Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
96/11.0T2AVR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
ÓNUS DA PROVA
INDEFERIMENTO LIMINAR
CUMULAÇÃO
JUROS
Data do Acordão: 10/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 238º, Nº 1, AL. D) DO CIRE
Sumário: I- No incidente de pedido de exoneração do passivo restante é sobre o administrador da insolvência e/ou os credores que impende o ónus de prova da ocorrência das situações previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artº 238º do CIRE que determinam o indeferimento liminar de tal pedido.

II- Decorre da al. d) do nº 1 daquele normativo legal que são três os requisitos que, uma vez verificados cumulativamente, fundamentam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo:

a) – O incumprimento do dever de apresentação à insolvência ou, não estando a tal obrigado, a sua não apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;

b) – A existência de prejuízos para os credores decorrentes desse incumprimento;

c) - Saber o devedor, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

III- Do simples facto de o insolvente se apresentar tardiamente à insolvência não se pode presumir, sem mais, a verificação de prejuízo para os credores.

IV- Esse prejuízo, a que se alude naquela norma, terá que ser efectivo e consubstanciado ou concretizado em factos que autorizem a conclusão quanto à existência do mesmo, e tendo sempre como causa ou relação a apresentação tardia à insolvência.

V- O simples acumular de juros não integra, por si só, o conceito de prejuízo de que se fala no citada norma.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. J… e sua mulher M… apresentaram-se – no Juízo de Comércio, da Comarca do Baixo Vouga - a requerer a sua declaração de insolvência, a qual veio a ser decretada por sentença proferida em 03/02/2011, devidamente transitada.

2. Na respectiva petição inicial (entrada em juízo em 20/01/2011), aqueles requerentes pediram ainda que fossem exonerados do passivo restante, com base nos fundamentos ali aduzidos e com a declaração de reunirem os pressupostos legais exigidos para o efeito

3. Pedido esse que mereceu a opinião favorável da srª administradora da insolvência no seu relatório que apresentou (à luz do artº 155 do CIRE), e que na assembleia de credores que se lhe seguiu (artº 156 do CIRE) teve ali a opinião desfavorável do credor Banco …, SA., e a não oposição dos credores Banco …, S.A., e do Instituto de Segurança Social.

4. Mais tarde, após a realização da aludida assembleia de credores, por despacho, de 11/07/2011, decidiu-se indeferir liminarmente o referido pedido de exoneração do passivo restante (tendo como fundamento a verificação da situação prevista na al. d) do artº 238 do CIRE).

5. Inconformados com tal decisão, aqueles requerentes/insolventes dela interpuseram recurso de apelação.

6. Nas correspondentes alegações desse recurso que apresentaram (conjuntamente), aqueles requerentes/insolventes formularam as seguintes conclusões finais:

6. Não foram apresentadas contra-alegações a tal recurso.

7. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação


A) De facto.

Pelo tribunal da 1ª instância foram dados como assentes os seguintes factos

...


***

B) De direito.

1. Do objecto do recurso.

É sabido (entendimento, pacífico, que continua a manter-se com a actual reforma, aqui aplicável, introduzida ao CPC pelo DL nº 303/2007 de 24/8 - artºs 684, nº 3, e 685-A, nº 1) que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o seu objecto.

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do presente recurso verifica-se que a única questão que importa aqui apreciar e decidir, traduz-se em saber se no caso em apreço ocorre ou não a situação prevista na al. d) do nº 1 do artº 238 do CIRE.

Apreciamos.

Na verdade, foi, unicamente, com base na verificação da situação prevista em tal normativo que o tribunal a quo fundamentou o indeferimento do pedido dos insolventes/ora apelantes no sentido de serem exonerados do passivo restante, e que estes últimos entendem não ocorrer.

Em breve nota, importa começar por referir que esta medida incidental (de exoneração do passivo restante) embora constituindo, entre nós, uma novidade ao nível dos procedimentos falimentares, todavia, ela já há muito se encontra sedimentada em outros ordenamentos jurídicos, tais como dos Estados Unidos e da Alemanha, nos quais o nosso legislador se inspirou.

Visando, como é sabido, o actual código falimentar primordialmente a satisfação, na medida do possível, dos interesses dos credores dos insolventes (tal como decorre do artº 1 do CIRE), todavia, esta particular medida, que é específica das pessoas singulares, tem como seu objectivo principal, já não a satisfação dos credores dos insolventes - embora, reflexamente, não olvide por completo esses seus interesses, na medida em que são impostos apertados limites para a sua admissão -, mas conceder uma segunda oportunidade ao devedor insolvente, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito do processo de falência.

Ou, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, Quid Juris, pág. 184”) a exoneração do passivo restante “traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se do passivo restante”.

No nº 1 do citado artigo 238 do CIRE estão fixados os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Todavia, a esse propósito, importa ainda referir (citando Assunção Cristas, in “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, in “Novo Direito da Insolvência”, Rev. Themis, ed. especial, 2005, págs. 169/170”) que «o indeferimento liminar a que a lei se refere não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais, uma vez que os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz. O mérito não é sobre a concessão ou não da exoneração, pois essa análise será feita passados cinco anos. Aqui o mérito está em aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada (…)».

Com excepção da al. a) – que é de cariz processual, pois que se reporta ao prazo em que deve ser apresentado o pedido -, todas as demais alíneas que se integram no nº 1 do citado artº 238 têm natureza substantiva e referem-se a comportamentos do devedor que justificam a não concessão da exoneração (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Ob. cit., pág. 190”).

Ora, uma das situações que conduz ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo (restante) é aquela que se encontra elencada na al. d) do nº 1 do citado artº 238 (sendo que, como já deixámos expresso, foi com base, exclusivamente, nela que o tribunal a quo justificou o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo que os insolventes formularam).

Pelo que cumpre indagar se ela ocorre ou não.

Dispõe o aludido artº 238, nº 1 al. d), que:

“O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

Como decorre da referida norma, são três os requisitos que, uma vez verificados cumulativamente, determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo:

a) – O incumprimento do dever de apresentação à insolvência ou, não estando a tal obrigado, a sua não apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;

b) – A existência de prejuízos para os credores decorrentes desse incumprimento;

c) - Saber o devedor, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Sendo tais requisitos cumulativos, pergunta-se sobre quem impende o ónus da sua prova?

Como constitui entendimento prevalecente, a distinção entre factos constitutivos e factos impeditivos da pretensão formulada pelo autor deve procurar-se na interpretação e aplicação da norma substantiva que serve de fundamento à pretensão de cada uma das partes.

Fazendo tal exercício, é-se conduzido à conclusão de que o fundamento de - indeferimento liminar de exoneração do passivo - previsto na al. d) do nº 1 do citado artº 238 (o mesmo acontecendo, diga-se, em relação aos demais fundamentos previstos nas restantes alíneas desse normativo) assume a natureza impeditiva da pretensão de exoneração do passivo formulada pelo insolvente, ou seja, configura um facto impeditivo (e não constitutivo) do “direito” à referida à exoneração do passivo (restante). Aquela pretensão bastar-se-á (como facto constitutivo da mesma) com a alegação pelo requerente da sua qualidade de insolvente e do que demais lhe é exigido pelo artigo 236, nº 3, do CIRE.

Nesses termos, e atento o disposto no artigo 342, nº 2, do CC, será sobre o administrador da insolvência e/ou os credores do insolvente que impende o ónus de prova da verificação ou ocorrência de qualquer dos fundamentos (situações) ou requisitos previstos nas diversas alíneas do nº 1 do citado artº 238, e nomeadamente, atento o caso sub júdice, daqueles, acima descritos, que integram a previsão da al. d) desse normativo legal. (No sentido exposto, vide, a propósito, e para mais e melhor desenvolvimento, Acs. do STJ de 06/07/2011, proc. 7295/08.0TBBRG.G1.S1, e de 21/10/2010, proc. 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj; e o prof. A: Varela, in “RLJ, Ano 117, págs. 26 e ss.”).

Posto isto, avancemos para a resolução da problemática questão acima equacionada, e que, relembre-se, se traduz em saber, se, in casu, se mostra verificado o fundamento prevista na al. d) do nº 1 do referido artigo 238, o qual, como vimos, se desdobra nos três requisitos (cumulativos) que supra deixámos enunciados.

Embora defendendo que os demais também não se mostram verificados, os apelantes, tal como ressalta das suas conclusões de recurso, dão particular ênfase à inverificação do requisito do prejuízo.

Comecemos, pois, assim, pela análise de tal requisito, o qual, desde já, avancemos não se mostra preenchido.

Como vem sendo prevalecentemente entendido, do simples facto de o insolvente se apresentar tardiamente à insolvência não se pode presumir, sem mais, a verificação de prejuízo para os credores, já que, na estrutura da norma, se autonomizou este requisito, pelo que a considerar-se o prejuízo implícito ou automático não faria sentido essa autonomização. Se assim fosse, estava então claramente posto em causa o princípio ínsito no artº 9, nº 3, do CC, de que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

Assim, essa autonomização só será compreensível se o referido prejuízo tiver de ser concluído à luz dos factos apurados. Ou seja, esse prejuízo terá que ser efectivo e consubstanciado ou concretizado em factos que autorizem a conclusão quanto à existência do mesmo, e tendo sempre como causa ou relação a apresentação tardia à insolvência.

E para tal não se argumente (como o faz uma certa corrente jurisprudencial, e da qual parece partilhar o tribunal a quo) sequer que a apresentação tardia à insolvência faz avolumar os juros, e consequentemente aumentar os débitos, no que redonda em natural prejuízo para os credores.

“Na verdade – e como se escrevem no acórdão do STJ de 21/10/2010, acima referido e que passaremos a citar - o regime estabelecido na primeira parte do nº 2 do artigo 151º no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, que estabelecia a cessação da contagem dos juros “na data da declaração de falência” deixou de existir com o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, passando os juros a ser considerados créditos subordinados, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 48º deste Código (…).

Quer dizer, actualmente e em face do regime estabelecido no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os créditos continuam a vencer juros após a apresentação à insolvência, pelo que o atraso desta apresentação nunca ocasionaria qualquer prejuízo aos credores.

Dito doutro modo: se no regime anterior, estabelecido no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência se podia pôr a hipótese de quanto mais tarde o devedor se apresentasse à insolvência, mais tarde cessaria a contagem de juros, com o consequente aumento do volume da dívida, no regime actual, que se aplica ao presente processo, tal hipótese não tem cabimento, uma vez que os credores continuam a ter direito ao juros, com a consequente irrelevância do atraso da apresentação à insolvência para o avolumar da dívida.”

Em suma, como os juros se continuam a vencer após a apresentação à insolvência (contrariamente ao regime falimentar anterior), o atraso na apresentação não pode causar prejuízo, visto que os credores continuam com direito aos juros que entretanto se vencerem. E daí que o simples acumular de juros, não pode integrar o conceito de prejuízo de que se fala no citado normativo legal (al. d) do nº 1 do artº 238). Neste sentido, vide, entre outros, Acs RLx de 14/5/2009 e de 14/12/2010; Acs. da RP de 11/1/2010; de 14/1/2010, 7/10/2010; de 18/11/2010 e de 21/10/2010 e Acs. da RC de 23/11/2010; de 2/3/2011 – este relatado pelo des. Jorge Arcanjo e no qual o ora relator e o 1º adjunto intervieram como adjuntos -; de 12/4/2011 e de 10/5/2011, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Ora, sendo assim, e calcorreando a matéria factual onde o tribunal a quo fez assentar a decisão recorrida, somos levados à conclusão de que não vislumbramos nela qualquer facto concreto que seja capaz de exprimir qualquer prejuízo (concreto) para os credores resultante da (eventual) apresentação tardia dos ora apelantes à insolvência. Nomeadamente, deles não se extrai qualquer facto que, após a data da consolidação de facto da insolvência, exprima qualquer acto conducente à dissipação pelos insolventes do seu património ou qualquer diminuição das suas garantias patrimoniais, e nem sequer qualquer outro comportamento que se revele ilícito, desonesto, de má fé ou desleal, do qual tenha resultado qualquer prejuízo efectivo para alguns dos seus credores (sendo de notar ainda, e a tal propósito, que a suas insolvências foram, à semelhança da sociedade “A…” de que eram os únicos sócios, qualificadas de fortuitas).

Aqui chegados, e como supra adiantámos, somos levados a concluir que - por falta de prova do mesmo, quer por parte da srª administradora da insolvência, quer por parte dos credores – não se mostra, desde logo, preenchido o requisito do prejuízo (dos credores).

Ora, tanto basta para se conclua pela inverificação da situação prevista no artº 238, nº 1 al. d), do CIRE, que fundamentou a decisão recorrida do indeferimento liminar do pedido exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes/apelantes, pois que sendo, como vimos, três os requisitos cumulativos que a integram, a falta de um deles é por si só bastante para afastar o aludido indeferimento liminar, viabilizando-se, assim, a passagem à fase processual seguinte.

E nesses termos julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão da 1ª instância.


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III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro a admitir liminarmente o incidente (de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes/ora apelantes).

Custas pela massa insolvente (artº 304 do CIRE).


Isaías Pádua (Relator)
Teles Pereira
Manuel Capelo