Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
189/14.1PFCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: SANEAMENTO DO PROCESSO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
BURLA
TIPO LEGAL DE CRIME
TIPO SUBJECTIVO
Data do Acordão: 03/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JL CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.122.º, 283.º, 311.º E 445, DO CPP; ART. 32.º DA CRP
Sumário: I – O fundamento de rejeição [da acusação], por manifestamente infundada, só pode ser aferido diante do texto da acusação; é da sua interpretação que se concluirá, designadamente, se falta ou não a narração de factos que integram os elementos típicos objetivos e subjetivos de um determinado ilícito criminal.

II – A falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjetivo do ilícito, mais propriamente, do dolo, não pode ser integrada no julgamento nem por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP, nem sequer através do mecanismo do art. 359.º, do mesmo Código, devendo o Juiz atalhar o vício antes de chegar àquela fase.

III - No tipo subjetivo de ilícito, necessário ao preenchimento do crime de burla exige-se o dolo do tipo, conceitualizado, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade referidos a todos os pressupostos do tipo objetivo, e o dolo da culpa, traduzido na consciência, por parte do arguido, de que com a sua conduta sabe que atua contra direito, com consciência da censurabilidade da conduta.

IV – O crime de burla exige ainda um dolo adicional, traduzido na intenção do agente obter um acréscimo para o seu património ou de terceiro, sem que se torne necessária a verificação do enriquecimento.

V – O comportamento só é pressuposto da sanção quando nele se integra também a consciência do significado jurídico desse mesmo comportamento; não basta a ilicitude objetiva, importa também a culpabilidade e para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objetivamente ilícitos.

VI – A deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjetivo do tipo de burla (e é de deficiente e insuficiente descrição do tipo subjetivo que se trata no caso sub judice e não de omissão integral de descrição do tipo subjetivo), não é susceptível de ser integrada, em julgamento.

VII - Rejeitada a acusação, o juiz não deve determinar, ao abrigo do art.122.º do C.P.P., a devolução dos autos à fase de inquérito, em ordem à posterior correção da acusação pública, pelo Ministério Público.

VIII – Uma decisão nesse sentido não só não respeitaria o disposto no art.311.º, n.º 2, do C.P.P., como constituiria uma ingerência judicial nos poderes atribuídos ao Ministério Público e colocaria em causa as legítimas expectativas do arguido e as garantias de defesa constitucionalmente tuteladas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

IX – A decisão do STJ que resolver conflito de jurisprudência não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

           

     Relatório

Por despacho de 25 de setembro de 2017, o Ex.mo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Criminal de Coimbra - Juiz 1, decidiu, nos termos do art.311.º, n.ºs 1, 2 alínea a) e 3, alínea b), do Código de Processo Penal, rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido A... , por nula e manifestamente infundada.

           Inconformado com o douto despacho dele interpôs recurso o assistente B... , concluindo a sua motivação do modo seguinte:

39. Entende o Recorrente, perante a factualidade indicada no Despacho que ora se recorre e ao Direito aplicável, que não existem fundamentos para a rejeição do douto despacho.

40. Assim, e como já se constatou, o Ministério Público adotou um discurso resumido, mas não deixou de evidenciar a clara intenção do arguido ao atuar de forma a enganar os vários assistentes deste processo, com vista a obter, para si, um enriquecimento patrimonial.

41. Todavia, ainda que se considere a douta acusação ferida de nulidade, há que antever que terá de ser considerada nulidade sanável, à luz do art.119 [a contrario];

42. E neste sentido, O douto despacho que rejeitou a acusação deve ser revogado e substituído por outro que permita a retificação da acusação pelo Ministério Público, dando-se cumprimento ao disposto nos arts.122º/2 do CPP.

43. Sendo este o único procedimento que faz jus aos princípios da oficialidade, da verdade material e da economia processual.

44. Neste sentido, veja-se o Acórdão da Relação de Évora proferido no âmbito do processo n.º 1083/08.OTAABF.E1 “«Mergulhada a jurisprudência em decisões desencontradas sobre o significado e alcance da expressão acusação manifestamente infundada, que [sem mais/constava do n.º 2. al.a) do art.311.º, na versão originária do Código, aspecto que seguramente o legislador da Reforma de 1998 não desconhecia, entendeu ele indicar, expressamente, ao aplicador do direito, com a introdução do actual n.º 3 do preceito, os casos em que a acusação deve considerar-se manifestamente infundada.

Fê-lo, diga-se, de forma coerente. Na verdade, congruentemente com a norma do art.283.º, que fulmina com a nulidade a acusação que, no que agora importa, (i) não contenha a identificação do arguido, (ii) a narração, ainda que sintética, dos factos, (iii) a indicação das disposições legais aplicáveis e (iiii) as provas que a fundamentam, previu, expressa e imperativamente, estes casos como aqueles em que o juiz a rejeitará [a acusação. bem entendido] porque manifestamente infundada.

E acrescentou-lhe, por fim, outro fundamento de rejeição: os de os factos não constituírem crime - al. d) do n.º 3, do art.311.º. E tudo isto bem se compreende. É que uma acusação a que falte algum daqueles elementos ou que os factos nela descritos não constituem crime é de tal modo inepta que o juiz, ao ser-lhe remetido o processo para julgamento, só a pode rejeitar porque, claramente, notoriamente, está votada ao insucesso, sendo, pois, manifestamente infundada.

Se é assim, então temos por certo que a previsão daquela al. d) que impõe a rejeição da acusação, só contempla os casos em que os factos nela descritos, claramente, notoriamente, não constituem crime.

Quer dizer: a acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na predita al. d), quando for notório, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não constituem crime [vale por dizer: que não preenchem qualquer tipo legal de crime].

Já se vê, assim, que tal não pode ser o caso em que o juiz, no despacho de saneamento, fazendo um juízo sobre a relevância criminal desses factos, escorado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, opta por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, outra, ou outras, seriam possíveis.

Procuremos transmitir a mesma ideia numa simples frase: a previsão da al. d) do n. º 3 do art.311.º não pode valer para os casos em que só o entendimento doutrinal ou jurisprudencial adoptado, quando outro diverso se poderia colocar, sustentou a não qualificação dos factos como penalmente relevantes.»[2]

De regresso ao processo, e sem necessidade de grandes considerações ou sequer de tomar posição sobre a existência do crime por que foi deduzida acusação, cumpre referir que tendo o despacho recorrido, com o propósito de fundamentar a decisão nele tomada, encontrado apoio numa tendência jurisprudencial e doutrinária que não é, actualmente, uniforme e pacífica - porque existe entendimento jurisprudencial em sentido oposto - não podia, com tal fundamento ter rejeitado a acusação.

Não pode, por isso, tal despacho prevalecer.”

45. Não sendo de olvidar que, a negação da possibilidade de convite à correção, ao aperfeiçoamento ou à simples apresentação de um requerimento, por forma a cumprir com os requisitos meramente formais da acusação, implica a violação do direito de intervenção do assistente e do Ministério Público no processo penal, nos termos do nº 7 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos e nos melhores de direito, e sempre com o mui suprimento de V. Exas. Venerandos Desembargadores, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene a retificação da acusação.

            Também o assistente D... , inconformado com a douta decisão, dela interpôs recurso, sendo do seguinte teor as conclusões que extraiu da motivação que apresentou:

1. Vem o presente recurso interposto do Douto Despacho, que se decide por rejeição da acusação pública, por oito crimes de burla simples, previstos e punidos pelo art.217.° do CP imputado ao arguido A... , por considerar ser nula e manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.°, n.º 3, al. b) e 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. b) do CPP, por considerar insuficiente a descrição fáctica do elemento subjetivo do crime, máxime ter agido de forma livre, voluntária e consciente e a consciência da ilicitude criminal dos factos;

2. Com todo o respeito pelo Douto Tribunal, não se concorda com tal decisão, por se entender que a acusação pública não padece de uma nulidade, pois contém a narração, ainda que sintética, de todos os elementos previstos nos artigos 311.°, n.º 3, alínea b) e 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal;

3. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 217.° do Código Penal, são elementos constitutivos do crime de burla:

a) A “astúcia” empregue pelo agente;

b) O “erro ou engano” da vítima astuciosamente provocado;

c) A “prática de actos” pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida;

d) O “prejuízo patrimonial” - da vítima ou de terceiro - resultante da prática dos referidos actos;

e) Nexo causal: é necessário que entre os elementos acima descritos existam sucessivas relações de causa e efeito, nomeadamente que: da astúcia resulte o erro ou engano; do erro ou engano resulte a prática de actos pela vítima; da prática desses actos resulte o prejuízo patrimonial;

f) Intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo: é necessário que se verifique a existência de dolo;

4. Na formulação da acusação apresentada pela douta Procuradora do Ministério Público foi efetuada a narração, ainda que sintética, dos factos, o que nos permitimos transcrever para melhor compreensão:

«O arguido é vigilante de segurança privada (...)»,

«O arguido desempenhava, ao serviço da “ X (...) ”, funções de vigilante e de supervisor para a zona Centro.

Concomitantemente, o arguido, e em nome individual, desempenhou, também, funções relacionadas com ações de formação de vigilantes e angariação de clientes de tais formações, em parceria com outras empresas, dedicadas à formação.

Para o efeito, o arguido, para além de trabalhar como vigilante em diversos locais, tomou de arrendamento uma loja em Z(... ), no Centro Comercial (...) , na Av. (...) , onde desenvolvia o seu trabalho para a referida sociedade “ X (...) ” e anunciava ações de formação de vigilante em parcerias, com a “ X (...) ” e outras empresas similares como a “ Y (...) ”.

Aproveitando-se dos conhecimentos decorrentes da sua profissão e dos contactos que pela mesma via foi desenvolvendo, a determinada altura decidiu o arguido aliciar terceiros para ações de formação e reciclagem com vista à obtenção e renovação dos cartões profissionais de vigilante, sem que, todavia, tivesse efetivamente intenção de conseguir tais cartões para os potenciais clientes, com o único fito de ficar para si com as quantias que pelos mesmos viessem a ser entregues como contrapartida da formação e do cartão.

Em execução de tal plano, o arguido, em março de 2014, acordou com D... , titular de cartão de vigilante com validade até 12 de outubro do mesmo ano, a frequência, pelo segundo, de uma ação de formação para renovação do seu cartão profissional, pelo valor de € 185,00.

O D... entregou € 185,00 ao arguido e frequentou, por indicação deste, entre 10 e 21 de fevereiro de 2014, ações de formação em Z(... ), tendo entregue ao arguido, toda a documentação necessária para a renovação do cartão de vigilante». (....)

«Todavia, o arguido não entregou qualquer quantia às entidades formadoras, não fez incluir o nome do D... , nas listas de formandos de tais entidades, nem diligenciou pela renovação do seu cartão profissional.

O arguido ficou para si com os € 185,00 entregues pelo D... , dissipando-os em seu proveito.

O D... , só em outubro de 2014, quando viu caducado o seu cartão, soube que foi enganado pelo arguido.( ... )»

«O arguido atuou, sempre, com intenção de enganar os ofendidos, fazendo-­os crer que junto dele se inscreviam em cursos de segurança privada, apenas pera deles receber os respetivos - alegados - pagamentos, com que se locupletou.

O arguido aproveitou a sua situação laboral e contactos com empresas de formação de segurança privada para levar os ofendidos a entregar-lhe quantias de dinheiro (…), apenas para ficar para si com as quantias entregues».

5. Com o devido respeito, tal não se entende, nem se pode aceitar, que a douta acusação pública, deverá, pela falta da narração dos factos ser rejeitada por ser nula e, também, por manifestamente infundada, pois analisando a acusação proferida pela douta Magistrada do Ministério Público, a situação fáctica não poderia ser mais elaborada, pormenorizada e mais precisa, pelo que não se concebe como se poderá retirar o incumprimento do disposto no artigo 311.°, n.º 3 alínea b) do Código de Processo Penal.

6. A narração dos factos a que alude o artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal poderá não passar por uma descrição exaustiva da factualidade mas, como bem refere o normativo legal supra mencionado, apenas por uma narração sintética dos factos.

7. Atenta a descrição fáctica da conduta do arguido não se poderá admitir ou, sequer, em caso algum, considerar, que os factos aqui em análise não consubstanciam a prática do crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217.º do Código Penal.

8. De acordo com a Jurisprudência Portuguesa dominante, apenas deverá consubstanciar um despacho de rejeição o caso em que os factos invocados não constituam crime.

9. Neste sentido, veja-se o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido pelo Ilustre Relator Mouraz Lopes, em 12/07/2011, no âmbito do processo n.º 66/11.8GAACB.C1 nos termos do qual: «Só quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la (...)»,

10. Estando a conduta que consubstancia o crime de burla perfeitamente identificada na acusação do Ministério Público e, por isso, preenchida a totalidade dos pressupostos referentes ao elemento subjectivo do tipo de crime, traduzidos na actuação de forma voluntária e consciente, tendo o arguido querido a realização do facto típico.

11. Os elementos constitutivos (objectivos e subjectivos) do crime de burla foram devidamente narrados pela acusação do Ministério Público, tendo embora, de forma resumida, evidenciado a intenção clara do arguido de enganar, com astúcia, os assistentes, com o intuito de obter, para si, um enriquecimento patrimonial ilegítimo.

12. Veja-se que na acusação é afirmado perentoriamente que: «O arguido atuou, sempre, com intenção de enganar os ofendidos, fazendo-os crer que junto dele se inscreviam em cursos de segurança privada, apenas para deles receber os respetivos - alegados - pagamentos, com que se locupletou.

O arguido aproveitou a sua situação laboral e contactos com empresas de formação de segurança privada para levar os ofendidos a entregar-lhe quantias de dinheiro (...), apenas para ficar para si com as quantias entregues».

13. Torna-se, assim, claro que se encontra presente e perfeitamente identificada a qualificação de uma conduta dolosa, pois prevista e querida pelo Arguido, capaz de consubstanciar um i1icito penalmente relevante, preenchendo, nesses termos, a definição de elemento subjectivo do tipo de ilícito.

14. O Arguido sabia que, ao agir como estava a agir, a sua conduta seria penalmente relevante, sabia que estava a enganar com astúcia os assistentes, com a intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo, e sabia, ainda, que estaria a causar prejuízos no património dos mesmos.

15. A verdade é que agiu consciente e com a vontade de realização da conduta que levou a cabo, visando atingir o dano, existindo tal dolo no momento da sua conduta, situação que se pode retirar inequivocamente da matéria factual descrita na acusação pública.

16. Assim, e salvo o devido respeito por opinião contrária, entende o recorrente que não se consegue, assim, conceber os motivos pelos quais o douto Tribunal a quo afirma que, na acusação do Ministério Público, não se encontra preenchida a totalidade dos factos referentes ao elemento subjectivo, quando, na acusação, se encontra inequivocamente descrito que «O arguido atuou, sempre, com intenção de enganar os ofendidos, fazendo-­os crer que junto dele se inscreviam em cursos de segurança privada, apenas para deles receber os respetivos - alegados - pagamentos, com que se locupletou.

O arguido aproveitou a sua situação laboral e contactos com empresas de formação de segurança privada para levar os ofendidos a entregar-lhe quantias de dinheiro (...), apenas para ficar para si com as quantias entregues».

17. Com a descrição fáctica supra exposta, não se consegue descortinar em que parte do despacho de acusação é que existe uma omissão dos factos referentes à totalidade do elemento subjectivo do tipo de crime e que se traduzem na atuação de forma voluntária e consciente, querendo a realização do facto típico.

18. Aliás, o arguido além de ter perfeito conhecimento de que a sua conduta era penalmente relevante, de que astuciosamente estava a enganar os assistentes induzindo os mesmos à pratica de actos que lhe causaram prejuízos (dano), teve a motivação, o propósito e a intenção de actuar como actuou para obter para si um enriquecimento i1egitimo, preenchendo, por isso, os elementos do tipo subjectivo, no caso, a verificação do dolo.

19. Veja-se ainda, quanto à rejeição da acusação, o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido pela Ilustre Relatora Ana Teixeira e Silva, em 2015.03.23, no âmbito do processo n.º 258/12.2PCBRG.G1, mormente quando nele se afirma que «E, como já se decidiu no acórdão de 30.05.2007, deste Tribunal da Relação, proferido no recurso n. o 956312006-3 (in www.dgsi.pt): "Não deverá ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pelo MP contra a Arguida... ainda que contendo uma enunciação fáctica deficiente, se aquela comporta factos bastantes minimamente susceptíveis de justificarem a aplicação de uma pena.”»

20. E ainda, o douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido pela Ilustre Relatora Ana Barata Rito, em 27 de junho de 2017, no âmbito do processo n." 171/14.9GDEVR, no qual se afirma que «Na acusação, o Ministério Público é livre de escolher os enunciados linguísticos de que faz utilização, desde que descreva plenamente o objeto do processo e que esgote factualmente a descrição dos tipos objetivo e subjetivo do crime imputado. Em conformidade, não existe uma fórmula única para a descrição factual do dolo, porque as exigências de concretização factual do dolo dependerão sempre do concreto crime em apreciação. " O dolo é conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo". Para além disso, "o dolo é ainda expressão de uma atitude pessoal de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal” (Figueiredo Dias, Direito Penal, parte Geral, Tomo I, 1a ed. P. 262/3). O dolo desdobra-se nas componentes cognoscitiva ou intelectual e volitiva ou intencional, que correspondem respectivamente ao conhecer ou saber e ao querer o desvalor do facto. O elemento cognoscitivo ou intelectual pode bastar-se com a mera representação (dos elementos do tipo objectivo). O dolo traduz­-se num saber (ou, pelo menos, num representar) e num querer. E inclui ainda uma componente emocional, esta relativa ao dolo da culpa, como sustenta a doutrina nacional mais relevante (Figueiredo Dias e Fernanda Palma). É sempre factualmente que tem de resultar que o agente representou e quis os factos do tipo objectivo. A base factual tem, por isso, de incluir os factos do dolo do tipo. Estes factos têm de ser narrados na acusação ( ... )»,

21. Face a todo o supra exposto, deverá considerar-se que se encontram preenchidos os requisitos constantes do artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal, bem como os restantes, devendo, por isso, ser afastada a questão da nulidade da acusação.

22. Deverá, igualmente, rejeitar-se a tese do douto Tribunal a quo de que a acusação é manifestamente infundada, porquanto se encontra preenchida a alínea b) do n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal, em virtude de, na acusação elaborada pelo Ministério Público, estar cabalmente presente a descrição dos factos e da culpa do agente.

23. Tendo por isso sido violados pelo douto despacho recorrido, por manifesto lapso de interpretação da douta acusação pública, a que conduziu o Tribunal a quo à errada aplicação e interpretação dos artigos 283.°, n.º 3, alínea b) e 311.°, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do Código de Processo Penal.

Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o superior suprimento de V. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser o douto despacho recorrido revogado e substituído por outro que receba a acusação pública. Assim se fazendo a costumada justiça.

O Ministério Público na Procuradoria da República de Coimbra respondeu aos recursos interpostos pelos assistentes, pugnando pelo seu não provimento e manutenção integral do despacho recorrido.

            A Ex.ma Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que os recursos devem ser julgados improcedentes.

Dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            O despacho recorrido tem o seguinte teor:

      «O MP deduz acusação em processo comum e com intervenção de tribunal singular contra A... , imputando-lhe a autoria material de 8 crimes de burla simples, p. e p. pelo art.217.º, 1, do Cód. Penal, fundada em factos objectivos (ocorrências) que descreve, verificados desde Janeiro a Outubro de 2014, e aditando aos mesmos que “Aproveitando-se dos conhecimentos decorrentes da sua profissão e dos contactos que pela mesma via foi desenvolvendo, a determinada altura decidiu o arguido aliciar terceiros para ações de formação e reciclagem com vista à obtenção e renovação dos cartões profissionais de vigilante, sem que, todavia, tivesse efetivamente intenção de conseguir tais cartões para os potenciais clientes e à revelia da sua entidade patronal e das empresas com a qual anunciava parcerias para formação de vigilantes, com o único fito de ficar para si com as quantias que pelos mesmos viessem a ser entregues como contrapartida da formação e do cartão”.

      (...)

      “O arguido atuou, sempre, com intenção de enganar os ofendidos, fazendo-os crer que junto dele se inscreviam em cursos de segurança privada, apenas para deles receber os respetivos - alegados - pagamentos, com que se locupletou.

      O arguido aproveitou a sua situação laboral e contactos com empresas de formação de segurança privada para levar os ofendidos a entregar-lhe quantias em dinheiro, fazendo-os crer que os inscrevia em ações de formação para obtenção ou renovação de cartão profissional de vigilante, sem que tal correspondesse à verdade e apenas para ficar para si com as quantias entregues.

      Os ofendidos apenas entregaram quantias ao arguido porque este lhe apareceu como funcionário ou supervisor da “ X (... )”, empresa dedicada à segurança privada, numa loja identificada com o nome da X (...) e de outras entidades formadoras na área e porque acreditaram que se estavam a inscrever em ações de formação para obtenção/renovação do cartão de vigilante e junto das entidades para o efeito competentes.”

      Cumpre decidir.

      Vejamos o tipo legal de crime de burla simples:

      “Art.217.º do Cód. Penal

      1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

      2….

      3.. ...

      4….

São pois elementos constitutivos deste tipo legal de crime:

      - O uso de erro ou engano sobre factos, astuciosamente provocado;

      - Para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial;

      - A intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo (definido segundo o conceito de um enriquecimento sem causa, art 473.º do Cód. Civil [1]);

      - O dolo em qualquer das suas modalidades.

      “O bem jurídico protegido consiste no património, globalmente considerado.

      A burla constitui um crime de dano, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro.

      A burla representa um crime de resultado parcial ou cortado, caracterizando-se por urna 'descontinuidade' ou 'falta de congruência' entre os correspondentes tipos subjectivo e objectivo. Embora se exija, no âmbito do primeiro, que o agente actue com a intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, a consumação do crime não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento (= dano) da vítima.

      Como decorre do texto anterior, a consumação do crime não deriva, apenas, do resultado consistente na saída dos bens ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo titular, exigindo-se, ademais, a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro.

      A opinião dominante na actualidade advoga um conceito objectivo-individual de dano patrimonial. De acordo com a tese em apreço, o prejuízo deverá determinar-se através da aplicação de critérios objectivos de natureza económica à concreta situação patrimonial da vítima, concluindo-se pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta.

      O erro do sujeito passivo tem de ser provocado astuciosamente.

      Com efeito, no plano dos factos, a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista. Por outro lado, a experiência de todos os dias revela que, longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de 'economia de esforço', limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima.

      Numa tal equação de meios - adequação essa que, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o 'ponto óptimo' no menos sofisticado dos procedimentos - radica, em suma, a inteligência ou astúcia que preside ao estereotipo social da burla e, sob pena de um divórcio perante as realidades da vida, tem de subjazer à fattispecie do n.º 1 do art.217.°. Refira-se, por último, que só esta perspectiva se harmoniza com o entendimento, hoje pacífico, de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características do concreto burlado.

      A posição adoptada ganha, contudo, em clareza, quando perspectivada do ângulo da aludida qualificação da burla como um 'crime com participação da vítima'. Na verdade, uma vez que é o próprio sujeito passivo que pratica os actos de diminuição patrimonial, a burla integra, em último termo, uma hipótese de 'autolesão', estruturalmente análoga às situações de autoria mediata em que o domínio-do-facto do 'homem-de-trás' deriva do estado de erro do executor (= autor mediato) acerca do circunstancialismo em que actua.

      Numa interpretação conjugada dos arts. 217.º,1, e 13.º do CP, a burla integra um crime doloso, não tendo lugar o seu sancionamento na forma negligente. Enquanto pressuposto do delito, tal dolo pode assumir as modalidades de dolo directo, necessário ou eventual (art.14.º do CP).[2]

      Será a factualidade imputada na acusação susceptível de preencher os elementos constitutivos do tipo legal de crime de burla simples, p. e p. pelo art.217.º, 1, do Cód. Penal? Entendemos que não, porque foram omitidos elementos constitutivos subjectivos do tipo, maxime ter agido de forma livre, voluntária e consciente e a consciência da ilicitude criminal dos factos.

      O tipo legal de crime é conformado pelos elementos constitutivos objectivos e subjectivos. Integram os primeiros os factos concretos naturalísticos imputados aos arguidos e preenchem os segundos o conhecimento e vontade de realização do tipo de crime. Quanto a estes últimos, citando o Professor Doutor FIGUEIREDO DIAS,[3] “O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, e a negligência enquanto violação de um dever de cuidado, são elementos constitutivos do tipo-de-ilícito. Mas o dolo é também e ainda expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente, e a negligência expressão de uma atitude pessoal descuidada ou leviana, perante o dever-ser jurídico-penal; e nesta parte são elementos constitutivos, respectivamente do tipo-de-culpa doloso e do tipo-de-culpa negligente. É a dupla valoração da ilicitude e da culpa que concorre na completa modelação do dolo e da negligência.”

      Assim, só a verificação dos elementos constitutivos objectivos e subjectivos é passível de integrar o preenchimento do tipo legal incriminador. Pelo que é imperioso, porque imprescindível, que constem da acusação, sem os quais não é a mesma fundada, porque insusceptível de suportar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (art.283.º, 3 b), do CPP), não sendo os elementos normativos subjectivos passíveis de serem considerados objectivamente resultantes dos elementos normativos objectivos.

      Neste sentido, fixou a seguinte jurisprudência o Acórdão do STJ n.º 1/2015 [publicado no DR Série I, de 27.01.2015]:

      «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal

Consequentemente, é de rejeitar a acusação, porque nula e manifestamente infundada (art. 311.º, 2 a) e 3 b), do CPP).

Em idêntico sentido se pronunciaram, entre outros, os Acs. da Relação de Lisboa, de 30.01.2007, Proc. n.º 10221/2006 - 5, e de 12.11.2008, Proc. n.º 5736/2008 - 3; da Relação do Porto, de 15.11.98, Proc. n.º 9840867; da Relação de Coimbra, de 01.06.2011, Proc. n.º 150/l0.5T3OVR.Cl; da Relação de Guimarães, de 07.04.2003, Proc.º n.º 84/03; e da Relação de Évora, de 01.03.2005, Proc.º n.º 2/05 - 1.

      Face ao exposto, nos termos do art.311.º, 1, 2 a) e 3 b), do Cód. Proc. Penal, rejeita-­se a acusação, porque nula e manifestamente infundada.».


 *

                                                                           *

            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [4] e de 24-3-1999 [5] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [6], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Como bem esclarecem os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente B... as questões a decidir são as seguintes:

 - se a acusação formulada pelo M.P. apresenta todos os elementos subjetivos dos crimes de burla imputados ao arguido A... , pelo que a acusação não é nula; e

- caso assim não se entenda, se a falta de narração daqueles elementos é sanável e, como tal, deveria o Tribunal a quo ter proferido convite à correção, ao aperfeiçoamento ou à simples apresentação de um requerimento pelo M.P., dando-se cumprimento ao disposto no art.122.º, n.º 2, do C.P.P..

Face às conclusões da motivação do recorrente D... a questão a decidir é a seguinte:

- se a acusação do M.P. narra todos os elementos constitutivos da prática do crime de burla, designadamente os factos referentes à totalidade do seu elemento subjetivo, pelo que a mesma não é nula.  


-

            Recurso do assistente B...

           

1.ª Questão: da narração, na acusação, dos factos constitutivos dos crimes de burla simples.

O recorrente B... defende que a acusação formulada pelo Ministério Público narra, além dos elementos objetivos, ainda, todos os elementos subjetivos, dos crimes de burla imputados ao arguido A... , pelo que a acusação deduzida pelo Ministério Público não é nula.

Alega para o efeito, no essencial, o seguinte:

- A imputação do crime de burla depende da verificação do tipo objetivo e do tipo subjetivo. No tipo objetivo, é necessário, por um lado, que o agente determine outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a terceiro, prejuízo patrimonial e, ainda, que esta determinação seja causada por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou. Por sua vez, o tipo subjetivo traduz-se numa consideração do agente, que pode ser um dolo genérico ou um dolo específico. O dolo genérico traduz-se no conhecimento e vontade do agente, em atuar de forma fraudulenta, com conhecimento da sua censurabilidade; enquanto que o dolo específico constitui a intenção de o agente obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, o animus lucri faciendi.     

No caso, o elemento subjetivo, embora de forma resumida, está presente na acusação quando se carateriza a conduta do arguido A... e se evidencia a sua clara intenção de enganar os ofendidos e enriquecer à sua custa.  

Vejamos se o assistente tem razão na sua pretensão.

O art.311.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, estabelece que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente pode despachar no sentido, designadamente, « a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada».

O n.º3, deste artigo, clarifica que «Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

      a) Quando não contenha a identificação do arguido;

      b) Quando não contenha a narração dos factos;

      c) Se não identificar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

      d) Se os factos não constituírem crime

A Lei n.º 59/98, de 25 de agosto ao aditar o n.º3 ao art.311.º do C.P.P., prevendo de modo claro e taxativo, as situações que podem levar à conclusão de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição, limitou os poderes do juiz sobre a acusação, antes do julgamento. Excluída ficou assim a rejeição da acusação fundada em manifesta insuficiência de prova indiciária, tornando claro que o juiz de julgamento não pode fazer a apreciação crítica dos indícios probatórios colhidos no inquérito, determinando a caducidade da jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 4/93, de 17 de Fevereiro (DR, I-A, de 26 de Março de 1993).

A expressão “manifestamente infundada”, por referência á acusação, tem o sentido de ser evidente, notório, que a pretensão de submissão do arguido a uma pena ou a medida de segurança não pode proceder. 

O fundamento de rejeição, por manifestamente infundada, só pode ser aferido diante do texto da acusação; é da sua interpretação que se concluirá, designadamente, se falta ou não a narração de factos que integram os elementos típicos objetivos e subjetivos de um determinado ilícito criminal.

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão n.º 1/2015, «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.358.º do CPP».[7]

Esta jurisprudência fixada é particularmente relevante quanto a vários aspetos.

Assim, entre outros aspetos ali conhecidos, realçamos, quanto ao conteúdo da acusação:

10.2.4. (…) a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito.”.

Quanto à extrapolação do dolo a partir dos factos, consigna que uma realidade é a comprovação do dolo através de presunções naturais e outra, diversa é conceptualizar o dolo como emanação da própria factualidade objetiva, presumindo-o, para concluir que “De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com «recurso á lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum».”.

Por fim, considera a mesma jurisprudência, que a falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjetivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido) não pode ser integrada no julgamento nem por recurso ao mecanismo previsto no art.358.º do Código de Processo Penal, nem sequer através do mecanismo do art.359.º, do mesmo Código, devendo o Juiz atalhar o vício antes de chegar àquela fase.

É o que resulta das seguintes passagens do mesmo acórdão:

11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art.283.º, n.º 3, alínea b) do CPP).

Por conseguinte, tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respetivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art.311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos.

Claro que uma tal visão implica que os factos em falta na descrição constante da acusação (pressupondo que ela contém uma descrição relativa a outros factos) são essenciais, imprescindíveis, e que a sua falta corresponde à falta de narração a que se refere o normativo referido. Ou seja: a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos a propósito, nomeadamente, das teorias do objeto do processo, e a valoração específica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.

Por conseguinte, vistas as coisas por este prisma, a acusação seria de rejeitar logo nessa fase do processo.

Mas há uma outra consideração que deveria levar à rejeição. É o facto de os elementos em falta não poderem ser integrados no julgamento por simples recurso ao art.358.º do CPP – alteração não substancial dos factos. E é o que vamos ver de seguida.

11.2. Tendo a acusação passado no crivo do art.311.º, n.º 2, alínea a) e 3, alínea b), o tribunal não pode socorrer-se do disposto no art.358.º do CPP para colmatar a deficiência encontrada. É que tal integração não consubstancia uma alteração não substancial dos factos.

Com efeito, a latitude do princípio do acusatório, na sua conjugação com o princípio da investigação da verdade material, ou, por outras palavras, a flexibilidade do objeto do processo, encontra como limite a alteração substancial dos factos.

Alteração substancial dos factos, na definição legal, é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» (art.1.º, alínea f) do CPP).

No caso, o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito, compreendendo aqui também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental, de tal forma que alguma da jurisprudência inventariada (supra, ponto 9.2.2.) considera que tal alteração equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica e que essa operação configura uma alteração substancial dos factos. O mecanismo adequado a uma tal alteração não seria, pois, o do art.358.º, mas o do art.359.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, implicando o acordo entre o Ministério Público, o assistente e o arguido para o prosseguimento da audiência por esses factos, como única forma de evitar a anulação do princípio do acusatório, ou, na falta desse acordo, a comunicação ao Ministério Público para procedimento criminal pelos novos factos, se eles fossem autonomizáveis. Na circunstância, sendo o crime de natureza particular, não se imporia a comunicação ao M.º P.º e, por outro lado, não sendo os factos autonomizáveis, o procedimento criminal ficaria dependente do acordo referido e, principalmente, da boa vontade do arguido, o que seria grave se o crime fosse, por exemplo, um crime de homicídio.

Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art.358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art.359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exatos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais.

Por isso, ponderados estes factos, acabamos por concordar com o parecer contido nas alegações da Sra. Procuradora-Geral Adjunta: «A falta de indicação de factos integradores, seja do tipo objetivo de ilícito, seja do tipo subjetivo de ilícito, implicando assim o não preenchimento, a perfeição, do tipo de ilícito incriminador, deve, forçosamente, conduzir à absolvição do arguido, se verificada em audiência de julgamento.”.

Nos termos do art.445.º, n.º3 do Código de Processo Penal, a decisão do STJ que resolver conflito de jurisprudência não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada. E, de acordo com o art.446.º, do mesmo Código, das decisões proferidas contra jurisprudência fixada há sempre recurso, sendo esta obrigatória para o Ministério Público.      

No caso, o Tribunal da Relação não encontra argumentos que não tenham sido já ponderados no acórdão do STJ n.º 1/2015, para afastar a solução seguida no douto acórdão de fixação de jurisprudência - considerada como radical no voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Santos Cabral -, pelo que a seguimos.

No caso em apreciação estão em causa crimes de burla simples, p. e p. pelo art.217.º do Código Penal.

Integrado no capítulo dos crimes contra o património em geral (Capitulo III do Titulo II, do Livro II), os elementos constitutivos do crime de burla, p e p. pelo art.217.º, n.º1 do Código Penal, são os seguintes:

- o agente determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial;

- a determinação seja causada por erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;

- o conhecimento e vontade de realizar os factos antijurídicos, com consciência da censurabilidade da conduta (dolo genérico); e

- a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo (dolo especifico).

No plano do tipo objetivo de ilícito, a burla, como delito de execução vinculada, pressupõe a utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar atos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. A sua consumação passa por duplo nexo de imputação objetivo: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património, próprio ou alheio e, depois, entre estes e a verificação do prejuízo.

A principal característica da burla reside no uso da mentira como meio de defraudar o património alheio, sendo este o bem jurídico protegido no tipo penal. E se é certo que, para estarmos perante um crime de burla, não bastará uma qualquer mentira do agente, já será suficiente que essa mentira, essa astúcia, seja suficiente para iludir o cuidado que, no sector da atividade em causa, normalmente se espera de cada um. Isto é, a posição restritiva da mise-en scéne, como condição necessária ao engano astucioso, não é atualmente defensável. Não é necessário que o engano consista em cenas teatrais ou factos materiais; bastam as palavras enganosas capazes de produzir ilusão no espírito da vítima de modo a dirigir-lhe a vontade na direção do seu prejuízo e do enriquecimento do agente da burla. A experiência do dia a dia revela que a conduta do agente, longe de envolver, de forma inevitável, a adoção de processos rebuscados ou engenhosos, se limita, muitas vezes, numa “economia de esforços”, ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima[8].

O tipo subjetivo de ilícito, necessário ao preenchimento do crime de burla exige-se, o dolo do tipo, conceitualizado, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade referidos a todos os pressupostos do tipo objetivo, e o dolo da culpa, traduzido na consciência, por parte do arguido, de que com a sua conduta sabe que atua contra direito, com consciência da censurabilidade da conduta.

O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo é elemento constitutivo do tipo-de-ilícito. Mas é ainda expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever-ser jurídico-penal e, nesta parte, é ainda elemento constitutivo do tipo-de-culpa dolosa. O dolo é, assim, uma entidade complexa, cujos elementos constitutivos se distribuem pelas categorias da ilicitude e da culpa.

Neste entendimento, que seguimos, o Prof. Figueiredo Dias adiciona aos elementos intelectual (conhecimento de realização do tipo objetivo de ilícito) e volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito), o elemento emocional.

De acordo com a lição deste Professor «o dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito (…) , mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo contidos no “conhecimento e vontade de realização”; uma tal posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas. O que significa que a estrutura do dolo do tipo por que perguntamos aqui só se alcança quando se tenha a consciência clara de que, com ela, não fica por si mesma justificada a aplicação da moldura penal prevista na lei para o crime doloso respetivo; antes se torna indispensável um elemento que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa. Com esse elemento se depara quando se atente em que a punição por facto doloso só se justifica quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal.».[9]

Tudo isso, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).

O crime de burla exige ainda um dolo adicional, traduzido na intenção do agente obter um acréscimo para o seu património ou de terceiro, sem que se torne necessária a verificação do enriquecimento.

O tipo subjetivo de ilícito, no crime de burla, consiste, assim, no conhecimento e vontade do agente determinar outrem, por erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, em contrariedade ou com indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, ou seja, com consciência que a sua conduta é ilícita, proibida por lei.

Retomando o caso concreto.

Da acusação do Ministério Público, no que respeita ao assistente B... , constam narrados os seguintes factos: 

«O arguido é vigilante de segurança privada (...)

«O arguido desempenhava, ao serviço da “ X (...) ”, funções de vigilante e de supervisor para a zona Centro.

Concomitantemente, o arguido, e em nome individual, desempenhou, também, funções relacionadas com ações de formação de vigilantes e angariação de clientes de tais formações, em parceria com outras empresas, dedicadas à formação.

Para o efeito, o arguido, para além de trabalhar como vigilante em diversos locais, tomou de arrendamento uma loja em Z(... ), no Centro Comercial (...) , na Av. (...) , onde desenvolvia o seu trabalho para a referida sociedade “ X (...) ” e anunciava ações de formação de vigilante em parcerias, com a “ X (...) ” e outras empresas similares como a “ Y (...) ”.

Aproveitando-se dos conhecimentos decorrentes da sua profissão e dos contactos que pela mesma via foi desenvolvendo, a determinada altura decidiu o arguido aliciar terceiros para ações de formação e reciclagem com vista à obtenção e renovação dos cartões profissionais de vigilante, sem que, todavia, tivesse efetivamente intenção de conseguir tais cartões para os potenciais clientes, com o único fito de ficar para si com as quantias que pelos mesmos viessem a ser entregues como contrapartida da formação e do cartão.

(…).

Em janeiro de 2014, o arguido abordou C... e B... , informando-os que iria haver um curso de formação de segurança privada ministrado pela sua entidade patronal, " X (...) " nas suas instalações no Centro Comercial (...) , garantindo-lhes também trabalho, caso frequentassem tal curso.

O C... e o B... estavam desempregados, pelo que ficaram interessados na frequência da formação, que, segundo o arguido, lhes garantiria trabalho. Acordaram, assim, com o arguido a sua inscrição na formação, tendo-lhe sido exigido o respetivo pagamento.

O C... entregou ao arguido € 500 e o B... € 225.

Contrariamente ao que havia prometido ao C... e ao B... , o arguido não apresentou qualquer candidatura em nome dos mesmos, não indicou os seus nomes à " X (...) " nem os incluiu em nenhuma ação de formação ministrada por tal entidade, a quem não entregou as quantias recebidas.

Antes fez seus os € 500 e os € 225, dissipando-os em seu proveito.

O C... e o B... falaram diversas vezes com o arguido no sentido da resolução da situação, sem sucesso. A partir de maio de 2015 o arguido deixou de lhes responder.

O arguido atuou, sempre, com intenção de enganar os ofendidos, fazendo-­os crer que junto dele se inscreviam em cursos de segurança privada, apenas pera deles receber os respetivos - alegados - pagamentos, com que se locupletou.

O arguido aproveitou a sua situação laboral e contactos com empresas de formação de segurança privada para levar os ofendidos a entregar-lhe quantias em dinheiro, fazendo-os crer que os inscrevia em ações de formação para obtenção ou renovação de cartão profissional de vigilante, sem que tal correspondesse à verdade e apenas para ficar para si com as quantias entregues.

Os ofendidos apenas entregaram quantias ao arguido porque este lhe apareceu como .funcionário ou supervisor da " X (...) ", empresa dedicada à segurança privada, numa loja identificada com o nome da X (...) e de outras entidades formadoras na área e porque acreditaram que se estavam a inscrever em ações de formação para obtenção/renovação do cartão de vigilante e junto das entidades para o efeito competentes.”.

Como já atrás se consignou o comportamento só é pressuposto da sanção quando nele se integra também a consciência do significado jurídico desse mesmo comportamento; não basta a ilicitude objetiva, importa também a culpabilidade e para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objetivamente ilícitos.

Ora, os factos naturalísticos narrados na acusação do Ministério Público embora descrevam os elementos do tipo objetivo de ilícito e mesmo o dolo especifico da burla, traduzido na intenção do arguido obter para si um enriquecimento ilegítimo, não referem que o arguido A... atuou de forma livre, isto é, podendo ter agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico, conscientemente, isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto, e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei, isto é, com consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude.

Estes são elementos essenciais do tipo subjetivo de ilicitude, que a jurisprudência, especialmente após a prolação do acórdão do STJ n.º 1/2015, considera que não podem deixar de constar da acusação.

Como se consignou no acórdão do STJ n.º 1/2015 e, designadamente, no acórdão deste Tribunal da Relação de 13 de setembro de 2017 (proc. n.º 146/16.3 PCCBR.C1, em que o presente relator foi adjunto), o elemento subjetivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objetivos que são imputados ao arguido na acusação do assistente.

A deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjetivo do tipo de burla (e é de deficiente e insuficiente descrição do tipo subjetivo que se trata no caso sub judice e não de omissão integral de descrição do tipo subjetivo), não é susceptível de ser integrada, em julgamento.

Deste modo, não procede a pretensão do recorrente B... de que a acusação formulada pelo Ministério Público narra, além dos elementos objetivos, ainda, todos os elementos subjetivos, dos crimes de burla imputados ao arguido A... e, assim, que a acusação não seria nula.

Não merecendo censura a douta decisão recorrida, enquanto rejeita a acusação deduzida pelo Ministério Público, por manifestamente infundada, nos termos do art.311.º, n.º1, alínea a) e 3, alínea b), do Código de Processo Penal, improcede esta primeira questão. 


-

            2.ª Questão: do convite ao Ministério Público, à reformulação da acusação

            Na hipótese de se considerar que a acusação se mostra ferida de nulidade, entende o assistente B... que se impunha ao Tribunal a quo proferir convite ao Ministério Público para correção, aperfeiçoamento ou à simples apresentação de um requerimento.

Alega neste sentido, e em síntese, o seguinte:

- A nulidade da acusação do Ministério Público, por omissão dos requisitos constantes do art.283.º, n.º3 do Código de Processo Penal, constitui uma nulidade sanável porquanto não consta do catálogo das nulidades insanáveis, ficando assim sujeito ao regime legal previsto no art.120.º a 122.º deste Código.

- O único procedimento que faz jus aos princípios da oficialidade, da verdade material e da economia processual é permitir-se a retificação da acusação ao Ministério Público, nos termos do art.122.º, n.º 2 do C.P.P.;

- A negação da possibilidade de convite à correção, ao aperfeiçoamento ou à simples apresentação de um requerimento, por forma a cumprir com os requisitos meramente formais da acusação, implica a violação do direito de intervenção do assistente e do Ministério Público no processo penal, nos termos do nº 7 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa;

- Assim, o douto despacho que rejeitou a acusação do Ministério Público por manifestamente infundada, deve ser revogado e substituído por outro que ordene a retificação da acusação por ele formulada.

Vejamos.

A nulidade da acusação cominada no art.283.º, n.º3 do Código de Processo Penal é uma nulidade sanável e, como tal, deve ser arguida pelos interessados, nos termos do art.120.º do mesmo Código.

Entendemos, porém, que o vício elencado na alínea d), n.º3 do art.311.º do Código de Processo Penal sobrepõe-se às nulidades do art.283.º, n.º3, do mesmo Código, pois que é de conhecimento oficioso.

Como se menciona no acórdão de fixação de jurisprudência que vimos referindo, em caso de falta de descrição, na acusação, de todos ou de alguns dos elementos subjetivos do crime, “ …tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respetivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art.311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos.”.

A rejeição da acusação pelo Juiz de julgamento, nos termos do art.311.º, n.º 2, al. a) e 3.º, al. d), do C.P.P., é uma realidade diversa da simples declaração de nulidade da acusação.

Rejeitada a acusação entendemos que o juiz não deve determinar, ao abrigo do art.122.º do C.P.P., a devolução dos autos à fase de inquérito, em ordem à posterior correção da acusação pública, pelo Ministério Público.

Cremos que uma decisão nesse sentido que não só não respeitaria o disposto no art.311.º, n.º 2 do C.P.P., como constituiria uma ingerência judicial nos poderes atribuídos ao Ministério Público e colocaria em causa as legítimas expectativas do arguido e as garantias de defesa constitucionalmente tuteladas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

Assim se entendeu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de abril de 2006 (proc. 06P1403), quando ao tratar a questão de saber se o juiz de instrução, perante uma nulidade do inquérito, pode devolver o processo ao Ministério Público para o respetivo suprimento, se consignou:

 « (…) o inquérito, enquanto aberto, é da exclusiva titularidade do Ministério Público e só permite a intervenção pontual do juiz nos casos expressamente tipificados na lei. Por seu turno, encerrado o inquérito e aberta a instrução, abre-se uma fase autónoma do processado cuja direção radica doravante no juiz de instrução, que, com total autonomia ordena as diligências que tenha por necessárias ao fim dessa fase eventual: proferir decisão instrutória.

Na verdade, se alguma conclusão é possível extrair daquele regime legal, a de que é autónoma a intervenção do Ministério Público no inquérito e do juiz de instrução na fase eventual que se lhe segue, surge destacada.

E se existe autonomia de atuação, não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção. (…)

Ora, se as duas fases processuais em causa são independentes e autónoma a atuação de quem respetivamente as dirige, cada qual terá de assumir as suas responsabilidades, isto é, se não se quer cair numa situação de inultrapassável impasse processual a que sempre haveria que pôr termo face, nomeadamente, ao regime adjetivo subsidiário – cfr. art.º 265.º, do CPC – socorrer-se dos meios de que dispõe para, por si só, ultrapassar a detectada deficiência processual. (…)

O que o juiz não pode é, na lógica do sistema legal vigente, «ordenar» ao Ministério Público, entidade igualmente com plena autonomia no processo, a realização dessa ou outras diligências, (….)

Portanto, o despacho ora impugnado, na medida em que ordena a devolução do processo – que é, relembremos, um processo com inquérito encerrado e instrução aberta – ao Ministério Público, não pode subsistir, uma vez, que, como se viu, esse processo tem direção cometida por lei ao juiz de instrução.». [10]

Também no acórdão da Relação de Lisboa, de 30-1-2007 (proc. 10221/2006-5) se decidiu que «(…) perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art.32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal - leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objetividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objeto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, retifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido (…)», sob pena de sério e inexorável comprometimento do princípio acusatório.[11]

Verificado o vício da nulidade da acusação do Ministério Público, por omissão do requisito constante do art.283.º, n.º3, alínea b), do Código de Processo Penal, não há lugar ao convite para aquele a suprir, nem á devolução do processo ao Ministério Público para, no âmbito do inquérito, reformular a acusação rejeitada por manifestamente infundada.

Está é a posição seguida, designadamente e entre outros, no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05-07-2016 (Proc. n.º 40/14.2GBLGS.E1): “Assente, portanto, que a alegação de factos típicos é essencial (incluindo os elementos subjetivos do tipo) e que o convite à correção não é hipótese aceitável pela jurisprudência, resta concluir que a acusação contém os vícios que lhe foram assacados no despacho recorrido.”, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09-05-2012, (proc. n.º 571/10.3TACVL-A.C1): “Sendo a acusação particular omissa quanto à indicação das disposições legais aplicáveis não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção da mesma; 2. Não constando da referida acusação as disposições legais aplicáveis bem como os factos integradores do tipo subjetivo, deve ser rejeitada por manifestamente infundada.”; e, no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19-06-2017 (175/13.9TACBC.G1): “Uma vez rejeitada uma acusação por manifestamente infundada em virtude de os factos não constituírem crime, ao Ministério Público não é permitido deduzir nova acusação, na qual sejam supridas as omissões ou falhas assinaladas no despacho judicial previsto no art.311º do CPP.”.

Cremos que a posição que se vem seguindo, em nada viola o art.32º, n.º7, da Constituição da República Portuguesa, invocado pelo ora recorrente e que estabelece que «o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei».

Esta norma constitucional não especifica as dimensões fundamentais do direito do ofendido intervir no processo, remetendo para a lei ordinária a sua densificação.

O que parece resultar claro da norma, é não poder a lei ordinária retirar ao ofendido, direta ou indiretamente, o direito de participar no processo que tenha por objeto a ofensa de que foi vítima.    

O inquérito, que compreende as diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art.262.º do C.P.P.), é dirigido pelo Ministério Público (art.263.º, n.º1 do C.P.P.), atento o chamado princípio da oficialidade do processo.

Segundo este princípio a iniciativa e a promoção processual dos crimes é tarefa estadual, a realizar oficiosamente e, portanto, em completa independência da vontade e da atuação dos particulares.

Nos crimes de natureza semipúblico, como é o crime de burla simples, imputado ao arguido A... , o Ministério Público só pode iniciar a investigação após a apresentação de queixa pelo ofendido, como resulta evidenciado do art.49.º do C.P.P..

Mas é ao Ministério Público que compete deduzir acusação ou não, encerrado que seja o inquérito.

O ofendido, constituído assistente, tem a posição de colaborador do Ministério Público, a cuja atividade subordina a sua intervenção no processo, sem prejuízo de, entre outras exceções previstas na lei, poder interpor recurso das decisões que o afetam mesmo que o Ministério Público o não tenha feito (art.69.º, n.º1 e 2, al. c) do C.P.P.). 

O assistente, como o Ministério Público, intervieram no processo, ambos praticando atos processuais previstos na lei processual penal. 

A possibilidade de convite à correção, ao aperfeiçoamento ou à simples apresentação de um requerimento por parte do Ministério Público, por forma a completar elementos essenciais do tipo penal omitidos na acusação pública, rejeitada por manifestamente infundada, não é um ato processual previsto na lei, nem adequado aos princípios do processo, como atrás se consignou, pelo que não reconhecemos qualquer violação do direito de intervenção do assistente e do Ministério Público no processo penal, nos termos do nº 7 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa, com a não concessão ao Ministério Público – que no caso concreto nem sequer recorreu – de convite à reformulação da acusação.

Assim, improcede esta questão e, consequentemente o recurso interposto pelo assistente B... .


*

Recurso do D...

            Questão: da narração, na acusação, dos factos constitutivos dos crimes de burla simples.

O assistente D... defende que a acusação do M.P. narra todos os elementos constitutivos da prática pelo arguido A... do crime de burla, designadamente os factos referentes à totalidade do seu elemento subjetivo, pelo que a mesma não é nula, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que a receba.  

Entende que a acusação pública contém a narração, ainda que sintética, de todos os elementos previstos nos artigos 311.°, n.ºs 2 , alínea a) e 3  alínea b) e 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, não conseguir descortinar em que parte da acusação existe omissão dos factos referentes à totalidade do elemento subjetivo do tipo de crime de burla, uma vez que dela consta que o arguido sabia que, ao agir como estava a agir, a sua conduta seria penalmente relevante, que estava a enganar com astúcia os assistentes, com intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo e sabia, ainda, que estaria a causar prejuízos no património dos mesmos.   

Vejamos.

Os factos narrados na acusação do Ministério Público, relativamente ao assistente D... , são os seguintes:

«O arguido é vigilante de segurança privada ( ... )»,

«O arguido desempenhava, ao serviço da “ X (...) ”, funções de vigilante e de supervisor para a zona Centro.

Concomitantemente, o arguido, e em nome individual, desempenhou, também, funções relacionadas com ações de formação de vigilantes e angariação de clientes de tais formações, em parceria com outras empresas, dedicadas à formação.

Para o efeito, o arguido, para além de trabalhar como vigilante em diversos locais, tomou de arrendamento uma loja em Z(... ), no Centro Comercial (...) , na Av. (...) , onde desenvolvia o seu trabalho para a referida sociedade “ X (...) ” e anunciava ações de formação de vigilante em parcerias, com a “ X (...) ” e outras empresas similares como a “ Y (...) ”.

Aproveitando-se dos conhecimentos decorrentes da sua profissão e dos contactos que pela mesma via foi desenvolvendo, a determinada altura decidiu o arguido aliciar terceiros para ações de formação e reciclagem com vista à obtenção e renovação dos cartões profissionais de vigilante, sem que, todavia, tivesse efetivamente intenção de conseguir tais cartões para os potenciais clientes, com o único fito de ficar para si com as quantias que pelos mesmos viessem a ser entregues como contrapartida da formação e do cartão.

Em execução de tal plano, o arguido, em março de 2014, acordou com D... , titular de cartão de vigilante com validade até 12 de outubro do mesmo ano, a frequência, pelo segundo, de uma ação de formação para renovação do seu cartão profissional, pelo valor de € 185,00.

O D... entregou € 185,00 ao arguido e frequentou, por indicação deste, entre 10 e 21 de fevereiro de 2014, ações de formação em Z(... ), tendo entregue ao arguido, toda a documentação necessária para a renovação do cartão de vigilante.)

Todavia, o arguido não entregou qualquer quantia às entidades formadoras, não fez incluir o nome do D... , nas listas de formandos de tais entidades, nem diligenciou pela renovação do seu cartão profissional.

O arguido ficou para si com os € 185,00 entregues pelo D... , dissipando-os em seu proveito.

O D... , só em outubro de 2014, quando viu caducado o seu cartão, soube que foi enganado pelo arguido.

( ... )

O arguido atuou, sempre, com intenção de enganar os ofendidos, fazendo-­os crer que junto dele se inscreviam em cursos de segurança privada, apenas pera deles receber os respetivos - alegados - pagamentos, com que se locupletou.

O arguido aproveitou a sua situação laboral e contactos com empresas de formação de segurança privada para levar os ofendidos a entregar-lhe quantias em dinheiro, fazendo-os crer que os inscrevia em ações de formação para obtenção ou renovação de cartão profissional de vigilante, sem que tal correspondesse à verdade e apenas para ficar para si com as quantias entregues.

Os ofendidos apenas entregaram quantias ao arguido porque este lhe apareceu como .funcionário ou supervisor da " X (...) ", empresa dedicada à segurança privada, numa loja identificada com o nome da X (...) e de outras entidades formadoras na área e porque acreditaram que se estavam a inscrever em ações de formação para obtenção/renovação do cartão de vigilante e junto das entidades para o efeito competentes.”.

Remetendo para a resposta dada a idêntica questão no âmbito do recurso interposto pelo assistente B... , e dando aqui por reproduzida a fundamentação de direito, repetimos aqui que os factos naturalísticos descritos na acusação do Ministério Público, agora quanto ao assistente D... , embora descrevam os elementos do tipo objetivo de ilícito e mesmo o dolo especifico da burla, traduzido na intenção do arguido obter para si um enriquecimento ilegítimo, não referem que o arguido A... atuou de forma livre, isto é, podendo ter agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico, conscientemente, isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto, e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei, isto é, com consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude.

Estes são elementos essenciais do tipo subjetivo de ilicitude, que a jurisprudência, especialmente após a prolação do acórdão do STJ n.º 1/2015, considera que não podem deixar de constar da acusação, pois o elemento subjetivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objetivos que são imputados ao arguido na acusação do assistente e não podem ser acrescentados na fase de julgamento.

Não constando aqueles factos da acusação do Ministério Público, ao contrário da interpretação que dela faz o assistente, entende o Tribunal da Relação que o douto despacho recorrido não violou o disposto nos artigos 311.°, n.ºs 2 , alínea a) e 3, alínea b) e 283.º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal, ao rejeitar a acusação por manifestamente infundada, relativamente ao ora recorrente D... .

Consequentemente, mais não resta que negar provimento à questão e ao recurso do assistente.

      Decisão

       

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento aos recursos interpostos pelos assistentes B... e D... e, consequentemente, manter o douto despacho recorrido.

             Custas pelos recorrentes B... e D... , fixando-se em 3 Ucs a taxa de justiça, a cargo de cada um deles (art. 515º, nºs 1 al. b) do C.P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                      

   *

Coimbra, 07 de março de 2018

Orlando Gonçalves (relator)

Alice Santos (adjunta)

[1] Vd. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19.02.86, in CJ, XI, I, 63.

[2] Vd. A. M. ALMEIDA COSTA, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", Parte Especial, Tomo TI, Coimbra Editora, págs. 275 e segs. 

[3] In “Jornadas de Direito Criminal” CEJ, 1983, págs. 57 e 58.
[4]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[5]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[6]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[7] In Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015.
[8] - Cfr. Prof. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 293 e segs e Desemb. Miguez Garcia, O Direito Penal Passo a Passo, Vol. II, Almedina, pág. 203 e segs..
[9] Cf. “Direito Penal – Parte Geral, Tomo I , Coimbra Editora , 2004 pág. 333. 
[10] In www.dgsi.pt.
[11] In www.dgsi.pt.