Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1261/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR.ª ALEXANDRINA FERREIRA
Descritores: EXPROPRIAÇÃO
CADUCIDADE
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ARTIGO 4.º DO CÓDIGO DE EXPROPRIAÇÕES E ARTIGO 334.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:

1. A caducidade da declaração de utilidade pública, estabelecida no artigo 4.º do Código das Expropriações, visa garantir o direito do expropriado contra a inércia da administração pública, procurando obstar a que os particulares fiquem ilimitadamente presos àquela declaração e ilimitadamente sujeitos à indefinição dos seus bens.
2. Tendo o expropriado acordado, em contrato promessa, com os valores da expropriação e tendo já recebido 90% do preço, há abuso do direito se ainda assim pretender a caducidade, por não ter sido feito o auto de expropriação amigável e pago o restante preço, uma vez que pode utilizar os expedientes de fixação de prazo e a execução específica.
Decisão Texto Integral:
Procºnº1261/03
Apelação cível


AA e mulher BB vieram interpor recurso da sentença que julgou improcedente o pedido que formularam contra Instituto de Estradas de Portugal.
No requerimento inicial, os requerentes, ora apelantes, pedem se declare a «caducidade do acto de declaração de utilidade pública constante do despacho n.º 14.030-B/99 do Secretário de Estado das Obras Públicas, publicado no DR, II série, n.º 169 de 22.7.99 no que respeita à identificada parcela n.º 440, sita no concelho de Alcobaça».
Os requerentes alegam que são proprietários da dita parcela que, através do citado despacho, viu declarada a sua utilidade pública com carácter de urgência e que, apesar de já terem decorrido dois anos, a entidade expropriante não promoveu a constituição da arbitragem, nem remeteu o processo de expropriação ao tribunal competente.
Os requerentes concluem, dizendo que a caducidade operou em 22.7.00 ou, pelo menos, em 22.7.01.
Na contestação, a requerida diz que não promoveu a constituição de arbitragem, nem remeteu o processo de expropriação ao tribunal, porque a expropriação foi amigável.
Em 9.9.99 – expõe a requerida – foi celebrado com os requerentes um contrato promessa de transferência do direito de propriedade pelo preço de 3.602.750$00, tendo sido logo entregue a quantia de 1.801.375$00. Em 3.10.00 – continua – foi feito um aditamento ao referido contrato e entregue a quantia de 2.390.375$00, faltando apenas formalizar o auto de expropriação amigável no notário privativo da Câmara Municipal de Alcobaça.
A requerida diz também que, no contrato promessa celebrado, foi exarado que os requerentes consentiam que a requerida tomasse posse da parcela e realizasse trabalhos o que, em data posterior à declaração de utilidade pública, se concretizou com a construção de uma estrada, pelo que o pedido formulado é abusivo.
Os requeridos responderam dizendo que não foi realizada escritura, nem feito auto de expropriação amigável, pelo que o contrato promessa não foi cumprido. De qualquer forma – acrescentam – não podem ficar indefinidamente a aguardar que a requerida formalize o acordo e efectue o pagamento do remanescente do preço.
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Foi proferido despacho saneador, aí se conhecendo do alegado abuso de direito, excepção que foi julgada procedente, após se dar como assente que:
A) Os requerentes são legítimos proprietários do prédio rústico sito em Alpedriz, com uma área de 14.411 m², descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o n.º 1074 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1155 da freguesia de Alpedriz, do concelho de Alcobaça;
B) Por despacho do Presidente da Junta Autónoma de Estradas, proferido no uso da competência sub-delegada do Sr. Secretário das Obras Públicas, datado de 24 de Junho de 1999 e publicado no DR II Série de 22 de Julho de 1999, foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação de diversas parcelas necessárias à execução da A 8 – Caldas da Rainha/Marinha Grande, entre as quais o prédio identificado em A);
C) Até 14.02.02, data de entrada em juízo da contestação, o Instituto de Estradas de Portugal não promoveu a constituição de arbitragem nem o processo de expropriação foi remetido ao Tribunal competente;
D) Em 9 de Setembro de 1999, Requerentes e Requerido celebraram o acordo que se mostra junto a fls. 35 e 37, que apelidaram de contrato promessa de transferência do direito de propriedade de parcela para efeitos de celebração de auto de expropriação amigável, nos termos do art.º 33º do Código das Expropriações aprovado pelo DL n.º 438/91, de 9 de Novembro;
E) Do acordo identificado em D) consta que o IEP promete adquirir e os requerentes aceitam transferir a favor daquele o direito de propriedade sobre o imóvel identificado em A), pelo preço total de 3.602.750$00, «quantia que representa a totalidade da indemnização a atribuir pela expropriação da aludida parcela, através de auto de expropriação a celebrar nos termos da lei»;
F) Do mesmo acordo consta ainda que: «a título de antecipação de pagamento» o IEP entrega aos requerentes a quantia de 1.801.375$00, dos quais estes dão quitação; o auto de expropriação amigável será celebrado em data, local e hora a indicar pelo IEP; que os requerentes consentem expressamente a posse da parcela que é objecto do contrato ao IEP, nela consentindo a realização de quaisquer trabalhos de construção por esta ou por entidades em seu nome; o incumprimento do contrato confere à outra parte o direito à rescisão, sem prejuízo de execução específica.
G) Em 3 de Outubro de 2000, os Requerentes e o IEP celebraram o acordo que se mostra junto a fls. 38 a 40 e do qual consta, em confronto com o anterior, uma correcção do preço total para 4.657.500$00, e a entrega de mais 2.390.375$00, dos quais aqueles dão quitação.
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Os recorrentes apresentaram as seguintes conclusões de recurso:
1. Os ora recorrentes são legítimos proprietários da parcela n.º 440, sita em Alpedriz, no concelho de Alcobaça.
2. Por despacho do Presidente da Junta Autónoma de Estradas, no uso de competências sub-delegadas do Sr. Secretário das Obras Públicas, datado de 24 de Junho de 1999 e publicado no DR II Série de 22 de Julho, foi declarada de utilidade pública, com carácter de urgência, a expropriação de diversas parcelas necessárias à execução da A 8 – Caldas da Rainha/Marinha Grande/Leiria, entre as quais o prédio supra referenciado.
3. Em 9 de Setembro de 1999, os ora recorrentes e a entidade recorrida celebraram um contrato promessa de transferência do direito de propriedade de parcela para efeitos de celebração de auto de expropriação amigável, nos termos do art.º 33º do Código das Expropriações aprovado pelo DL n.º 438/91, de 9 de Novembro.
4. Posteriormente as partes, celebraram um aditamento ao referido contrato em 3 de Outubro de 2000.
5. Passados cerca de 3 anos e meio desde a data da publicação da declaração de utilidade pública ainda não se efectivou o auto de expropriação amigável.
6. Estipulando o art.º 4º do referido Código das Expropriações, que a declaração de utilidade pública caduca se a entidade expropriante não tiver adquirido os bens por expropriação amigável ou promovido a constituição de arbitragem no prazo de dois anos – números 1 e 6 do art.º 4º, n.º 3 do art.º 10º do DL 438/91 de 9.11.
7. Os recorrentes fundamentaram o seu pedido de caducidade da referida declaração de utilidade pública, no não cumprimento por parte da entidade expropriante, dos prazos referidos no número anterior.
8. O Douto Julgador a quo na sua aliás douta decisão, não teve em consideração o prazo de dois anos para a realização da expropriação amigável, pelo que,
9. Sendo este um dos fundamentos essenciais integradores do pedido e da causa de pedir dos recorrentes é a sentença nula por omissão de pronúncia (1ª parte da al. d) do n.º 1 do art.º 668º e n.º 2 do art.º 660º do CPC. Acresce que,
10. A invocação da excepção peremptória da caducidade por parte dos recorrentes, é um dos poucos meios de defesa que a lei lhe confere para defesa do seu – já violado – direito de propriedade em processos expropriativos.
11. Não configurando qualquer exercício abusivo de um direito na vertente venire contra factum proprium. Dado que,
12. Apenas se encontra na esfera jurídica da entidade expropriante o ónus processual de cumprimento dos prazos.
13. Não tendo os expropriados qualquer tipo de actuação – activa ou omissiva – que possa acelerar ou paralisar o cumprimento ou não dos mencionados prazos. Pelo que,
14. Não poderão os expropriados criar qualquer expectativa ou convicção na entidade expropriante de que certo direito não será exercido. Pelo contrário,
15. A entidade expropriante é que criou, com a celebração do referido contrato promessa, a convicção aos expropriados de que o auto de expropriação amigável seria realizado até 19 de Julho de 2001.
16. Estando todas as diligências de marcação dessa escritura a cargo da entidade expropriante, pelo que a não realização da mesma apenas a si poderá ser imputada ( n.º 2 do art.º 35º do DL 438/91 de 9.11).
17. O não cumprimento do prazo legalmente estabelecido apenas poderá ser apontado à inércia da entidade expropriante.
18. Restando aos expropriados a invocação da caducidade para assim verem garantido o seu direito à justa indemnização consagrado na Lei Fundamental (art.º 62º da CRP).
19. É a decisão sub judice ilegal por violação da aplicação conjugada dos números 3 e 4 do art.º 10º e números 1 e 6 do art.º 4º do Código das Expropriações e do art.º 334º do CC.
Nas cinco primeiras conclusões, os apelantes limitam-se a apontar os factos que a 1ª instância deixou assentes nas alíneas A), B), C), D) e G) e C).
Na 6ª conclusão, os recorrentes dizem, e bem, que o art.º 4º do Código das Expropriações prescreve «que a declaração de utilidade pública caduca se a entidade expropriante não tiver adquirido os bens por expropriação amigável ou promovido a constituição de arbitragem no prazo de dois anos – números 1 e 6 do art.º 4º, n.º 3 do art.º 10º do DL 438/91 de 9.11».
Na 7ª conclusão os recorrentes dizem, e com razão, que «fundamentaram o seu pedido de caducidade da referida declaração de utilidade pública, no não cumprimento por parte da entidade expropriante, dos prazos referidos no número anterior»
Nas 8ª e 9ª conclusões, é colocada a primeira questão. Ali, os apelantes sustentam que a 1ª instância «não teve em consideração o prazo de dois anos para a realização da expropriação amigável» e que, por isso, é «a sentença nula por omissão de pronúncia».
Afigura-se-nos, contudo, que os apelantes não têm razão.
No seu articulado inicial, os requerentes sustentam que a caducidade decorre de a requerida não ter cumprido os prazos de promoção da constituição da arbitragem, e de realização de expropriação amigável. A sentença recorrida analisa em primeiro lugar a questão da constituição da arbitragem e, é no contexto dessa análise, que aprecia a segunda daquelas questões.
Com efeito, lê-se na decisão recorrida: «resulta da factualidade já assente, que requerentes e requeridos celebraram dois contratos promessa de transferência do direito de propriedade de parcela para efeitos de celebração de auto de expropriação amigável, ou melhor, um contrato-promessa e um aditamento (de sentido idêntico ao primeiro), em cumprimento dos quais aceitaram transferir o direito de propriedade sobre o imóvel identificado em A) e consentiram expressamente a posse da parcela pelo IEP, consentindo ainda a realização de quaisquer trabalhos de construção. Como contrapartida receberam 90% do preço total (em duas tranches). Ficou apenas pendente a celebração do auto de expropriação amigável.
Do que se vem de dizer decorre, naturalmente, que as partes chegaram a acordo quanto ao preço (valor) da parcela a expropriar.
Ora, preceituando o art.º 37º do Código das Expropriações que “na falta de acordo sobre o valor global da indemnização, será fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais, de harmonia com a regra geral das alçadas”, facilmente se conclui que, havendo acordo quanto ao valor global da indemnização (preço), inexistia qualquer fundamento para dar início a arbitragem.
Digamo-lo de forma crua: se os requerentes chegaram, atempadamente Entenda-se, antes de decorrido um ano sobre a declaração de utilidade pública., a acordo com o Instituto de Estradas de Portugal sobre o valor da parcela – coincidente com a indemnização pela sujeição ao acto expropriativo – não podem vir agora dizer que aquela entidade deveria ter iniciado a arbitragem para que fosse determinado o valor daquela mesma indemnização !
No mesmo sentido depõe ainda outro facto: mesmo depois de decorrido o prazo de caducidade (com referência à promoção da constituição da arbitragem Funcionando como tribunal arbitral necessário.) os requerentes outorgaram com o requerido o ‘aditamento’ ao contrato promessa identificado em G) o qual, salvo o devido respeito por opinião distinta, e neste contexto, não pode ser interpretado noutro sentido que não o de renúncia à invocação da caducidade. Dito doutra forma: mesmo depois de decorrido o prazo de caducidade os requeridos renegociaram com o IEP (e receberam deste elevada quantia monetária) a venda da parcela de que eram proprietários».
E é, como já se referiu, no contexto e seguimento daquela análise, que a caducidade deixa de ser apreciada unicamente na perspectiva do decurso do prazo para a promoção da arbitragem, para ser ponderada de toda e qualquer perspectiva.
Com efeito, pode ler-se na sentença recorrida:
«Mas ainda que assim não se entendesse, sempre a actual conduta dos requerentes configuraria uma situação de abuso de direito na medida em que excede manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico do direito.
Como muito bem salientam os requerentes, a previsão legal de um prazo de caducidade constitui uma garantia do proprietário (expropriado), na medida em que se visa evitar a inércia da administração pública com as nefastas consequências daí decorrentes, designadamente, evitar que os particulares fiquem ilimitadamente presos à declaração de utilidade pública e ilimitadamente sujeitos à indefinição do destino dos seus bens.
Na prática, e em rigor, não é esse o caso concreto. Na verdade, os ora requerentes já acordaram (amigavelmente) vender a parcela de terreno que possuíam ao IEP, sendo certo, por outro lado, que inclusive já receberam 90% do preço.
Não estamos, assim, perante a situação típica visada pelo legislador (ainda que, em abstracto, se enquadre na previsão legislativa): quando o particular, após declaração de utilidade pública de propriedade sua, vê passarem os anos sem que se defina a sua situação, sem ser contactado pela administração, sem poder dispor livremente do imóvel, sem ver fixado o valor da indemnização.
A situação de indefinição dos requerentes é, sob qualquer perspectiva, diminuta: o valor da indemnização está fixado, já prometeram vender o terreno ao IEP, já autorizaram que esta entidade o utilizasse, e a auto-estrada no qual aquele foi incorporado já foi construída.
Acresce que, enquanto outorgantes do(s) referenciado(s) contrato(s)-promessa, os requerentes não se encontram numa situação de impotência face à administração pública – situação que constitui o fundamento fáctico da consagração da norma a que apelam. Na verdade, e desde logo, poderiam ter requerido a fixação judicial de prazo – visto não se encontrar estabelecido qualquer prazo para a celebração do auto de expropriação amigável – ou recorrido à execução específica do contrato-promessa (como expressamente ressalvado no(s) mesmo(s)).
Conclui-se, do que se vem de dizer, que os requerentes excederam clamorosamente, com a invocação da caducidade, o fim com que lhes é reconhecido tal direito, ou, na definição de Castanheira Neves ‘Questão de facto – questão de direito’, I, p. 513 e ss., utilizaram o poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido».
Não há, assim, omissão de pronúncia. Os requerentes invocam o direito de obter a declaração de caducidade; a sentença apelada considera que esse direito, existe, mas foi exercido de forma abusiva.
Nas restantes conclusões, os apelantes retratam-se como estando numa situação de impotência face à Administração, o que até é contraditório com o afirmado na primeira parte da conclusão 10ª. Aqui, os apelantes dizem que a invocação «da excepção peremptória da caducidade por parte dos recorrentes, é um dos poucos meios de defesa que a lei lhe confere para defesa do seu – já violado – direito de propriedade em processos expropriativos». Os apelantes não estão numa situação de impotência, pois têm outros meios de fazer cumprir o contrato promessa, como admitem naquela conclusão. O mesmo é dito na sentença recorrida.
A propósito do abuso de direito, importa notar que os apelantes no seu articulado inicial omitiram factos decisivos para a apreciação do mérito da acção, nomeadamente que haviam celebrado um contrato promessa e recebido 90% do preço acordado.
Partindo do pressuposto de que aquela omissão não foi intencional, há que concluir que ela ocorreu porque os apelantes consideraram os ditos factos, irrelevantes para a decisão da causa, numa leitura do Código das Expropriações que não tem em conta a harmonia das suas normas e o seu conteúdo ético-jurídico.
Se bem que os apelantes invoquem o direito constitucional à justa indemnização, não se alcança em que medida possa este direito ter sido violado, se o valor do bem foi (ao que tudo indica livremente), negociado entre as partes e está ao alcance dos apelantes, ainda que pela via judicial, vê-lo integrado no seu património.
Face ao exposto acordam os juizes da secção cível em negar provimento à apelação e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.