Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2279/05.2TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
Data do Acordão: 05/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA - 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 690.º-A NºS 1 E 2 DO CPC E ARTIGO 7.º DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL
Sumário: 1) O erro na apreciação da prova não configura nulidade da sentença.
2) Não há erro notório na apreciação da prova quando a fundamentação respeita as regras da experiência e as leis que regulam a actividade mental.

3) A presunção derivada do registo predial só abrange o prédio em si, que não a descrição, e não garante os elementos de identificação do prédio.

Decisão Texto Integral: Acórdão no Tribunal da Relação de Coimbra:

           
I. Relatório:
A... e mulher, B... , residentes no lugar de Boialvo, freguesia de ...., intentaram acção com forma de processo sumário, posteriormente corrigida para a forma de processo ordinário, contra C... , residente no lugar de ...., alegando, em resumo, que:
São donos de um prédio urbano composto de casa de habitação com currais, pátio e quintal, sito na freguesia de ..., que adquiriram por compra a D... e mulher, E... , que, por sua vez, o haviam adquirido a F.... e mulher, G.....
No quintal do prédio existe um pavilhão, construído pelo anteproprietário F..., para servir de apoio a uma casa comercial.
Em 23 de Dezembro de 1999, o referido F... vendeu a casa comercial ao réu, mas não o pavilhão, que não fazia parte do prédio vendido.
O réu tem vindo a utilizar e a ocupar o pavilhão e parte do terreno do quintal dos autores, que desaterrou, causando danos, uns já contabilizados, outros por contabilizar.
Concluíram pedindo que o réu fosse condenado a reconhecer que eram donos do prédio identificado, com inclusão do pavilhão e da porção de quintal desaterrada e a entregar-lhes tais espaços livres e desocupados e, bem assim, a pagar-lhes, a título de indemnização, a quantia de € 4.744,00 e a que demais se vier a liquidar em execução de sentença.
O ré, regularmente citado, contestou e deduziu reconvenção, afirmando, no essencial, ser dono do pavilhão e terreno em causa e pedindo a condenação dos autores a reconhecer o seu direito de propriedade sobre os mesmos, bem como a pagar multa e indemnização por litigância de má fé.
Os autores replicaram, de modo a impugnar os factos alegados pelo réu e a manter o teor da petição inicial.
Declaradas, no despacho saneador, a validade e a regularidade da lide, seguiu-se a selecção da matéria de facto, que não mereceu qualquer reparo.
Realizado, finalmente, o julgamento e fixada, após reclamação dos autores, totalmente desatendida, a matéria de facto, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e a reconvenção parcialmente procedente, com a condenação dos autores a reconhecer o direito de propriedade do réu sobre um prédio com determinadas confrontações.
Inconformados, os autores apelaram da sentença, com vista à sua revogação ou à declaração da respectiva nulidade, e apresentaram confusas alegações que remataram com perto de meia centena de conclusões (cópia, quase “ipsis verbis”, da alegação), que se podem resumir, sem grande dificuldade, a, apenas, três, a saber:
1) Os quesitos 19 a 29 foram incorrectamente julgados;
2) Foi omitida a resposta ao quesito 33;
            3) A sentença é nula, por violação do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 1 do CPC.
  O réu não respondeu à alegação dos autores.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
São três as questões suscitadas pelos apelantes:
a) A nulidade da sentença;
b) A alteração da matéria de facto;
c) A questão de fundo.

 

            II. Os factos dados por assentes na sentença:


A) Acha-se inscrito a favor dos autores, na Conservatória do Registo Predial (CRP) de ..., através da inscrição G-6 (Ap. 02/14.07.2004), o prédio urbano sito na Vila, descrito como composto por casa de habitação de um pavimento – 75 m2, com currais – 40 m2, pátio 105 m2 e quintal – 640 m2, confrontando a norte e nascente com ..., sul com F... e do poente com rua, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 433, reconstruído em moradia unifamiliar com 1 piso, com a superfície coberta de 115 m2 e superfície descoberta de 1.069 m2, actualmente omisso na matriz, descrito na CRP sob o n° 04751/030698.
B) Por escritura pública outorgada em 10/11/99, no Cartório Notarial (CN) de ..., lavrada a fls. 86 a 87 verso do Livro de Escrituras Diversas 191-H, F... e mulher G.. declararam vender a D..., pelo preço de 12.800.000$, diversos prédios, entre os quais o prédio referido em A).
C) Por escritura pública outorgada em 24/10/2004, no CN de ..., lavrada a fls. 19 a 20 do Livro de Escrituras Diversas 276-H, D...declarou vender ao autor, pelo preço de 67.338 €, o prédio urbano referido em A).
D) Por escritura pública outorgada 23/12/99, no CN de ..., lavrada a fls. 69 a 70 verso do Livro de Escrituras Diversas 137-D, F... declarou vender ao réu, pelo preço de 1.000.000$, uma casa de habitação composta de rés-do-chão, destinada a habitação, com a superfície coberta de 165 m 2 e logradouro com 859 m2, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1399 e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3312.


E) F... construiu, por volta de 1997, perto da estrada, a poente, um pavilhão envidraçado de rés-do-chão com cerca de 35 m2.
F) Que servia, para além do mais, de armazém de mercadorias da casa comercial de café e snack-bar que tinha instalada no prédio D).  
G) Os prédios A) e D) confinam entre si.
H) O réu tem vindo a utilizar e a ocupar o referido pavilhão.
I) Em finais de 2004, princípios de 2005, foi deitado abaixo um muro de suporte de terras, a poente do pavilhão – muro esse já velho, que estava junto à estrada a poente –, e desaterrado, até ao nível da estrada, o terreno que mediava entre ela e o pavilhão.
J) Com tal desaterro, pretendeu-se criar lugares de estacionamento automóvel para o estabelecimento.
L) O agora mandatário dos autores solicitou, em nome dos seus clientes, F... e mulher G..., ao réu, por carta de 01/02/2005, que entregasse as chaves do pavilhão “ao pretendente a adquirir o imóvel”, dizendo que tal espaço não pertencia ao prédio D).
M) Após a realização da escritura referida em D), F... e mulher continuaram a explorar o estabelecimento comercial referido em 7, bem como parte da habitação até à Primavera de 2000, mediante autorização do réu.
N) Altura em que retiraram todos os bens móveis que não foram englobados no negócio e que se encontravam na casa de habitação e comércio e no pavilhão e entregaram ao réu as chaves dos mesmos.
O) Mediante autorização do réu, a mãe de F... continuou a amanhar o quintal [parte nascente do prédio D)].
P) O pavilhão e o edifício que está atrás dele (para norte) estão incluídos no espaço do prédio D).
Q) O pavilhão situa-se entre a casa de habitação e comércio e um outro edifício [o que está atrás dele, para norte].
R) Nas informações dadas aos interessados pela mulher de F..., esta dava a entender que o prédio D) ia até um poste de electricidade que fica a 36 metros para norte de um outro que está na ponta sudoeste do prédio D), ficando o pavilhão e o edifício atrás dele englobados nesse espaço.
S) O réu e os seus antepossuidores há mais de 24 anos que usufruem do prédio referido em D).
            T) À vista de toda a gente e sem interrupção.


U) Pacificamente e sem oposição de quem quer que seja.
V) Na convicção de que o possuem como coisa exclusivamente sua, que só a eles pertence.
X) O prédio D) confronta do lado norte com F..., começando junto à Estrada Camarária, ao lado da parede norte de um edifício que está atrás do pavilhão, seguindo numa recta pelo lado exterior (norte) desse edifício até ao fim da churrascaria, numa extensão de cerca de 17,5 m, derivando essa linha para sul numa extensão de cerca de 16 m, derivando desse ponto para nascente numa extensão de cerca de 35 m e depois de novo para sul numa extensão de cerca de 15,5 m e depois para poente numa extensão de cerca de 55,55 m, até junto a um poste de electricidade colocado junto à Estrada Camarária.
Z) Do lado poente, o prédio está delimitado pela dita estrada camarária, entre os pontos norte e sul que decorrem da resposta aos quesitos 26 a 28, estando aquele a cerca de 27,5 m para norte deste.
AA) O prédio D) foi adquirido pelo réu com o propósito de o reparar e vender.
AB) O réu tinha o seu prédio apalavrado para venda ao arrendatário, mas a existência do presente processo inviabilizou a concretização desta compra e venda, bem como de outras oportunidades de venda do prédio.

   

            III. O direito:

           

            a) A nulidade da sentença

           

            Convém dizer, à guisa de intróito, que a alegação dos apelantes é tão confusa que só muito dificilmente se logra perceber a sua real intenção em relação a qualquer dos temas focados.

            Por isso, e no que toca, concretamente, à questão da nulidade da sentença, irá transcrever-se toda a matéria alegada:

            «Não existe nos autos, nem o requerido fez qualquer prova da matéria dada como provada na douta sentença que levou à procedência da reconvenção.

            A fundamentação em que se estribou o M.º Juiz para dar tal sentença é manifestamente insuficiente para as conclusões a que chegou para proferir esta sentença.

            A fundamentação invocada não é de modo nenhum clara, nem justifica a decisão proferida. Aliás, os fundamentos invocados estão em oposição com a decisão e só podiam levar à procedência da acção e à improcedência da reconvenção.

            A prova produzida em sede de julgamento e documentos juntos pelas partes levava a decisão completamente contrária à que foi proferida na douta sentença.

            O M.º Juiz omite a matéria e consequente resposta ao quesito 33. A qual era por demais importante. E os recorrentes fizeram prova cabal – testemunhas F..e mulher, de que o muro ali referido foi construído pelo recorrido e delimitava os dois prédios, no sentido nascente/poente.

            Não obstante, na douta sentença faz-se tábua-rasa de tal muro e do que ele significa.

            Verificam-se, no caso vertente, a violação das disposições legais do artigo 668.º, n.º 1, alíneas b), c) e d) do Código de Processo Civil, que foi claramente violado. Pelo que a douta sentença é nula e não produz qualquer efeito, devendo a mesma ser revogada por outra que declare procedente e provada a presente acção e improcedente a reconvenção».

            Aparentemente (é o que se deduz da ligeireza da argumentação) os apelantes não perceberam o regime da nulidade de sentença. Como disse, e bem, o ex.mo juiz do tribunal “a quo”, no despacho proferido ao abrigo do preceituado no n.º 4 do artigo 668.º do CPC, [1] diploma de que serão os demais artigos a citar sem menção de origem, «os autores não dizem, em termos concretos, que fundamentos da sentença estão em oposição com a decisão, ou quais as questões sobre as quais a sentença não se pronunciou, ou quais as questões que conheceu e de que não devia ter tomado conhecimento. Limitam-se a invocar a previsão da norma legal em causa (art. 668/1 do CPC)».

            E, de facto, assim é; os recorrentes não alegam, ainda que de forma minimalista, os pressupostos da nulidade; para eles a sentença é nula, porque os factos em que assenta são contrários à versão por si defendida.

            Só que isso nada tem a ver com a figura da nulidade. De acordo com o preceito invocado pelos apelantes – artigo 668.º, n.º 1, alíneas b), c) e d) –, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão e quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

            Para que se verifique a nulidade da alínea b) não basta que a justificação seja deficiente, incompleta ou não convincente; é preciso que não exista de todo, isto é, que não inclua os factos ou o direito, sendo certo, quanto a este, que não é indispensável a especificação das disposições legais, bastando a indicação da doutrina legal ou dos princípios jurídicos aplicáveis.

            A nulidade da alínea c) postula um vício real no raciocínio do julgador; a fundamentação aponta num sentido, mas a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente. Esta nulidade nada tem a ver, seja com o erro material (contradição aparente, resultante de uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real: escreveu-se uma coisa, quando se queria escrever outra), seja com o erro de julgamento (decisão errada, mas voluntária, quanto ao enquadramento legal ou quanto à interpretação da lei); o erro material e o erro de julgamento podem dar origem à rectificação (aquele) ou à eventual revogação da decisão em via de recurso (este), mas nunca à nulidade.

            A nulidade da alínea d) abrange os casos de omissão de pronúncia e de pronúncia indevida, consistindo o primeiro em o tribunal deixar de conhecer de questões que lhe foram expressamente colocadas e o segundo em apreciar questões que lhe não foram colocadas. A omissão de pronúncia está em correlação com a primeira parte do n.º 2 do artigo 660.º (“o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação”) e a pronúncia indevida com a segunda parte do mesmo número (“não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes”).[2]

            Perpassando os olhos pela sentença, facilmente se constatará que se não perfila qualquer uma das arguidas nulidades, tendo em conta, como é óbvio, as considerações acabadas de explanar; a sentença contém factos (reproduzidos, aliás, neste acórdão) e direito (explicado de forma muito sintética, é certo, mas, em todo o caso, presente, e com indicação das normas jurídicas aplicáveis), o raciocínio do julgador não aparenta vício lógico (a fundamentação aponta exactamente no sentido para que tendeu a decisão) e foram apreciadas todas e cada uma das questões colocadas (relativamente aos autores, as questões da propriedade, da sua violação pelo réu e da responsabilidade extracontratual, e, quanto ao réu, a da propriedade e a da litigância de má fé por parte dos autores), mas nenhuma para além delas.

            Há que dizer, finalmente, que o argumento invocado pelos apelantes, de ter sido omitida a resposta ao quesito 33, não tem a menor razão de ser; em primeiro lugar, e decisivamente, porque o artigo teve, de facto, resposta, como se pode ver a folhas 230 dos autos; depois, porque a eventual falta teria de ser apreciada à luz do preceituado no artigo 712.º, n.º 4.

            Em conclusão, improcede “in totum” a arguida nulidade da sentença.  

            b) A alteração da matéria de facto

            De acordo com o disposto no artigo 712.º, n.º 1, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

            a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida;

            b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

            c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

            Prescreve, por sua vez, o n.º 1 do artigo 690.º-A que, quando se impugne a decisão de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – alíneas a) e b) –, acrescentando o n.º 2 que, no caso de terem sido invocados como fundamento do erro na apreciação das provas depoimentos gravados, cabe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicá-los por referência ao assinalado na acta, nos termos do artigo 522.º-C.

            Dispõe, finalmente, este último normativo, no seu n.º 2, que tendo havido registo áudio, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos.

            A alegação dos apelantes não é, propriamente, um modelo a seguir, como acima se disse a propósito do item da nulidade da sentença, sendo notória a sua falta de rigor em três aspectos: no da identificação dos pontos tidos por incorrectamente julgados (começam por fazer referência aos quesitos 19 a 29, mas, posteriormente, fazem incidir o essencial da sua crítica sobre os pontos 21 a 25 e 26 a 28), no do sentido que deveriam ter as respostas (completamente omitido) e no da localização dos depoimentos que, em seu entender, imporiam decisão diversa, no suporte em que estão inseridos (não mencionam o número da cassete nem o início e termo de cada depoimento).

            Pensa-se, ainda, assim, ser de apreciar a impugnação da matéria de facto, com referência aos quesitos primeiramente indicados (19 a 29) e no entendimento de que a pretensão dos recorrentes é a de os considerar não provados, por duas ordens de razões: por um lado, porque tais quesitos, dados por provados (nalguns casos, com restrições), incorporam matéria alegada pelos recorridos e que lhes é claramente favorável; por outro, porque foi junta transcrição dos depoimentos que, pretensamente, apoiam a versão dos apelantes, o que constitui, pode dizer-se, um mais em relação à simples localização no suporte de gravação.

            É evidente que os apelantes incorreram no equívoco de julgar a aplicável ao caso o artigo 685.º-B, quando este rege, apenas, para os processos instaurados a partir do ano de 2008; mas seria sanção excessiva impedi-los de fazer valer a sua tese por um lapso de tão pequena monta, tendo em atenção, sobretudo, que é muito mais oneroso (e cumpre, afinal, a mesma função) transcrever os depoimentos prestados do que indicar a sua situação no registo áudio efectuado.

            Passemos, então, a aferir a viabilidade da impugnação da matéria de facto.

            Os artigos da base instrutória cujas respostas foram contestadas estão assim formulados:

            19.º – O pavilhão e a leitaria estão incluídos dentro do prédio referido em D)?

            20.º – O pavilhão situa-se entre a casa de habitação e comércio e a antiga leitaria?

            21.º – Nas instruções dadas às várias imobiliárias e nas informações dadas ao réu pelo F..e mulher, sempre estes fizeram menção que o prédio referido em D) compreendia a casa de habitação e comércio, o pavilhão e a leitaria?

            22.º – O réu e os seus antepossuidores, há mais de 10, 20, 30, 40 anos, que usufruem do prédio referido em D) – no qual estão incluídos o pavilhão e a leitaria – fazendo obras de estrutura e manutenção, reparando os telhados, pinturas exteriores e interiores, dando-o de arrendamento e recebendo as respectivas rendas, sempre pagando as respectivas contribuições e impostos?

            23.º – À vista de toda a gente e sem interrupção?

            24.º – Pacificamente e sem oposição de quem quer que seja?

            25.º – Na convicção de que o possuem como coisa exclusivamente sua, que só a eles pertence?

            26.º – O prédio referido em D) confronta do lado norte com H... , começando junto à estrada camarária, junto a um poste de corrente eléctrica numa recta longitudinal para nascente, numa extensão de 20,50 metros, derivando essa linha para sul numa extensão de 23 metros e derivando desse ponto para nascente numa extensão de 35 metros?

            27.º – Do lado nascente, a sua delimitação começa numa linha recta longitudinal a norte, que se estende em direcção a sul numa extensão de 15,49 metros?

            28.º – Do lado sul, o prédio (referido em D) está delimitado por uma linha que se inicia a nascente e se estende para poente em direcção à estrada camarária, numa extensão de 55,55 metros?

            29.º – Do lado poente, o prédio está delimitado pela dita estrada camarária, iniciando-se o seu limite num ponto a sul, estendendo-se por uma linha recta longitudinal para norte, junto ao referido poste eléctrico, numa extensão de 36 metros?           

            As respostas foram as seguintes:

            19.º: Provado, apenas, que o pavilhão e o edifício que está atrás dele (para norte) estão incluídos no espaço do prédio D).

            20.º: Provado que o pavilhão situa-se entre a casa de habitação e comércio e um outro edifício.

            21.º: Provado apenas que nas informações dadas aos interessados pela mulher do F..., esta dava a entender que o prédio D) ia até um poste de electricidade que fica a 36 metros para norte de um outro que está na ponta sudoeste do prédio D), ficando o pavilhão e o edifício atrás dele englobados nesse espaço.

            22.º: Provado que o réu e os seus antepossuidores há mais de 24 anos que usufruem do prédio referido em D).

            23.º a 25.º: Provado.

            26.º a 28.º: Provado apenas que o prédio D) confronta do lado norte com H.., começando junto à estrada camarária, ao lado da parede norte de um edifício que está atrás do pavilhão, seguindo numa recta pelo lado exterior (norte) desse edifício até ao fim da churrascaria, numa extensão de cerca de 17,5 metros, derivando essa linha para sul numa extensão de cerca de 16 metros, derivando desse ponto para nascente numa extensão de cerca de 35 metros e depois de novo para sul numa extensão de cerca de 15,5 metros e depois para poente numa extensão de cerca de 55,5 metros, até junto a um poste de electricidade colocado junto à estrada camarária.

            29.º: Provado apenas que do lado poente o prédio está delimitado pela dita estrada camarária, entre os pontos norte e sul que decorrem da resposta aos quesitos 26 a 28, estando aquele a cerca de 27,5 metros para norte deste.

            Antes de analisar a pretensão dos autores (alteração das respostas aos quesitos 19.º a 29.º), convirá, para uma correcta compreensão da situação, precisar os respectivos contornos.

            Autores e réu são donos de prédios confinantes, que pertenceram a F... e mulher. O prédio que hoje é dos autores teve um proprietário intermédio (D...), ao passo que o do réu foi adquirido directamente ao referido F....

            O que, realmente, se discute é a extensão de cada qual dos prédios, divergindo as partes quanto à propriedade de um pavilhão e de uma outra construção sita a norte deste (terá sido, em tempos, uma leitaria ou ordenha), que, segundo os autores, teriam sido incluídos na venda feita pelo primitivo proprietário (o mencionado F...) a D..., de quem eles os adquiriram, e, segundo o réu, fariam parte do prédio que comprou ao mesmo F....

            No essencial, o ex.mo juiz deu por provada a versão do réu (mas restringiu a área e os limites por ele indicados) e por não provada a dos autores. Quanto à fundamentação, acolheu os depoimentos das testemunhas I... e J... , que residem no local, valorizou uma fotografia aérea tirada do programa do sítio do Lusiglob (em relação às áreas) e retirou crédito às testemunhas F... e mulher, G.., que depuseram em sentido favorável à alegação dos autores.

            E é nos depoimentos destas testemunhas que os apelantes se estribam para requerer a alteração da matéria de facto, pois, como dizem, “só estas testemunhas sabem o que venderam ao recorrido”.

            Mas não é essa a convicção que se extrai do conjunto da prova produzida. Ao todo, foram inquiridas sete testemunhas: quatro arroladas pelos autores ( F..., a mulher deste, G..., L... e M... ) e três pelo réu (I... , J... e O....).

            As duas primeiras testemunhas dos autores, F... e mulher, confirmaram, na íntegra, a versão daqueles, sustentando que só venderam ao réu uma casa de habitação e comércio com quintal, mas sito este atrás da casa, não incluindo a venda, portanto, o pavilhão e o terreno que aqui estão em discussão.

            A testemunha L..., que é prima da mãe da testemunha F..., viveu ao pé deles e não conhece os autores nem o réu, disse que o prédio vendido ao réu estava separado do que é, agora, dos autores por um muro, que se recorda de a testemunha F..ter construído o pavilhão, que este não fazia parte da casa comercial e que achava que o referido F..o não vendera ao réu; afirmou, por outro lado, que, depois da venda, a testemunha F..não continuou a explorar o estabelecimento, que esteve fechado durante cerca de dois anos: interrogada pelo ex.mo advogado do réu, declarou nunca ter visto a pessoa que comprou o prédio que hoje é dos autores à testemunha F..(D...) e não poder afirmar o que é que aquele vendeu ao réu. 

            A testemunha M..., que é funcionário da Câmara Municipal de ..., disse não conhecer os autores nem o réu e conhecer a testemunha F..., por a mesma ter explorado o estabelecimento que foi vendido ao réu, onde ele parava quando passava no local; em determinada altura, a testemunha F..perguntou-lhe se conhecia alguém que quisesse comprar a casa e o comércio e o que estava para trás; há cerca de um ano encontrou a testemunha F..., que lhe disse ter vendido o prédio e que lhe haviam apanhado um bocado; já não conheceu, mas a testemunha F..falou-lhe que, mais acima, para além do passeio, tinha existido uma leitaria e uma ordenha; o pavilhão estava para além do passeio; sabe, por fim, que o estabelecimento esteve fechado durante bastante tempo.

            A testemunha I...vive em Aguada de Cima há uns 40 anos, mesmo em frente ao estabelecimento vendido ao réu; conhece a testemunha F..., porque esta vivia no local, conheceu o réu depois de este comprar o prédio e não conhece os autores; depois da venda, a testemunha F..ainda ficou a explorar o estabelecimento e a viver na casa durante algum tempo; do estabelecimento fazia parte uma garagem; o pavilhão foi construído para apoio do estabelecimento, servindo como armazém e sala de jogos; o que o réu dizia é que tinha comprado, também, o pavilhão e a garagem; depois da compra, o réu pintou a casa e o pavilhão, tapou a porta da garagem e retirou um portão de acesso à mesma; a casa foi vista por muita gente antes de o réu comprar, sendo que a mulher da testemunha F..indicava que o que estava à venda era tudo quanto o réu ocupa agora; o prédio foi usufruído pela mãe da testemunha F..., depois, por este, e, finalmente, pelo réu.

            A testemunha J..., que é casada com a anterior, vive no local, não conhece os autores, mas conhece o réu (depois da compra) e a testemunha F..., que é seu vizinho; não fala com a testemunha F..nem com a respectiva mulher, devido a “problemas” ocorridos lá na rua; depois da venda, a testemunha F..continuou a explorar o estabelecimento; pouco depois de este ter saído o réu mandou fazer obras na casa e no pavilhão, retirou um portão de acesso a uma rampa que dava para uma garagem sita mais acima e tapou a porta de tal garagem; esta garagem tinha sido em tempos uma leitaria e, depois, uma oficina; depois de o réu ter comprado, a mãe da testemunha F..continuou a amanhar o quintal da casa durante uns tempos, tendo o réu referido que o fazia com autorização dele; viu a mulher da testemunha F..a mostrar o prédio a um interessado, sendo que ela lhe dizia que o que estava em venda era a casa, o pavilhão, a churrasqueira e a garagem; cada qual em seu tempo, o prédio foi usufruído pela mãe da testemunha F..., por esta testemunha e, depois da venda, pelo réu; a testemunha F..utilizava o pavilhão como sala de jogos; o réu serve-se dele como armazém.    

            A testemunha O... é a pessoa que explora o estabelecimento desde 2004; o negócio foi-lhe apresentado por uma imobiliária, que lhe disse entrarem no mesmo a casa e o pavilhão; utilizou sempre o pavilhão, sendo que nunca alguém lhe levantou entraves à utilização; a própria mãe da testemunha F..., que amanhava parte do quintal, com autorização do réu, segundo este, nunca lhe disse que estivesse a ocupar o que não era dele; nunca ocupou a leitaria ou a ordenha (resposta dada a pergunta do ex.mo mandatário dos autores).

            Antes de prosseguir, convirá dizer que não é inteiramente exacto o afirmado pelos apelantes de que a decisão de facto foi alicerçada na falta de aceitação dos depoimentos das testemunhas F..e mulher e na impressão de uma fotografia aérea.

            É verdade que o ex.mo juiz desvalorizou os depoimentos das mencionadas testemunhas; mas não o é que só tenha atendido à impressão fotográfica; no essencial, a decisão assentou nos depoimentos das testemunhas I...e mulher, que moram em frente ao prédio vendido há dezenas de anos; a impressão fotográfica, tirada do programa do sítio do Lusiglob, portal geográfico de Portugal, que se encontra junta aos autos, serviu, acima de tudo, para achar a área do prédio vendido, partindo das confrontações indicadas pelas testemunhas, que, curiosamente, até é inferior à pretendida pelo réu (1217 m2) e corresponde, com uma pequena diferença, que se pode considerar desprezível, à que consta da escritura de venda: nesta fala-se em 1024 m2 e a fotografia aponta para 1065 m2. Diferença, de resto, bem menor do que a que resulta da tese dos autores; é que, a considerar-se que o pavilhão e o restante terreno questionado não pertenciam ao prédio vendido ao réu, este teria, apenas, segundo a mesma fotografia, 845 m2, ou seja, menos 220 m2 do que os 1065 m2 vendidos.

            Os depoimentos das referidas testemunhas (estarem o pavilhão e o terreno questionados incluídos na venda, até porque verificaram, presencialmente, que essa foi a indicação feita pela mulher do vendedor a interessados no negócio, e ter o réu efectuado obras no pavilhão e no edifício situado imediatamente atrás dele no ano de 2000, ou seja, pouco depois da aquisição, sem a oposição de quem quer que seja), associados ao facto de o pavilhão ter sido construído com a finalidade de dar apoio ao estabelecimento, apontam decisivamente no sentido da correcção do julgamento de facto, que, aliás, se mostra extremamente bem fundamentado.

            Contra isto não valem os depoimentos das testemunhas F..e mulher, porque, em verdade, e tal como se considerou na motivação dos factos provados, é nula a sua credibilidade, por estarem, manifestamente, a defender interesses próprios. O marido referiu-se, por diversas vezes, ao prédio (ao que foi objecto de venda aos autores) como sendo seu e chegou mesmo a dizer que foi ele que o vendeu aos autores, quando tal venda foi realizada por D..., a quem o referido F..o vendera anteriormente; ao que tudo indica, D...nunca comprou o prédio para si, mas para o transferir para os autores, agindo, portanto, como mero testa de ferro da testemunha F.... A mulher, por seu turno, afirmou expressamente que eram eles (ela e o marido) que mandavam e que aquilo era a herança das filhas.

            Relevante, também, neste contexto, é a circunstância de a testemunha F..ter declarado que conhecia os autores por lhes ter vendido o prédio, quando a sua filha é casada com um filho dos autores; se as coisas são o que parecem, o seu intuito seria o de esconder do tribunal uma situação que, julgaria ela, lhe poderia ser desfavorável; o pormenor nada tem, como é evidente, de abonatório.

            Os depoimentos destas testemunhas são, pois, falhos de credibilidade, tal como se decidiu em primeira instância, não tendo força para contrariar a demais prova produzida, mormente a de cariz mais objectivo, como o é a finalidade para que o pavilhão foi concebido (apoio ao estabelecimento), o uso que dele foi feito (sala de jogos e armazém, quer por parte da testemunha F..., enquanto teve a exploração do estabelecimento, quer, depois, pela pessoa a quem o réu o cedeu) e as obras nele executadas pelo réu após a aquisição, sem que os autores alguma vez se tivessem oposto.

            Não se vê, portanto, como alterar as respostas no sentido pretendido pelos autores, quando no nosso regime processual vigora o princípio da livre apreciação da prova (artigo 655.º, n.º 1, do CPC) e o julgador fundamentou de acordo com as mais elementares regras da experiência e segundo as leis que regulam a actividade mental.[3]

            Não patenteada a desconformidade flagrante entre os elementos de prova e o julgamento de facto, é claro que não pode ter lugar a alteração pretendida pelos apelantes.

            Nesta parte, portanto, improcederá o recurso.

            c) O mérito da acção

            O pedido dos apelantes, formulado na acção, foi a de que se declarasse o seu direito de propriedade sobre o prédio identificado na alínea A) dos factos assentes e que tal prédio incluía um pavilhão e uma porção de terreno que vêm sendo ocupados pelo réu. Invocaram, para tanto, a presunção de propriedade derivada da inscrição no Registo Predial e a aquisição por via de usucapião.

            O réu, por sua vez, deduziu reconvenção, tendente a obter o reconhecimento de que o seu prédio, descrito na alínea D) dos mesmos factos, abarcava aqueles pavilhão e porção de terreno.

            Na sentença considerou-se não terem os autores feito prova da propriedade com a extensão pretendida, porque, por um lado, a realidade material descrita lhe não dava cobertura, e, por outro, a posse resultara infirmada, em função das respostas aos pertinentes quesitos; consequentemente, julgou-se a acção improcedente.

            Já a pretensão do réu mereceu acolhimento, embora parcial (foram julgadas diferentes as confrontações do prédio), sob o entendimento de se ter provado a posse pelo tempo necessário à aquisição por usucapião.

            A lógica dos apelantes, exposta nas alegações de recurso, é a de que a alteração da matéria de facto pela forma por si indicada haveria de conduzir à procedência da acção e à improcedência da reconvenção.

            Dito de outro modo, não questionam a decisão enquanto baseada nos factos que foram dados por provados; o que discutem é a matéria de facto, cuja alteração levaria a diferente solução do pleito.

            É claro que, tal como as coisas foram colocadas, a improcedência da questão de facto resolve definitivamente a questão.

            De qualquer modo, sempre se realçarão dois aspectos:

            O primeiro, o de que a alteração da matéria de facto pela forma pretendida, isto é, dando-se por não provados os quesitos 19.º a 29.º, apenas teria como consequência a improcedência da reconvenção, mas não, já, a procedência da acção, porque os autores não impugnaram as respostas negativas aos quesitos 1.º a 5.º, que comportavam a matéria relativa à sua alegada posse sobre o pavilhão e terreno adjacente.

            O segundo, o de que se não vislumbra equívoco algum nas considerações de direito e subsequente decisão.

            Por via da presunção derivada do registo (artigo 7.º do Código do Registo Predial) não podiam os autores ser declarados proprietários do pavilhão e terreno em causa, porque estes não estão, efectivamente, inscritos em seu nome; o que consta do registo é uma casa com currais e quintal, nada havendo que permita concluir que esteja aí abrangida a porção questionada. De resto, a presunção só abrange o direito inscrito, que não a descrição [4] e não garante os elementos de identificação do prédio.[5]

            Por via da usucapião ou da simples presunção derivada da posse, também não, na exacta medida em que os quesitos que a tal se referiam foram julgados não provados.

            Logo, a acção não poderia deixar de improceder.

            Quanto à reconvenção, provou-se que o pavilhão e terreno estão incluídos no prédio adquirido pelo réu a F..., que era seu legítimo dono, como ninguém discute; mas provou-se, igualmente, que o réu os vem possuindo desde há mais de 24 anos, por si e pelas pessoas a quem adquiriu (artigo 1256.º do CC). Sendo a posse titulada, pacífica, de boa fé e pública (cfr. as alíneas T) a U) dos factos assentes), é evidente que decorreu há muito o prazo para a aquisição por usucapião, mesmo o prazo mais longo a que alude o artigo 1296.º daquele diploma.

            Nenhuma censura, merece, por conseguinte, a sentença que, assim, não pode deixar de ser confirmada.

            IV. Resumindo:

            1) O erro na apreciação da prova não configura nulidade da sentença.

            2) Não há erro notório na apreciação da prova quando a fundamentação respeita as regras da experiência e as leis que regulam a actividade mental.

            3) A presunção derivada do registo predial só abrange o prédio em si, que não a descrição, e não garante os elementos de identificação do prédio.

            V. Decisão:

            Em face do exposto, julga-se a apelação improcedente, em razão do que se confirma a sentença apelada.

            Custas pelos apelantes.


[1] A redacção a considerar é a anterior à introduzida pelo Decreto-lei n.º 303/07, de 24 de Agosto.
[2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, volume V, páginas 130 e 141 e seguintes, e Antunes Varela e outros, Manual de processo Civil, 2.ª edição, páginas 686 e seguintes.
[3] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, volume III, página 245.
[4] Acórdão do STJ, de 27.01.93, CJ de Acórdãos do Supremo, ano I, Tomo I, página 100.
[5] Acórdão do STJ, de 11.05.93, CJ citada, Tomo II, página 95.