Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ANA CAROLINA CARDOSO | ||
Descritores: | FALSAS DECLARAÇÕES PRINCÍPIO DA LEGALIDADE CONSTITUCIONALIDADE | ||
Data do Acordão: | 02/17/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO – J1) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 348.º-A DO CP; ART. 29.º, N.º 1, DA CRP | ||
Sumário: | I – As diversas acções típicas susceptíveis de preencher o tipo objectivo do crime de falsas declarações p. e p. no art. 348.º-A do CP encontram-se descritas de forma suficientemente precisa e inteligível, permitindo, com adequada precisão, que os destinatários da norma orientem, em conformidade, o seu comportamento. II – Acresce que, por reporte ao segmento final do art. 348.º-A, podendo uma mesma conduta criminosa preencher vários ilícitos penais, o referido tipo legal de crime resolveu a questão do concurso de crimes, tornando claro que o agente apenas será punido por um deles, a saber, o crime que previr a pena mais grave. III – Em toda a sua dimensão normativa, o artigo 348.º-A do CP não viola o princípio da legalidade criminal e, consequentemente, o artigo 29.º, n.º 1, da CRP. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em Conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I. RELATÓRIO 1. Por sentença de datada de 24 de janeiro de 2020, proferida pelo Juízo Local Criminal de Castelo Branco – J1, da Comarca de Castelo Branco, no processo comum n.º 837/17.1T9CTB, foi decidido:
2. Inconformada com a decisão, dela recorreu a arguida L., formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem na parte relevante):
3. O Ministério Público, em primeira instância, e a assistente I. responderam ao recurso, sustentando a manutenção da decisão recorrida.
4. Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da total improcedência do recurso. (transcrição das partes relevantes para o conhecimento do recurso) «Factos provados: (…) Mais se provou que: (…). III. III. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO (…)
IV. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS (…).
V. ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA (…). * QUESTÕES A DECIDIR O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente [cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010: “É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95). São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, e devem por isso ser concisas, precisas e claras. Se estas ficam aquém, a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões, e se vão além da motivação também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336). É o que sucede no caso dos autos, no tocante ao pedido de substituição da pena de multa por uma admoestação (art. 60º) ou dispensa de pena (art. 74º do Código Penal) efetuada pela recorrente no final das suas conclusões – e apenas no petitório. Na verdade, compulsada toda a motivação do recurso, em lado algum a recorrente coloca em causa quer a medida da pena concretamente aplicada, quer a sua substituição, sendo a motivação completamente omissa no que toca à pena aplicada. Não se encontrando motivado, nem, em rigor, constando das conclusões formuladas, não será atendido, nesta parte, o pedido formulado pela recorrente. Assim, são as seguintes as questões a decidir: a) Utilização de meio de prova proibido; b) Matéria de facto: erro notório na apreciação da prova; c) Preenchimento dos elementos do tipo legal de crime e verificação de causas de exclusão da ilicitude e da culpa; e d) Inconstitucionalidade do tipo legal de crime. * IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO 1. Meio de prova proibido O art. 355º do Código de Processo Penal estabelece os princípios vigentes em sede de proibição de valoração de provas, da seguinte forma: “1. Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. 2. Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas nos termos dos artigos seguintes.” O art. 357º do Código de Processo Penal, por seu turno, rege a admissibilidade da reprodução da leitura de declarações anteriormente feitas no processo, e reduzidas a auto, nos termos dos arts. 99º, n.º 1, e 275º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo a leitura de ficar a constar da ata de julgamento para as declarações em causa poderem ser consideradas meio de prova válido - sujeitas, naturalmente, ao principio da livre apreciação consagrado no art. 127º do mesmo Código. Relativamente à prova documental constante dos autos, nomeadamente a indicada como meio de prova na acusação, tem sido unanimemente entendido não ser necessária a sua leitura ou exibição em audiência, porquanto a sua análise está ao dispor dos sujeitos processuais, que relativamente à mesma são livres de exercer o contraditório em sede de julgamento, pela forma que considerem adequada (veja-se, a título exemplificativo, o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 87/99, disponível em www.pgdlisboa.pt). A recorrente coloca em causa a valoração das declarações que prestou no âmbito de processo de inventário, uma vez que não foi assistida por defensor, condição para que as mesmas pudessem ser valoradas. No entanto, parece a recorrente ignorar que as declarações em causa não foram prestadas no âmbito do processo, nem num outro processo penal, tratando-se de declarações extraprocessuais, referindo-se a fundamentação da matéria de facto vertida na sentença recorrida às declarações constantes da Ata de Declarações de Parte no processo de inventário que constam de fls. 21 a 26 dos autos. Desde logo, compulsada a fundamentação da matéria de facto dada como provada, constata-se que é afirmado, na sua pág. 8, ter este documento (onde e encontram vertidas declarações prestadas pela arguida naquele processo de inventário) sido determinante para dar como provada a matéria constante dos pontos 10 e 20 – a saber, que a “construção rural” a que se reportava a arguida na escritura de justificação correspondia à “casa nova”; e que na data mencionada na ata de declarações de parte a arguida produziu tais declarações. Atendendo ao teor daquele facto provado em 20, e tendo em consideração o crime que é imputado nos autos à recorrente (falsas declarações), as declarações extraprocessuais proferidas pela arguida constituem elas próprias elemento do crime, sendo imprescindível a consideração de depoimento ou declaração proferida como facto constitutivo do crime, relevante para a decisão da causa penal. No caso, trata-se de declarações que foram consideradas de uma forma muito limitada, e que foram consideradas em conjunto com o alegado em requerimentos apresentados pela recorrente no processo de inventário, o requerimento apresentado no Serviço de Finanças relativamente ao prédio, a que se refere o facto provado em 10, e as declarações prestadas pela recorrente em audiência de julgamento. Atendendo ao teor dos factos 10 e 20, impõe-se concluir que o meio idóneo para a sua prova é a certidão extraída do processo em que a recorrente profere as declarações em causa, a qual, para todos os efeitos, está sujeita ao regime próprio da prova documental. Acresce que “a valoração da prova documental não se encontra sujeita às mesmas restrições que a prova pessoal, não estando dependente da sua exibição, leitura ou audição em julgamento” (cf. Ac. da Relação de Évora de 8.3.2018, no proc. 35/16.1T9STR-E1, em www.dgsi.pt) – nem, naturalmente, a prova documental que consubstancia o próprio facto dado como provado. Pelas razões expostas, e atendendo aos limites com que foi considerado o documento que contém as declarações da arguida, conclui-se que a valoração feita pelo Tribunal a quo é lícita. Consequentemente, não haverá lugar à invalidação do juízo de prova que assentou nessa valoração. * Na conclusão 3 do seu recurso, a recorrente anuncia pretender impugnar os factos provados nos pontos 8 a 17, e 22 a 27 da matéria de facto provada. E, ao longo da sua motivação recursiva, a recorrente invoca ainda padecer a decisão do vício de erro na apreciação da prova. Importa, em primeiro lugar, efetuar a distinção entre as duas vias possíveis de efetivar o recurso sobre a matéria de facto, e que são as seguintes: 1º - através da arguição de vício de texto da decisão recorrida, nos termos do art. 410º, n.º 2, do CPP; ou 2º - através do recurso amplo ou efetivo em matéria de facto, previsto no art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP.
No primeiro caso, trata-se de um vício da decisão, sendo considerado como incidente sobre matéria de direito, porquanto terá de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e versar sobre uma das seguintes vertentes:
Porém, e salvo o devido respeito, não se enquadra a sua motivação recursiva em qualquer dos vícios da decisão previstos na norma referida (art. 410º, n.º 2). Na verdade, nenhuma insuficiência ou erro notório na apreciação da prova vêm invocados na motivação e nas conclusões enunciadas pelo recorrente, antes resultando que a recorrente pura e simplesmente discorda da avaliação da prova produzida efetuada pela primeira instância – recorrendo inclusive a elementos exteriores à própria sentença para fundamentar a sua conclusão recursiva. Refira-se, aliás, que compulsada a factualidade apurada e a fundamentação vertida na decisão recorrida, não se vislumbra, através da análise do texto da decisão (requisito fundamental para a aplicabilidade do n.º 2 do art. 410º do CPP), a existência de qualquer de erro notório, nos termos acima enunciados. Por outro lado, constituindo o erro notório na apreciação da prova uma desconformidade com a prova produzida em julgamento ou com as regras da experiência (a saber, decidiu-se contra o que se provou ou não provou, ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido), nunca se inclui no mesmo uma sindicância do recorrente à forma como o tribunal recorrido valorou as provas perante si produzidas em audiência de julgamento, segundo o princípio da livre apreciação da prova, consignado no art. 127º do CPP. Em suma, pretendendo o recorrente sindicar a valorização dos meios de prova efetuada pelo tribunal recorrido, e que determinou o assentamento dos factos objeto do presente recurso, encontramo-nos, pois, no âmbito do recurso amplo da matéria de facto, a que alude o art. 412º do CPP. Neste caso, a recorrente teria de se socorrer das provas examinadas na audiência da primeira instância, devendo especificar, sob pena de rejeição: - os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados; - as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e - as provas que devem ser renovadas (artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal). E quando as provas tenham sido gravadas, a referida especificação deve efetuar-se por referência ao consignado em ata (quanto ao meio de prova registado, seu início e termo), devendo a recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (artigo 412º, nº4, do Código de Processo Penal).
E que impugnação é efetuada pela arguida no recurso interposto? A motivação recursiva refere, de forma genárica, uma impugnação dos factos provados em 8 a 17, e 22 a 27. Vejamos qual a impugnação efetuada, atentos os requisitos enunciados: “8-A arguida, em (…), apresentou, no Serviço de Finanças de Castelo Branco -2, um requerimento no qual requeria que fosse retificada, no prédio rústico sito em (…), na freguesia de (…), concelho de Castelo Branco, inscrito na matriz cadastral sob o artigo (…) seção AA, a parcela 2 da qual consta urbano, no sentido de que a mesma passasse a construção rural; 9-No dia (…), depois de outorgar a referida escritura pública, a arguida apresentou um requerimento, naquele serviço de finanças, em que desistiu do requerimento referido em 8, tendo, nesta sequência, o processo de cadastro sido arquivado” Como meios de prova para concluir de forma distinta à consignada como provada, afirma terem tais requerimentos sido apresentados pela mãe da arguida, e por esta assinados por aquela não saber assinar. No entanto, tal alegação não tem correspondência nos documentos em causa, constantes de fls. 59 e 60 dos autos, porquanto ambos são titulados e assinados pela arguida, L., na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de M.. Tanto basta para a improcedência da impugnação efetuada. “10- Contudo, a referida «construção rural» a que se reportava a arguida, quer no requerimento apresentado no serviço de finanças, quer na escritura de justificação, correspondia ao prédio urbano («casa nova») inscrito na matriz urbana sob o artigo (…), da freguesia de (…)” A recorrente afirma que pretendeu antes justificar a (…) e a (…), que teria comprado à assistente, sua irmã, em agosto de 2006. Invoca para prova desta versão as suas declarações, prestadas em audiência de julgamento. Da fundamentação da sentença consta, a propósito, o seguinte: “Acresce que as condutas adotadas pela arguida – que assumiu ter querido adquirir a (…) e também a ‘….’ (…) são manifestamente incompatíveis com a postura que a mesma disse ter assumido, ou seja, a postura de não querer herdar ou ficar com o que quer que fosse e de só ter marcado presença na reunião ocorrida em 2006 por insistência da sua mãe e da assistente, que lhe tentavam fazer ver que era herdeira como os outros (…) Diga-se ainda que foi notória a fragilidade das declarações da arguida, em particular quando inquirida de forma mais concreta e incisiva sobre algumas das suas atuações, tendo a mesma procurado desresponsabilizar-se, dizendo que tinha assinado o que lhe tinham dado para assinar, que não tinha culpa do que a Dra. (…) fazia e que nem percebia o português (quando é manifesto que, apesar de ter algumas dificuldades, a arguida percebeu perfeitamente o que lhe era perguntado, sabendo igualmente ler nesta língua). Além de as declarações da arguida terem sido inconsistentes e inverosímeis, há que mencionar que as mesmas foram ainda frontalmente contrariadas pelas declarações da assistente e os depoimentos das testemunhas de acusação (…)”. Em suma, de forma lógica, coerente, e consentânea com a experiência comum, não atribuiu o tribunal a quo credibilidade às declarações prestadas pela arguida em julgamento – o que a recorrente pretende inverter, substituindo a sua própria convição à convição do tribunal, o que manifestamente não constitui fundamento para o provimento da sua pretensão. Não especifica a recorrente quais os pontos de facto em concreto que pretende impugnar através de outros meios de prova que indica, como o levantamento topográfico ou o que designa de “expediente técnico utilizado em todos os atos notariais de justificação”, não correspondendo ao que “efetivamente foi dito pela arguida” – o que não é percetível, uma vez que o que decorre das regras da experiência comum é que os factos transmitidos pelos outorgantes de qualquer ato notarial são expressos em linguagem técnico-jurídica adequada, e nada mais -; ou a prova documental que refere no art. 14º da sua motivação, de forma claramente insuficiente para a respetiva identificação nos autos. De modo genérico, pretende a recorrente impugnar a prova de que “sabia que o prédio que justificara não lhe pertencia” (art. 9º da motivação), sem esclarecer qual o facto provado que coloca em crise (o 23? 24? 25?...), que “a Arguida quis justificar, apenas, a ‘….’ e a ‘…’ (art. 15º da motivação), sem cumprir o ónus imposto pelo n.º 3 do art. 412º do Código de Processo Penal. Assim, em lugar de indicar de forma especificada cada um dos factos que pretende impugnar, e carrear, facto a facto, os elementos imprescindíveis à pretendida impugnação, limita-se a discordar, genericamente, das conclusões referidas que o tribunal a quo terá alcançado, efetuando uma distinta interpretação geral da prova produzida. Em suma, o recurso interposto, nesta parte, não pode ser considerado como incluindo uma impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pois não é cumprido o ónus da especificação referido no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, na medida em que não são indicados, nem na Motivação nem nas Conclusões, os concretos meios de prova que, para cada um dos factos impugnados, deveriam ser atendidos, indicando o específico conteúdo da prova, efetuando a correspondência aos factos que entende erroneamente julgados, e explicando o motivo pelo qual essa prova impõe decisão diversa (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 4ª ed., pág. 1144). Desta feita, conclui-se pela inexistência de vícios da decisão (art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal), pela improcedência da impugnação da matéria de facto efetuada, e pela rejeição da restante impugnação da matéria de facto anunciada.
3. Preenchimento dos elementos do tipo legal de crime, e verificação de causas de exclusão da ilicitude e da culpa No tocante ao preenchimento do tipo objetivo do crime de falsasa declarações, p. e p. pelo art. 348º-A do Código Penal, entende a recorrente que, impondo o art. 117º-C (norma citada certmente por lapso) do Código do Notariado a intervenção de 3 testemunhas para atestar a veracidade das declarações no processo de justificação notarial, as declarações da arguida, só por si, nada valem, não tendo relevância jurídica se não existir tal corroboração – concluindo que não poderá cometer o crime desacompanhada daquelas testemunhas. Estabelece a norma incriminadora que “Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”; sendo certo que “Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa” (art. 348º-A, n.ºs 1 e 2, do Código Penal). Assim, comete este crime quem: Nesta última alínea inclui-se a escritura de justificação notarial, cuja outorga se encontra regulada nos arts. 89º e s. do Código do Notariado. O art. 89º, n.º 1, sob a epígrafe Justificação para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial, estabelece o seguinte: 1 - A justificação, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais. 2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião. E o art. 96º do mesmo Código do Notariado, no seu n.º 1, dispõe que “As declarações prestadas pelo justificante são confirmadas por três declarantes”. Ou seja, pressupõe a outorga do documento autêntico (art. 363º, n.º 2, do Código Civil) a emissão de declaração do interessado, e a sua confirmação por 3 testemunhas/declarantes não interessados. A partir do momento em que este requisito (declaração do interessado + confirmação por 3 pessoas não interessadas) se encontre preenchido, e que o documento autêntico seja exarado em conformidade com as declarações do interessado, o crime encontra-se consumado. É verdade que obstaria à verificação do crime, e mesmo à outorga da escritura de justificação, a não corroboração por 3 pessoas das declarações que o interessado efetue para o fim visado; porém, no caso tal requisito encontra-se preenchido, nada obstando a que seja atribuída relevância jurídica à escritura pública. Nem a exigência legal de corroboração das declarações do interessado por 3 declarantes impõe que sejam todos acusados e julgados pela prática do crime, opção que cabe ao titular do inquérito, e detentor da competência para acusar: o Ministério Público. Sendo o crime de falsas declarações um crime comum, a comparticipação criminosa/autorias paralelas rege-se pelas suas regras próprias (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª ed., pág. 1109). Relativamente ao alegado facto de o prédio justificado não existir, sendo o crime de consumação impossível, não se encontra refletido na factualidade provada, antes constando que a recorrente pretendeu obter um título justificativo da aquisição da propriedade de um prédio rústico com a área de 920 m2, inscrito na matriz sob o art. (…), seção AA, e ainda a parte urbana inscrita na matriz sob o art. (…), prédios esses que existem, tendo sido agricultados pelos pais da arguida, que residiram na casa de habitação aí existente (factos provados em 2, 6, 8 a 10, e 14 a 18). Improcede, assim, a argumentação da recorrente.
Quanto ao elemento subjetivo do crime: O crime previsto no art. 348º-A do Código Penal impõe a prova do dolo, em qualquer das suas vertentes (art. 14º do Código Penal). No caso, a procedência da alegação recursiva da arguida dependia da prévia alteração da matéria de facto, nomeadamente dos factos provados em 22, 23, 24, 25 e 26. Na sentença crime, o direito é aplicado aos factos declarados como provados, conforme decorre do art. 368º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal. As questões de direito a decidir são, assim, as que os factos provados suscitem. Assentando a recorrente a sua alegação recursiva em factos contrários aos que ficaram provados, a saber, que prestou declarações verdadeiras ou na convição de que eram verdadeiras (o que não se provou), tanto basta para a improcedência da sua pretensão – concluindo-se, como fez o tribunal a quo na decisão recorrida, pelo preenchimento do elemento subjetivo do tipo legal de crime em causa nos autos.
- Causas de exclusão: O mesmo se diga quanto à verificação das causas de exclusão cuja aplicação é preconizada pela recorrente. Estabelece o art. 16º, n.º 1, do Código Penal que “O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo legal de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo”; acrescentando o nº 2 que “O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente”. Por sua vez, o art. 17º, nº 1, do mesmo Còdigo dispõe que “Age sem culpa quem atuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável”. Trata-se de causas de exclusão da culpa e/ou ilicitude distintas, que a recorrente não fundamenta, bastando-se com a afirmação de não ter prestado falsas declarações, por ter a convição de não estar a mentir, porque tinha comprado o prédio que justificou. Esta matéria pressupunha a prévia alteração da matéria de facto, através de uma efetiva impugnação da matéria de facto que a recorrente não efetuou. Como acima se referiu, a sentença pronuncia-se sobre todas as questões de direito suscitadas pelos factos declarados como provados (art. 368º, n.º 3, do Código de Processo Penal). Assim, a ausência de factos provados donde se possa extrair a verificação de qualquer uma das mencionadas causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, conforme refere a decisão recorrida, determina, sem margem para dúvidas, a improcedência do argumento recursivo em análise. Reafirma-se, pela sua correção, o que consta da decisão recorrida: “Não se tendo provado quaisquer factos que preenchessem os pressupostos de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, conclui-se que a arguida cometeu, em autoria material e na forma consumada, um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348º-A, n.ºs 1 e 2, do Código Penal”. A recorrente alega que o crime de falsas declarações tem um caráter residual, impedindo a certeza da lei penal exigida na Constituição da República Portuguesa. Assim, defende que a expressão “se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”, na parte final do n.º 1 do art. 348º-A do Código Penal, viola o princípio consagrado no art. 29º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, encontrando-se o próprio tipo legal de crime ferido de inconstitucionalidade. Vejamos: O princípio constitucional da legalidade penal, mais concretamente, a exigência de determinabilidade do conteúdo da lei criminal, encontra-se consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, e assenta no seguinte pressuposto (citando o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 716/12, de 20.2.2013, rel. João Cura Mariano): “num Estado de direito democrático, a prevenção do crime deve ser levada a cabo com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, estando sujeita a limites que impeçam intervenções arbitrárias ou excessivas, nomeadamente sujeitando-a a uma aplicação rigorosa do princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). É neste sentido que o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, dispõe que «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior», consagrando um dos princípios constitucionais básicos em matéria de punição criminal. Este princípio determina que a descrição da conduta proibida e de todos os requisitos de que dependa em concreto uma punição tem de ser efetuada de modo a que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal. Parte Geral”, tomo I, pág. 186, da 2ª ed. da Coimbra Editora). Daí que, incindivelmente ligado ao princípio da legalidade se encontre o princípio da tipicidade, o qual implica que a lei deve especificar suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos de medida de segurança), bem como tipificar as penas (ou as medidas de segurança). A tipicidade impede, assim, que o legislador utilize fórmulas vagas, incertas ou insuscetíveis de delimitação na descrição dos tipos legais de crime, ou preveja penas indefinidas ou com uma moldura penal de tal modo ampla que torne indeterminável a pena a aplicar em concreto. É um princípio que constitui, essencialmente, uma garantia de certeza e de segurança na determinação das condutas humanas que relevam do direito criminal (cfr. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, ob. cit., pág. 495, e Lopes Rocha, A função de garantia da lei penal e a técnica legislativa, in Legislação – Cadernos de Ciência e Legislação, n.º 6, janeiro-março de 1993, pág. 25). O princípio da tipicidade tem que ver, assim, com a exigência da determinabilidade do conteúdo da lei criminal. Conforme escreve Taipa de Carvalho (Constituição Portuguesa Anotada, org. por Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo I, 2.ª edição, revista, atualizada e ampliada, Wolters Kluwer Portugal - Coimbra Editora, 2010, pág. 672), «dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade ou mesmo contra a discricionariedade judicial, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime. Só assim o cidadão poderá saber que ações e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança. Daqui resulta a proibição de o legislador utilizar cláusulas gerais na definição dos crimes, a necessidade de reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados, e o imperativo de não recorrer às chamadas “normas penais em branco”, salvo quando tal recurso se apresente como manifestamente indispensável e a norma para que é feita a remissão seja clara na descrição da conduta punível. Esta exigência, decorrente da razão de garantia do princípio da legalidade penal, é denominada por princípio da tipicidade, traduzido pela conhecida formulação latina nullum crimen sine lege certa.»” Assim, o que está em causa é saber se o crime de falsas declarações, previsto no acima transcrito art. 348º-A do Código Penal, é desconforme à Constituição por não cumprir as exigências do princípio da tipicidade, mercê do conteúdo do tipo legal ser demasiado genérico. A resposta tem de ser positiva. Na verdade, as várias ações típicas suscetíveis de preencher o elemento objetivo do tipo de ilícito em questão encontram-se descritas de forma suficientemente precisa e inteligível, permitindo, com suficiente precisão, que os destinatários da norma orientem o seu comportamento. Acresce que, podendo uma mesma conduta criminosa preencher vários crimes (como sucede, p. ex., com os crimes previstos nos arts. 359º e 360º do Código Penal), o tipo legal de crime resolveu a questão do concurso de crimes, tornando claro que o agente apenas será punido por um deles, a saber, o crime que previr a pena mais grave. Daqui não decorre igualmente a violação do referido princípio constitucional. Não se mostra, pois, violado, com esta incriminação, o princípio da legalidade criminal. *
Nestes termos, nega-se provimento ao recurso interposto pela arguida L., mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se em 4 UC’s a taxa de justiça – arts. 513º do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à tabela III anexa ao mesmo Regulamento.
Coimbra, 17 de fevereiro de 2021
Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora)
João Bernardo Peral Novais (adjunto)
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