Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
851/10.8TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ALMEIDA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
Data do Acordão: 09/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
GUARDA - TRIBUNAL JUDICIAL - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO, 342.º, N.º 2; 1381.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A intenção de afectar o terreno rústico adquirido a uma finalidade diversa da agricultura, designadamente a construção de edifício habitacional, exclui o direito de prelação decorrente, entre o mais, do facto de o mesmo confinar com prédio de outrem, à partida titular desse direito.

2. Essa intenção terá de ocorrer em momento anterior ao negócio, ou seja, haverá de ter sido ela a subjazer, ditar, sobressalientemente, a aquisição levada a efeito pelo comprador e constitui excepção peremptória , recaindo sobre o réu demandado o ónus da respectiva alegação e posterior comprovação

3. O direito legal de preferência, dada a sua natureza real, produz em pleno os seus efeitos “erga omnes” independentemente de registo, mesmo em relação a terceiros de boa fé.

Decisão Texto Integral:

Proc. nº 851/10.8TBGRD.C1

Rel. nº 765[1]


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I – RELATÓRIO

1. A...., residente na Rua David Melgueiro, nº 30, 1400-090, Lisboa, intentou a presente acção de preferência, com processo sumário, contra

            - B....e C....residentes na Praça São João, n.º 12, 2.º Dto., Pontinha;
         - D....residente na Rua Fernando Curado Ribeiro, n.º 2, 3.º Esq., Miraflores; e
         - E....pessoa colectiva n.º 502196572, com sede na Praceta Roque Gameiro, n.º 2-A, Mem Martins, tendo em vista o reconhecimento do seu direito de preferência na venda do prédio rústico denominado “XX...”, destinado a pastagem com oliveiras, sito na freguesia de Vela, concelho da Guarda, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1444º e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 1197 e, consequentemente, a sua investidura na posição de adquirente desse referido prédio.
Alegou para tanto, e em síntese, que é dono do prédio rústico, denominado “Serrado” ou “Olival”, destinado a terra de cultura de pinhal e pastagem com oliveiras e macieiras, sito na freguesia de Vela, concelho da Guarda, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1143º e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 221, o qual confina do Norte, Sul e Nascente com o prédio acima identificado.
Sucede que através de escrituras públicas datadas 03/06/2009 –mais aduziu‑, as duas primeiras Rés venderam à sociedade Ré, pelo preço de €12.500,00, o prédio descrito sob o n.º 1197, a qual de imediato vendeu ao R. D....o mesmo prédio por igual preço, sem que nenhum dos RR. lhe tenha comunicado os termos dos referidos negócios para, querendo, exercer o seu direito de preferência.
Ora, sucede também e além disso ‑alegou por fim‑ que ambos os prédios são rústicos, sendo que aquele de que ele, A., é dono tem área superior à unidade de cultura definida para a região (3 hectares), e o prédio alienado, por sua vez, área inferior àquela.
Citados, vieram os RR. D....e “E….deduzir contestação por impugnação e por excepção, alegando –também sinopticamente‑, que não procederam à comunicação da venda porquanto, a despeito da natureza rústica dos prédios em causa, os mesmos possuem aptidão construtiva, nessa medida tendo o R. D….., em Abril de 2010, apresentado junto da Câmara Municipal da Guarda um projecto de construção de uma moradia no prédio alienado, aguardando a sua aprovação.
            Alegaram ainda que, tendo o A. conhecimento do acabado de referir, sabia que o direito de preferência estaria legalmente afastado e, por isso, litiga de má fé, causando incómodos aos RR. com a propositura da vertente acção, pelo que deverá ser condenado no pagamento de uma indemnização, no montante de €5.000,00, a título de litigância de má fé.
            As Rés B…. e C…., por seu turno, vieram também contestar, alegando que o A. teve conhecimento dos elementos da venda em data anterior à indicada na petição inicial (Abril de 2010), pelo que, não tendo exercido o seu direito de preferência no prazo de seis meses, o mesmo caducou.
            Em sede de resposta, veio o A. impugnar ter tido conhecimento do projecto da venda e dos elementos essenciais do negócio há mais de seis meses, bem como a alegada aptidão construtiva do prédio alienado, tanto mais que o projecto de construção apresentado pelo R. D....–acrescentou‑, não foi sequer aprovado, sendo ainda que não consta da escritura pública de compra e venda a finalidade ou destino do prédio pelos RR. invocados.
            A concluir, peticionou ainda a condenação dos RR. D....e “E…. como litigantes de má fé por alegarem factos que sabidamente não correspondentes à verdade, com o intuito exclusivo de obstar à preferência.
Na sequência de convite formulado pelo Tribunal, vieram os RR. D....e “E….alegar que, pese embora desconheçam a data em que em concreto o A. teve conhecimento do negócio, o mesmo reporta-se a momento imediatamente posterior à sua celebração.

Saneado o processo, foi, após julgamento, proferida douta sentença, finda com o seguinte dispositivo:

            ‑ “Nos termos e pelos fundamentos expostos, decido:

A) Julgar a acção totalmente improcedente, absolvendo os réus B…. C…., D....e “E….”dos pedidos contra si deduzidos.

B) Julgar improcedente o pedido de condenação do autor A.... como litigante de má fé, dele o absolvendo.

C) Julgar improcedente o pedido de condenação dos réus D....e “E….” como litigantes de má fé, deles o absolvendo.

(…)”.

            2. Irresignado com o assim decidido, o A. interpôs o vertente recurso de apelação, o qual encerra pedindo:

a) Seja a decisão recorrida declarada nula, por omissão de pronúncia;

b) Caso assim se não entenda, seja a decisão recorrida revogada, reconhecendo-se o direito de preferência do Recorrente relativamente à aquisição do prédio rústico denominado “XX...”, situado no XX..., destinado a pastagem, com oliveiras, sito na freguesia de Vela, concelho da Guarda, inscrito na matriz predial sob o artigo n.º 1444, da freguesia de Vela, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vela com o n.º 1197.

            Para o efeito, formulou as seguintes conclusões:

1. A análise efectuada pelo tribunal a quo para efeitos da improcedência da acção cingiu-se ao negócio celebrado entre o 3.º Recorrido e a 4.ª Recorrida (a segunda venda), pelo que, ao contrário do que devia, o tribunal a quo não se pronunciou quanto à primeira venda, ie, quanto ao negócio celebrado entre as 1.ª e 2.ª Recorridas e a 4ª Recorrida, ou seja, se, quanto a este, foi ou não violado o direito de preferência do Recorrente.

2. Consequentemente, a decisão recorrida é nula, nos termos do art. 668.º, n.º 1, alínea d) do C.P.C., porquanto a mesma não se pronunciou sobre questões que devesse apreciar.

3. Ficou assente que os Recorridos não cumpriram o dever de comunicação a que alude o art. 416º, nº. 1, do Código Civil, e foi julgada improcedente a excepção peremptória de caducidade invocada pelas 1ª e 2ª Recorridas.

4. O Recorrente depositou o preço nos termos exigidos legalmente.

5. Independentemente do número de alienações de que o imóvel seja objecto, haverá que analisar, relativamente a cada uma delas, se se verificam os pressupostos do exercício do direito de preferência e as condições para a sua procedência. Em caso de violação do direito de preferência em relação a uma delas, todas as que se lhe seguirem deverão ser consideras inválidas.

6. Desta forma, o negócio celebrado entre o 3.º Recorrido e a 4.ª Recorrida estaria sempre dependente do negócio celebrado entre as 1.ª e 2.ª Recorridas e a 4.ª Recorrida, pelo que, considerando-se procedente o exercício do direito de preferência em relação a este, deveria aquele declarar-se inválido.

7. Conforme resulta inequivocamente do Ponto 5) dos Factos Provados, o 3.º Recorrido, actuando na qualidade de representante legal da 4.ª Recorrida, declarou, na escritura pública de compra e venda celebrada entre a 1.ª e a 2.ª Recorridas e a 4.ª Recorrida, que o fim a que destinava o prédio era a REVENDA.

8. O prédio em causa não foi, assim, adquirido com vista à sua afectação a fim que não fosse a cultura, nomeadamente à construção de uma moradia, nem do documento de aquisição resulta que o mesmo tinha aptidão construtiva, de acordo com o PDM da Guarda.

9. Não estando o direito de preferência afastado pela verificação de qualquer uma das circunstâncias descritas no art. 1381.º do Código Civil, deveria o direito do Recorrente, no que a esta venda diz respeito, ter sido considerado procedente.

10. Mesmo analisando somente o negócio celebrado entre o 3.º Recorrido e a 4.ª Recorrida, sempre se concluiria que também em relação ao mesmo se encontravam preenchidos os pressupostos do exercício do direito de preferência do Recorrente, desde logo porque a intenção de afectação do prédio a um fim diverso que não seja a cultura não se encontra mencionada na escritura pública de compra e venda.

11. A intenção de construção foi manifestada em data muito posterior ao negócio celebrado entre o 3.º Recorrido e a 4.ª Recorrida (conforme resulta do Ponto 11 dos Factos Provados), sendo certo que, para efeitos de verificação do exercício do direito de preferência, haverá sempre que apurar as circunstâncias que o legitimam à data do negócio e não em data posterior.

12. Ao invés do que resulta da decisão recorrida, o facto de o 3.º Recorrido ter apresentado na edilidade um projecto de construção de uma moradia não determina que o mesmo seja aprovado, como ainda não foi, conforme resulta inequivocamente da prova documental constante dos autos e ainda que o venha a ser, nem por isso determina que o prédio viesse, efectivamente, a ser afectado a esse fim.

13. Não se encontram verificados os pressupostos prescritos no art. 1381.º, alínea a) do Código Civil, motivo pelo qual andou mal a decisão recorrida ao entender em sentido contrário.

14. Ao entender que “caso não fosse legalmente admissível a construção no prédio, certamente o pedido apresentado teria sido objecto de despacho de rejeição liminar”, o tribunal a quo proferiu a decisão não com base em factos provados, mas em meras suposições, o que não se considera ser correcto.

15. Pelo exposto, o tribunal a quo violou, assim, o disposto nos arts. 1380.º, 1381.º, 416.º e 1410.º do Código Civil, que deveria ter sido interpretado e aplicado da forma supra referida.


3. Os RR. D....e “YY....” apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Nada a tal obstando, cumpre decidir.

II – FACTOS

            Na douta sentença foram vertidos como provados os factos que seguem:

1) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda, sob o n.º 221/19880912, a favor de A…., o prédio rústico, denominado “XX...”, composto de terra de cultura, pastagem e pinhal com oliveiras e macieiras, com a área de 3,480 ha, sito em XX..., freguesia de Vela, concelho da Guarda, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1443º (tudo conforme documento de fls. 13 e 14 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido) – (A).

2) O prédio referido em 1) confronta com o prédio rústico denominado “XX...”, situado no XX..., destinado a pastagem, com oliveiras, sito na freguesia de Vela, concelho da Guarda, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1444º e descrito inicialmente a favor de B....e de C....na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1197 (tudo conforme documento de fls. 16 e 17 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido) – (B).

3) O prédio mencionado em 2), confronta do Norte, Sul e Nascente com Herdeiros de Cândida Paraíso e do Poente com Caminho e tem uma área de 0,220 ha (C).

4) Pela Ap. 5665 de 04/06/2009, o prédio mencionado em 2) encontra-se descrito a favor de D....(tudo conforme documento de fls. 16 e 17 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido) – (D).

5) Por escritura pública lavrada no dia 03/06/2009, no Cartório Notarial de Ivone Maria Vieira Xavier Botelho, B....e C....declararam vender pelo preço de doze mil e quinhentos euros, já recebido, a “E…..”, representada por José Matos da Costa, que declarou comprar para revenda, o prédio rústico, composto por terra de pastagem com oliveiras, situado em XX..., freguesia de Vela, concelho da Guarda, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 1197, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1444º (tudo conforme documento de fls. 21 a 24 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido) – (E).

6) Por escritura pública lavrada no dia 03/06/2009, no Cartório Notarial de Ivone Maria Vieira Xavier Botelho, D…., na qualidade de representante de “E…..”, declarou vender a C…., que declarou comprar, pelo preço de doze mil e quinhentos euros, o prédio rústico, composto por terra de pastagem com oliveiras, situado em XX..., freguesia de Vela, concelho da Guarda, descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 1197, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1444º (tudo conforme documento de fls. 25 a 27 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido) – (F).

7) A presente acção foi proposta no dia 22 de Junho de 2010 (cfr. fls. 23 dos autos) – (G).

8) Os réus não comunicaram ao autor o projecto de venda, identidade do potencial comprador, preço e condições de venda dos acordos referidos em 5) e 6) – (H).

9) O prédio descrito em 1) confronta do Norte, Sul e Nascente com o prédio identificado em 2) – (1º).

10) O prédio descrito em 2) está abrangido pelo PDM da Câmara Municipal da Guarda como sendo apto para a construção urbana (3º e 4º).

11) Em Abril de 2010, o réu D....apresentou junto do Município da Guarda um projecto de construção de uma moradia no prédio descrito em 2) – (5º).

12) Aguardando pela sua aprovação para dar início à construção da moradia (6º).

13) O autor tinha conhecimento do aludido em 3) e 4) – (7º).

            III - DIREITO

1. Como inequivocamente emerge do disposto nos arts. 684º, nº3 e 685º-A, nº 1, ambos do Cód. Proc. Civil, o âmbito do recurso é fixado em função das conclusões das alegações dos Recorrentes, circunscrevendo-se, exceptuadas as de conhecimento oficioso, às questões aí equacionadas.

Nessa medida, e tendo em mente o quadro de proposições com que o aqui A./Recorrente finda a sua douta alegação, cuidemos das questões em tal âmbito suscitadas.

2. Começa o Recorrente por dizer que a decisão recorrida é nula, nos termos do art. 668.º, n.º 1, alínea d) do C.P.C., porquanto, ao decidir-se pela improcedência da acção, cingiu-se tão somente à 2ª venda ‑negócio celebrado entre o 3.º Recorrido e a 4.ª Recorrida‑ quando, bem diversamente, o seu pronunciamento devia ter incidido sobre a 1ª venda ‑negócio firmado entre as 1.ª e 2.ª Recorridas e a 4ª Recorrida‑ e apurar se quanto a este foi ou não violado o direito de preferência do Recorrente. Com efeito –mais diz‑, independentemente do número de alienações de que o imóvel tenha sido objecto, haveria que analisar, relativamente a cada uma delas, se se verificam os pressupostos do exercício do direito de preferência e as condições para a sua procedência, sendo que em caso de violação de tal direito no tocante a uma delas, todas as que se lhe seguirem deverão ser consideras inválidas.

Desta forma –prossegue‑ o negócio celebrado entre o 3.º Recorrido e a 4.ª Recorrida ‑2ª venda‑ estaria sempre dependente do negócio celebrado entre as 1.ª e 2.ª Recorridas e a 4.ª Recorrida ‑1ª venda‑, pelo que, considerando-se procedente o exercício do direito de preferência em relação a este último, deveria aquele declarar-se inválido. Ora, conforme resulta inequivocamente do Ponto 5) dos Factos Provados, o 3.º Recorrido, actuando na qualidade de representante legal da 4.ª Recorrida, declarou, na escritura pública de compra e venda celebrada entre a 1.ª e a 2.ª Recorridas e a dita 4.ª Recorrida ‑1ª venda‑, que o fim a que destinava o prédio era a revenda.

O prédio em causa não foi, assim, adquirido com vista à sua afectação a fim que não fosse a cultura, nomeadamente à construção de uma moradia, nem do documento de aquisição resulta que o mesmo tinha aptidão construtiva, de acordo com o PDM da Guarda, pelo que –conclui‑, não estando o direito de preferência afastado pela verificação de qualquer uma das circunstâncias descritas no art. 1381.º do Código Civil[2], deveria o direito do Recorrente, no que a esta venda diz respeito, ter sido, sem mais, considerado procedente.

Salvo o muito respeito –desde já se adiante‑, afigura-se-nos que assiste razão ao Recorrente.

Com efeito, analisando a douta P.I. desde logo se constata que tendo o prédio preferendo sido objecto de dois negócios de compra e venda, o A./Recorrente formulou tal peça processual visando fazer valer o seu reclamado direito de preferência em relação, justamente, ao primeiro negócio, seja, aquele celebrado entre as 1ªs Recorridas e a 4º Recorrida. Isso claramente resulta do expendido sob os artigos 30º a 34º do referido petitório.
Ora, compulsando, por sua vez, a douta sentença, vemos que a Mm.ª Juíza, após assentar em que o Recorrente era titular do almejado direito de prelação, passando a aferir da possível ocorrência dos pressupostos –excludentes de tal direito‑ insertos no art. 1381º, apenas tomou em conta o procedimento, a postura, do 3º Recorrido –D….‑, enquanto pessoa singular, sendo que, como sabido, nessa qualidade própria, pessoal, apenas interveio no 2º negócio.
De tal sorte, impunha-se à Exmª Magistrada, salvo o muito respeito, analisar e tomar em conta não esse, mas o negócio precedente, no qual o mesmo participou como legal representante da 4ª Recorrida, negócio esse –insista-se‑, efectivamente visado pelo Recorrente como base do seu arvorado direito.
Como assim, sem dúvida que –conforme o Recorrente- a Mm.ª Juíza omitiu o conhecimento de questão submetida à sua apreciação e que, como tal, lhe era imposto conhecer –CPC, art. 660º, nº 2‑, incorrendo no vício processual previsto na al. d), do nº 1, do art. 668º, do mesmo diploma adjectivo. Cumpre, pois, a nós, aqui e agora –presente o mandamento contido no nº 1, do art. 715º, do CPC‑, suprir tal omissão, apreciando e estatuindo sobre a enfocada questão.

3. Ora ‑e uma vez mais consoante o Recorrente observa‑, nessa 1ª venda celebrada entre a 1ª e 2ª Recorridas (vendedoras), e a 4ª Recorrida (compradora), tendo por consabido objecto o prédio “XX...”, de natureza –ainda hoje‑, rústico, na sua composição de terra de pastagem com oliveiras, no tocante ao destino do mesmo declarou-se –pela voz do 3º Requerido, em representação, insista-se, da 4ª Requerida‑ ser para revenda.
Acontece que o art. 1381º preceitua, na parte final da sua alínea a), que “não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes quando algum dos terrenos se destine a algum fim que não seja a cultura.”
Estando subjacente à concessão do ora ventilado direito de preferência o objectivo de fomentar o emparcelamento da propriedade rústica, por razões que se prendem não só com uma maior rentabilidade económica, mas também melhor qualidade ambiental[3], bem se compreende e alcança dessa limitação a tal direito expressa na reproduzida disposição legal. Na verdade –e conforme se expende no Ac. do S.T.J. de 21.06.1994[4]“não se destinando o terreno a cultura, não ocorre a necessidade daquele emparcelamento, a qual deve ser analisada na perspectiva dos interesses do adquirente, por não se mostrar razoável a imposição de ele ter de continuar a dar ao terreno o fim a que se destinava, antes lhe devendo ser facilitado o seu uso para os fins que tiver como mais ajustados aos seus interesses.”
A intenção de afectar o terreno –rústico‑ adquirido a uma finalidade diversa da agricultura, designadamente a construção de edifício habitacional, exclui, pois, o direito de prelação decorrente, entre o mais, do facto de o mesmo confinar com prédio de outrem, à partida titular desse direito.
Mas –perguntar-se‑á‑ quando, com referência à compra e venda do terreno, se terá de verificar tal intenção?
Como ressalta à evidência, essa intenção terá de ocorrer em momento anterior ao negócio, ou seja, haverá de ter sido ela a subjazer, ditar, sobressalientemente, a aquisição levada a efeito pelo comprador. Não se exigindo –como bem se refere na douta sentença‑, que a afectação do terreno para fim diferente da cultura tenha de preceder o acto de alienação, todavia o mesmo já não se pode obviamente dizer com o desígnio de levar a efeito tal mudança de afectação. Ele necessariamente que terá de antecipar tal mudança e o próprio negócio de aquisição, sob pena de se abrir a porta à fraude, sendo que bastaria ao adquirente ‑ainda que à partida em tal não interessado‑, ante o ainda atempado exercício da preferência pelo respectivo titular, e em ordem a neutralizá-lo, invocar e levar a efeito actos tendentes a operar tal mudança, designadamente –como “in casu” ocorre‑ com vista a construção habitacional.
Havendo, pois, o intuito de conferir ao bem diferente afectação de ser preexistente à celebração do negócio, na medida em que relevante factor da concretização do mesmo, consubstanciando-se assim –em sede de acção de preferência‑ como facto impeditivo do direito de prelação do autor –excepção peremptória‑, é sobre o(s) réu(s) demandado(s) que, naturalmente –art. 342º, nº 2‑, recai o ónus da respectiva alegação e posterior comprovação[5].
Ora, baixando ao caso “sub judice”, constatamos que por nenhum dos Recorridos, mormente a adquirente 4ª Recorrida, tal indispensável intuito foi alegado e, portanto, provado.

Como supra se referiu –explanando a alegação do aqui Recorrente‑, do Ponto 5) dos Factos Provados somente deflui que o 3.º Recorrido, na veste de representante da 4.ª Recorrida, declarou, na escritura notarial de compra e venda outorgada entre a mesma e 1.ª e 2.ª Recorridas, que o fim a que destinava o prédio era a revenda. Ora, sendo o prédio de natureza rústico, antes de mais, em nada esse negócio aquisitivo interferiu com tal natureza, nem, de outro modo, possibilita concluir que fosse a divergente fim, que não esse (agrário) a que vinha sendo votado, que o mesmo se destinava.

Assim sendo, como se nos afigura, desde logo se tem de considerar –consoante antecipámos‑, como indemonstrado esse facto impeditivo do direito de preferência do A e aqui Recorrente e, portanto, como procedente a sua pretensão tendente ao reconhecimento desse mesmo direito.

E ao ora afirmado não se contraponha, salvo sempre o muito respeito, que se provou ‑Ponto 11) dos Factos Provados‑ que efectuada essa prenunciada revenda do prédio, nesse mesmo dia da compra ‑03.06.2009‑, pela 4ª Recorrida ao seu próprio representante, este, em Abril de 2010, apresentou junto do Município de Guarda um projecto de construção de uma moradia a implantar no mesmo.

Com efeito, e desde logo, o negócio em relação ao qual o aqui Recorrente pretende exercer a preferência é –como já amplamente se viu‑, o primeiramente celebrado, ou seja, entre as 1ª e 2ª Recorridas e a 4ª Recorrida, e não esse sequente, entre esta última e o 3º Recorrido. Depois, ainda que assim não fosse de considerar, acresce que também quanto a este último negócio não se comprova –nem uma vez mais se alegou‑, que, aquando da escritura, fosse já desiderato do 3º Recorrido destinar o adquirido terreno à construção cujo projecto apenas dez meses mais tarde veio a fazer ingressar na sobredita edilidade.

Como assim, pois, em relação a qualquer dos negócios aquisitivos verificados não se pode ter como demonstrado o facto constitutivo da excepção prevista no inciso final da alínea a), do art. 1381º, pelo que, assistindo ao A. Recorrente o direito de preferência por ele invocado, este –como avançámos‑ não pode deixar de lhe ser concedido, impondo-se, consequentemente, substituir o mesmo à 4ª Recorrida na posição de adquirente no contrato –o primeiro‑ firmado entre a mesma e as 1ª e 2ª Recorridas, tendo por objecto o referido prédio “XX...”.

4. Ora, impondo-se essa substituição da 4ª Recorrida pelo aqui Recorrente no aludido contrato, tal substituição opera com eficácia “ex tunc”, rectroactiva, assim tudo se passando, em princípio, como se o contrato tivesse sido celebrado “ab initio” entre as 1ª e 2ª Recorridas e o dito Recorrente. Como expende Pinto Loureiro[6] “por virtude do exercício do direito de preferência o nome do preferente substitui-se ao do adquirente com todos os direitos referentes ao momento da transmissão, tudo se passando juridicamente como se por erro de escrita o nome do adquirente tivesse sido rectificado judicialmente. A alienação não é nula e, antes, produz todos os seus efeitos, operando-se apenas a substituição por outro de um dos sujeitos do contrato.”

Retroagindo, pois, os efeitos do direito de preferência ao momento da indevida alienação, sucede, por outro lado, que –como se escrevem Pires de Lima e Antunes Varela[7]‑, “[t]ratando-se de um direito atribuído por lei, não precisa de ser registado para produzir efeitos em relação a terceiros.” E acrescentam: “Sempre que se verifiquem os pressupostos referidos na lei, o titular da preferência poderá exercê-la, não apenas contra o primitivo adquirente da coisa a ela sujeita, mas igualmente contra qualquer terceiro (subadquirente) que sobre a mesma coisa venha a adquirir posteriormente um direito conflituante (v. g., um direito de propriedade, um direito real de garantia, etc.) “ E ainda: Os direitos dos subadquirentes são ineficazes em relação ao titular do direito real de preferência (…).”

Nestes tão autorizados termos, pois, o direito legal de preferência, dada a sua natureza real, produz em pleno os seus efeitos “erga omnes” independentemente de registo, mesmo em relação a terceiros de boa fé, como seja aquele a quem o contratante com o obrigado à prelação tenha, entretanto, (re)transmitido o bem. E sendo essa transmissão e concernente aquisição –mercê da operância retroactiva da preferência ‑, de reputar, para todos os efeitos, “a non domino”[8], daí essa ineficácia relativamente ao preferente proclamada na apontada emérita lição dos dois ilustres Mestres, em relação a cujo direito tais actos não podem prevalecer.

Destarte, e aplicando os postulados em apreço à espécie decidenda, temos que, sendo triunfante –como vimos que é‑ a prelação exercida pelo A./Recorrente, a venda do ajuizado prédio efectuada pela 4ª Recorrida ao seu representante e aqui 3º Recorrido foi uma venda de coisa alheia, como tal ferida de ineficácia em relação ao “verus dominus”– o aludido A./Recorrente.

Revisitando a douta P. I., porém, constatamos que o A./Recorrente, embora ponha em crise, outrossim, esse negócio requer, como vimos, que o mesmo seja declarado nulo. Que dizer?

Como reiteradamente referimos, e pese que a norma do art. 892º afirme de nula a venda de bens alheios, na linha do que vem sendo pacificamente entendido ao nível quer da doutrina, quer da jurisprudência, o vício que inquina tal negócio, considerando o lado do verdadeiro proprietário da coisa, é o da ineficácia –art. 406º, nº 2‑, reportando-se esse estipulado da nulidade, por seu turno, às relações entre o vendedor e o comprador.

Mas assim sendo, tal significa haver de emitir negativa pronúncia a respeito dessa pretensão do A./Recorrente? Firmemente pensamos que não.

Desde logo, estando em causa –na divergência entre esse vício invocado e o aplicável‑ mero erro de qualificação jurídica do efeito pretendido, na linha do que vem sendo unissonamente proclamado –notadamente pelo S.T.J.[9]‑sempre caberia ao Tribunal corrigir oficiosamente, como consentido pelo art. 664º do CPC, tal erro, em consequência declarando o efeito devido, a preditas ineficácia.

Demais, sucede que –como se doutrina no Ac. do S.T.J. de 18.01.2003[10]– essa ineficácia no tocante ao real titular do bem “(…) é uma solução da lei criada directamente para defesa do direito do titular da coisa indevidamente vendida por forma a não ser afectado pelos efeitos normalmente próprios do negócio.” Assim, e na linha do que se estatui no art. 286º, tal titular “pode também arguir a nulidade do contrato, embora não necessite de fazê-lo.[11]
Pelo que exposto fica, pois, nada impede a que, deferindo nos seus precisos termos à pretensão do A./Recorrente, se decrete a nulidade do contrato celebrado entre o 3º Recorrido e a sua Representada.

5. Aqui chegados, constata-se pois, e em suma, ser a acção totalmente procedente, havendo que, frente à vitória do ora apreciado recurso, revogar a douta sentença por ele adversada.

IV – DECISÃO
Termos em que, na procedência da apelação, se revoga a sentença recorrida e, julgando a acção totalmente procedente, em consequência decide-se:
a)- reconhecer ao A./Recorrente o direito de preferência na venda do prédio rústico denominado “XX...”, melhor identificado no Ponto 2) dos Factos Provados, feita pelas 1ª e 2ª Recorridas, B....e C….., à 4ª Recorrida, “E….., através de escritura pública lavrada no dia 03.06.2009, com a consequente transferência da propriedade de tal prédio para aquele;
b)- declarar nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda, tendo por objecto esse mesmo prédio, celebrado por escritura pública também de 03.06.2009, entre a dita 4ª Recorrida como vendedora e o 3º Requerido –D….‑ como comprador;
c)- ordenar o cancelamento na Conservatória do Registo Predial de todo e qualquer registo operado com base nas transmissões tituladas pelas referidas escrituras públicas;
d)- atribuir à 4ª Recorrida a importância de € 12.500,00, constante do Duc de fls. 29, correspondente ao preço do contrato reportado na alínea a);
Custas em ambas as instâncias pelos RR./Recorridos.
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Oportunamente, cumpra-se o estatuído no art. 48º, nº 4, do Código do Imposto Municipal sobre Transacções Onerosas de Imóveis.

            Coimbra,


[1] Rel.: Helder Almeida
   Adjs.: Drs. Francisco Caetano e
                     António Magalhães.
[2] Ao qual respeitam os demais preceitos doravante a citar sem menção de origem.
[3] Salientado este aspecto, vide Acs. do S.T.J. 18.01.1994 e de 19.03.1998, in Col./STJ, Tomos I, pág. 48 e I, pág. 144, respectivamente.
[4] Cfr. Col./STJ, Tomo II; pág. 155.
[5] Além dos doutos arestos do nosso mais Alto Tribunal referenciados nas notas anteriores, veja-se o Parecer do Prof. M. Henrique Mesquita, in Col., 1986, Tomo 5, pp. 51 e ss..
[6] Cfr. Manual dos Direitos de Preferência, Vol. II, pág. 309.
[7] Cfr. Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., C. Editora, pág. 382.
[8] Neste sentido, cfr. R.L.J.; Ano 103º, pp. 469 e ss., bem como M. Henrique Mesquita, in Obrigações Reais e Ónus Reais, Colecção teses, Almedina, pp. 222 e ss..
[9] Cfr., por todos, Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 3/2001, de 23.01.2001, in D.R. nº 34, Série I-A, de 09.02.2001.
[10] In Col./STJ, Tomo I, pág. 106.
[11] Neste mesmo sentido, cfr. também, o Ac. do S.T.J. de 13.12.1984, in Bol. 342º, pág. 361.