Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
635/11.6T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRESSUPOSTOS
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
CHEQUES
SÓCIOS
SOCIEDADE UNIPESSOAL
COMERCIANTE
Data do Acordão: 10/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 23º, Nº 1 E 25º DO CIRE; 595º, Nº1, B) DO C.CIV. 1691º, Nº 1, D) DO C.CIV.; 13º E 15º DO C. COMERCIAL
Sumário: 1. Como primeiro pressuposto da declaração de insolvência, o credor – quando requerente – terá que alegar e provar o seu crédito e, nesta medida, a qualidade de devedora da insolvente (pressuposto subjectivo).

2. Configura assunção cumulativa de dívida (art.595º, nº 1, b) do C.Civ.) o facto de o único sócio e gerente de uma sociedade por quotas unipessoal (SQU) passar cheques pessoais para pagamento de dívidas da sociedade.

3. Da conjunção dos arts.1691º, nº 1, d) do C.Civ. e 15º C. Comercial extrai-se que o credor do comerciante apenas terá que alegar e provar que o cônjuge que contraiu as dívidas é comerciante e faz do comércio profissão, operando depois a dupla presunção.

4. De acordo com o enunciado do art.13º do Código Comercial, a qualidade de sócio gerente de uma sociedade por quotas, ainda que unipessoal, não lhe confere, por si só, a qualidade de comerciante.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I - RELATÓRIO

            1.1. As requerentes – V…, LDA e C…, LDA – requereram ( 6/4/2011 ) na Comarca de Baixo Vouga ( Juízo de Comércio de Aveiro ), em processo especial, a declaração de insolvência da requerida – S...

            Alegaram, em resumo:

            Cada uma das requerentes vendeu à sociedade A… Unipessoal, Lda, de que é sócio gerente L…, marido da requerida, diverso material, para cujo pagamento o L… emitiu cheques, que foram devolvidos por falta de provisão.

            Estas dívidas são comunicáveis à requerida, pelas quais é responsável, nos termos do art.1691 nº1 d) CC e art.15 C Comercial, que ascendem a € 31.428,51 ( 1ª requerente ) e € 8.967,83 ( 2ª requerente ).

            Para além dos créditos das requerentes, existem vários processos contra a requerida, que não tem liquidez para pagar as dívidas contraídas.

            Tanto a sociedade unipessoal A…, Lda, como o marido da requerida já foram declarados insolventes, situação que denota a situação falimentar do agregado familiar.

            Com fundamento nos arts. 3º, 20º, 23º e 25º do CIRE, pediram a declaração de insolvência da requerida.

            1.2. - Por despacho de 12/4/2011 ( cf.fls.44 ) indeferiu-se liminarmente o requerimento inicial.

            Aduziu-se a seguinte fundamentação:

“ Nos termos do art. 27º, nº 1, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e com fundamento em excepção dilatória insuprível da ilegitimidade das requerentes, vai liminarmente indeferido o pedido de insolvência deduzido contra a aqui requerida na medida em que, dos factos alegados em sede de justificação dos créditos a que se arrogam, resulta que os mesmos são devidos, não pela requerida, mas sim pela sociedade A… Unipessoal, Ldª, sendo que para que a requerida por elas pudesse ser responsabilizada teriam as requerentes que, em primeiro lugar, invocar e demonstrar os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica prevista pelo art. 84º do Código das Sociedades Comerciais (da qual resultaria a imputação das obrigações da sociedade devedora ao sócio único) e, só então, os da comunicabilidade da dívida nos termos do art. 1691º do Código Civil. 

Do que resulta que pelas requerentes não vêm alegados factos que suportem a qualidade a que se arrogam de credoras da requerida.

Custas a cargo das requerentes. “

            1.2. - Inconformadas, as requerentes recorreram de apelação ( fls.48 e segs.), com as seguintes conclusões:

            A Requerida foi citada ( fls.62 e 64 ) para os termos da acção e do recurso, mas não contra-alegou.


II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O despacho recorrido justificou o indeferimento liminar ( art.27 nº1 a) CIRE ) com a ausência do crédito contra a requerida, por os créditos alegados serem da responsabilidade da sociedade A… Unipessoal, Lda ( de que foi sócio gerente o marido da requerida ) e a comunicabilidade das dívidas pressupor a alegação dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade ( art.84 CSC ).
            Objectam as Apelantes dizendo que o L… ao emitir cheques pessoais para pagamento das dívidas da sociedade às requentes assumiu as dívidas (assunção de dívida) e porque o fez no exercício do comércio, são comunicáveis à requerida, que passa, assim, a ser devedora, sendo, por isso, parte legítima.

            A questão colocada no recurso, delimitado pelas conclusões, consiste em saber se L… assumiu as dívidas e se, neste caso, são comunicáveis à requerida.

2.2. - Compete ao requerente da insolvência a alegação e prova dos factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência, por meio de petição escrita ( art. 23. nº 1 do CIRE e art. 342 nº1 do CC ), e quando o requerente é um credor - qualquer credor, tal como no direito espanhol ( art.3º nº1 e 3 da Ley Concursal), diversamente do direito alemão, cuja legitimidade é conferida ao credor com interesse ( § 14, I, da Insolvenzgesetz ), para além da alegação de um ou mais dos factos que servem de base à presunção legal, tem ainda de justificar a origem, natureza e montante do crédito ( art.25 do CIRE ).

Ou seja, como primeiro pressuposto da declaração de insolvência, o credor – quando requerente – terá que alegar e provar o seu crédito, e nesta medida a qualidade de devedora da insolvente ( pressuposto subjectivo ), o que se compreende tendo em conta a finalidade do processo de insolvência ( art.1º do CIRE ), pois, como se justificou no preâmbulo do DL nº 53/2004 de 18/3 ( que aprovou o Código ) – “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores (…).”
           
            Foi alegado na petição inicial ( arts.1º a 4º) que, para pagamento de material que a requerente V… vendeu à sociedade A… Unipessoal, o sócio gerente desta sociedade ( L… ) emitiu e subscreveu os cheques, cujas cópias juntou ( doc. nº1 ): cheque nº …, no valor de € 10.612,20, datado de 16/1/2009; cheque nº …, no valor de € 13.000,00, datado de 26/1/2009; cheque nº …, no valor de € 1.367,90, datado de 9/3/2009, cheque nº …, no valor de € 1.367,90, datado de 16/3/2009.
            E foi também alegado ( art.23 a 26 da petição inicial ) que para pagamento de material vendido pela 2ª requerente C… à sociedade A… Unipessoal, Lda, o sócio gerente emitiu e subscreveu o cheque nº …, sacado sobre o Banco …, no valor de € 7.932,25, datado de 14/8/2009 ( doc. nº3 ).
            Dos documentos juntos resulta que os cheques são de contas pessoais de L…, e não de contas da sociedade.

Alegando-se que L… subscreveu e entregou os cheques para liquidar dívidas da sociedade ( de que era sócio gerente ) para com as requerentes, e tratando-se de uma sociedade unipessoal, de que ele é o único sócio e gerente, é legítimo concluir-se estarmos perante uma assunção cumulativa de dívida ( art.595 nº1 b) do CC ) ( cf. por ex., Ac do STJ de 6/5/2004, de 23/9/2008, de 13/10/2009, disponível em www dgsi.pt ).

Como é sabido, a transmissão singular de dívidas pode ocorrer através de duas modalidades: (a) por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor ( sendo necessária a intervenção dos três sujeitos ) ou (b) por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor.
A assunção de dívida, liberatória do antigo devedor só tem lugar havendo expressa declaração do credor nesse sentido. Não existindo essa declaração, estar-se-á perante uma assunção cumulativa da dívida, também designada por co-assunção da dívida, adjunção à dívida ou adesão à dívida, continuando o antigo devedor a responder solidariamente com o novo obrigado.
Apesar de ser essencial para o credor a pessoa do devedor, a lei estabelece uma medida de protecção, pois, ao não exonerar o antigo devedor, poderá exigir de qualquer deles o cumprimento da obrigação. É que podendo o credor aceitar a prestação de terceiro ( art.767 do CC ), o acordo entre ele o assuntor pode fazer-se independentemente da intervenção do antigo devedor, sendo que o contrato de assunção de dívida está sujeito ao princípio da consensualidade ou da liberdade de forma ( art.219 do CC ) e se distingue da fiança ( cf., por ex., VAZ SERRA, “ Assunção de Dívida”, BMJ 72, pág.189 e segs., ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 4ª ed., pág.346 e segs.).

Assente a assunção cumulativa de dívida entre as requerentes (credoras) e L… ( assuntor ), e sabido que ele opera uma modificação subjectiva, mantém-se a identidade objectiva da obrigação originária ( contratos de compra e venda ).

            2.3. - Coloca-se agora a questão de saber se as dívidas assumidas pelo L… são ou não comunicáveis à requerida, e, por isso, se ela é responsável (devedora).
            Dispõe o art.1691 nº1 d) CC que são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens.

Com a alteração dada pelo DL nº496/77 de 25/11, a lei estabelece agora uma presunção legal de proveito comum ( presunção ilidível ) em favor do credor e como tal não tem de fazer a prova .

Por sua vez, o art.15 do Código Comercial preceitua que “ as dívidas comerciais do cônjuge comerciante, presumem-se contraídas no exercício do seu comércio”, entendendo-se maioritariamente que só as dívidas substancialmente comerciais está abrangidas na presunção.

Da articulação destas normas extrai-se que o credor do comerciante terá apenas que alegar e provar que o cônjuge que contraiu as dívidas é comerciante e faz do comércio profissão, operando depois a dupla presunção.

Provando-se que o cônjuge comerciante assumiu a obrigação no exercício do comércio, ou presumindo-se ( art.15 C. Comercial), terá o cônjuge do devedor, para afastar a comunicabilidade da dívida, o ónus de demonstrar que esta, embora comercial, não derivou do exercício do comércio do devedor, ilidindo a presunção do art.15 C. Comercial, ou que apesar de ter surgido no exercício do comércio não foi contraída em proveito comum do casal (cf. CRISTINA DIAS, Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, pág.433 e 434).


            Pode afirmar-se, perante os dados disponíveis, que o então marido da requerida, L…, era comerciante?
            Dispõe o art.13 do C Comercial que “ São comerciantes (1º) as pessoas que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste profissão; (2º) As sociedades comerciais”.
            A norma estrutura-se entre pessoas singulares e pessoas colectivas (sociedades comerciais).
            Quanto às pessoas singulares são comerciantes as que fazem do comércio a sua profissão, quer a título individual (comerciante em nome individual), quer através do estabelecimento comercial de responsabilidade limitada (EIRL), criado pelo DL nº 248/86 de 25/8.
            No que tange às sociedades comerciais, são as previstas na legislação comercial ( art.2º CSC ), mesmo as sociedades comerciais sem personalidade jurídica ( cf., por ex., COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, vol.I, 2ª ed., pág.131 ).
            As sociedades por quotas unipessoais ( SQU ) foram criadas pelo DL nº 257/96 de 31/12 ( que procedeu à alteração do Código Comercial ), cujo regime específico está regulado nos arts.270-A a 270- do C. Comercial. Também nelas os sócios, enquanto tais, não são comerciantes, porque o exercício do comércio é efectuado em nome da sociedade, sendo esta quem tem de cumprir as obrigações impostas no art.18 do Código Comercial, com a particularidade do art.270-B CSC.
            A SQU, sendo uma forma especial de sociedade por quotas, está naturalmente dotada de personalidade jurídica, logo o titular do património social é a sociedade e não o sócio, e este tipo de personalização surgiu com a perda de importância do exercício individual do comércio, não se tratando de uma “duplicação da personalidade jurídica”, a originariamente singular e a associada à qualidade de sócio único, mas antes como instrumento de dinamização sócio-económica, implicando, além do mais, a diferenciação de interesses, entre o interesse pessoal do sócio e o da sociedade por si composta, pelo que “exercer um sujeito individual e directamente certa actividade não é o mesmo que exercer essa actividade através de uma sociedade” ( cf. RICARDO COSTA, A Sociedade Por Quotas Unipessoal no Direito Português, págs.201, 621 e segs. ).
            Por isso, conforme entendimento jurisprudencial, de acordo com o enunciado no art.13 do Código Comercial, a qualidade de sócio gerente de uma sociedade não lhe confere, por si só, a qualidade de comerciante ( cf., por ex., Ac STJ de 20/3/70, BMJ 195, pág.241, Ac STJ de 13/10/2011, Ac RP de 15/10/98, Ac RP de 23/6/2005, disponíveis em www dgsi.pt ).
            No caso concreto, a comunicabilidade das dívidas, e consequente responsabilização da requerida, pressupunha, desde logo, a alegação da qualidade de comerciante do então seu marido, L…, a cargo das requerentes, que não fizeram.
Refira-se que as requerentes juntaram cópia da certidão da decisão de 12/2/2009, transitada em julgado, que decretou a separação de pessoas e bens por mútuo consentimento, proferida no processo nº 1097/2009 ( cf. fls.22 a 27 ) e, uma vez junta, assume relevância por força do princípio da aquisição processual.
Quanto ao crédito da 2ª requerente porque o cheque nº …, sacado sobre o Banco…, no valor de € 7.932,25, é datado de 14/8/2009, já vigorava o regime da separação de pessoas e bens, logo também por aqui jamais seria comunicável.
E em relação à 1ª requerente, os cheques nº … e nº …, no valor de € 1.367,90, cada, sendo datados de 9/3/2009, são posteriores à separação.
Por conseguinte, não sendo as requerentes credoras da requerida, falta o pressuposto subjectivo da declaração de insolvência, carecendo de legitimidade activa, excepção dilatória que importa o indeferimento liminar, o que tanto basta para a confirmação do decidido, embora por razões diversas.
           
2.4. - Síntese conclusiva:
1. Como primeiro pressuposto da declaração de insolvência, o credor – quando requerente – terá que alegar e provar o seu crédito, e nesta medida a qualidade de devedora da insolvente ( pressuposto subjectivo ).
            2. Configura assunção cumulativa de dívida ( art.595 nº1 b) CC ) o facto de o único sócio e gerente de uma sociedade por quotas unipessoal ( SQU ) passar cheques pessoais para pagamento de dívidas da sociedade.
3. Da conjunção dos arts.1691 nº1 d) CC e 15 C Comercial extrai-se que o credor do comerciante apenas terá que alegar e provar que o cônjuge que contraiu as dívidas é comerciante e faz do comércio profissão, operando depois a dupla presunção.
            4. De acordo com o enunciado do art.13 do Código Comercial, a qualidade de sócio gerente de uma sociedade por quotas, ainda que unipessoal, não lhe confere, por si só, a qualidade de comerciante.

III – DECISÃO
            Pelo exposto, decidem:
1)
            Julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
2)
            Condenar as Apelantes nas custas.

           
Jorge Arcanjo (Relator)
 Isaías Pádua
Teles Pereira