em contrário que influa nessa contagem - para 04.07.2021]”.

           

5. Desta decisão recorre o arguido, formulando as seguintes conclusões:

(...)

            6. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.


II

Cumpre apreciar a única questão suscitada pelo recorrente, a do decurso ou não do prazo de prescrição das penas (principal e acessória) em que o arguido foi condenado.

Apreciando:

1. Não se suscitam dúvidas de que o prazo de prescrição da pena de multa aplicada ao recorrente, é de quatro anos – artigo 122º, nº1, alínea d), do Código Penal.

E que, nos termos do artigo 123º do mesmo diploma, “A prescrição da pena principal envolve a prescrição da pena acessória que não tiver sido executada bem como dos efeitos da pena que ainda se não tiverem verificado”.

2. Quanto à suspensão daquele prazo de prescrição, dispõe o artigo 125.º do Código Penal:

Suspensão da prescrição

1 - A prescrição da pena e da medida de segurança suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:

a) Por força da lei, a execução não puder começar ou continuar a ter lugar;

b) Vigorar a declaração de contumácia;

c) O condenado estiver a cumprir outra pena ou medida de segurança privativas da liberdade; ou

d) Perdurar a dilação do pagamento da multa.

2 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.

3. Questão similar foi apreciada e decidida por ac. desta Relação de Coimbra de 23-05-2012 proferido no processo nº 1366/06.4PBAVR.C1 in www.dgsi.pt, em que somos relator, com uma diferença apenas: naqueles autos (processo nº 1366/06.4PBAVR.C1), o requerimento do arguido para substituição do pagamento da pena de multa pela prestação de trabalho foi deferido, enquanto que nos presentes autos, tal requerimento foi indeferido.

Apreciou-se assim naquele processo[1]:

1. A apreciação da questão passa, em nosso entender, pela apreciação de dois aspectos conexos e que se traduzem no seguinte:

- a natureza ou razão de ser do prazo de prescrição, quer do procedimento criminal quer da pena aplicada;

- a natureza da substituição da pena de multa aplicada por dias de trabalho a favor da comunidade na perspectiva de eventual fundamento de suspensão da execução daquela pena de multa, como defende o recorrente Ministério Público.

2. Quanto à essência da prescrição, diz o Prof. Figueiredo Dias in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pg. 699:

“A prescrição justifica-se, desde logo, por razões de natureza jurídico-penal substantiva. É óbvio que o mero decurso do tempo sobre a prática de um facto não constitui motivo para que tudo se passe como se ele não houvesse ocorrido; considera-se, porém, que uma tal circunstância é, sob certas condições, razão bastante para que o direito penal se abstenha de intervir ou de efectivar a sua reacção. Por um lado, a censura comunitária traduzida no juízo de culpa esbate-se, se não chega mesmo a desaparecer. Por outro lado, e com maior importância, as exigências de prevenção especial, porventura muito fortes logo a seguir ao cometimento do facto, tornam-se progressivamente sem sentido e podem mesmo falhar completamente os seus objectivos: quem fosse sentenciado por um facto há muito tempo cometido e mesmo porventura esquecido, ou quem sofresse execução de uma reacção criminal há muito tempo já ditada, correria o sério risco de ser sujeito a uma sanção que não cumpriria já quaisquer finalidades de socialização ou de segurança. Finalmente e sobretudo, o instituto da prescrição justifica-se do ponto de vista da prevenção geral positiva: o decurso de um largo período sobre a prática de um crime ou sobre o decretamento de uma sanção não executada faz com que possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, já apaziguadas ou definitivamente frustradas.

Por todas estas razões, a limitação temporal da perseguibilidade do facto ou da execução da sanção liga-se a exigências político-criminais claramente ancoradas na teoria das finalidades das sanções criminais e correspondentes, além do mais, à consciência jurídica da comunidade”.

E a fls. 702 acrescenta, a propósito da pena:

“…a prescrição da pena cria um obstáculo à sua execução apesar do trânsito em julgado da sentença condenatória e ganha, nesta medida, o carácter de um autêntico pressuposto negativo ou de um obstáculo de realização (execução) processual. Já no que toca à vertente substantiva, pode dizer-se que o problema se põe em termos análogos aos que ocorrem quanto à prescrição do procedimento: ainda aqui a prescrição se funda, na verdade, em que o decurso do tempo tornou a execução da pena sem sentido e, por aí, o facto deixou de carecer de punição”.

A razão de ser da prescrição mostra-se igualmente bem justificada no ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.12.2011, proferido no proc. nº 712/00.9JFLSB-Q.L1-3, consultável na base de dados do ITIJ, onde se firma, a propósito, o seguinte:

  I – No Estado Democrático de Direito, é dever estatal e, portanto, do Poder Judicial, conferir a devida eficiência ao Direito Penal, para que possa desenvolver com plenitude a sua missão fundamental de protecção social.

II – Há ao lado do direito fundamental do arguido de se ver julgado em prazo razoável um direito fundamental da sociedade de obter o resultado deste julgamento em prazo que não torne inócua a tutela penal dos bens jurídicos que a incriminação da conduta almeja salvaguardar. A prescrição penal, resultante da demora na persecução penal.

            …

            IX – A demora do processo penal, além dos funestos prejuízos para o arguido, abala a eficiência do Direito Penal, na medida em que frustra os seus principais objectivos, comprometendo a legitimidade social e a credibilidade do Poder Judicial ao disseminar um senso de descrédito na actuação da justiça penal.

            X – O dever de protecção jurídico-penal impõe ao Tribunal criminal a prestação de uma tutela judicial efectiva, consistente na apreciação da causa em tempo hábil e razoável.

            XI – Praticado o ilícito penal, nasce para o Estado, em nome da sociedade, o direito de punir o infractor.

Este direito tem o seu exercício condicionado no tempo. Se dentro de certo lapso temporal, que varia em razão da pena máxima abstractamente prevista para o crime ou da pena concretamente aplicada na sentença, o Estado não exercer a sua pretensão punitiva ou executória, ocorre a prescrição, que é a perda do direito de punir ou executar a pena aplicada.

            XII – O instituto da prescrição funda-se no princípio da segurança jurídica e traduz instrumento jurídico destinado a reforçar o aspecto preventivo da pena e a evitar a eternização do clamor social em relação à prática delituosa, é a prescrição imprescindível ao Direito Penal de todos os Estados Democráticos de Direito, sendo admitida desde o berço das instituições jurídicas e assim exercida pelos povos antigos, com relevo especial entre os romanos, que conheciam as duas espécies de prescrição (da acção penal e da pena).

            …

            XIV – A prescrição penal é um instituto que se vincula directamente ao direito fundamental ao prazo razoável do processo constitucionalmente reconhecido no nosso sistema.

            XV – A prescrição é matéria de ordem pública e interesse social, portanto, a qualquer tempo e grau de jurisdição, deve ser declarada, inclusive ex officio,…

XVI – Não pode pairar sobre o arguido a ameaça ad perpetuam do poder repressivo estatal.

XVII – É inegável a importância da prescrição como instrumento de política criminal destinada a reforçar o aspecto preventivo da pena e impedir a eternização do clamor social em relação à prática delituosa. O tempo parece apagar todas as feridas, individuais ou sociais.

XXI – Necessário se torna criar uma cultura de agilização, eliminando as práticas dilatórias e tratando o processo como um instrumento ético de pacificação social, que, portanto, precisa ter um curso abreviado.

3. Destes breves apontamentos sobressai a noção elementar de que, aplicada uma pena ao agente pela prática de um crime, a sua execução ou cumprimento só se justifica se a mesma ocorrer dentro de determinado período temporal – o definido pelo legislador -, decorrido o qual se torna injustificado, desnecessário e mesmo comunitariamente não exigido ou carecido de fundamento, o seu cumprimento[2].

Descendo ao caso dos autos, significa que a pena de multa para satisfazer as suas finalidades de aplicação, logo para não se tornar “inútil” e prescrever, deverá ser cumprida ou executada, no prazo legal de 4 anos – artigo 122º, nº1, alínea b), do Código Penal.

E tem sido à volta da “execução da pena de multa” que se tem gerado alguma controvérsia e jurisprudência de cariz antagónico sobre a natureza da referência a “execução” ínsita no artigo 126º, nº1, alínea a), do mesmo Código Penal – que constitui causa de interrupção da prescrição.

Desta controvérsia se dá conta no parecer do Ministério Público junto deste tribunal mas que entretanto, no decurso deste período de tempo, entre o mesmo parecer e a prolação deste acórdão, teve outros desenvolvimentos com a publicação do AUJ do STJ de 8.3.2012, in DR 1º Série de 12 de Abril de 2012 (nº 73), que dirimiu a oposição de julgados exactamente de dois acórdãos deste Tribunal da Relação de Coimbra e que fixou a seguinte jurisprudência:

            «A mera instauração pelo Ministério Público de execução patrimonial contra o condenado em pena de multa, para obtenção do respectivo pagamento, não constitui a causa de interrupção da prescrição da pena prevista no artigo 126.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal».

            Esta jurisprudência veio assim dar corpo ao entendimento – de uma das posições – de que « [...] a instauração da acção de execução da pena de multa [...] não corresponde ainda à ‘execução’ da pena de multa. [...] só com o início do pagamento da pena de multa, isto é, só com o pagamento parcial da pena de multa se verifica a interrupção da prescrição da pena» - v. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 2.ª ed. actualizada, p. 387.

            4. Ora, aplicada uma pena de multa, compete ao condenado pagá-la no prazo de 15 dias a contar da notificação para o efeito – artigo 489º, nº 2, do CPP.

            Só não será assim, se entretanto o pagamento for deferido ou autorizado em prestações – nº 3, daquele preceito – ou for requerido e deferido a sua substituição, total ou parcial, por dias de trabalho – artigos 490º, do CPP e 48º, nº1, do CP.

            É esta a situação sub judice.

            Com efeito, tendo o arguido sido condenado por sentença de 23/10/2007, e transitada em julgado em 12/11/2007, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples na pena de 180 dias de multa à taxa diária de €5, logo veio o arguido em 22 de Janeiro de 2008 a requerer a aplicação de outras sanções de cariz não económico – fls. 97 – e em 12 de Fevereiro de 2008 a esclarecer que pretendia cumprir a pena de multa através de prestação de trabalho a favor da comunidade – v. fls. 123.

            No seguimento do requerido, foram então encetadas diligências promovidas pelo Ministério Público e deferidas pelo Sr. juiz – v. fls. 124 e seguintes -, no sentido de o arguido prestar o respectivo trabalho, tendo por despacho de 4.12.2008 – cerca de 10 meses depois – sido substituída a pena dos 180 dias de multa por 180 dias de trabalho a favor da comunidade e fixada ainda a modalidade e termos desta prestação.

            A que se segue um período de várias vicissitudes em que o arguido nunca iniciou a prestação do trabalho a favor da comunidade até ao momento em que o Ministério Público promove em 14.1.2011 – v. fls. 171 -, que se derrogue a substituição da pena de multa pela prestação daquele, a que se seguiu o despacho recorrido datado de 22.11.2011 – v. fls. 172.

            A questão que se segue é então apurar da exacta natureza desta substituição da pena de multa aplicada por dias de trabalho a favor da comunidade na perspectiva de saber se esta substituição é fundamento de suspensão da execução daquela pena de multa, nos termos do artigo 125º, nº 1, alínea a), do Código Penal.

            A resposta passa necessariamente pelo tratamento jurídico que o legislador dá a esta substituição bem como ao facto do arguido não cumprir ou prestar efectivamente os dias de trabalho resultantes daquela substituição[3].

            O que nos remete desde logo para o disposto no artigo 49º do Código Penal – e não para todos os termos do artigo 59º do mesmo diploma, pois o artigo 48º, nº 2, é explícito quanto à remissão apenas para o nº1 daquele preceito.

            E segundo o artigo 49º, do CP, sempre que o condenado não cumpra a prestação dos dias de trabalho resultantes da substituição de pena de multa, deverá distinguir-se:

            - O incumprimento culposo do condenado, situação em que este cumprirá prisão subsidiária – nº 4, 1ª parte, daquele art. 49º.

            - O incumprimento não culposo do condenado ou incumprimento não imputável ao condenado, situação em que a prisão subsidiária que em princípio deveria ser cumprida, pode ser suspensa, nos termos do artigo 49º, nº3, do CP – nº 4, 2ª parte, deste mesmo preceito (art. 49º).

            Deste regime resulta ou pode concluir-se que a prestação deste trabalho pelo condenado, é uma das formas de cumprimento da própria pena de multa aplicada.

            Conclusão que tem ainda apoio no teor do nº1, do artigo 49º[4], na medida em que equipara a prestação do trabalho ao pagamento da multa.

            Bem como no teor do nº1 do artigo 48º do CP, ao prever que a substituição da multa por trabalho pode ser total ou parcial. O que significa que existe igual equiparação entre o pagamento da multa em dinheiro e a prestação de trabalho, merecendo, pois, o mesmo tratamento.

            Podendo ainda afirmar-se que, em caso de prestação parcial do trabalho, ou seja, de apenas alguns dias, sempre deverá ser descontado à eventual prisão subsidiária a cumprir, os dias de trabalho efectivamente cumpridos – v. nº 4 do artigo 59º do CP que sempre deverá ter aqui aplicação senão directamente pelo menos por analogia.

           

            Segundo o regime analisado da substituição da multa por trabalho, existe, pois, uma equiparação desta prestação de trabalho a um verdadeiro cumprimento da pena de multa, de tal modo que a prestação de trabalho corresponderá a uma forma de pagamento da multa. E que a prestação parcial do trabalho significará igualmente um pagamento parcial dessa multa.

            Perante esta conclusão, entendemos que tem aqui plena aplicação a jurisprudência do citado ac. nº 2 de 2012, do STJ de 8.3.2012 (AUJ), na medida em que, de acordo com os elementos do processo, não tendo havido qualquer prestação de trabalho – um dia que fosse -, não chegou a haver também qualquer pagamento ou início de pagamento/cumprimento da pena de multa, ainda que parcial.

            Esta substituição da multa por dias de trabalho, não terá outro sentido que não seja a mera equiparação a “instauração de execução patrimonial para pagamento da multa”.

            Ademais, como refere Germano Marques da Silva in Direito Penal Português, Parte Geral, III, fls. 238, “ a previsão da alínea a)[5] significa apenas que, como no corpo do artigo, a lei pode estabelecer outras causas de suspensão da prescrição além das indicadas nas alíneas seguintes e que só a lei o pode fazer, não cabendo por isso ao foro judicial criar ou justificar causas de suspensão não especialmente previstas[6].

            5. Em jeito de síntese/conclusão, poderá afirmar-se que o simples requerimento de deferimento da substituição do pagamento da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade não constitui, no caso concreto, causa de suspensão do decurso do prazo de prescrição”.

4. Os fundamentos da decisão do enunciado processo nº 1366/06.4PBAVR.C1 mantêm-se, pois não encontramos razão ou argumentos para os alterar. Pelo contrário, no caso dos presentes autos, o requerimento do arguido para pagamento da multa através de prestação de dias de trabalho, foi indeferido.
E foi indeferido, conforme resulta do despacho, mais de dois anos depois do respetivo requerimento (o arguido requereu a prestação da multa por dias de trabalho em 16.03.2015 e foi indeferido por despacho proferido em 30.05.2017).
 Afirma-se no despacho que o indeferimento se deveu a falta de colaboração do arguido.
Ora, este requerimento a solicitar o pagamento da multa através da prestação de dias de trabalho, está legalmente previsto. Faz parte da normal tramitação processual para o pagamento ou cumprimento da pena de multa. O que não é normal é que para esse efeito o tribunal protele ou deixe protelar, por qualquer motivo, mesmo sem a colaboração do requerente arguido, qualquer questão como foi o caso do requerimento para substituição da pena de multa por prestação de dias de trabalho, mais de dois anos e dois meses para indeferir a pretensão do arguido, quando essa solicitação é feita ainda antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, conforme referido no despacho recorrido.
Esta delonga processual, este prazo para apreciação da pretensão do arguido, não pode justificar nem significar uma suspensão do prazo de prescrição, pois contraria toda a lógica, a ratio, a natureza da prescrição da pena.  E não cabe, em nosso entender, nem na letra nem no espírito da dita alínea a), do nº 1, do artigo 125º do Código Penal, pois como se afirmou supra, o cumprimento da pena de multa pode ser efetuado através da prestação de trabalho e esta prestação efetiva traduz-se em execução ou começo de execução da pena. Logo, contrariamente ao decidido, é a própria lei que permite ao arguido recorrer a esta forma de cumprimento da pena. Pelo que não fará sentido concluir-se do disposto na referida alínea a), do nº 1, do artigo 125º do Código Penal que “por força da lei, a execução não puder começar ou continuar a ter lugar”.
Seria gravoso para os interesses do arguido e mesmo discricionário, deixar ao critério de cada tribunal que, por vicissitudes várias, inclusive imputáveis ao seu próprio funcionamento ou dos respetivos serviços (v. prazos para proferir despachos a ordenar diligências, prazos para cumprimento desses mesmos despachos, respostas de outros serviços ou instituições ao solicitado…), o prazo legal de prescrição fosse mais dilatado ou menos dilatado, segundo a tramitação de todo esse processado. 
Sendo o prazo de prescrição no concreto caso de 4 anos e estando legalmente previsto o cumprimento da multa através da forma requerida pelo arguido, que o solicitou no prazo legal, aquele período é mais que suficiente para o arguido cumprir, ou começar a cumprir, por qualquer forma, a pena.
Não o tendo feito, não lhe pode ser imputada essa responsabilidade, pois cabe às entidades com competência para a sua execução (v. a promoção do Ministério Público para o pagamento coercivo e/ou o deferimento ou indeferimento pelo Juiz com eventual realização das diligências, para outras formas de cumprimento como seria o caso da prestação de dias de trabalho), agilizar os procedimentos para o efetivo cumprimento das penas.

Entendimento este acolhido pelo ac. do STJ proferido no processo 53/11.6PKLRS-A-Sl, de 30-9-2015 (que o recorrente referencia), no qual se decide:
“Ademais, quando na alínea a) do n.º 1 do artigo 125º do Código Penal se estabelece que a prescrição da pena suspende-se durante o tempo em que por força da lei a execução não puder começar ou continuar a ter lugar, não pretende o legislador, obviamente, referir-se às vicissitudes procedimentais e processuais inerentes ao próprio processo onde foi imposta a pena e à ordem do qual a mesma deve ser executada e cumprida, designadamente os procedimentos tendentes à execução da pena, sob pena de a prescrição se dever ter por suspensa, grosso modo, perante qualquer acto ou incidente processual”.

Cumpre ainda dizer que está em causa a prescrição quer da pena principal quer da pena acessória de inibição de conduzir.
Ora, os fundamentos do despacho recorrido não levaram em conta que a pena acessória é autónoma, no seu cumprimento/execução, da pena principal. Pelo que os fundamentos que levaram a considerar suspenso o prazo de prescrição, não seriam de aplicar à pena acessória.
O que o artigo 123.º do Código Penal preceitua é que “a prescrição da pena principal envolve a prescrição da pena acessória que não tiver sido executada…”.
O que não significa que a pena acessória não prescreva, mesmo que tal não ocorra com a pena principal. Ou seja, pode decorrer o prazo de prescrição da pena acessória sem que esteja decorrido ainda o prazo da pena principal. O que ocorreria no presente caso, mesmo que se entendesse que o prazo da pena de multa se suspendia com o requerimento do arguido para prestar os dias de trabalho.


IV

Decisão

Por todo o exposto, decide-se em julgar procedente o recurso do recorrente OD e, consequentemente, revogando-se o despacho recorrido, julgam-se prescritas ambas as penas, a de multa e a de inibição de conduzir em que o recorrente foi condenado, por decurso do respetivo prazo legal de quatro anos sem que tivesse havido qualquer causa ou fundamento de suspensão ou interrupção daquela (prescrição).


*

Sem custas.

Coimbra, 15 de Janeiro de 2020

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários

           

Luís Teixeira (relator)

Vasques Osório (adjunto)


[1] Transcreve-se o que mais releva para o efeito.
[2] “Deixou de carecer de punição” como ensina Figueiredo Dias.

[3] Isto sem prejuízo de existir o entendimento de que esta prestação de trabalho é uma pena substitutiva – v. Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, fls. 191, em anotação ao artigo 48º.

[4] Cujo teor é o seguinte:
“Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária…”.
[5] Do artigo 125º, do Código Penal.
[6] Sublinhado nosso.